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Parecer sobre o Registro da TAVA MIRI SAO MIGUEL ARCANIO - LUGAR DE REFERENCIA CULTURAL PARA OS GUARANI (Processo IPHAN n" 01450.016457/2007-85). ‘Tenho a honra de submeter aos membros do Consetho Consultivo do Patrimonio Cultural parecer sobre sito da Tava, Lugar de Referéncia para o povo Guarani como Patriménio Cultural do Brasil, atendendo & solicitagio encaminhada pela Secretaria Executiva do Conselho Consultivo, do Instituto. do Patrimonio Historico e Artistico Nacional ~ IPHAN, através do Despacho n? 35/2014, em 25 de novembro de 2014 Para a anilise, recebi da Secretaria Executiva do Conselho Consultivo 0 Processo_ (01450.016457/2007-85 (Vol. I ¢ II), que trata do pedido de registro do referido bem cultural de natureza material, tendo como interessada a Superintendéncia do IPHAN no Rio Grande do Sul. O Processo tramitou seguindo os procedimentos adequados as exigéncias legais. Traz vasto material diversificado, como dossic, documentagio ilustrada por material fotogrdfico e audiovisual de excelente qualidade, memérias de encontros € centrevistas, pesquisas hist6ricas ¢ bibliogrificas e pareceres das fireas técnicas do IPHAN. Destaco a consisténcia dos documentos, que compem o Proceso com informacoes que proporcionam a compreensio do assunto com bastante clareza. Quero ressaltar que na claboragio deste parecer contei com a competente € dedicada colaboragio da historiadora Beatriz Muniz Freire, da Superintendéncia do IPHAN/RS, a qual agradeco profundamente. ‘Como gaiicha de Caxias do Sul/RS, fui ensinada a considerar as MissGes Jesuiticas dos séculos XVI e XVIII como uma realizacao dos jesuitas. No entanto, xo preparar esta relatoria, pude descobrir, com surpresa € ‘encantamento, que o sitio histérico de Sio Miguel Arcanjo possui significados de grande importancia para 0 povo Guarani, significados estes relacionados nao s6 a seu passado, mas também ao seu presente € futuro. No idioma Guarani-Mbyd, 0 termo Tava & composto da jungdo de ‘ita’ (pedra) e ‘avd’ (gente humanidade), traduzindo a ideia de ‘ago humana sobre as pedras’ ou “construcao de peda’, Trata-se de processo de registro da Tava, que compreende o sitio hist6rico Sio Miguel Arcanjo, localizado no municipio de Siio Miguel das Missoes, no Rio Grande do Sul, sitio que abriga os remanescentes da antiga Redugio Jesuitico Guarani. O sitio foi constituido como patriménio cultural pelo IPHAN, em 1938, e declarado patriménio da humanidade, pela UNESCO, em 1983. Como hem demonstrado no Dossi de Registro e no Parecer n° 667, de 25 de agosto de 2014, a Tava em Stio Miguel Arcanjo, além de fazer parte das narrativas que mantém viva a memoria da trajet6ria dos Guarani, € tum espaco dindmico, em que eles estao presentes todos os dias. As ruinas da igreja ¢ de outras estruturas do antigo aldeamento missioneiro concedem a essa Tava uma condicio de singularidade, por tornar visiveis a todos certas concepgoes de vida dos Guarani ¢ aspecios de sua relacéo com o sagrado, As marcas dos pussos dos antigos, seus antepassados, estio gravadas nas pedras, nas imagens, no lugar. Esses antepassados, que construiram as Missdes a pedido dos Nhande Ru ~ as divindades Guarani ~ seguiram sua caminhada © hoje se encontram na morada dos impereciveis, As estruluras, por estarem em ruinas, dio testemunho de que o mundo terreno & marcado pela imperfeigao e pela finitude. Ao mesmo tempo, por serem marcos da caminhada “dos antigos’, indicam aos Guarani o caminho a ser seguido, nos dias de hoje. Razo pela qual elas nio devem jamais ser reconstruidas, Precisam permanecer como rufnas, como testemunhos de uma ‘mensagem verdadei A Tava €, também, lugar onde os Guarani da Aldeia Koenju vendem seu artes ‘am de nato, partic eventos educativos e apresentacoes musicais, de encontros e reunides, enfim, realizam atividades diversas, tanto internas quanto volladas para os ndo-indigenas. Por tudo isso, a Tava € um espago privilegiado para que os Guarani possam contar sua hist6ria, nao 86 para seus filhos e filhas, mas também para os ndo-indigenas, pois o sitio recebe intensa visitagao, principalmente de jovens estudantes, levados por seus professores, além de turistas de diferentes perfis (S40 cerca de 60 mil visitantes ao ano, 70% dos quais sio estudantes do Ensino Fundamental). Visitantes que, na sua maioria, tm uma visio pouco realista e, em muitos casos, preconceituosa em relagio aos povos indigenas em geral, desconhecendo sua importiincia na formagao e na alual composigio da sociedade brasileira s do IPHAN/RS, Beatriz Freire © Marcus Benedeti: “7. 0 proceso de Registro da Tava em Sao Miguel Arcanjo trata de questdes importantissimas, como a relagdo de uma instituiedo do Estado brasileiro com um povo indigena que, utilizando-se dos caminhos hoje disponibilizados pela politica de salvaguarda do patriménio imaterial, vem requerer o direito de contar sua historia e afirmar a profunda ligagdio desse bem cultural com sen modo de estar no mundo. Trata das relagdes entre indigenas ¢ nido-indigenas, num espago de visitagao piiblica, implicando em uma reflexao sobre os modes como esse bem cultural é visto por distintos sujeitos. Trata, por fim, dos exforcos realizados pelos Guarani Mbyé para vivenciarem a Tava em methores condigdes ¢ mudarem 0 modo como sito vistos pelos nado- indigenas”, Como se ver no texto que se Segue, 0 proprio IPHAN est revendo 0 modo como a hist6ria missioneira € rettalada nos sitios tombados como palrimOnio cultural, € foi no contexto dessa revisio que se deu 0 pedido de Registro da Tava. Para esclarecimento dos membros do Conselho Consultivo, fare ese do rico contetido dos documentos que integram o processo de Registro em julgamento, Inicio pela fundamentagio hist6rica apresentada no Parecer n? 67/2014, que relata a constituigio de um idedrio sobre as Misses, no qual os indigenas sio retratados como personagens secundirios, e a0 qual 0 processo de Registro da Tava oferece um contraponto. Farei, em seguida, uma breve descrigdo da instrugio do processo de Registro ¢, com base no Dossié que integra o referido processo, tratarei da carueterizacio da Tava como referéncia cultural, comentando sua complexa relagio com a cosmologia e com a tertitorialidade Guarani, 1.Fundamentagio historia ¢ 0 co para o povo Guarai texto do pedido de reconhecimento da Tava como lugar de referencia Conforme descrito no jé citado Parecer n° 667/2014, a solicitagao de Registro da Tava foi enderecada i presidéncia do IPHAN em setembro de 2007, por parte de doze liderangas Guarani-Mbyzi de seis estados brasilciros (RS, SC, PR, SP, RJ ¢ ES) © uma lideranca do Paraguai, que estavam participando do Encontro Internacional Valorizacdo do Mundo Cultural Guarani. O que 0 pedido reivindica é 0 reconhecimento de significados e sentidos atribuidos pelo povo Guarani ao sitio hist6rico que abriga os remanescentes da antiga Redugao Jesuitico-Guarani de Sao Miguel Arcanjo. Em 2004, a Superintendéncia do IPHAN no Rio Grande do Sul, em parc Federal daquele estado (UFRGS), havia iniciado um trabalho com comunidades Guarani- projeto de atualizagao do discurso institucional sobre a historia missioneira, ¢ de requalificagio da exposic Museu das Missoes, datada de 1984, ia com Universidade rhyd, como parte do do © modelo interpretativo até entéo adotado pelo IPHAN, parcialmente baseado na historiogratia sul- riograndense anterior aos anos 70, atribui a autoria do sistema missioneiro exclusivamente aos jesuitas, retratados como “(..) civilizadores, responsciveis pela introducdo do gado, do arado, da eserita, das téenicas construtivas ¢ artesanais, da estética barroca e da religido cristé na regido da bacia do rio da Prata” ', em contraposicio aos indigenas, que teriam, apenas “capacidade de imitagdo, ou, nas patavras do historiador Aurélio Porto, ‘inteligéncia reprodutiva™, Segundo essa perspectiva, os indigenas que viviam nas Redugées Je ‘6 teriam sido aprendizes idosos, catequizados, educados ¢ governados pelos religiosos, desempenhando apenas um papel secundario no processo de constituigao © perpetuagao do sistema missionario. Com a expulsio dos jesuitas e 0 fim do projeto missionario, esses indigenas, supostamente cristianizados ¢ izados”, te se mesclado a recusando-se a viver nos aldeamentos, nao teriam tido qualqu 40 com © projeto missior realizagbes € nem mesmo contato com os Guarani ‘reduzidos*. seriam os antepassados dos Guarani contemporaneos’, ou seja, 0s Guarani de hoje nao (eriam ligago com as Missoes. ; (i " Conforme FREIRE. 2007, p. 120 2 Gonforme TORRES, 199712 Conforme CUSTODIO, 2007, p66. Ainda hoje, este &, em sintese, o ‘retrafo” que se tem dos Guarani missioneiros quando se visita O'Stin_.- de Sio Miguel Arcanjo ¢ 0 Museu das MissOes, nos quais quase nao hi contextualizagao historica. © Parecer n° 667/2014 chama atencio para o falo de que o tombamento de Sio Miguel Arcanjo, em 1938, foi motivado pela atribuigio de valor artistico © arquitetOnico, © que levou 0 IPHAN a dedicar-se ‘arduamente & conservacao dos remanescentes do antigo aldeamento, priorizando seu aspecio estético. A pres circulando silenciosos pelo sitio, eon: enga diéria dos Guarani-Mbyé, sentados no alpendre do museu para venda de seu artesanato, ou em 2004, numa situacio paradoxal. ‘A proposta de atualizagio desse discurso tomou por base estudos produzides, a panir dos anos 90, nos campos da Hist6ria, da Eino-Histéria e da Antropologia, que oferecem um outro olhar sobre a experiéncia historica missioneira e sobre a formacao da sociedade regional, bem como outra compreensio sobre o papel dos povos indigenas nes: aqui os pontos que me parecem os mais relevantes para a avali Conselho Consultivo. es processos. O mesmo parecer traz uma longa fundamentacio historica, da qual destaco 10 do pedido de Registro submetido a este = Sio Miguel Arcanjo foi um dos 30 aldeamentos fundados nos séculos XVII € XVIII, por religiosos da Companhia de Jesus e por indigenas de diversas etnias, sobretudo Guarani, num extenso terit6rio, na regio do Rio da Prata, que hoje faz parte da Argentina, do Brasil e do Paraguai. A criagao dos aldeamentos, con como Reduces, foi uma importante estratégia da Coroa espanhola para garantir a continuidade da coloni na América meridional, diante do alarmante deeréscimo da populacéo indigena, principal fonte de mao-de Causado pela disseminacio de docngas transmitidas pelos conquistadores € pela intensificagéo de rehelioes indigenas, motivada pela introdugao da cencomienda’ na regit ~ As Redugées eram niicleos urbanos, ligados por caminhos, formando um complex que contava com estieias, fervais, capelas, currais, fontes de fgua, etc. Sua populagio podia chegar a cerca de 6.000 indigenas, com predominio do Guarani, ¢ dois 2 trés religiosos. Gerides por liderangas indigenas © pelos religiosos, ox fldeamentos no eram homogéneos, mas sim “variacdes concebidas com ativa participagtio dos natives. cujo Sistema de organizacio em fanilias extensas se fazia presente na divisao do espaco. Até o final do século XVII, us redugdes eram compostas de estruturas singelas, desconforldveis © maltifuncionais’. As estruturss monumentais, cujas ruinas estao preservadas pela patrimonializacao, seriam lentamente construfdas, em meio a periodos de estabilidade ¢ de cris = A populagio Guarani missioneira nunca esteve isolada, Relatos produzidos pelos jesuitas demonstram, em diversas passagens, que os Guarani missionciros mantinham-se em contato com os que viviam nas matas, recorriam aos seus lideres religiosos, paradesespero dos padres, ¢ alternavam periodos de permanéncia e de huséncia nas Reducées, conforme sua conveniéncia, mantendo-se em circulagéo ao longo de seu territ6rio tradicional. — 0 fim do sistema missioneiro decorreu da decisio das Coroas de Portugal ¢ de Espanha de definirem as frontciras de suas possessdes, firmando o Tratado de Madri, em 1750. Segundo esse trutado, “a Coldnia do Sacramento, que era de dominio portugués, deveria ser trocada pelos chamados Sete Povos das Missdes (os Sete tiltimos aldeamentos que haviam sido fundados no atual territ6rio do Rio Grande