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As dualidades em Strangers On A Train, de Alfred Hitchcock

Mariana Costa 47407

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Realização Cinematográfica
Prof. Dr. João Mario Grilo

15 de Janeiro de 2016
As dualidades em Strangers On A Train, de Alfred Hitchcock 
Mariana Costa 
 
Resumo 
Este  artigo  visa  refletir  sobre  as  dualidades  presentes  no  filme  Strangers  On  A  Train,  de 
Alfred  Hitchcock,   através  de  uma análise fílmica das escolhas de planificação, iluminação, 
mise en scene​
montagem e ​  feitas pelo realizador.  
 
Palavras­ chave:​
 Hitchcock ; Analise fílmica; Strangers On A Train; Dualidades; 
 
Introdução 
 
  noir​
Strangers  on  a  Train  é  um  thriller  americano   com  elementos  de  filme  ​ , 
produzido  e  dirigido  por  Alfred  Hitchcock  e  baseado  no  romance  de  mesmo   nome escrito 
por Patricia Highsmith. Estrelado por  Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker, Leo G. 
Carroll,  Patricia  Hitchcock  e  Laura  Elliott,  o  filme foi gravado durante o outono de 1950 e 
lançado pela Warner Bros em 30 de junho de 1951. 
A  história diz respeito a dois  estranhos que se encontram em um comboio: Guy, um 
jovem  e  ambicioso  tenista,  e  Bruno,  um  encantador  psicopata.  Como  ambos  personagens 
gostariam  de  "se  livrar"  de  alguém  em  suas  vidas,  o  psicopata  sugere  que  eles  deveriam 
“trocar  assassinatos”,  para  que  nenhum  dos  dois  fossem  apanhados  pela  polícia  devido   à 
falta  de  motivações  e  de provas. O psicopata comete o primeiro  assassinato; e, em seguida, 
tenta forçar o jogador de tênis a concluir o acordo que acredita ter firmado. 
Neste  trabalho  serão  analisadas  as  dualidades  presentes  no  filme,  assim  como  será 
realizada  uma  análise  fílmica  geral  sobre  as  questões  relativas  à  planificação,  iluminação, 
mise  en  scene​
montagem  e  ​ .  O  objetivo  desse  trabalho  é  analisar  e  pontuar   como  o 
realizador  transformou  o  romance  em  uma  narrativa  minuciosamente  construída  sob  a 
temática  da  dualidade,  tão  discutida  no  período  de  realização.  Para  a  atingir tal objetivo, a 
metodologia  seguida  se  baseia  no  visionamento  da  película  e  na  utilização   de  uma 
bibliografia de referência sobre o filme e o sobre realizador. 


As dualidades em Strangers On A Train 
  
Strangers  on  a  Train  é  a  história  de  uma  troca  de  assassinos/assassinatos 
combinada  a  fim   de se obter um crime perfeito. O começo do filme  destaca algo recorrente 
na  obra  de  Hitchcock:  o  papel  do  acaso  ­  a  forma  como  a  vida  de  qualquer  pessoa  pode 
mudar  radicalmente  a  partir  de  um  simples  encontro que posteriormente se revela decisivo 
na vida da personagem. 
Assim,  o  filme  inicia  com  uma  montagem  paralela  e  o  que  vemos  são  duas  linhas 
de  comboio  que  se  cruzam  duas  vezes  ao  passo  que,  como  em  uma  continuação  lógica, 
dois  diferentes  pares   de  sapatos  (de  Bruno  e  de  Guy)  transitam  pela  estação  até  se 
chocarem  já  no  interior  da  carruagem,  gerando  um  mútuo  pedido  de  desculpas.  Fica 
evidente  a  metáfora  visual  desses  dois  caminhos  representando  duas  formas  distintas  de 
vida  que  estão  prestes  a  colidir.  Nesse  sentido,  é  possível  afirmar  que  já  está  instalada  a 
primeira  dualidade  da  longa­metragem,  visto  que  toda  obra  trabalha  com  essa  questão  e  é 
desenvolvida de inúmeras maneiras. ​
Donald Spoto aponta:  
 
There  are,  at  the  outset,  two  pairs of feet and two sets of train rails that cross twice. 
Walker  and  Granger  meet  when  their crossed feet accidentally touch under a table. Walker 
orders  a  pair  of  double  drinks  […]  There  are  two  respectable  and  influential  fathers,two 
women  with  eyeglasses,  and  two  women  at  a  party  who  delight  in  thinking  up  ways  of 
committing  the  perfect  crime.  There  are  two  sets  of  two  detectives  in  two  cities,  two  little 
boys  at  the  two  trips  to  the  fairground,  two  old  men  at  the  carousel,  two  boyfriends 
accompanying the woman about to be murdered, and two Hitchcocks in the film.1 
 
