Você está na página 1de 6

REPORTAGEM

A voz de
Carlos Paredes
...
uma guitarra
Lançava-se numa espécie de introspecção,
dedilhava as cordas já no ‘mundo de Paredes’,
de onde só sairia quando soasse o último acorde
...
M
t e x t o Va n d a J o r g e > f o t o s A n a B a i ã o e S e r g e C o h e n

inutos antes de iniciar um querer impor a minha própria maneira de sentir


concerto, Carlos Paredes di- a música. Ele dizia-me: ’estás a tolher-me!’. Irrita-
zia «vamos tocar bem para va-se comigo, ralhava-me e, às vezes, zangávamo-
não desapontar estes ami- -nos», recordava o músico, em 1981, no Jornal
gos». Os amigos eram o público que fixava aque- de Letras. Do pai herdou a genialidade na exe-
le homem alto, de um metro e oitenta e ar de- cução; da mãe, Maria Alice Candeias, a sensibi-
sajeitado. No palco, nem chegava a ajeitar a lidade e «um lado feminino que se revela na do-
cadeira. De sorriso tímido, aconchegava a gui- çura com que interpreta certas músicas», acres-
tarra a si, o corpo debruçava-se sobre o instru- centa Luísa. O dom da composição nasceu com
mento e, de imediato, atacava as cordas. Os ele, os ambientes que frequentou deram-lhe o
gestos eram inigualáveis: a firmeza com que a gosto apurado, as pessoas que conheceu a inspi-
mão esquerda percorria o braço da guitarra e ração. Até as unhas, que levaram a Rainha Isabel
com que a mão direita puxava as cordas é única. II a exclamar «Such incredible nails!», fizeram de
A pose, essa, era inconfundivelmente a de um Paredes um músico impar. Os concertos eram
génio. Lançava-se numa espécie de introspecção, de «sangue, suor e lágrimas», conta a violista que
dedilhava as cordas já no ‘mundo de Paredes’, de aprendeu a pisar um palco ao seu lado. «Ele não
onde só sairia quando soasse o último acorde. entrava de ânimo leve, transmitia confiança e eu
Consigo em palco, tudo era intuitivo. «Digo a sabia que ia correr bem. Ver aquela pessoa que
brincar que os deuses se reuniram para fazer um toca admiravelmente a não se deslumbrar é uma
homem que tocasse um instrumento. Deram- grande lição de vida. No final, perguntava-me
Passou parte da sua vida curvado sobre doze cordas de aço, -lhe o corpo, as mãos grandes, as unhas fortíssi- ‘Achas que correu bem?’ Cada vez que saía de
dono de um talento que desconhecia e o qual se sentia mas, a capacidade para compor e só depois fize- um palco voltava ao início, como se fosse a pri-
ram um instrumento à sua medida», é desta meira vez».
incapaz de transmitir. Carlos Paredes era o funcionário público forma que Luísa Amaro, mulher e a última
acompanhante de viola clássica de Paredes, Os concertos de Paredes
que tocava guitarra nas horas vagas e que, aos domingos,
começa por explicar a ligação de Carlos Paredes Carlos Paredes tinha o dom de agarrar o público
almoçava no Galetto, à noite, ouvia música no Frágil e, em à guitarra. estivesse no Olympia, em Paris, ou numa socieda-
Filho de Artur Paredes e neto de Gonçalo Pa- de recreativa sem condições acústicas. «Vi alen-
digressão, pedia três Big Mac. O génio da guitarra portuguesa redes, dois grandes executantes da guitarra no tejanos a chorarem com a música dele», uma
fado de Coimbra, aos quatro anos Carlos apren- imagem gravada na memória de José Jorge Letria.
considerava que «geniais são as pessoas que respeitamos
dia a técnica ao lado do pai. «Eu era terrivelmen- Tocava com a mesma «humildade e seriedade»
profundamente». te mau acompanhador, tinha tendência para para vinte ou para cinco mil pessoas. As plateias

ESPIRAL DO TEMPO > 41


Carlos Paredes Carlos Paredes

... ...
<

<
“Retratos do Artista quando jovem” junto a sua mãe, Maria Carlos Paredes ao leme de um cacilheiro.
Alice Candeias e a seu pai, Artur Paredes. Foto de Eduardo Gageiro.

