Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2.3.
N
uma tentativa de elencar as no mercado de trabalho, associadas aos
razões da existência (quase estereótipos de género, os quais influenciam
um paradoxo) de um currículo a escolha das profissões em ambos os sexos,
nulo no ensino secundário, na no ensino da economia.
sequência do pensamento de George Posher
• currículo nulo por exuberância
(2004) e dos contributos de autores como
Neste caso dedica-se uma importância
Beatriz Meza e Rafael Cepeda (s/d), aos quais
excessiva a determinados assuntos,
juntamos reflexões nossas – ‘que conduzem
eclipsando-se por detrás dessa ‘profusão
a uma associação entre o tipo de omissões
de conhecimentos’ determinadas temáticas
identificadas e as problemáticas de género que
profundamente relevantes e inerentes ao tema
estão na base das desigualdades sociais entre
principal abordado, as quais têm implicações
mulheres e homens’ –, propomos a seguinte
diretas na compreensão da realidade por parte
adaptação por categorias, não mutuamente
de quem aprende. Apresentamos aqui, como
exclusivas, nem exaustivas (i.e., as categorias
exemplo, a relevância dada ao tema geral do
podem sobrepor-se, ser concomitantes e a lista
acesso das mulheres à escolarização durante
não está fechada, nem esgotámos o que foi
o último século, fazendo crer que isso foi
proposto nas fontes consultadas):
uma realidade em todos os países – mesmo
• currículo nulo considerando apenas os da parte ocidental
por omissão completa do mundo –, que se fez da mesma forma em
Acontece quando estão totalmente ausentes todos eles e sempre com progressos, e que
dos conteúdos curriculares temáticas com os efeitos sociais para o sexo feminino dessa
importância para a vida coletiva, seja a nível suposta ‘entrada em massa’ para a escola
individual, seja a nível profissional. Aqui foram equivalentes. Ora, como sabemos,
poderíamos dar o exemplo da omissão das estas assunções são profundamente erróneas,
questões da orientação sexual no ensino da uma vez que ainda há hoje elevadas taxas
biologia ou o não tratamento da problemática de analfabetismo entre as mulheres idosas
das segregações (horizontal e vertical) mesmo no nosso país17 – os números ganham
17 Segundo o Censos de 2011 na região do Alentejo, por exemplo, a taxa de analfabetismo dos homens era de 7.1% e as das
mulheres era de 11.8%. Na faixa etária das pessoas com mais de 75 anos, esses números sobem para 33.2% para o sexo
masculino e para 46.5 para o sexo feminino. Ou seja, ainda há regiões no nosso país onde cerca de metade da população
idosa feminina não sabe ler nem escrever, o que lhes retira direitos inalienáveis e lhes traz enormes prejuízos no exercício da
cidadania.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 077
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
18 As quinze áreas temáticas da educação para a cidadania adotadas pela Direção-Geral da Educação do Ministério da Educação
e Ciência podem ser consultadas em: http://www.dge.mec.pt/areas-tematicas (consultado a 22 de março de 2015).
078 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
e deixa de fora do debate – e mesmas, primeiro para a sua quando se usa terminologia
do retrato da sociedade que formação enquanto cidadãos demasiado hermética, sem
é feito na sala de aula (ou na e cidadãs e para o exercício a necessária definição dos
disciplina em causa) – uma da cidadania, e depois para conceitos (consultar, a este
parcela da população adulta a formação global de quem propósito, o Glossário no
(ou seja, as pessoas que não ensinam. final deste Guião). É possível
são heterossexuais). que os e as discentes até
• currículo nulo por
estejam familiarizados/as
• currículo nulo por falta desfasamento do
com alguns termos (ex: gap
de preparação de quem conhecimento
salarial; mainstreaming de
ensina Neste caso, pode-se tentar
ensinar os discentes e género; tetos de vidro; assédio
Este tipo de omissão acontece
abordar temáticas relevantes sexual), mas tenham feito uma
quando se espera que os/as
para a vida de mulheres e apropriação incorreta dos
docentes abordem temáticas
de homens, mas de modo mesmos, resultando por isso a
para as quais não estão
desfasado da realidade. sua aprendizagem em parcelas
despertos/as ou nem sequer
Isto é, pode apresentar-se de informação erroneamente
cientificamente preparados/as
dados obsoletos, estatísticas organizadas nas suas redes
para o fazer. Logo, não se
desatualizadas, evidências mentais de conhecimentos.
