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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES – FCA


Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea
(ECCO)

Luiz Gustavo de Souza Lima Junior

Memorial Acadêmico

Cuiabá
Abril/2017
Luiz Gustavo de Souza Lima Junior

O CORPO-TRAMA NUMA NARRATIVA-CIBORGUE


Gênero, ficção e tecno-racionalidades contemporâneas

Memorial Acadêmico a ser apresentado à banca de


qualificação junto ao Programa de Pós-graduação em
Estudos de Cultura Contemporânea, da Faculdade de
Comunicação e Artes - Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT) como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor na área de
Humanidades.

Orientador: Prof. Dr. José Carlos Leite

Cuiabá
Abril/2017
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Introdução

Este memorial acadêmico tem por função apresentar à banca examinadora a minha
trajetória acadêmico-profissional enquanto pleiteante ao título de doutor na área
interdisciplinar de Humanidades. Para isso, descreverei os caminhos e escolhas que realizei
durante os últimos 15 anos, desde a formação inicial em História (Licenciatura e
Bacharelado), assim como no Mestrado no Programa de Pós-graduação História, Territórios e
Fronteiras e, finalmente, quando do ingresso no Programa de Pós-graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea. Em linhas gerais, mesclo a trajetória acadêmica com as realizações
que impulsionaram e foram impulsionadas pelos desafios experimentados durante os últimos
anos.

Apresentação
Sou Luiz Gustavo de Souza Lima Junior, natural de Campo Grande, Mato Grosso do
Sul. Nasci em 08 de junho de 1984 e, em abril de 1989 pude acompanhar meus pais no seu
deslocamento para Cuiabá-MT, distante cerca de 650 quilômetros ao norte da minha cidade
natal. Esse deslocamento se deu por conta da abertura de um pequeno empreendimento
comercial dedicado à venda de peças de bicicletas, localizado na avenida XV de Novembro,
no bairro do Porto, em Cuiabá. Já nas conversas familiares soube que a poucos anos do meu
nascimento ainda não havia a fronteira geopolítica que passou a distinguir MT e MS. Essa
lembrança do deslocamento era sempre reforçada com as viagens de fim de ano e o
“reencontro” com os parentes para as festas de fim de ano.
Ainda com cinco anos incompletos já experimentava, a partir de um ponto de vista
particular e obviamente infantil os fluxos migratórios e a busca para estabelecer o núcleo
familiar: salão predial alugado, moradia em casas populares, aposta no ensino particular como
“ambiente adequado” ao aprendizado das crianças e os eternos jargões: estude para não ser
um de nós e ficar preso ao balcão da loja! Porém, nunca tive um olhar de distanciamento para
a loja de peças. Aliás, lá era o meu parque de diversões, onde eu misturava cabos de freio com
esferas, correntes, parafusos e maçanetas, imaginando aquelas precárias composições como
réplicas dos personagens da televisão e, mesmo, dos campos de batalhas que eles
frequentavam. Ali eu pude experimentar os primeiros desenhos utilizando papel e caneta;
pude me esconder nos fardos de pneus e outras mercadorias; tomar contato com gente que
talvez nunca conheceria e, do lado de cá do balcão, experimentar uma linguagem corpórea e
oral muito específicas daquele lugar: apoiado no balcão de vidro, camisa dentro da calca e

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cabelos penteados, oferecia ajuda à freguesia: Pois não, senhor?! Boa parte da infância e
adolescência vivi dentro desse ambiente, ajudando com os serviços bancários, atendendo no
balcão.