do Sul)’, localizados na margem esquerda do rio Uruguai, que eram de dominio espanhol”. Além das terras, também “as lavouras, os ervais, o gado, as estdncias com suas edificacdes, as plantagbes de algodao, os templos e oficinas, deveriam ser entregues aos portugueses, que haviam sido, por décadas, inimigos ferrenhos das Missoes" © encomienda cra um atranjo contratual mediante 0 qual um encomendero, autorizado pela Coroa espanbola, poderia © Og sete tltimos aldeamentos fundados na tegido que hoje pertence ao Rio Grande do Sul : Sdo Francisco de Borja (1682), SEVERAL, 1998, pll8. a * SEVERAL, 1998, p.126. CRY veers seis dos Sete Povos se recusaram a aceitar 0 Tratado e enfrentaram o exército formado ‘n—-fior forgas de Portugal ¢ de Espanha na Guerra Guaranitica (1753-1756), conllito que resultou num violento decréscimo da populacio nativa na regio’, Apesar da Guerra, do decréscimo populacional e das dificeis relagoes posteriormente mantidas entre os Guarani que permaneceram na regiao e as auloridades portuguesa, ‘as estruturas missioneiras continuariam ocupadas ao longo do século XIX. = Os Guarani permaneceram “em transito’, ora vivendo em pequenos ranchos, ora se ocultando nas matas, ora ndo servigos nos povoados locais!". Tal mobilidade indigena era vista pelas autoridades coloniais como iormente, a historiogratia sul-riograndense formularia a tese do ‘espago vazio’, afirmando que dio indigena havia se extinguido na regio dos Sete Povos das Missées. a popule Com base em relatos de viajantes que percorreram a regio ao longo do século XIX, estudos posteriores a década de 90 permitem afirmar que o antigo territorio das Misses permaneceu ocupado € que as estruluras das Redugdes, ainda que em progressiva degradagao, devem ser vistas como espagos em ~“transformagao constante” A literaturashistérica recente ¢, de certo modo o processo de Registro da Tava, dio tesiemunho de que 8 ensinamentos dos jesuitas, bem como as (écnicas por eles introduzidas, foram apropriadas pelos Guarani segundo a logica de sua visio de mundo e de suas estratégias de autopreservacdo, Como, als, eles vém fazendo desde os tempos dos primeiros contatos com os colonizadores. 7 © parecer dos técnicos do IPHAN citam, “a idealizaydo das Misses como obra dos jesuitas, ¢ dos indigenas como ‘tibulas rasas’ modeladas pelos religiosos (ou como aguerridos ‘infigis’ que recusaram aguela experiéneia civilizatéria) tornow-se senso comum ¢, ainda hoje, se perpetua pela educacdo formal.” (p. 10) Exemplo impressionante ¢ o texto produzido por estudantes do Ensino Fundamental, em 2006, apés visitarem 0 sitio de Sao Miguel Arcanjo, em que se lé ) divigidos pelos jesuitas, além cle aprenderem a rezar, aprenderam também a plantar (trigo, milho, feijao, mandioca), a extrair erva-mate, a criar gado. [Nas misses eles} trabalhavam como ferreiros, pedreiros carpinteiros, faziam até imagens de santos em madeira, instrumentos musicais ¢ outras coisas que aprendiam ‘com os padres” ‘Outro importante exemplo de idealizacdo das Misses € 0 espetéculo de som ¢ luz, apresentado todas as noites no sitio histérica de Sao Miguel Arcanjo. Finalizando essa introdugao, observo que 0 material produzido contém uma relevante reflexio critica sobre © modo como o IPHAN apresenta os remanescentes missioneiros aos visitantes, que no vou reproduzir aqui, devido ao tempo que me eabe para a relatoria, 2.0 Inventirio Cultural Guarani e 0 processo de Registro projeto de atualizacao do discurso do IPHAN buscou formas de contar a historia das Missdes (e niio ‘apenas das estruturas edificadas preservadas pelo tombamento), reconhecendo © protagonismo indigena, a luz do conhecimento produzido nos campos da Historia, da Etno-Historia e da Antropologia, nas tltimas és dé Foi nesse contexto que se deu a aproximacio com os Guarani contempordneos, que frequentam diariamente 0 sitio de S40 Miguel Arcanjo desde meados dos anos 1990, pois “sua presenga poderia portar semtidos que 0 IPHAN deveria conhecer.” Na ocasiio, como no presente, quem visita 0 sitio os encontra seniados no alpendre do Museu das Missdes, onde vendem seu artesanato. A noite, recolhem-se a Casa de Passagem, construida em 2005, numa das extremidades do sitio. A presenga didria dos Guarani no sitio data de meados da década de 1990, quando voltaram a formar aldeia em Sao Miguel das Missdes, em uma drea remanescente de mata, nas proximidades da Fonte Missioneira Exsa aldeia foi formada por 16 Guarani, vindos da Argentina, que haviam sido expulsos pela prefeitura de Tupanciretd, outros 34, que haviam acampado nas proximidades do trevo de acesso a cidade de Santa Rosa, ” A populacao dos Sete Povos somava, aproximadamente, 30 mil indigenas Maria Cristina dos SANTOS, 2099, v. II, p. 58 "Texto elaborado em 2006, por estudantes e professores de um colégio de Porto Alegre, apds visita ay Missdes © a partir de leitura do livro diditieo Viagem pelo Riv Grande do Sul. Disponibilizado pela internet, ; Va em busca de seus ‘parentes Guarani’. Viveram cerca de dois anos no local, em situacio precéria. O entio dit 1s, permitiu que os Guarani vendessem artesanato no interior do sitio (0 que era, € ainda é, vedado aos comerciantes locais). Valendo-se da entéo recente implantagio da politica de salvaguarda do patrimdnio imaterial, a Superintendéncia do IPHAN no Rio Grande do Sul coordenou a realizagio de um Inventitio Cultural (INRC), executado por equipe da Universidade Federal (UFRGS), junto comunidade Guarani da Aldeia Koenju. A concordancia dos Guarani para a realizagio do Inventirio foi facilmemte obtida, porque a proposta de documentagio cultural ia ao encontro de um movimento que eles ja vinham fazendo, no sentido de divulgarem certos aspectos de sua cultura, como forma de sensibilizar os ndo-indigenas © conquistar apoio para o enfrentamento de seus problemas, Tal ‘abertura’, segundo parecer jé cilado, era uma novidade, pois 0s Guarani sempre foram extremamente reservados diante do Estado ¢ da sociedade envolvente, © trabatho teve inicio no sitio de Sio Miguel Arcanjo, estendendo-se