respeitavam-no como um génio: «havia uma liga- humildade, sempre curvado e atrapalhado, es- 91, um ano antes de lhe ser diagnosticada uma músico solista, preocupado com a emancipação e

Nunca percebi se era O mestre apaixonou-se


ção de afecto que encontro também na Amália; as tava fascinado e, ao mesmo tempo, desnortea- Mielopatia, Paredes era o convidado especial no com o progresso do pensamento e dos hábitos

um homem optimista.
pessoas estavam em comunhão com ele, o que do», recorda o vice-presidente da SPA. O tema concerto dos Madredeus, no Coliseu de Lisboa. do seu povo e da sua época. Carlos Paredes é um

pela dança; olhava


leva as coisas para uma outra dimensão», explica ‘A Dança’ é o som da guitarra que se ouve «Apresentámos todas as nossas canções, para que exemplo de trabalho e de modéstia, de dedicação

Acho que era mais


Luísa. Apesar das «enormes dificuldades econó- na digressão mundial de Paul McCartney. ele escolhesse a que gostava mais. Ouviu-nos e ao seu país, à história do seu povo e à sua época,

fascinado para a
micas», gostava demasiado da música para viver à No final de um espectáculo, Pier Paolo Pasolini cumprimentou-nos pelo nosso trabalho; esco- que sofreu heroicamente a solidão do seu percur-

pessimista do que
custa dela, actuava por quantias irrisórias e era convida-o a compor a música do seu próximo lheu uma canção que se chamava ‘O Navio’, so único e vanguardista. Deixou-nos as gravações
famoso pelas ‘borlas’. filme. «Paredes conhecia a sua obra cinemato- sobre a qual improvisaria. Eu pedi-lhe que das suas composições para hoje usufruirmos do
disciplina dos bailarinos,
parecia. Mas isso fazia
Com a guitarra, percorreu os cinco conti- gráfica, mas disse-me que não era ele a que tocasse a solo o tema ‘Mudar de Vida’, e ele seu generoso génio e gozarmos a saudade da sua

que respiram a música

...
nentes, e em todas as paragens fez amigos. En- Pasolini se referia. Disse-me: «Eu não tenho pediu-nos que a Teresa cantasse o seu ‘Canto de presença», conclui o músico dos Madredeus.

parte do íntimo dele, que se toca


viou os seus discos a Isabel II, acompanhou importância para ele falar comigo, ou então con- Embalar’, a canção que a sua mãe lhe tocava
Ramalho Eanes à China e, com o Rei Balduíno fundiu-me com outra pessoa», recorda Letria. quando era pequenino. Fiquei aflito, mas escrevi Quando Paredes conhece Wellenkamp

do que ele não queria


da Bélgica, perdeu-se à conversa. Quando foi Carlos Paredes nunca teve noção da sua própria uma letra para aquela melodia e para a Teresa, Paredes teve sempre o seu próprio tempo. Para o
surpreendido pela doença, o seu nome ainda dimensão. que ele, por assim dizer, ‘aprovou’. Estes momen- acompanhar, bastava entrar nos fluxos marcados

mexer, exteriorizar
não era reconhecido internacionalmente, mas já tos, na nossa pequena sala de ensaios no Chapitô, pela respiração, pela pulsação e pelos seus impul-
tinha conquistado o respeito nos meios intelec- Encontros e desencontros em que o grande mestre se sentava a ouvir todas sos. Acelerava, retardava, os sons pareciam livres Vasco Wellenkamp
e partilhar com
tuais e nos festivais onde actuava. «Vi músicos Carlos Paredes esteve sempre no palco «como as nossas canções, e em que as tocámos para ele num espaço flexível. Um tempo que não existe,

...
como o Charlie Haden completamente deslum- um professor exemplar de poesia e de música», como quem desfolha as páginas de uma sebenta, mas que é rigorosamente cumprido. De resto,