Nos  anos  50,  o  tema  das  dualidades  esteve  especialmente  presente  tanto  nas 
ciências  quanto  nas  artes  devido  à  influência  gerada  pelos  estudos  contemporâneos  de 
psicologia  de  Sigmund  Fred.  O  psiquiatra,  cuja  trabalho  despertava  profundo interesse em 
Hitchcock,  utilizou  figuras  da  mitologia  grega  para  nomear  duas  principais  categorias  de 

1
 Donald Spoto. The Dark Side of Genius: The Life of Alfred Hitchcock. New York: Ballantine Books, 1983. 
p. 327­328. 

pulsões  humanas:  o  instinto  de  vida  (eros)  e  o  instinto  de   morte  (thanatos).  Para  o  autor, 
essas  forças  estão  em  constante  embate  em  todas  as  pessoas  e  quando  ocorre  o 
desequilíbrio  das  mesmas  em  uma   pessoa  psicologicamente  doente,  um  lado  sempre  irá 
vencer.  É  interessante  perceber  a  relação  dessa  estrutura  freudiana  com  as  características 
dos protagonistas de Hitchcock. 
Podemos  entender  a  relação  dos  protagonistas  como  a  resposta  ao  desequilibrio 
gerado a partir do encontro de duplos. Aponta Renato Barroso:  
 
Bruno  e  Guy  são  uma  e  a  mesma  pessoa,  uma  personalidade  dividida  em  dois,  o 
bem  e  o  mal  que  existem   no   mesmo  homem,  os  dois  opostos   que  se  anulam,  num  cenário 
de  permutabilidade  e  transferência  da  culpa  que  acentua  o  tema  do duplo, da dualidade do 
indivíduo,  (Dr.  Jekly  and Mr. Hyde), em  que Bruno, sabendo distinguir o bem do mal é, na 
sua  amoralidade,  o  duplo  de  Guy,   o   seu  lado  mau,  a  sua  face  escondida, perversa, da qual 
este talvez não tenha consciência.2 
  
Esse  elemento  dual   também  esta  presente  no  jogo  de  contrastes  entre  os  dois 
protagonistas.  Bruno  tem  um  ritmo  de  vida  acelerado,  segundo  ele  afetado  por  uma  certa 
“vertigem  da  vida  moderna”,  e  se  apresenta  com  um  vestuário  excêntrico  que  desperta  a 
atenção  de  todos.  Já  Guy   tem   um  caráter  reservado  e  um  ritmo  de  vida   mais  tranquilo. 
Além disso, o tenista tem uma forma contida no comunicar e no vestir.  
Na  medida  em  que  Bruno  e   Guy  são  opostos,  pode­se  afirmar  que  muitas vezes se 
conectam  também  de  maneira  complementar.  Em  vários  momentos  os  dois  homens  estão  
relacionados  por  uma  montagem  paralela  de  palavras  e  gestos:  um  pergunta  o  tempo  e  o 
outro,  a  quilómetros  de  distancia,  olha  para  o  relógio  de  pulso;  um  diz  enraivecido   “eu 
poderia estrangula­la” e o outro, a distancia, faz um gesto de quem estrangula alguém. 
Cabe  igualmente  pontuar  que,  dentro  dessa  minuciosa  película,  a  fixação  que  se 
cria  à  volta  de  um  isqueiro  tem  como  objectivo  criar  a  técnica  de  suspense  denominada 
The  MacGuffing,  que  consiste  em  atribuir  importância  de  alguma  forma  a  um  objeto,  um 