Trajetória Acadêmica
Quando iniciei a graduação em História, em 2002, pude experienciar um processo de
abertura para outros afetos, desses que mudam completamente a trajetória de um sujeito. A
entrada na UFMT, ainda com 18 anos incompletos foi um processo muito interessante do
ponto de vista da formação: pude participar de um projeto de pesquisa ligado à Funarte e que
lidava com fotografias históricas. O projeto tinha como pesquisador local o prof. João
Antônio Lucídio, que posteriormente veio a ser meu orientador do trabalho de Conclusão do
Curso de História. Neste, pude aliar o trabalho de pesquisa com fotografias ao principal
produtor de um olhar sobre o Mato Grosso republicano: Cândido Rondon.
Posteriormente, entre os anos de 2008 e 2010, sob a orientação da professora Regina
Beatriz Guimarães Neto pude realizar a pesquisa intitulada “Por uma geodésica do
acontecimento: a operação cartográfica na obra de Cândido Rondon (1900-1952)” em que
analisei a produção da obra Carta de Mato Grosso e Regiões Circunvizinhas pelo Ministério
da Guerra, projeto coordenado por Rondon e seu principal auxiliar, o Tenente-Coronel
Francisco Jaguaribe de Mattos. A pesquisa se deu em arquivos de Cuiabá e do Rio de Janeiro,
principalmente no Museu do Índio e Museu do Exército. O trabalho foi uma espécie de
continuidade ao que vinha me dedicando ainda durante a graduação. Entre mapas, croquis e
outros documentos pude acompanhar de muito perto, junto à Daniela, a gestação e nascimento
da Maria Flor, minha filha.
Ao final desse trabalho, pude me dedicar às atividades docentes com maior afinco e,
assim, iniciei uma jornada por escolas das redes particular e pública na grande Cuiabá.
Depois, em 2011, seguimos os três para uma temporada em São Paulo, quando tive uma
oportunidade de trabalhar junto ao Museu da Pessoa e, principalmente, com a metodologia
intitulada Tecnologia Social da Memória. Lá, pude realizar entrevistas de história de vida,
assim como tomar contato com centenas de textos, assumindo as funções de pesquisador,
revisor e editor textual das narrativas pessoais compartilhadas no site do Museu1.
De volta a Cuiabá, em 2012, eu participara, em simultâneo, de alguns encontros da
ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e Práticas em Educação Popular e Saúde,

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Site do Museu
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quando fiz o primeiro esboço do projeto de pesquisa para o doutorado, assim como passei a
compor o grupo de estudos Assinatura dos Corpos, coletivo que se reunia a cada quinze dias
para discutir textos de diversos autores latino-americanos.
Em 2014, com o projeto “Saber sacralizado, corpo sintético: O que pode o debate
colonialidade/decolonialidade na experiência do cuidado?”, matriculei-me junto ao PPG-
ECCO, sob orientação do prof. José Carlos Leite.
Durante esses três primeiros anos pude participar de dois encontros acadêmicos
internacionais: em San Juan, Porto Rico (LASA - Latin American Studies Association) e em
Cuiabá FOLKCOM (Cultura Popular e Comunicação), além de vários seminários e encontros
nacionais com temáticas diversas, como Saúde e participação popular na ABRASCO –
Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Pude participar da organização de eventos, como a
Tenda Paulo Freire, espaço de compartilhamento de experiências em Educação popular e
Saúde.
Em 2014, participei do projeto de extensão “Saberes e Práticas do Cuidado: Sujeitos e
diálogos”, em parceria com o departamento de Filosofia e Uniselva, sob financiamento do
Ministério da Saúde. Foi uma das experiências mais marcantes da trajetória desta pesquisa,
pois, junto a uma equipe de 12 educadores e terapeutas populares pude estar em contato com
mais de 700 pessoas, entre alunos da educação básica, moradores de comunidades diversas,
incluindo o meio rural, atuantes em diversas profissões, como agricultores, professores,
terapeutas, participantes de comunidades eclesiais de base, entre outros. Por conta da
necessidade dos deslocamentos e das dimensões de Mato Grosso, pude conhecer municípios
que estão num raio de 700 km de distância de Cuiabá, já próximo à divisa com o estado do
Pará, como foi o caso de Juína.
Ao final do projeto, editei um vídeo-documentário com as experiências que
desenvolvemos em campo, assim como participei da equipe de redatores e sistematizadores da
cartilha Educação Popular e Saúde: diálogos entre o saber popular e o saber científico2. Ainda
sobre o projeto de extensão, não posso me esquecer de um dos momentos mais importantes,
que foi durante a oficina “Memórias do Cuidado”, realizada em Rondonópolis, distante cerca
de 200 km de Cuiabá. Esta atividade buscou explorar a vocalização de mulheres a partir das
memórias sobre os processos terapêuticos mais marcantes que realizaram ou que haviam
recebido em sua trajetória de vida. As narrativas foram das mais diversas, desde momentos
engraçados e, mesmo, de lembranças do convívio familiar até relatos de violência sofridos na