as pessoas
brados. Numa digressão à Finlândia, pratica- palavras de Pedro Ayres de Magalhães. Foi tam- são a minha grande recordação e a minha senti- Paredes nunca saía do tempo. Quando Carlos
mente na zona polar, na Lapónia, vi-o levar mais bém em palco que ficaram registados momentos da saudade», conta o músico. «A presença dele no Paredes conhece Vasco Wellenkamp, o segredo
de mil pessoas ao rubro. São coisas mágicas que memoráveis. A genialidade da composição e da Coliseu com os Madredeus encheu o público ali foi o improviso. Em 82, o bailarino do Ballet
não se conseguem explicar», recorda Letria, que, interpretação da guitarra chegou ao cinema, ao presente de alegria e foi a maior honra que pode- Gulbenkian coreografava ‘Danças Para uma
Jose‘ Jorge Letria tal como Paredes, era um dos cantores da resis- teatro e à dança. Nos anos 80, em Maputo, Pare- ríamos ter vivido naquela época». Momentos Guitarra’. Pela primeira vez, uma guitarra subia
tência. Juntos correram a Europa e parte do des tocava e Malangatana pintava em palco; ao únicos marcados pela simbologia de um encon- ao palco ao lado de bailarinos. Na dança, tal
mundo comunista da altura. Em 1974, meses lado de António Vitorino d’Almeida improvisa tro que revelou «a esperança e o culto da expres- como na música, existe um tempo rigoroso, e
depois da revolução, actuaram em Bolonha. ‘Invenções Livres’. Na década de 90, ‘Dialogues’ são portuguesa». «Não comparo o Carlos Paredes «os músicos acompanham os bailarinos. Com
«Nunca vi um êxito assim. Quatro mil pessoas juntam Charlie Walls ao contrabaixista ameri- a ninguém. Ninguém tocou como ele a Guitarra Paredes, era impossível. Ficava fechado na sua
aplaudiram-no de pé, durante dez minutos. Foi cano Charlie Haden. Diz-se que eram discos Portuguesa, ninguém escreveu como ele, nem guitarra e era conforme sentia. Era um grande
absolutamente esmagador! E ele, com aquela mais de desencontros do que de encontros. Em ninguém se dedicou como ele a uma carreira de músico, só que livre nos impulsos, como no jazz.

42 < ESPIRAL DO TEMPO ESPIRAL DO TEMPO > 43


Carlos Paredes Carlos Paredes

Nós adaptámo-nos e criou-se um grande sentido PIDE. Na prisão, os camaradas julgam que per-
de improvisação que preenchia o tempo dele. deu o juízo, estava apenas entretido a compor e
Era o preço que pagávamos para ter um artista a tocar mentalmente. O gesto era mais forte que
como ele connosco ao vivo», descreve o coreó- tudo: se lhe pediam para tirar uma fotografia,
grafo. O mestre apaixonou-se pela dança; olhava começava logo a dedilhar. Seria injusto chamar-
fascinado para a disciplina dos bailarinos, «que -lhe o maior guitarrista de sempre, como lembra
respiram a música que se toca. Às vezes penso Wellenkamp: «Pela sua natureza de homem
neles como instrumentos de alta precisão», disse bom e de homem grande, deixou marcas em
um dia a Alice Viera. Foi um espectáculo «co- todas as pessoas» e que vão além do som da
movente», que apresentou a música portuguesa sua guitarra. Indiferente aos aplausos, devolvia
na sua mais verdadeira expressão. «As reacções todos os elogios e, como que envergonhado do
foram fantásticas. Quando o bailado acabou, talento, terminava os espectáculos a falar dos

...
o público levantou-se em apoteose aos gritos. seus enganos.
Foi um dos grandes momentos do Ballet Concentrava-se só no que considerava im-
Gulbenkian, uma coisa muito sincera e espon- portante. Luísa Amaro não foi só acompanhante:
tânea. Paredes deixa as saudades de um génio «Costumo dizer a brincar que, rapidamente, pas- Tratava toda gente por «amigo» e a dificul-

<
A obra de Paredes
que não tem repetição», confessa Wellenkamp. sei a ser mãe de Paredes, porque ele era um meni- Luísa Amaro, companheira na vida dade em assumir divergências levava-o a usar
e na música de Carlos Paredes, com Umas linhas para Carlos Paredes
no grande». A distracção era congénita, mas «pequenos truques e uma manha quase infantil

dialoga sempre
uma das guitarras do mestre e à (Fado Triste)
Carlos Paredes, um homem bom nunca foi alheado da realidade. Era um homem direita no Portugal dos Pequeninos. de um menino que nunca cresceu totalmente».