2
 Renato Barros. A culpa no cinema de Alfred Hitchcock In: Revista do CEJ. ISSN 1645­829X. n. 2, 2014, p. 
318­319 

lugar  ou  até  um  desejo  para  que  este  desencadeie  nós  na  narrativa.  Vale  ressaltar  que  o 
isqueiro  é  frequentemente  filmado  em  close­up  durante  o  filme,  reforçando  a  ideia  de que 
tem  um  papel  central  e  simbólico  na  trama.  Aqui  o  isqueiro,  que é a única prova que pode 
incriminar  Guy,  é  também  no  desenlace  a  única  prova  que  o  iliba.  Assim,  encontramos 
outra  dualidade.  Além  disso,   o   próprio  objeto  carrega  a  inscrição  “From  A.  To  G.”, 
significando  oficialmente  “From  Ann  to  Guy”,  mas  nos  fazendo  lembrar  “From Anthony 
to Guy”, Anthony sendo o apelido de Bruno, visto que é entre os dois que tudo acontece. 
Sobre  o  uso  da  iluminação  na questão da dualidade fica evidente a marcação da luz 
pela  oposição  entre   claro  e  escuro.  Bruno  é  uma  personagem  cujo  rosto  é  constantemente 
atravessado  por  sombras.  Se  observarmos  a  conversa  inicial  entre  Guy  e  Bruno  no 
comboio vemos que sombras cruzam o rosto de Bruno, como grades de uma prisão. 
Entretanto, nota­se que em  muitos momentos Bruno tem que ir para o mundo de luz 
a  fim  de  obter  o  que  deseja.  Na  cena  em  que  Bruno  conta  para  Guy  sobre  o  assassinato, 
Guy  se  aproxima  dele  fora  de  sua  casa,  a  sensação  é  de  que  ele  está  deixando  a  luz  e 
entrando  em  um  mundo  sombrio.  Bruno,  uma  sombra   entre  sombras,  espera  atrás  de 
algumas  grades,  avança  para  luz  para  que  possa  ser reconhecido e, assim, atrai Guy para o 
seu  lado.  Com  a  chegada   da  polícia  tanto  Bruno  e  quando  Guy têm sombras de grades em 
seus  rostos  e  temos  um  plano  subjetivo  da  polícia  a   partir  da  posição  de  ambos  atrás  das 
grades.  Guy  diz:  "Você  me  faz  agir  como  se  eu  fosse  um  criminoso",  A  cena  dá  uma 
expressão simbólica sobre o relacionamento dos dois e o que Bruno representa. 
Na  maioria  das  aparições  de  Bruno  em  que  ele  está  tentando  fazer  com  que  Guy 
cumpra  seu  suposto  acordo,  a  personagem  é  filmado  em  contraste  com  algo  branco,  ou 
pelo  menos  algo  iluminado.  Quando  ele  telefona  para  Guy,  é  possível  ver  no  fundo  o 
Capitólio  branco  e  bem­iluminado,  enquanto  no  primeiro  plano  Bruno  fica  em  meio  às 
sombras.  Wood  reconhece  que  em  filmes  de  Hitchcock,  o  simbolismo  democrático   é 
sempre  associado  com  a  ideia  de  uma  vida  ordenada.  Esse  simbolismo  também  é  usado 
quando  Guy  e Hennessy andam na frente do ​
Jefferson Memorial e Guy percebe uma figura 
sombria nas escadas brancas, uma mancha na pureza da imagem. 
Um  dos  momentos  mais  interessantes  quanto  ao   uso  da  luz  se dá quando Miriam e 
os  dois  rapazes  que  a  acompanham  entram  no  Tunel  do  Amor  e  só  é  possível  ver  suas 