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Inserir o link para o vídeo.
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infância, algo que ajudou a perceber aspectos da vida privada das pessoas envolvidas. Sem
dúvida, uma experiência que marcou minha trajetória inicial de pesquisa e que ajudou a
visualizar a estética do cuidado como algo muito presente nos discursos das mulheres.
Além das experiências em campo, a formação em um programa de pós-graduação de
orientação interdisciplinar tem proporcionado o contato com uma bibliografia e, mesmo,
abordagens teóricas diversas, além de abranger o contato com professores e colegas de
diferentes formações. O quadro docente abriga professores com formações em Filosofia,
Sociologia, assim como nas áreas de Linguística, Semiótica, Psicologia, Arquitetura, Cinema,
Música, entre outras. Já no quadro discente encontram-se historiadores, jornalistas, radialistas,
administradores, educadores, artistas da cena, como dança, música, teatro, cinema e
dramaturgia, entre tantos outros. Acredito que a pluralidade de perspectivas, mesmo que em
alguns momentos tenha proporcionado divergências cruciais, antes disso, tem possibilitado
uma caminhada com muita troca e abrangência.
Como parte desta caminhada, devo ressaltar que algumas atividades de exposição
foram fundamentais para ajudar a digerir uma bibliografia pouco usual e, desse modo, a
pensar o objeto a partir de um ferramental outro. Esse foi o caso da palestra “Cuidado com o
olhar canibal: objetividade e epistemologias de alocação em Donna Haraway”, que ministrei
aos alunos do curso de Bacharelado em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso. O
convite fora feito pelo meu orientador, o Prof. Dr. José Carlos Leite e a apresentação realizada
durante uma aula no curso de Filosofia da Ciência no segundo semestre de 2014. A
bibliografia principal, o texto Saberes Localizados, da feminista estado-unidense Donna
Haraway, sugestão que fazia parte da disciplina Tópicos Especiais em Epistemes
Contemporâneas, ganhou destaque nos textos que passei a propor aos eventos acadêmicos que
pude participar.
Outra atividade que muito colaborou para a minha caminhada de trocas e contato com
a diferença se deu durante a disciplina “Abordagens Qualitativas para a Pesquisa em Saúde
Coletiva”, a qual fui convidado pela Prof.ª Dr.ª Marcia Bomfim Arruda para discutir o papel
dos relatos orais e, mesmo, da História Oral enquanto perspectiva qualitativa para a pesquisa
com pessoas. Na ocasião, pude apresentar um pouco dos enfrentamentos que passei a operar
durante a pesquisa em campo, que consistia em conversar com mulheres dedicadas aos mais
diversos tipos de cuidado, como a fabricação de garrafadas, a prática de massagens e, mesmo,
o cuidado com parturientes que não tinham acesso ao serviço estatal. Com algumas pude,
inclusive, registrar a conversa em suporte audiovisual, ou, mesmo, em áudio, algo que ajudou

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posteriormente na composição de uma paisagem temáticas dos encontros que realizei em
campo. Pouco tinha escrito sobre as possíveis verticalidades que esses encontros
proporcionaram mas, para a tese, durante esse período de qualificação, percebi o quão
importantes foram, inclusive os declínios, os momentos em que não pude tomar contato com
as pessoas que queria, ou que acabei registrando algo que eu acreditava não trazer
contribuição alguma ao meu trabalho. Enfim, tenho percebido durante este período de escrita
a pertinência de algumas escolhas que fiz no início da pesquisa e que, hoje, se tornaram
fundamentais para situar o meu lugar de fala perante aquilo que chamei de trabalho de campo.
Antes disso, quero lembrar dos caminhos percorridos pelas análises e levantamentos
bibliográficos que puderam ser expostos em seminários. Não posso deixar de referenciar que
a minha participação nesses eventos e, mesmo, em boa parte da pesquisa em campo se deu
com o apoio da Bolsa CAPES.
A primeira participação se deu no Seminário Humanidades em Contexto, promovido
pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT em 2014. Na ocasião, fiz uma
comunicação com o texto Cuidado em saúde e colonialidade do ser: perspectivas para um
saber-fazer corporificado, no qual eu buscava uma aproximação entre a bibliografia do
chamado giro decolonial junto à temática do cuidado em saúde. O artigo parte de uma revisão
bibliográfica para discutir as poéticas do cuidado que remetiam ao trabalho de parteiras e
benzedeiras. O desdobramento desse texto se deu no encontro da LASA – Latin American
Studies Association, ocorrido em San Juan, Porto Rico. Por um saber-fazer corporificado: o
cuidado em saúde numa perspectiva decolonial foi uma tentativa de apronfundar o debate
sobre a colonialidade do saber e do ser a partir dos textos de importantes pensadores do giro
decolonial, como Nelson Maldonado-Torres e Aníbal Quijano. Além disso, participar de um
evento internacional foi de grande valia pois pude assistir a palestras de nomes que conhecia
através dos livros, como Boaventura de Sousa Santos e, mesmo, os dois autores acima
citados.
Um pequeno parêntese sobre a literatura decolonial e o grupo de estudos Assinatura
dos Corpos se faz necessário, pois são fundamentais para a minha caminhada acadêmica. Isto
porque, durante cinco anos o grupo estimulou a leitura de obras que, de certa forma, se
tornaram clássicos para se pensar a partir da América Latina3, assim como abriu a