para a Aldeia Koenju (Aldeia Alvorecer), no municipio de Sio Miguel das Missoes, ¢ outras para trés comunidades Guarani-Mbyd: a Aldeia Pord (Aldeia Bela), a Aldeia Yryapu (Aldeia Murmiirio do Mar), ¢ a Aldeia Anhetengué (Aldeia Verdadeira), situadas no Rio Grande do Sul, possibilitando a documentagio de diferentes situagoes vivenciadas pelos Guarani, numa érea de cerca de 500 km de extensio. Segundo relatos, o Inventirio documentou priticas € saberes que integram 0 ‘modo de vida’ Guarani, bem como lugares de importincia destacada: o sitio de Sao Miguel Arcanjo, a Fonte Missioneira, as matas de Siio Lourenco, do Card ¢ da Esquina Ezequiel; a celebragio do Nhemongarai (ceriménia de nominagio de ‘meninos ¢ meninas); formas de expresso como 0 canto coral jeroiy e a danga do Tangard, dentre outras. Conforme apontado no Inventério Cultural, algumas dessas praticas constituem-se em referencias culturais cuj inuidade se encontra ameagada pelo acesso limitado dos Guarani as dreas de mata e & terra! A atribuigdo de sentidos especiais ao sitio de Sio Miguel Arcanjo, referido como Tava, apareceu nas narrativas que afirmavam que os “antigos Guarani” ja construiam moradias em pedra antes da chegada dos ‘conquistadores e que as estruturas do antigo aldeamento foram construidas a pedido de Nanhde Ru (Nosso Pai), e nao dos jesuitas. O Inventério demonstrou, ‘amt Tava se manteve ao longo das anos, ainda que invisivel aos olhos dos néo-indigenas. Além da persi rotas e caminhos pré-coloniais, referidos na documentacio histérica, 0 Inventirio menciona a ocor pequenos aldeamentos ¢ de acampamentos, ja no século XX, bem como a preservacio do sistema de visi ‘miitua que [az parte da organizacao social dos Guarani. Importante mencionar que ao longo da realizacao do Inventirio Cultural, os Guarani se apropriaram de conceitos do campo do patriménio cultural com os quais © IPHAN opera, ¢ definiram paramettos para o reconhecimento de suas referéncias culturais, os quais foram apresentados no J Encontro Patrimonio Cultural Povos Indigenas, realizado em dezembro de 2006, em Sao Miguel das Missoes'’. Sao és parimettos: a Sterritorialidade livre’, a ‘natureza livre’ e *respeito a dimensio do segredo’ Por ‘territorialidade livre” entende-se 0 reconhecimento, por parte da sociedade nacional, da importancia que 08 Guarani-Mbyaatribuem ao trinsito pelo seu territ6rio tradicional. “Esse transite articula passado ¢ presente, pois sua pritica é relacionada @ caminhada dos ‘antigos’, os que alingiram a condigao de agusdje (imperecibilidade), almejada por todos. Durante sua caminhada, personagens encantados, como o kexuita € Kuaray Ru Ete, 0 sol, deixaram sinais para orientar os Guarani de hoje. Referencias nesse sentido sdo encontradas tanto na literatura histérica, em texto de Montoya, quanto na antropolégica, em trabalhos de Alfred Métraux e Helene Clastres, denire outros. Topéninos e estruturas em pedra sdo alguns desses sinais.” E também por meio do tr que se estende por um vasto territ6r ito que sio reforgados os lagos de parentesco, mantendo viva a rede éinica 10 interior da qual se efetiva a sociabilidade Guarani-Mbyd e se realizam ® IRC Comunidade Mbyi-Guarani em Sdo Miguel Arcanjo, Ficha de Wentificagio-EdificagSes, F30/1. "0 Encontro, realizado no dmbito do INRC, reuniu cerca de 220 Guarani de diversas aldeias localizadas no RS € participantes vindos de comunidades situadas na Argentina, além de téenicos do IPHAN ¢ do MinC, e representantes do Minisiério Pablico Federal e da FUNAL : K GI@s Vituais voltados para a ‘construgio da pessoa’ Mbvd. Esse transit sofre limitagbes pela existéncia de ——froiteiras nacionais e, tem servido como argumento para a contestagio da demarcagii de terras para 0 povo ‘Guarani, acusado de ser nomade, de nfo se fixar em lugar algum, Trata-se, em realidade, de uma con mas na mobilidade de pessoas, seres pedo original de territorialidade, a qual esti encantados © divindades. Se para a sociedade envolvenic a migragio tem sentido de desagregacio, para 0s Guarani-Mbyd ocorre o inverso: caminhar entre as aldeias para visitar parentes, repetir os passos dos ‘antigos’ e fundar novas rekod (aldeias) & um ato de exereicio ¢ de reforgo de sua identidade. As tekod sio como os nds que mantém a forca da rede. Precisam existir, mas sua populactio muda ao sabor das migragdes de individuos e de famili ‘A nogio de *natureza livre’, contém a reivindicagdo de acesso aos recursos naturais que os Guarani consideram essenciais 2 reproducdo de seu modo de vida (alimentos como 0 mel, frutos e sementes silvestres, ‘animais, cip6s © madeiras para a construgio de suas casas e objetos de todo tipo). Sua relago com as matas € orientada pela concepgao de que os animais © os vegetais tém “conos espirituais’. ndo sendo aconselhavel cacar, nem coletar em excesso. Conforme narrativas mitoligicas, as matas so os locais preferenciais para a form: de aldeias, pois foram destinadas aos Guarani, quando Nhanderu Tenondegud (0 criador) fez essa terra Por ‘respeito a dimensao do segredo” entende-se a compreensao, por parte da sociedade envolvente, de que ha aspectos da cultura dos Guarani-Mbyd que s6 a eles pertencem e que ndo devem ser documentados. Somente a eles cabe definir o que deve ser divulgado e 0 que deve permanecer como segredo. Como decor do INRC ¢ respondendo & necessidade de ampliar 0 trabalho com os Mbyd, abrangendo comunidades em todo 0 (errit6rio por eles ocupado, 0 IPHAN elaborou o projeto Valorizagito do Mundo Cultural Guarani, apresentando-0 em reunides com o Centro Regional de Salvaguarda do Patriménio Imaterial (CRESPIAL) como proposta de realizagio de um Inventério Cultural ampliado, no Brasil, e de projetos de documentacdo na Argentina © no Paragua Em setembro de 2007, este projeto foi debatido em rei Sao Miguel das Missoes, jo em que liderancas Guarani formalizaram 0 pedido de reconhecimento da Tava Miri em Sdo Miguel lterada pelos proprios Guarani. Arcanjo, por meio do Registro, Posteriormente, essa denomin: Na 9" Reui foi julgado procedente, dando-se inicio ao processo de n° 01450.016457/2007- io Miguel Arcanjo. 