...
Não sei quem teve a ideia
Antes de pisar o palco, verificava se todos os com uma «grande preocupação pela condição Nunca arranjava conflitos; dizia sempre «deixa lá

connosco, transpira
Se foi ele ou o fotógrafo ou criativo de serviço
‘bonequinhos’ que lhe ofereceram ao longo da humana, pelas pessoas, e era um homem com isso, que não tem importância». Paredes era ho- Mas esta imagem sempre me deixou
vida estavam guardados no sítio deles. Era o uma grande consciência cívica», reforça Wellen- mem de grande carácter, «caloroso, muito afec- Não saudades ganas

vontade e amor de
De minar de vez as rimas fatalistas
único ritual que se lhe conhecia. Apesar da força kamp. Atento às contradições sociais e ideológi- tivo e que gostava de conversar», sublinha David

Era um homem com uma


do seu nome, Paredes nunca foi um homem de cas, Letria conta também que, noutros aspectos, Ferreira. Estilista da língua, tinha uma sabedoria Para mim nada há que mais se pareça

uma forma impossível


Com o país a teimar em sorrir
excentricidades. Ficou conhecido através da sua era naturalmente distraído. «O Paredes cair no profunda: «se estivesse em Moçambique, falava

...
Que este retrato a la minute da situação do artista

de copiar grande preocupação pela


música, mas nunca viveu dela. Até à idade de fosso da orquestra, perder-se nos bastidores ou com um escritor. Ia à Finlândia e improvisava Português dum certo tempo e condição
Os cravos na mão e os pés na poça
reforma, arquivou radiografias no Hospital de não dar com a cadeira eram coisas que aconte- sobre esculturas de vidro. Para isto tem de se ser

condição humana, pelas


Perdão no mar
São José. Um dia perguntaram-lhe a profissão, ciam. Tal como estar connosco e cinco minutos muito culto, perceber que a cultura é qualquer
Ares e mares atravessei uma vez com
Luísa Amaro respondeu «músico», e ele: «fun- depois já não estar porque se enganou ao sair da coisa de universal que nos une a todos», relata

pessoas, e era um
Carlos Paredes
cionário público». Homem de convicções e mili- casa de banho. Íamos dar com ele numa praceta Luísa Amaro. Gostava de falar de tudo menos de E assim o conheci num acaso de viagem

tante do PCP desde os anos 50, é preso pela a um quilómetro dali». David Ferreira si. «Enfrentou uma vida pública, porque queria Poucas palavras cruzámos, não deu tempo

homem com uma grande


Em outras artes trocávamos as teimas
ensinar aos outros a beleza da guitarra portugue- Até ao momento em que ele não pôde mais

...
sa, a sua originalidade como instrumento, a sua Suster nas mãos umas coxas de guitarra.

consciência cívica Julio Pomar


história como instrumento popular e a capacida-
de emotiva do seu som para os portugueses e para
todos os povos do mundo», justifica Pedro Ayres.
Carlos Paredes põe a guitarra de lado quando
Luisa Amaro adoece. Durante os onze anos que passou aca-
mado no Lar, pouco falou. O sentido de revolta
foi dando lugar à resignação a uma doença que o
apanhou cedo demais. Cedeu com um sorriso:
«A partir de certa altura, interiorizou a noção de
<
Dois momentos ímpares do homem missão cumprida e isso dá uma tranquilidade à
que nunca deixou de ser humilde, pessoa», conclui Luísa Amaro. Quando o mundo
no seu emprego no Hospital de
S. José e em concerto acompanhado
o aguardava, o som da sua guitarra calara-se.
por Fernando Alvim. Carlos Paredes partiu aos 79 anos de vida. ET

44 < ESPIRAL DO TEMPO ESPIRAL DO TEMPO > 45


Os virtuosos
REPORTAGEM

da guitarra
Gilberto Grácio tem 68 anos. Desde os 12 que trabalha na construção e na reparação

de guitarras, dando seguimento à arte a que o seu pai e, antes, o seu avô se haviam

dedicado. Descendente de uma das mais importantes linhagens de guitarristas

portugueses, Carlos Paredes deu os primeiros acordes aos quatro anos de idade.