sombras.  Rapidamente,  a  sombra  de  Bruno,  misticamente  muito  maior  do  que  as  outras, 
avança na  direção das outras sombras e se sobrepõe. Ao concluir  esse movimento, ouvimos 
o  grito  de  Miriam.  A  sobreposição  das  sombras  gera  um  suspense  rápido  e eficaz fazendo 
com  que  o  espectador  suponha  que  o  ataque aconteceu. Entretanto, essa  expectativa logo é 
quebrada  quando  no  plano  seguinte  percebemos  que  o  grito  fazia  parte  da  dinâmica  entre 
Miriam  e  os  rapazes.  Novamente  podemos  observar  a  ligação  que  Hitchcock  faz  entre 
Bruno  e  um  mundo  de  sombras  e  caos.  Ainda  cabe  comentar  o  preciosismo  de  Hitchcock 
ao  fazer  o  assassino  utilizar  uma  embarcação  chamada  Pluto,   deus  da mitologia grega que 
viaja  sobre  a  terra  e  o  mar  e  que torna rico quem o encontra (nesse caso, o tenista Guy que 
teria o caminho aberto para o casamento com Ann e uma promissora vida na política.) 
Apenas  no  momento  em  que  acreditamos  que  Guy  irá  matar  o  pai  de  Bruno  para  
cumprir  o  acordo  entre  os  dois  (durante  sua  visita  ao  Mr.  Anthony),  a  personagem  é 
filmada  movendo­se  entre  as  sombras e  escuridão em sucessivos planos. Há alguns planos 
completamente  negros,  com  somente  por  uma  mancha  branca,   correspondentes  à  luz  da 
tocha de Guy, seguindo o mapa de Bruno lhe deu. 
Se  repararmos,  Guy   está  associado  à  vida  diurna  tal  como  Bruno  à  vida  noturna: 
lembremos  que  no  desenlace  Bruno  está  ansioso  que  chegue  o  anoitecer,  enquanto  Guy 
corre  contra  o  tempo  para  chegar  à feira popular antes que anoiteça. E assim o encontro da 
noite  e  do  dia  se  concretiza  no  crepúsculo,  momento  em  que as personagens  se encontram 
na feira e o desfecho se dá. 
A  dualidade  estende­se  até  a  planificação.  O  filme  é  repleto  de  enquadramentos 
baseados  em  linhas  retas  que  serão  corrompidas  com  figuras  curvas  –  sendo  a  primeira 
dessas  figuras  o  próprio  Hitchcock  quando  entra  no  comboio  segurando  um  grande 
contrabaixo  .  A  força  dessas  figuras  redondas  são  quase  comparáveis  à  força  que  Bruno 
exerce  sobre  Guy,  visto  que  as  mesmas corrompem as linhas retas do plano e essa tensão é 
transmitida pela imagem ao espectador. 
Cena  do  assassinato  de  Miriam  fica  evidente  a  influência  do  expressionismo 
alemão  na  obra  do  realizador.  O  plano  distorcido  feito  através  da   lente  não  partida  do 
óculos  da  mulher  de  Guy  serve  para  nos  fazer entrar na forma distorcida como Bruno vê o 
mundo  pois  é  louco.  Para  ele,  nem  se  trata  de  um  assassinato,  mas  apenas  uma  tarefa  que 


ele  tem  de  concretizar  para  que  o  seu  pai  desapareça.  Para  Barroso,  “os  óculos de Miriam 
funcionam  assim  como  um  espelho,  um  reflexo  deformado  do  crime,  neste  fabuloso  jogo 
de  duplos,  como  são,  um  do  outro,  Bruno  e  Guy.”(318).  Ian  Morrisson  adiciona  que  o 
ângulo da câmera, a imagem distorcida refletida, a ausência dos sons de luta e a iluminação 
tem a função de ocultar a violência do ataque e ao mesmo tempo, revelam a força de Bruno 
e  a  inevitabilidade  da  morte  de  Mirian3 .  Nesse  sentido,  é  possível  observar  que  Hitchcock 
era  extremamente  consciente  dos  artifícios  da  linguagem  cinematográfica  e  que  esses  não 
somente  foram  usados  para  multiplicar  a  força  do  assassinato,  mas também para adicionar 
varias metáforas e simbolismos em toda película. 
Durante  a  partida  de  tênis,  Hitchcock  ­  grande  mestre  da  ​
mise  en scene ­ emprega 
diversos  recursos  para  criação  de  suspense  ao  público.  O  realizador  utiliza  varios  ângulos 
de  camêra  que  fazem  como  que  o  espectador   se  sinta  dentro  do  jogo.  Nesse  sentido,  o 
espectador  pode   se  identificar  com  o  desespero  de  Guy  para  ganhar  a  partida e provar sua 
inocência.  O  plano  que   revela  um  relógio,  mostra  para  nós  que  ele  está  não  só  lutando 
contra  o  oponente,  mas  também  contra  o  tempo.  Hitchcock  usa  um  ​
reaction  shot  para 
intensificar  a  importância  de  que  Bruno chegue primeiro ao local do crime e sua expressão 
revela  que  pegar  o  isqueiro  se  trata  de  uma  questão  de  vida  ou  morte.   A  expressão  de 
nervosismo de Bruno também aumenta o tensão da cena. 
Nessa  cena,   fica  evidente  o  cruzamento  entre  as  vidas  de  Guy  e  Bruno.  As 
personagens  parecem  ser  simbolicamente  conectadas  pela  oposição  que  estabelecem.  Guy 
começa  a  ganhar  novamente  quando  Bruno  perde  o  isqueiro,  completando   a  inversão  da 
sequência.  O  ​
cross­cutting  entre  os  dois  personagens  estabelece  uma  competição  sobre 
quem  irá  conseguir  primeiro  concretizar  seus  objetivos.  Até  a  música   que  acompanha  os 
personagens  é  diferente,  estabelecendo  um  novo  contraste  e  relação  de  dualidade  entre   os 
atos.  Com  a  combinação de som diegético e não digético a carga de suspense e ansiedade é 
aumentada. O som das raquetes com a bola parecem os ponteiros de um relógio avançando, 
lembrando­nos  do  desejo  de  guy  de  ganhar  o  jogo  e  salvar  sua  reputação.  Simultamente 
Guy  vence  a  partida  enquanto  Bruno  resgata  o  isqueiro,  avançando  com  a  narrativa. 