pode esperar a introdução
de assuntos ligados às empíricas refutadas por novos • currículo nulo por
problemáticas de género estudos científicos, entre falhas na metodologia
nas diversas disciplinas, se outros exemplos. Tal poderá de ensino
os/as próprios/as docentes acontecer se, por exemplo, Esta omissão pode
não tiverem uma leitura na discussão em torno da acontecer nos curricula,
sensível sob esta ótica da participação das mulheres independentemente das áreas,
realidade. Isto não significa na vida política ou mesmo no quando os temas em debate
que haja sempre da sua parte mercado de trabalho, a ou o exigem uma participação
alguma intencionalidade ao docente for buscar indicadores ativa e calorosa de alunos
evitarem fazê-lo. O problema relativos aos países do norte da e de alunas e os métodos
reside no facto de talvez Europa e não usar estatísticas pedagógicos adotados por
nunca lhes ter sido dada a portuguesas para o efeito, quem ensina obrigam a uma
oportunidade, em termos dado que há fatores políticos e atitude de passividade em
formativos (formação inicial culturais que pesam na leitura e quem aprende. No debate de
e contínua), de aprenderem interpretação dos números19. assuntos relevantes para a vida
a usar ‘as lentes de género’ • currículo nulo por de alunos e de alunas, como
para ler e interpretar situações falta de preparação sejam os seus projetos futuros
e indicadores que traduzam prévia da/o discente em termos da conciliação da
desigualdades sociais entre para assimilar família com a carreira – ou
mulheres e homens. Neste informação nova mesmo as suas perspetivas
caso específico, as temáticas Este tipo de omissão pode de vida a nível cultural, social
não são abordadas, porque ocorrer quando não se leva em e político –, que arrastam
não existe em docentes conta aquilo que a e o discente consigo outras problemáticas,
consciência crítica individual da supostamente já sabem como o desempenho de
importância da discussão das acerca das temáticas, ou ainda papéis parentais e conjugais,
19 Ver a este propósito o capítulo 2.3. da segunda parte deste Guião, relativo à área de Economia.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 079
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
é de esperar que haja entusiasmo (e, às diversas em que este tipo de violência pode
vezes, desdém, se considerarem tais decisões traduzir-se, não se falar em concreto na
longínquas no tempo…) no esgrimir de violência no namoro, na violência nas relações
pontos de vista, e tal não se coaduna com de intimidade, no assédio sexual, no tráfico
metodologias sobretudo expositivas e com de seres humanos para fins de exploração
atitudes docentes que Paulo Freire (2002) sexual, entre outras, e nas formas que as
caraterizou como ambíguas, contraditórias20 mesmas costumam assumir, poderá deixar-
ou mesmo incoerentes. se passar a ideia comum de que ‘aquela
• currículo nulo por excesso de violência’ se refere apenas a situações de
recursos audiovisuais agressão física e psicológica entre marido e
Neste caso poderá falar-se da omissão de mulher, sendo ele o agressor e ela a vítima. Um
conteúdos fundamentais para a tomada de procedimento desta natureza poderá inclusive
consciência crítica sobre as razões que estão a deixar passar ao lado situações reais de alunos
montante das desigualdades e discriminações e de alunas, presentes no referido debate, e
sociais entre homens e mulheres, e das sem consciência de que eles e elas próprias
respetivas implicações para ambos os sexos, poderão estar a desempenhar os ditos
se os e as docentes optarem por usar uma papéis e que teriam ganhos incontornáveis se
panóplia de materiais numa mesma aula, como tivessem consciência disso.