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Aqui posso falar da obra 1492: o encobrimento do outro, além de outras tantas do filósofo argentino Enrique
Dussel; a produção do uruguaio Walter Mignolo (The Darker Side of the Western Mordernity e Histórias locais,
projetos globais), além da extensa produção sobre o conceito de raça e colonialidade do poder na obra do
peruano Aníbal Quijano, assim como de Rámon Grosfoguel, Santiago Castro-Gomes, Edgardo Lander, entre
outros.
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possibilidade de um grupo de jovens estudantes pudessem tomar contato de uma maneira
disciplinada e, ao mesmo tempo, criativa sobre os textos propostos. A proximidade com a
essa literatura que, em grande parte, está publicada em espanhol e se remete a autores que
habitam ou são de origem de países vizinhos proporcionou a ampliação qualitativa quanto ao
conhecimento da produção intelectual latino-americana. Este salto também se deu pois, assim
como os autores, seus recortes temáticos extrapolavam aquilo que eu havia conhecido durante
a graduação e o mestrado em História, acrescentando diálogos importantes com as Ciências
Sociais, a Filosofia e as Artes, assim como a literatura.
O envolvimento com o grupo de estudos impulsionou o próprio trabalho cotidiano da
pesquisa, pois além de fornecer boa parte do suporte teórico mantinha-me em contato com o
trabalho de outros colegas que estavam diante dos mesmos desafios, instados a contribuir com
as discussões, trazendo à roda problemas e problemáticas singulares, algo que contribuía com
a produção de sentido aos textos.
Com esse apoio, as idas a campo durante o projeto de extensão ganhou cores intensas,
assim como possibilitou perceber que a atividade de pesquisa, no caso específico deste
projeto, não se encerrava em determinados nichos, como as comunidades visitadas durante os
trabalhos junto ao grupo de educação popular. Comecei a perceber que os próprios colegas de
jornada em campo passaram a trazer informações e a serem interlocutores precisos das
conversas que eu passara a construir. Assim, o meu raio de ação começou a se alargar e, sem
perceber, estava inundado possibilidades de escrita e leituras sobre as discursividades que eu
insistia em buscar.
O celular e seu aplicativo de gravador de voz passou a me acompanhar em boa parte
dos meus deslocamentos, principalmente durante os eventos dedicados à saúde da discussão
da participação social. Algumas horas de conversa foram gravadas durante as Conferências
Municipais de Saúde, assim como na plenária Estadual em Cuiabá e a Nacional, em Brasília,
em dezembro de 2015.
Sobre isso, comento a minha participação nesses eventos que julgo de extrema
relevância para o amadurecimento da discussão política dentro da pesquisa e, mesmo, os
desvios que passei a fazer como forma de dar cabo do seu desenvolvimento. Como membro
de um coletivo de ativistas que discutem e incentivam a participação social por meio do
diálogo interseccional, compus junto aos comitês organizadores locais as chamadas Pré-
Conferências, ou, de outro modo, Conferências Livres, uma espécie de prévia das
conferências de saúde que ocorreram no ano de 2015.