10 da Camara do Patriménio Imaterial, realizada em 11 © 12 de fevereiro de 2008, 0 pedido 5, intitulado Registro da Tava AcGes de salvaguarda foram realizadas ja durante a realizagio do INRC Comunidade Mbyé-Guarani em Sao Miguel Arcanjo, como resposta a importantes demands dirigidas ao IPHAN pelos Guarani engajados no processo de documentacdo. Conforme observa o Parecer 1° 667/2014, atender a tais demands foi fundamental porque as agbes realizadas, de certa forma, expressam as escolhas M/byai, apresentando uma ‘pauta’ de praticas e saberes que devem ser preservados, e de conhecimentos nao-indigenas pelos quais se interessam. A instrugio do processo de Registro da Tava em Sao Miguel Arcanjo teve inicio com a realizagao de um esiudo complementar's, que demonstrou que a Tava anticula as experiéncias do presente ao tempo vivido pelos ‘primeiros Guarani’. Como se verd adiante, © advento das Missdes Jesuiticas dos Guarani aparece, nas narrativas, reelaborado pela linguagem dos mitos, € marcado pelo protagonismo indigena, Em 2011, ao finalizar a primeira etapa do INRC Ampliado, isto é, 0 Levantamento Preliminar, 0 CTI apresentou ao IPHAN a proposta de realizar cursos de formagao de pesquisadores Guarani, que assumiriam 0 trabalho de documentagao de suas préticas culturais. O resultado desses cursos foi a identificacio © mapeamento de uma expressio cultural, o Xondaro, que &, ao mesmo tempo, uma danga, uma condigio social © uma fungal Em reunides ocorridas na Tava em Sa0 Miguel Arcanjo € frequente a execucdo dessa danca, chamada pelas comunidades Mbyci do Rio Grande do Sul de Tangard IPHAN Importante observar que a ampliagio de parcerias para execugio das ages possibilitou ampliar, também, 0 acesso aos Guarani, contemplando mais comunidades € possi nbientais (IECAM). A equipe de pesquisa foi formada por José Otivio Executado pelo Instituto de Estudos Culturais ¢ Catafesto de Souza. Carlos Eduardo de Moraes, Daniel F perceberem uma diversidade de situagdes que afelam o cotidiano dos Ee heen Continuidade de suas referencias culturais. Segundo depoimento dos técnicos dirctamente envolvidos na sirucio do processo de Registro, as experiéneias de convivio, no acompanhamento das atividades, em campo, foram decisivas para a construcio da relagio do IPHAN com as comunidades Mbyd, Na medida em que se ampliava seu entendimento do universo cultural Guarani, os téenicos puderam relacionar, com mais seguranea, informagies fragmentadas, obtidas ao longo do primeiro Inventario Cultural e, assim, compreender melhor os sentidos atribuidos & Tava pelos Guarani, Além disso, puderam participar da lenta construgio de modos especitficos de trabalhar com esse povo indigena, respeitando-se os tempos necessérios para a mutua tradugio de conceitos ¢ para que os Guarani-Mbyé construissem seu conhecimento sobre o tema da patrimonializacao ¢ da salvaguarda de referéncias culturais. Dando prosseguimento a instrugio do processo de Registro da Tava em Sio Miguel Arcanjo, o [PHAN contratou a Organizacao Nao Governamental Video nas Aldeias para claboragio de um filme sobre a Tava. Os as Guarani Sandro Arie] Ortega ¢ Patricia Ferreira participaram desde a elaboragio do roteiro até a realizagio das filmagens e a edigio", Por serem os autores do filme, foi possivel registrar depoimentos dos ‘mais velhos’, que travaram um debate sobre © modo correlo de denominar a Tava sobre sua importine! como portadora de uma ‘mensagem verdadeira’. Varios depoentes consideraram “tava miri’ um termo inadequado, porque se refere a morada dos impereciveis, um lugar que nao é visivel aos que vivem nesse mundo perecivel ¢ imperfeito. A partir desses depoimentos, ficou claro para os técnicos do IPHAN que o termo *Tava Miri dos Mbyd-Guarani’, que consta no pedido de Registro, expressa um entendimento parcial a que se havia chegado na _conclusio do INRC Comunidade Mbyé-Guarani em Sao Miguel Arcanjo (é wna traduedo inadequada).E que seria necessitio definir com os Guarani 0 titulo adequado para 0 reconhecimento de sua referéneia cultural. Como conelusio da instrugao do processo Registro foram realizadas reunides com a comunidade da ‘Aldeia Koenju, com a qual 0 trabalho havia iniciado, para apresentar aos Guarani 0 contetido do Dossié de Registro, elaborado pela antropéloga Silvia Guimaraes, da Universidade de Brasflia. Na ocasido, fez-se um debate sobre o titulo do Registro ¢ ficou definide que o termo mais adequado para denominar o bem cultural a sor reconhecido , simplesmente, Tava. Como detinigio da categoria de Registro que melhor expressa 0 valor atribuido ao bem cultural, chegou-se ao titulo de Tava, Lugar de Referéneia para 0 povo Guarani. 3. A Tava em Sio Miguel Arcanjo como referéneia cultural jguel Arcanjo como referéneia cultural para 0 povo Guarani recorro, agora, ao texto de Silvia Guimaries, autora do Dossié de Registro, redigido com base no principio antropol6gico definido por Eduardo Viveiros de Castro como “levar a sério o pensamento do outro" ingular Para caracterizar a Tava em Sio ‘Como jai foi mencionado neste Parecer, o termo Tava é composto da junto de ‘ita’ (pedra) e ava (gente, humanidade), traduzindo a ideia de ago humana sobre as pedras. No caso de Sio Miguel Arcanjo, a denominacio Tava abrange as ruinas e 0 espaco onde, no passado, houve uma grande fekod Guarani, uma ‘aldeia dos antigos’'®, Trata-se de um espago viv que articula concepgdes relativas ao bem-viver Guarani integra narrativas sobre sua trajlGria como povo, ¢ ¢ diariamente vivenciado como lugar de atividades diversas de aprendizado para os mais jovens. 