T
Quis o destino que estas duas famílias se cruzassem.

t e x t o Va n d a J o r g e > f o t o s A n a B a i ã o e S e r g e C o h e n

inha 17 anos quando concebeu o seu na sua oficina, faz-se ainda valer das suas mãos
primeiro instrumento sozinho. Aos de artista. Usa o mesmo pau-santo para o fundo
12, Gilberto Grácio começara a porque «dá um timbre mais rico ao instrumen-
aprender o ofício do pai e do avô, to», escolhe o spruce certo para o tampo, faz «a
«tinha acabado de sair da instrução primária e o escala em ébano, o braço em mogno e o cavalete
meu pai deu-me a escolher entre a oficina e os em osso». A oficina do ‘amigo Grácio’ era um
estudos, eu já gostava de trabalhos manuais e dos sítios que Carlos Paredes gostava de visitar.
vim para a oficina. Optei e não estou arrependi-
do», recorda o violeiro. As visitas de Paredes
Tinha o jeito e herdou a arte. Há 56 anos Gilberto Grácio cuidou sempre das guitarras de
que este artífice não conhece outro trabalho. Paredes. «Ele herdou as seis guitarras de Artur
É um dos mais conceituados construtores da Paredes, feitas por mim e pelo meu pai. Tinha
guitarra portuguesa, um talento já reconhecido uma construída pelo meu pai, na altura deveria
pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, ter ele 25 anos, e a que ele tocava habitualmente
que o agraciou com a medalha de mérito de também feita pelo meu pai», explica o violeiro.
Comendador. Chamava-lhe ‘a minha guitarrinha’. «Uma
Houve tempos em que da sua oficina saíam vez fomos pôr a guitarra a arranjar, como habi-
mais de 20 instrumentos por ano, alguns deles tualmente, no senhor Grácio, precisava de um
para clientes como António Chaínho ou Ricar- arranjo mais profundo porque já não ia lá há
do Rocha; outros iam além fronteiras. A idade já muito tempo, e passados oito dias fomos bus-
é outra e actualmente serão cinco ou seis as peças cá-la. A alegria dele quando a viu! Dizia ‘Ah, a
que Gilberto Grácio faz por ano. Intocável per- minha querida guitarrinha’. Foi a primeira vez
manece o processo de fabrico, «fazer uma guitar- que o vi assim porque ele era mais contido e re-
ra pode levar mais de 180 horas», um trabalho servado», recorda Luísa Amaro, que tantas vezes
manual que exige perícia, muita sensibilidade e o acompanhou nestas visitas.
um saber quase científico. O mestre Grácio, Embora fosse um sítio onde gostasse de ir,
como lhe chamam, gosta de trabalhar sozinho Carlos Paredes era um cliente pouco regular no

ESPIRAL DO TEMPO > 47


Carlos Paredes

< <
A oficina onde Gilberto Grácio A manufactura de uma guitarra
concebe os seus instrumentos pode levar mais de 180 horas,
de eleição. através de um processo que exige
perícia e sensibilidade.

atelier da Família Grácio. «Era uma pessoa mui- tal como nós falamos». A descrição é do mestre.
to simples; a guitarra estava sempre bem para De tempos a tempos, Luísa Amaro faz a habi-
ele. Eu sabia o que ele queria e por isso poucas tual peregrinação à oficina com as oito guitarras
vezes precisava de vir cá», justifica Gilberto para uma revisão de cordas. «Vou tentando man-
Grácio. «Houve um dia que estava a gravar na tê-las no activo. O Carlos Paredes era o único a
Valentim de Carvalho e ligou-me porque a gra- tocar as suas guitarras, mas há amigos em quem
vação não estava a ficar como as que já tinha confio que agora tocam uma ou outra, porque os
feito, e eu percebi logo. Ele já estava com dificul- instrumentos precisam de ser tocados; é uma
dades no manuseamento da guitarra, por causa pena vê-los perder a sonoridade e as vibrações».
da doença, e pedia corda mais fina, que nesta Carlos Paredes deixa muito mais do que o
guitarra dá uma sonoridade diferente. Veio cá seu espólio de guitarras. Ficou a excelência das
com a Luísa. Pôs-se as cordas na espessura nor- suas composições e o brilho na interpretação de
mal e a gravação ficou boa», diz com a mesma um instrumento que, como alguém disse, «cres-
convicção com que as suas mãos trabalham a ceu com ele próprio». «A sua obra, infelizmente
madeira. curta, tem momentos admiráveis. Se a identida-
Gilberto Grácio conheceu bem Carlos, tal de nacional existe, ela tem muitas vezes o som da
como conheceu Artur Paredes, quando, ainda sua guitarra, mesmo que esta revele o tal fôlego,
em criança, o via chegar à oficina do pai. As duas a tal vontade que tantas vezes nos falta», lembra
famílias andaram sempre juntas. Diz, com orgu- David Ferreira. Com o seu desaparecimento, diz
lho, que a «guitarra evoluiu na década de 50, Gilberto Grácio, «ficámos mais pobres. Há
principalmente a de Coimbra, quando o meu muitos jovens que têm boa execução e talento,
pai e Artur Paredes se uniram para criar um me- mas falta-lhes sentir a guitarra», tal como Pare-