cartazes, vídeos, textos, etc., sem dar tempo • currículo nulo por falta de
aos e às discentes de aprofundarem a sua articulação de conteúdos
análise para os fins previstos. Neste caso, há A não articulação de conteúdos entre as
como que um efeito de inebriamento (ou de diferentes disciplinas que compõem o
êxtase) que é provocado pelos efeitos da cor, currículo do ensino secundário pode também
luz, som, movimento, etc., que poderá ser constituir um exemplo de currículo nulo, pois
contraproducente em relação à necessidade os e as discentes poderão não conseguir,
de descodificação e de desocultação da por essa razão, compreender o valor dessas
informação, que poderia ter eventualmente aprendizagens para a sua vida presente e
para eles e para elas valor emancipatório. futura enquanto seres humanos. A apropriação
• currículo nulo por superficialidade do conhecimento como algo parcelar, sem
A omissão aqui em causa poderá ter a ver valor prático para a condição de se ser
com a ligeireza do tratamento de certos humano, e apenas para fins de avaliação e
assuntos, com importância para a vida de sucesso escolar, pode transmitir a ideia de
individual e coletiva. Refira-se, a este propósito, que a escola é um contexto afastado da vida
a problemática da violência de género, que real, de que o conhecimento cientificamente
tende a ser legitimada por diversas fontes construído – enquadrado em contextos sociais
de influência, como se disse atrás, como e históricos – é mais importante (e quase anula)
a publicidade, os videoclips, os modelos do que o conhecimento experiencial, resultante
valorizados nos media, entre outras. Se, num da vida concreta de cada qual, e que haverá
possível debate em torno das manifestações inclusive determinados assuntos que não
20 Na sua visão crítica acerca do papel dos/as educadores/as na promoção de um conhecimento que tenha valor emancipatório,
resultando isso quer da coerência do comportamento pedagógico (do docente) com os conteúdos ensinados (currículo),
quer da valorização do saber popular dos discentes, adquirido a partir do vivido, Paulo Freire (2002) defende a prática do
“desnudamento do contraditório” (p. 210). Nas suas palavras, “o cinismo não é a arma indicada para a reconstrução do mundo”
(idem, ibidem), pelo que quem exerce a autoridade de ensinar deve pautar-se pela coerência, pela humildade e pela crença
genuína naquilo que faz.
080 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
interessa tratar na escola, pois não têm a ver dos e das docentes, enquanto modelos
diretamente com os conteúdos específicos das de cidadania para alunas e alunos, poderá
disciplinas. reforçar conceções estereotipadas assentes
• currículo nulo por falta de um nas desigualdades de género ou, pelo
trabalho colaborativo entre docentes contrário, poderá ser um bom mote para as
A inexistência de uma atitude de cooperação contrariar junto dos e das discentes, que são
entre docentes, no tratamento de temáticas até observadores/as atentos/as e participantes
consideradas transversais, como a promoção da realidade. O que se afirma neste caso a
da igualdade social entre mulheres e homens propósito da importância dos modelos que as
e o combate a todas as formas de dominação e os docentes representam pode estender-se,
sexista, é também ilustrativa das omissões de no espaço escolar e fora dele, a todas as outras
que a escola pode padecer. O comportamento pessoas com responsabilidades educativas.
“ É o caso de uma professora que, lutando contra a discriminação machista, tem, contudo, uma
prática pedagógica opressiva. Na sua tarefa académica de orientar estudantes (…) se comporta
de tal maneira autoritariamente que pouco espaço para criar e para se aventurar intelectualmente
lhes resta. Esta professora hipotética, mas muito fácil de ser encontrada, é a um tempo oprimida
e a outro opressora. É uma incoerente. A sua luta contra a violência machista perde a força e vira
um blablablá inconsequente. Para a autenticidade de sua luta ela necessita superar a incoerência
e, assim, ultrapassando o blá-blá-blá, diminuir a distância entre o que diz e o que faz.
Na medida em que a professora de nosso exemplo reflita criticamente sobre a sua prática é possível
perceber que, em última análise, na relação entre sua autoridade de professora e as liberdades
de seus alunos [e alunas], ela os vem oprimindo, e isto contradiz o seu discurso e a sua prática
antimachista. Desta forma, das duas, uma: ou assume cinicamente seu autoritarismo e continua
falsamente sua luta feminista ou, rejeitando-o, revê suas relações com os [os/as] estudantes para
que, assim, possa continuar a sua luta antimachista. ”
Paulo Freire, 2002: 209-210 (adaptado para uso da linguagem inclusiva).
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 081