'As ruinas de Sao Miguel Arcanjo sto ‘memorias materializadas’, que fazem emergir natrativas diversas centre os Mbyei, nas quais, como jé mencionado, o advento das Misses Jesuiticas dos Guarani aparece como episédio incorporado a eventos miticos, ¢ caracterizado pelo protagonismo indigena. Assim, a construgio do ‘aldeamento foi demandada por Nhande Ru (Nosso Pai) ¢ realizada pelos ‘antigos Guarani’. Para ajuda-los, Nhande Ru fez as pedras ficarem leve Os jesuitas so referidos nas narrativas, ndo como padres catdlicos, mas como Kexu‘ta’’, um *Mbyd antigo’ que se encantow e se imortalizou, como todos os que participaram da construgdo da Tava, tornando-se °5 A equipe de realizadores foi composta, também, por Ernesto de Carvalho ¢ Vincent Carelli, da OnG Video nas Aldeivs. “NRC Comunidade Mbyi-Guarani em Sdo Miguel Arcanjo, Ficha de Wentficagio-Edificacdes, F30/1 "-Também referido como Kesuita, kechuita, Kerusu, Keirucuita, ow ainda Ke'i guagu, Ke'y significa irmio; rucu ou ‘quacu, “grande” ou ‘maior’, nesse caso, “irmae mais velho’ ou ‘irmao maior’; ita significa “peda” . Para Litaitf, 7 GE. kesuitg 1m ser humano que, por suas qualidades morais e seus poderes pessoais, alcangou ilidade ou imortalidade).. Tou seja, o estado de aguydjé (imperee Segundo relato de Tito Karat ao antropélogo Aldo Litaiff’*, os Nhande Ru Miri refazem o percurso de Kuaray Ru Eté, o sol, que caminhow no tapepoku (rotas tradicionais guarani) até a beira do mar e, em seguida, alingiu a Voy Mara ey (termo comumente traduzido como Terra sem Mal), deixando as ruinas como marcos, para indicarem © caminho cero para os Guarani ‘puros"”, que devem seguir seus passos para se juntarem as ivindades. Outro depoimento, de Roque Tim6teo, expliea a importincia das tava no processo de superagio da condicio humana, conforme histéria contada por seus avés: “0 kechuita andou por este mundo inteiro, Saiu ld do Paraguai. (..) naquele tempo, 0 nosso parente vivia tudo no meio do mato. O Mbyd do tempo do kechuita vivia mesmo como Mbyé ‘puro’, plantava avati (mitho), jety (batata doce), mandi'o (mandioca), toda a classe de planta. Cagava o bichinho do ‘mato, pescava. Sé isso era nossa comida, naquele tempo. Também tem opy (casa de reza), com patio grande para dancar. O Mbyd tém grande poder, entdo, porque esta vivendo bem certinho como Nhande Ru deixou pra nds viver. Ai o kechuita falou que este mundo tava marcado para terminar. Disse enido que tinha que consiruir a ruina, pra segurar mais um pouco o mundo; pra nao se acabar logo. Ai jé levantow a casa de pedra. O nosso parente antigo & que levantou esta ruina que existe até hoje, (..) Dai levantow uma ruina, depois outra, outra (..) Passow na Argentina, a mesma coisa. Aqui no Brasil, a mesma coisa. Onde foi caminhando, o kechuita deixou a ruina, como um rastro dele. Onde ndo botou a rina, botou 0 nome na lingua Guarani, por isso 0 lugar que tem o nome na palavra Guarani é tudo lugar que 0 kechuita viveu, porque era lugar bom para viver, onde tinka mato bom, muito bichinko. Tudo isso € marca do kechuita, Por isso o Mbyd que quer seguir como Mbyd, como kechuita, tem que pedir pro Nhande Ru pré descobrir o lugar bom: se vai pedir ¢ té seguindo certinho como Mbyé. Nhande Ru vai mostrar algum lugar bom pra se viver. Depois que andou por ai tudo, o kechuita voltou na casa dele. Disse meu vovs, a minha vovd, que ele una canoa bem pequena, de um porongo. Ninguém acreditava que ele podia cruzar o mar desse jeito. Mas ele subiu ¢ foi (..) O lugar certinho onde ele botou o pé antes de viajar ninguém até hoje descobriu. O Mbyé ainda ndo descobriu; pode ser na costa do mar, ou na beira de algum rio. Isso temos que descobrir, Se descobrir bem certinho, 0 Mbyd também vai conseguir atravessar (..) (DOSSIE, p. 68) No ja citado documentétio ‘Tava: A Casa de Pedra’, realizado para instrugao do processo de Registro em julgamento, hi depoimentos que se referem aos jesuitas como ‘antigos Mayu’. ou seja, eles também eram indigenas, porque, como argumenta Verd Mirim, de 90 anos, os jurud (nfio-indigenas) nao teriam eapacidade de construir a Tava, Em suas narrativas, os Guarani mencionam a existéncia de varias fava, que estio relacionadas aos caminhos percorridos pelos seres imortais © pelos ‘antigos Mbyd’, cujos pasos devem ser seguidos pelos Guarani que hoje desejam alcangar a imortalidade. Assim, a categoria fava abrange as ruinas que se espalham pelo territério de ocupagdo tradi Guarani (tanto no que foi a Regido Missionecira, como no Titoral), € outras casas de pedra, além de elementos ‘como acidentes geogritficos, relevos, cachociras, ilhas, que sdo marcas também deixadas pelos Nhande Ru Miri em suas caminhadas, Em geral, elas nao sio visiveis, 86 os karai, os lideres espirituais guarani, as identifica, Nesse sentido, as ruinas so a materializagao das memérias da passagem dos Nhande Ru Miri pelo territ6rio guarani. Elas articulam, no pensamento guarani, os (emas da territorialidade e da mobilidade. (DOSSIE. p. 71) nado neste parecer como As fava esti, portanto, diretamente relacionadas ao transito guarani, jé men uma importante referéncia cultural, uma pratica identitéria preservada pelos Guarani-Mbyd, apesar das € um personagem fronteit eo historico, e pode ser pensado como uma sintese do antigo sistema guarani com a nova cultura eristi ocidental, resgatado, no como uma metilora hibrida, mas como elemento autdctone (LITAIFR, 2009, p. 144 © 147). 'S LITAIBE, 2009: 147 "Rel os Guarani que vivem conforme os preceitos ditados pelos Nhande Ru, U 8 adversidades que para isso enfrentam, Essa pritica é necessaria para que a condigio humana possa ser superadiiy”” 6 que & 0 destino ideal de qualquer pessoa Moy, seja homem ou mulher. Em realidade, o tema da superacio da condigao humana esta diretamente relacionado & delinigio Guarani de pessoa. Portanto, trata-se de uma questo cexisteneial e de identidade. Conforme descrito no Dossié de Registro, a construgo da *nogio de pessoa’ por meio do trato da corporalidade’ € um elemento presente nas cosmologias dos povos indigenas sul-americanos”. Entre esses grupos indigenas, 0 proceso de ‘construgio da pessoa’ passa por um controle de seus hibitos © de suas maneiras, como uma moldagem do ‘corpo’ em direco a uma maior definigio da condicdo humana, Eduardo Viveitos de Castro aprofundou essa discussio sobre a “corporalidade” nas cosmologias indigenas sul-americanas e formulou a teoria do “perspectivismo amerindio”, de acordo com a qual o pensamento indigena, no geral, supde uma unidade do espirito © uma diversidade dos corpos, © nao enquadra natureza © cultura sob I distintas. Ainda segundo 0 autor, no pensamento amerindio a nogio de ‘corpo’ no se define como “corpo fisiol6gico", mas sim como os "afctos, afeccdes ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se € gregirio ou solitério. (..)”