...
lhor som e chegar à forma quase perfeita que a des a sentiu. Explorou o instrumento até às últi-
guitarra tem hoje». Apesar de se conhecerem mas consequências, levou a guitarra quase ao
bem, Carlos Paredes passava à porta e pouca limite. Luísa Amaro não tem dúvidas: «Na histó-
falava: «não era do género de pedir conselhos; ria da música popular portuguesa e na história

As pessoas gostam
era uma pessoa bastante simples, e às vezes até da guitarra está, indiscutivelmente, o nome de
exagerava e chegava a ser acanhado», recorda o Carlos Paredes». Nas suas mãos, a guitarra por-

de me ouvir tocar
mestre Grácio. Trocavam poucas palavras, mas tuguesa foi «grande, foi musical, mostrou-se
mantinham a cumplicidade possível entre dois antiga e veemente, pujante, imaginativa, cheia

guitarra. A coisa
génios. O violeiro garante que a guitarra de Pa- de vitalidade e comunicando um sentido de
redes era igual a todas as outras: «ele é que, com futuro para o povo português. Oxalá alguém lhe

agrada-lhes e eles
a sua mestria, tocava-a com um sentimento que pegue outra vez assim», expressa Pedro Ayres de
fazia dela a melhor de todas mas, acredite, eram Magalhães.

aderem, não há

...
mesmo aos mãos dele». Carlos Paredes, o ‘poeta dos sons’, como o
descreve José Jorge Letria, em 1990, em entre-
O que fica para além da guitarra vista ao Público dizia: «As pessoas gostam de me
mais nada
«A guitarra tem vida. Muitas vezes, é posta den- ouvir tocar guitarra. A coisa agrada-lhes e eles
tro do estojo no sótão e quando se dá por ela já aderem, não há mais nada». Dele sempre se disse
não tem reparação. É um instrumento que fala, que tão grande quanto o talento, só mesmo a
tem uma caixa de ressonância e toda ela ressoa modéstia. Carlos Paredes
ESPIRAL DO TEMPO > 49
Carlos Paredes Carlos Paredes

Movimentos perpétuos para identificar o projecto que quer divulgar e Pinto Sousa, um dos responsáveis pelo projecto deverá ser concluído em breve, com um docu- mita às novas gerações, às actuais gerações e às
Paço d’Arcos, Verão de 1971. Carlos Paredes tornar acessível a obra e a memória do mestre Movimentos Perpétuos. mentário sobre o músico, da autoria de Edgar gerações vindouras manter a chama viva. Estará
está de regresso ao estúdio Valentim de Car- da guitarra portuguesa. «Mais do que homenagear Carlos Paredes», Pêra. Os Movimentos Perpétuos querem, no en- sempre em construção, e pessoas anónimas que
valho para gravar a solo os onze temas de Pintores, músicos, escritores, realizadores e a vontade «era a de presenteá-lo», ainda em vida, tanto, ir «mais longe». tenham recordações dele, que partilharam
‘Movimento Perpétuo’, um «disco de gente ilustradores, ao todo 150 artistas das mais pelo génio que foi, pelo ser humano que con- A angariação de fundos é essencial para con- momentos com ele, podem ajudar». Uma ajuda
maior». variadas áreas, juntaram-se e, há dois anos, de heceram e pela obra que deixou. Cada persona- struir caixas expositoras adequadas à conser- com sentido num projecto que é de «todos».
Tão genial quanto o som só mesmo o uma forma simples, tal como apreciava Carlos lidade foi convidada a dar o seu contributo, vação das guitarras do mestre, e estão já a reco- «Há uma emoção. É curioso que mesmo as
nome que lhe deu. Há mais de trinta anos, Paredes, iniciaram um projecto que se quer criando-se uma obra inédita. Nomes como Júlio lher e a tratar todo o material que anda «perdi- pessoas que não o conheceram têm o registo de
Carlos Paredes gravava ‘Movimento Perpé- dinâmico e perpetuado no tempo. «Era um Pomar, Maria João e Mário Laginha, António do» para ser reunido num site. «Queremos criar uma imagem coincidente com o que era Carlos
tuo’, uma das suas músicas mais emblemáti- homem de cultura, muito sensível a várias lin- Pinho Vargas, Sam the Kid, José Jorge Letria, um site nacional de acesso público para a vida e Paredes. Estamos a falar de pessoas de quadran-
cas. Criava também, nessa altura, o nome que guagens. Decidimos alargar o mais possível o Siza Vieira, Edgar Pêra, entre muitos outros, obra de Carlos Paredes; este é o grande objecti- tes políticos, sociais e de gerações díspares sem-
hoje é usado, melhor do que qualquer outro, leque dessas mesmas linguagens», explica João dedicaram-lhe visões e vivências únicas. vo dos Movimentos Perpétuos. Um site que per- pre com um ponto em comum: o afecto». ET