3
 ​
Ian Morrisson, The Art of Murder. http://www.imagesjournal.com/issue09/features/artofmurder/text2.htm, 
p. 2. 

Hitchcock  utiliza­se,  portanto,  de  uma  combinação  de  aspectos  técnicos  para  aumentar  o 
suspense,  como  por  exemplo,  planos  subjetivos,   ​ close­ups​
reverse  angle  shots  and  ​ ,  assim 
cross  cutting​
como a montagem com ​ . O  espectador é forçado a assistir as duas personagens 
tentando  conquistar  cada  uma  o  próprio  dilema  em  uma  jornada  que  o  deixa  a  cada 
momento mais ansioso e curioso sobre desfecho final. 
A  cena  do  carrossel  do  filme,  é  uma  cena composta de vários planos complexos de 
serem concretizados que fizeram história no cinema. No livro de entrevistas de Hitchcock à 
Truffaut,  o  realizador  confessa  que  nunca  voltaria   a  fazer  uma  coisa  tão  arriscada,  pois  o 
plano  com  o  idoso  a  mover­se  debaixo  do  carrossel  a  alta  velocidade  foi  realmente  assim 
feito, com graves riscos.  
Assim  como  o  carrossel,  a  vida  de  Guy  estava  fora  de  controle,  em  total 
desequilibrio.  Até  o  ultimo  momento,  Bruno  tenta  incrimina­lo  aos  olhos  da  polícia.  Sua 
maneira  raivosa  de  pisa­lo  simboliza  a  forma  limite  que  atingiu  essa  relação de duplos, de 
verso  e  reverso.  A  feira  popular,  local  de diversões e do insano, onde tudo pode acontecer, 
é  o  lugar  onde  o  ciclo  de  loucura  é quebrado; o carrossel é destruído e a normalidade pode 
ser  restaurada.  Tudo  isso  só  depois  do  carrossel  ter  atropelado,  em  seu  frenesi,  diversas 
pessoas  inteiramente  desconhecidas,  assim  como  Bruno  e  Guy  também  eram,  um  para  o 
outro, no começo de tudo. Strangers. 
 
 
Conclusões 
 
Durante  toda  obra,   Alfred  Hitchcock  se  manteve  empenhado  na  construção  de  um 
filme  minucioso,  chegando  a  pensar  a  montagem  na  realização  de  modo  a  obter  só  um 
resultado  possível.  Com  diversos  elementos  interligados,  duplos,  que  fazem  a  todo 
momento  referências  entre  si,  o  realizador  desenvolveu  uma  elaborada  mise  en  abyme, 
utilizando­se  de  todas   as  especificidades  da  linguagem  cinematográfica.  Entretanto,  vale 
ressaltar  que  há,   em  Hitchcock,  um  fascínio  pela  clareza  das  coisas;  por  simplificar  a 
natureza  icônica.  Donald  Spoto  resume essa produção cinematográfica de maneira precisa: 


“the  form  of  the  film  is  its  meaning:  doubles  and  pairs,  accumulated  and  intercut  in  an 
almost endless series, mediate the theme” (327). 
Strangers  on a train começa em uma viagem de comboio e, de certa forma, pode ser 
entendido  como  um  filme  de  viagem.  Uma  viagem  em  que  as  personagens  estão  em 
constante  movimento  e  em  trajetórias  físicas  e  emocionais que se repetem. O percurso que 
Bruno  faz  para  assassinar  a  mulher  de  Guy  é a mesmo feito por Guy para ser absolvido do 
crime.  
Existe  também  uma  circulação  constante  do  sentimento  de  culpa  entre  os 
personagens,  visto  que  como  Guy  não   cumpre  a  sua  parte  do  pacto  Bruno  tem  sobre  si  o 
peso  do  crime  que  não  era  seu  e  isso  só  poderia  ser  apagado  se  o  seu  pai  também  fosse 
assassinado  por  Guy.  Bruno  acussa  Guy  sobre   o   crime  que  ele  mesmo  cometeu; enquanto 
Guy  mantém  a  culpa  sobre   Bruno,   atribuindo­lhe  a  toda  a  responsabilidade  sobre  o 
assassinato.  Esse  jogo  de  transferência  de  culpa  talvez  estabeleça  uma  relação  de 
simbolismo  com  esporte  praticado  por  Guy:  os   oponentes  sempre  tentam  empurrar  a  bola 
(ou a culpa) para o outro lado da rede. 