. A nogao de “corporalidade’ envolve “um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus.” Conforme explica Silvia Guimaraes, a cosmologia Mbyd situa 0 humano numa posigio preciria, instivel, entre os deuses e os animais. A aspiragio dos Guarani-Mbya € aproximarem-se dos seres imortais, evitando 0 perigo de se tornarem animais”, ou uma criatura indesejada ou um nao-indigena. A superacdo da condicao humana ¢ obtida por meio da ascese, de uma ética alimentar, da pratica de cantar ¢ dancar para os seres imortais na casa de reza, e pela pritica do caminhar. A caminhada, hoje, se di tanto pelos deslocamentos de individuos, familias e, por vezes, comunidades, quanto pela adogao de condutas que expressam o bom modo de ser Guarani A busca pela morada dos seres imortais, através do que so as fava — tem, portanto, importancia crucial ¢ se infunde no discurs ‘geogratia ordindrias tragadas pelos grupos em movimentor ‘aminhar, seguindo as marcas por eles deixadas ~ cotidiano Guarani, na historia © Essa pritica remonta ao perfodo pré-colonial. Sabe-se que os Tupinambd da costa migrayam em bus de uma terra onde nao se morria™*, motivados pelas profecias de grandes xamés, scus Iideres religiosos. Como apontado no Dossié, com discursos arrebatadores um xamd conseguia reunir pessoas que seguiam as suas orientagdes ¢ aceitavam ser lideradas por ele em uma migracio ritual em busca da Terra sem Mal, a morada dos imortais, que é alcangada quando a pessoa consegue Se encantar e transformar seu corpo mortal cm um corpo mortal. A crenga na possibilidade de ingressar na morada dos seres sobrenaturais, ainda com vida, formava uma grande migragio”. Atualmente, os Guarani-Mbyd realizam ‘ocupando 0 territério de seus antepassados com 0 mesmo propésito de alcancarem a Terra set E nesse contexto mitico que a Tava em Sao Miguel Arcanjo deve ser compreendida, Como marca da caminhada dos antigos ela tem enorme importincia. Mas, além disso, ela € tinica e se singulariza por sua visibilidade impactante, que a torna perceptivel a todos, inclusive aos nao-indigenas. Esse falo ¢ explicado pelos Guarani-Mbyé como sendo a vontade de Nhande Ru, que a fez pata ficar nesta terra, ser visivel ¢ perecivel Conforme © Dossié de Registro, houve um intenso debate entre 0s Guarani acerca da questio da impericibilidade da Tava, documentado pelo j4 citado filme ‘Tava: A Casa de Pedra’. Varios depoimentos afirmam que as fava que exisiem na terra nao so mais do que imagens das tava miri (que esto nas moradas das divindades) e, portanto, sio pereciveis. As rava mini origindrias esto nas moradas celestes e sobre as grandes ® A esse respoito, Silvia Guimaries refere-se a0 texto antropologico clissico de Antony Seeger, Roberto DaMatta © Earn Vito de Cast (979) 2 VIVEIROS DE CASTRO, (1996, p. 381). Yo ® VIVEIROS DF CASTRO... appud LITAIFF, 2009, 158, CEB ® Dossié de Registro da Tava * alfred Métraux, 1928:175, Fernandes, 1952: 64, * Dossié de Registro, p. 50. matas, bem tas bordas do mar”. As fava que se encontram nesta terra de mortais sio passiveis de destruigéo, © reforgam a presenca dos antepassados nesta morada imperfeita, onde vivemos. Nas palavras de Mariano Aguirre, da Aldeia Koenju Tava miri a gente néio vé, porque nao fica nessa terra. Ela esté onde a gente vé os raios. Essa tava fem sao Miguel Arcanjo} é uma tava imperfeita, que a gente ve. Por ser imperfeita, os nao-indigenas quase a destruiram, conforme explicacio de Avelino, que delineia a diferenga da Tava em Sao Miguel Arcanjo em relacio as demai Nao é tava miri, porque a tava miri de verdade nao pode ser vista por qualquer um, Se fosse tava ‘iri ox brancos nao tinham derrubado (..). A tava miri, nds que somos impuros nao vemos ela, Agora mesmo, tem muitas tava miri nessas matas, que os brancox nao destroem porque Nhande Ru nao deixa Portanto, as ruinas de Sio Miguel Arcanjo sio uma tava imperfeita, isto é, passivel de destruicio pelos jurué (ndo-indigenas), ¢ visivel. Sua presenca imponente atrai os olhares, impoe as marcas dos antepassados, de seus compos imortais, ¢ relembra aos Guarani a importancia de viverem o bom modo de ser Mhyé, de seguirem sua ética e os conselhos do “demiurgo” para alcangarem a imortalidade. Por nao conter matas ¢ por ser intensamente visitada por nio-indigenas, a Tava em Sao Miguel Arcanjo um bom lugar para os Guarani construirem aldeia, Seu papel & lembrar aos Mbyéi quem eles ndo sentimentos de pertencimento. Seguindo a vontade de Nhande Ru, a Tava torna possivel vontar a historia dos Guarani também para os ndo-indigenas, tanto para os parceiros dos Mbyd, quanto para seus inimigos, que pretendem por fim ao bom modo de ser guarani. De acordo com suas narrativas, caso 0 povo Guarani tenba fim ou deixe de viver 0 ‘modo de ser Méyd', o set imortal Tupd destruiré 0 mundo, novamente. tar a todos sobre esse perigo, contar sua histéria © continuar vivendo indades. segundo as preceitos di A condicao de visibil jpenas na monumentalidade das estruturas edificadas, mas também em detalhes perceptiveis nas paredes, como as cores, o brilho, as irregularidades, que demonstram que parte do corpo dos antigos consubstanciou-se nas pedras, Aqui, Silvia Guimaraes observa que entre os Guaruni-Mbyii a nogio de corpo nao se restringe ao corpo fisico, mas se amplia para além dele. (DOSSIE, p. Como se sabe, as narrativas miticas se expressam como uma linguagem aberta, sujeita a variag incorporagio de novos elementos, na medida em que s40 contadas € recontadas. Nesse sentido, Daniel Pierti observa que as varias verses © debates internos entre oS Guarani sobre as tava apontam sempre para um contraste entre os mundos celestes © 0 mundo terresire, © qual mobiliza a oposicio