...
Os amigos de longa data e os companheiros
de outras lutas, os anónimos e os jovens que não
chegaram a conhecê-lo interagiram neste projec- Uma peça exclusiva Arte para Carlos Paredes
to «numa lógica de cruzamento geracional».

A ideia era cruzar


Parsifal Carlos Paredes Exclusivo Millenniumbcp.pt
«Desde pessoas da geração do Carlos Paredes
até pessoas muito mais novas, a ideia era cruzar A Raymond Weil têm uma longa liga- Carlos Paredes é homenageado por

gerações e ver como


gerações e ver como manifestavam o seu olhar ção à música, dedicando vários mode- grandes autores da pintura contempo-
los seus a esta temática. rânea. No âmbito desta homenagem, o
perante Carlos Paredes, o resultado foi muito

manifestavam o seu
Depois do lançamento do relógio co- Millennium BCP, em colaboração com o
interessante. Para dar uma imagem, é ter José
memorativo do centenário do Fado, a jornal O Público, realizou uma Expo-
Saramago ao lado de Sam the Kid com tudo o

olhar perante Carlos


marca suíça apresenta agora uma edi- sição intitulada ‘Arte para Carlos Pare-
que isso representa simbolicamente de geração e ção exclusiva e limitada a 80 exempla- des’, integrada no projecto Arte Parti-

Paredes. O resultado
linguagens», exemplifica João Pinto Sousa. res numerados do modelo Parsifal, em lhada. Para além disto, disponibiliza,

...
homenagem a Carlos Paredes. em exclusivo para os Clientes Millen-

foi muito interessante.


Uma homenagem em vida Uma peça em aço e ouro amarelo de nium BCP registados on-line, uma co-
São sete os Movimentos Perpétuos. Jornalistas e 18 quilates entregue num estojo per- lecção de dez serigrafias inéditas, de
escritores dedicaram-lhe textos inéditos. O lan- sonalizado que contém ainda um cd uma série limitada por autor: Álvaro
com actuações de Carlos Paredes. Lapa, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa,
çamento do CD ‘Música para Carlos Paredes’
O verso do relógio é decorado com João Abel Manta, Júlio Pomar, Pedro
~ Pinto Sousa
Joao foi outra das iniciativas que começou com
uma ilustração de Júlio Pomar, tendo Cabrita Reis, Pedro Calapez, Rogério Ri-
um primeiro concerto em Coimbra, a cidade-
sido aplicada em semi-transparência beiro Rui Sanches e Sara Maia.
berço de Paredes. A esta iniciativa juntaram-se, deixando revelar o mecanismo. Este projecto teve início a 21 de Julho
ainda, o Ciclo de Cinema e o Álbum de Banda (Mais informações na página 104). e termina em Novembro de 2005.
Desenhada.
«Fizemos um projecto ambicioso que foi
uma exposição em que artistas plásticos expuse-
ram trabalhos inéditos ou a obra que mais acha-
ram indicada para Carlos Paredes e editámos um
livro com as gravações de Paredes no Auditório
Carlos Alberto em 1984, no Porto. Um espec-
táculo maravilhoso em que ele aparece em dis-
curso directo, fala imenso com o público e expli-
ca o que está a tocar. É um documento fantásti-
co», acrescenta João Pinto Sousa. Este primeiro
ciclo de homenagens a Carlos Paredes, iniciado
há dois anos por altura do seu 78.º aniversário,

50 < ESPIRAL DO TEMPO ESPIRAL DO TEMPO > 51

Você também pode gostar