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O meu envolvimento com esse tipo de atividade se deu por conta de que, desde o
início do contato com o coletivo de educadores populares, pude ler e ouvir durante as rodas de
conversa que parte da história de construção do SUS se deu via conferências de saúde. Assim,
esses eventos passaram a ser instâncias importantes para entender a estrutura que, de certa
forma, programou as plataformas que desenharam os modelos de assistência à saúde estatais.
De certo modo, essa discussão foi importante para que eu pudesse entender parte da discussão
sobre a política de assistência ao parto e como as políticas estatais implicaram e, ainda
implicam no condicionamento dos corpos e na construção de emaranhados coletivos. A partir
desse contato a discussão sobre a biopolítica construída por Foucault em sua História da
Sexualidade e que eu havia tomado contato, mesmo que de maneira tímida, ainda no
mestrado, passava a fazer todo o sentido.
Após um certo período, esse tipo de leitura fez-me perceber como um corpo estranho
dentro dos encontros da educação popular e, assim, passei a questionar, ainda que de modo
pouco aberto, as agências formadoras que insistiam em pautar os debates da população que se
dispunha a participar dos debates e das conferências. Mesmo com um tom aberto, livre e
democrático, eu podia perceber que os assuntos tendiam a determinadas visões e impediam
outras, principalmente as que produziam a dissidência ideológica. A tão sonhada pluralidade
de vozes se reduzia a alguns subgrupos ou, mesmo, a algumas pessoas que indicavam e
delimitavam os assuntos de acordo com os recortes pré-indicados em debates entre as
lideranças do movimento. Esse ritmo pasteurizado de formação dos quadros de educadores
populares contribuiu para que eu pudesse elaborar um olhar mais crítico para tais ambientes
de produção do saber. Diante da bibliografia e das discussões sobre a colonialidade do saber e
do ser, eu acabava me questionando: não seria a minha ação de formação uma extensão do
Estado que conclamara agentes e agências para performar segundo seus ditames e escolhas?
Para ser mais claro, não estaria eu agindo como mais um das sentinelas que indicavam aos
demais como se portar diante da experiência do Estado cuidador/controlador?
Porém, apesar de todas as discordâncias de caráter teórico, tenho facilidade em
acessar lembranças das mais agradáveis dentro do movimento de educação popular, como as
oficinas de práticas integrativas, onde ocorriam formação em massoterapia e suas várias
vertentes, como a reflexologia, assim como os inúmeros corredores do cuidado 4 que pude
construir, cuidar e me contaminar de bons fluidos.

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A atividade consiste em construir, de forma coletiva, um ambiente em que todos cuidam e são cuidados. Esses
cuidados passam por diversas técnicas, em sua maioria, cotidianas, como um abraço, um aperto ou massagem
nas mãos, pés e costas, tudo de modo muito amador e que se adequada à disponibilidade dos participantes. Pode
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Além disso, o envolvimento com a educação popular e os movimentos sociais me
proporcionaram um olhar menos aflito com relação à corporeidade. Aliás, permitiu-me
perceber sintaxes e outros discursos e potências que são facilmente manipuláveis pela via da
pele, do toque, mas que nem sempre se coadunam ou necessitam do complemento da palavra
ou do discurso oral. Esse refinamento do olhar possibilitou que eu passasse a questionar o
meu gestual e, assim, a delimitar menos a corporeidade dos que estavam ao alcance dos meus
olhos. A percepção da fluidez manteve aberta a necessidade de enfrentar a temática do olhar
para a discursividade dos corpos e, principalmente, proporcionou um encantamento com as
artes de maneira mais verticalizada. Tanto que passei a compor, junto a um grupo de atrizes,
atores, iluminadoras e músicos/musicistas de Cuiabá um coletivo que, a partir de uma obra
teatral pode realizar uma circulação nacional e, assim, tomar contato com outras produções de
mais de 20 outros coletivos e companhias teatrais do Brasil5.
Sem dúvida, a aproximação e experimentação da linguagem artística fez-me perceber
as contribuições de outros artistas para pensar as discursividades em torno da trama-corpo que
por ora investigo. Assim, pude entrevistar duas atrizes/performes que tratam da temática do
parto e da maternidade como problemáticas a serem expostas, consumidas e re-fabricadas por
discursos em plataformas outras, inclusive, seus próprios corpos. Essas entrevistas foram
transcritas e são tomadas, junto ao corpus bibliográfico, como material de análise principal
para a configuração desta tese.

ser realizado com cinco, dez ou mesmo 100 pessoas, sempre em acordo com o espaço e a aceitação do contato
pelos participantes. Na maioria das vezes ocorrem o entoo de cantigas populares, produzindo uma espécie de
transe coletivo por meio do toque e do contato relacional dos envolvidos.
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O espetáculo se chamou OraMortem, uma criação coletiva e colaborativa do In-Próprio Coletivo. Em 2016
participamos de alguns festivais organizados pelo Sesc e fomos premiados, em Natal, como o Prêmio Cenym de
Teatro nas categorias Melhor Execução de Trilha Sonora e Melhores Efeitos Sonoros.
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