basica entre perecivel ¢ imperecivel, mortal ¢ imortal, que é uma oposicio fundamental da sociocosmologia Guarani-Mayai a riqueza de significados faz da Tava em Sao Miguel Arcanjo um velhos reforcar os valores € a élica Guarani, diante de uma juventude que pode se distanciar do bom modo de viver Mbyd io Cultural Comunidade Moy Depoimenios nesse sentido estio documentados no Inve ‘como os do karat Augustinho, ¢ do karat Adolfo Weri ‘uarant, ((.) Entdo, por isso, ds vezes tem que ter reunidio [na Tava] para falarmos sobre a terra, sobre casa de reza, sobre planiagdo, essas coisas que nds femos que ensinar aos jovens para que eles ndo esquegam. Eles tém que saber de que modo os pais, as tios ¢ os avés adguiriram forcas para falar, de quem receberam essa forga. Essas coisas os jovens nao podem esquecer. (..) Esse lugar fol feto pelos nassos ancestras, E um lugar de reza, para flearmos fortes, para termos coragem. Nés estamos aqul lutando, ness sto, nosso lugar. Nossos ancestrats nos mandam rezar. Por * Dan PIERRI, 2013: 16: ne “Tava : A Casa de Pedra’, realizado pela OnG Video nas Aldeias ¢ PHAN. 10 = Isso trago meu neto para conhecer esse Ingar. Esse lugar é verdadeiro para nds. Agta nds lembriamos~ dos nossos ancestrais"” Portanto, conforme as palavras de Silvia Guimaraes, a Tava em Séo Miguel Arcanjo é um lugar onde se concentram lembrancas de priticas culturais coletivas que devem ser vivenciadas. Um lugar onde diversas dimens6es da vida social, articuladas ¢ voltadas para a superacio da ambiguidade da condigdo humana, sio evocadas nas narrativas dos mais velhos. Eles devem proferir suas palavras para os mais novos € para os nio- indigenas que, de alguma forma, poderiam dificultar sua presenca nas ruinas € desarticular © bom modo de viver Mbyd. Com sua visibilidade imponente, a Tava em Sao Miguel Arcanjo necessita da fala Mbyd e de suas explicagies sobre 0 mundo. Por isso podemos entendé-la como um lugar de referéncia para os Mbyd, a partir do qual eles pretendem contar sua histéri usando as palavras de Tito Karai, conforme relatadas por Aldo Litaiff™ Encerto essa argumentac “A ruina é como um documento, ela é a prova que mostra tudo 0 que era dos Guarani. E por isso que Nhanderu Tenondegua enviou os Nhande Ru Mirim para fazer ruina, para mostrar nosso camino, porque ele nos ama muito (..) 4-dust icativa para o Registro ¢ Plano de Salvaguarda Como justificativa do Registro da Tava e seu Plano de Salvaguatda, reporto-me ao texto do Dossié de Registro. ‘A proposta de Registro da Tava em Sao Miguel Arcanjo como lugar de referéncia para os Guarani implica em reconhecé-los como narradores privilegiados de um evento marcante em suas vidas. Esse evento nao se resume a um projet missioneiro colonizador, no qual os Mbyd aparecem em uma posigio secundiria com relacio aos jesuitas c & sociedade dos nio-indigenas, mas, sim 0 da construgdo de uma “casa de pedra’ singular, voltada para a superaco da condigao humana. Os Nhande Ru Miri a fizeram perecivel, com 0 objetivo de mostrar aos jurtd, os nao-indigenas, a importincia da presenca do povo Guarani no mundo. Nesta terra imperfeita, eles se encontram ameagados, impedidos de viverem plenamente, seguindo os preceitos ransmitidos pelas belas palavras enviadas pelos Nhande Ru. A visibilidade das marcas dos amepassados nas ruinas relembra 0 grande propésito dos Guarani. Eles querem subverter 0 posicionamento secundério que Thes foi imposto com relagio a leitura deste patriménio cultural. E é por meio da politica de salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial que estdo apresentando sua visio sobre a Tava: em Sav Miguel Arcanjo, reconhecimento do direito de narrarem sua hist6ria na fava, vai ao encontro de outras vitGrias que os Mbyd obliveram, lentamente, ao longo de anos. Eles conquistaram 0 direito de permanecerem no s rico, ‘ou melhor, na Tava, conseguiram a construgéo de uma casa de passagem e a possibilidade de venderem artesanato, bem como de realizarem reunides & apresentaghes. Mas, querem consolidar sua presenga fazer ouvir sua voz. $6 assim seri possivel té-los respeitosamente junto a um patriménio cultural da humanidade, atendendo ao principio que emana da Cons! Federal Brasileira de 1988, que reconhece os grupos formadores da sociedade como sujeitos legitimos das politicas de preservacio. Assim, o Registro da Tava em Sao Miguel Arcanjo, contemplando os sentidos que Ihe so atribuidos pelos Guarani, se justifica, tendo em vista a profunda relagdo desse bem cultural com seu modo de estar no mundo, bem como com seu desejo de modificar o olhar dos visitantes sobre sua trajet6ria e seu dircito a uma vida digna. ‘Temas importantes estio postos neste Registro, como o reconhecimento da identidade de um povo indigena, a transmissio de seus saberes, os esforgos que realizam no sentido da mudanca do modo como sio vistos e considerados pelos nao-indigenas ¢ a garantia de dircitos. A histéria do contato dos Guarani com a sociedade envolvente, leva-os, hoje, a se posicionarem ¢ demandarem do Estado Brasileiro ages politicas que garantam sua sobrevivéncia fisica e cultural, Pat > INRC Comunidade Mbyd-Guarani 2005 CK ™ LITAIFF, 2009, p.150, appud Parecer n° 667/2014, p. 44 1 laboracao de.um. plano de salvaguarda associado ao Regisito aqui proposto, definiram como elemento fundamental a adogio de sua perspectiva sobre a Tava no tratamento dispensado ao sitio de Sio Miguel Arcanjo, que assim deixara de ser 0 lugar de seu esquecimento, pura lornar-se um lugar de pertencimento. Esse 0 principio que deverd nortear a gestao do Parque Historico das Missoe: 5. Conclusio vara 0 Povo) io Cultural suas belas, Diante do exposto, recomendo com veeméncia a inserigio da Tava, Lugar de Referéncia ‘em Sio Miguel Arcanjo, no Livro de Registro de Lugares, reconhecendo-a como Patrimé L, como um reconhecimento devido ao povo Guarani, © para que possamos, todos, out € tefletir sobre a importancia dade da experiencia humana. Conselheira do Conselho Consultivo do IPHAN, 12

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