Ademais  cabe  pensar  sobre  conceito  de  anamorfose  ­  uma  representação  ou 
imagem  que  parece  deformada,  mas  se  apresenta  regular  em  determinado  ângulo  ­  dentro 
da  narrativa  desenvolvida  por  Hitchcock.  Existe,  na  planificação,  certa  dimensão  lúdica; 
temos  realismo  na  imagem,  mas  há  algo que nos escapa.  Esse jogo entre o realismo e essa 
anamorfose,  entretanto,  não  compromete  o  primeiro,  o  que  nos  permite  perceber  com 
clareza  todos  os  fatos.  Certamente,  a cena do carrossel desgovernado ilustra com perfeição 
essa vertigem. 

O  realizador   traça  um  percurso  para  o  olhar,  dirigindo  os  espectadores;  não  os 
atores.  Assim,  ele  manipula  nossas  consciências,  levando­nos  por  onde  deseja.  Pode­se 
ainda  afirmar  que  muitas  sequências  foram  pensadas  como  se  o  filme  fosse  uma  obra  do 
cinema  silêncioso.  Trata­se  de  um  clássico  que  precisa  ser  sempre  revisitado  por 
pesquisadores e estudantes de cinema. 

 
 


Ficha Técnica  
Título original: Strangers on a Train 
(US, 1951, 101/100 minutes, bw) 
Empresa produtora / Estúdio / Distribuição: Warner Bros 
Produção / Realização: Alfred Hitchcock 
Roteiro:  Raymond  Chandler,  Czenzi  Ormonde  e  Ben  Hecht,  adaptação  por   Whitfield 
Cook,  baseado no romance de Patricia Highsmith. 
Diretor de fotografia: Robert Burks 
Diretor de arte: Edward S Haworth 
Montagem: William H Ziegler 
Som direto: Dolph Thomas 
Figurino Leah Rhodes 
Maquiagem: Gordon Bau 
Efeitos especiais Hans F Koenekamp 
Produtor associado: Barbara Keon 
Diretor musical: Ray Heindorf 
Música original: Dmitri Tiomkin 
:  ​
Elenco​ Farley  Grange;  Ruth  Roman;  Robert  Walker;  Leo  G  Carrol;  Patricia  Hitchcock; 
Laura  Elliot;  Marion  Lorne;  Jonathan  Hale; Howard St John; John Brown; Norma Varden; 
Robert Gist; Ralph Moody; Dick Vessen; 

  

Referências bibliográficas 

 
BARROSO,  Renato.  A  culpa  no  cinema  de  Alfred  Hitchcock  In:  Revista  do  CEJ.  ISSN 
1645­829X. n. 2, 2014, p. 311­320 
 
DELLOLIO,  Peter  J. Expressionist themes in Strangers on a Train in Lit./F./Quarterly, vol. 
31, n° 4 / 2003. p. 260 ­ 269.  


PAULA,  Marlene.  Hitchcock  and  the  Art  of  Murder:  Selected  Films  1945­60.  Tese  de 
Mestrado. Aveiro, Universidade de Aveiro, 2006 
 
SPOTO,  Donald  (1983).  The  Dark  Side  of  Genius:  The  Life  of  Alfred  Hitchcock.  New 
York: Ballantine Books. p. 345 
  
ROHMER,  Erick,  Hitchcock,  the  first  forty­four  films.  Trans,  Stanley  Hochman.  New 
York: Ungar, 1979.  
 
TRUFFAUT,  François.  Hitchcock  Truffaut.  New  York:  Simon  &  Schuster  Paperbacks, 
1983. 
 
MORRISSON,  Ian,  “The  Art  of  Murder.”   ​
Recensão  publicada  em​
:: 
<​
http://www.imagesjournal.com/issue09/features/artofmurder/text2.htm​
,  consultado  em 
Dezembro de 2015. 
 
 
 

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