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COMO VER UM FILME

DAVID THOMSON

COMO VER UM FILME

Tradução de
MÓNICA GALEÃO

Lisboa 2016
1. ESTÁ A SER DIVERTIDO?

Algumas pessoas acham que os críticos de cinema são indivíduos


de sangue-frio. Enquanto a maior parte dos espectadores sai de uma
sala de cinema ainda a tremer de medo, a rir em voz alta ou simples-
mente a transbordar de alegria, o crítico sai de forma discreta, ligei-
ramente curvado, com um sorrisinho discreto estampado no rosto.
É quase como se o filme fosse uma bomba, ou bombe*, uma explosão
engenhosa, e o crítico fosse o agente secreto que, em silêncio, se sente
agora orgulhoso por ser o autor daquele trabalho e pelo resultado
alcançado como este resultou. O público acredita que tem direito a
divertir-se, e há quem pense que desmontar a máquina pode ser um
obstáculo a essa diversão.
No entanto, isso são só algumas pessoas – felizmente, o leitor não
é uma delas. Se fosse, não teria este livro nas suas mãos, não estaria
prestes a ler uma obra sobre como ver um filme. O facto de estar aqui,
agora, sugere que pensa que o processo é suficientemente complexo
para valer a pena ser examinado. Durante os primeiros 60 anos, ou
mais, da sua história, o cinema era apenas sinónimo de prazer, de um

* Designação do equipamento eletromecânico utilizado pelos criptologistas britânicos,


durante a Segunda Guerra Mundial, para descodificar as mensagens secretas alemãs cripto-
grafadas pela Enigma, uma máquina considerada indecifrável. (N. da R.)

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puro prazer. Contudo, nos 60 anos mais recentes, novas possibilidades


surgiram. Uma delas é que os filmes sejam mistérios, não apenas como
Relíquia Macabra ou O Terceiro Homem, mas também como Blow-Up –
História de um Fotógrafo e A Máscara, ou Magnólia e Amor, que nos levam
a perguntar: «Bom, o que estará realmente a passar-se, o que quererão
dizer aqueles títulos enigmáticos, e que significado terão aquelas rãs
em Magnólia? E há algo mais: uma série de gerações que agora acredita
que alguns filmes são das melhores coisas que o ser humano pode
fazer, tão bons como um saboroso gelado ou como a música de
Sondheim, coisas que não conseguimos tirar da cabeça; o visiona-
mento e a entrega tornam-se tão complexos e duradouros que agra-
decemos a orientação de um livro.»
Na década de 1960, quando as cadeiras de Cinema começaram a
surgir no meio académico, apareceram também alguns manuais bem-
-intencionados que tentavam explicar, com ilustrações, o que eram e
para que serviam os planos gerais e os planos fechados. Estas regras
eram, na melhor das hipóteses, pouco fiáveis. Pareciam ter sido com-
piladas por uma espécie de polícia do pensamento, e só serviam para
deprimir qualquer pessoa que se sentisse entusiasmada com a impul-
sividade desenfreada, ao estilo Bonnie e Clyde, que se via no ecrã. Esco-
lhi este clássico por ser um bom exemplo das situações de perigo e de
aventura tão exploradas pelo cinema da década de 1960: espera lá, isto
afinal é uma viagem atribulada, e será que nos devíamos estar a divertir
tanto a matar pessoas? Será que é um filme de género sobre o ano de
1932, ou uma maneira astuta de falar acerca do ano de 1967?
Estou mais interessado em falar dessa experiência: do modo como
um filme consegue ser ao mesmo tempo real e irreal; o que é um
plano, ou o que pode ser, e o que é um corte; como criamos a história
a partir de informação cinemática e da nossa intrínseca condição de
voyeurs; o que suscita em nós o som (como parece criar um realismo
perfeito e gerar magia no ar); o significado que o dinheiro tem nos
filmes (nenhuma forma de arte alguma vez foi tão transparente em

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relação a ele, nem tão prisioneira dele); a eterna controvérsia sobre


quem fez o quê; e aquele mito conhecido como documentário (será
uma salvação ou apenas mais um truque narrativo?).
Acima de tudo, o tema central deste livro é o ato de ver ou de
prestar atenção (que inclui ouvir, fantasiar e ansiar pela semana
seguinte) enquanto atividade global ou como esforço individual. Con-
duzir pode ser divertido, e um acelerar apaixonado pode assemelhar-se
ao ritmo de um filme – o movimento é emocional. Todavia, um con-
dutor tem de estar atento não só à condução como também à estrada,
à luz, ao tempo e aos atos inesperados de desconhecidos. Assim, além
de falar sobre filmes, vou refletir sobre atividades como ler um livro,
ver quadros, observar a vida animal na praia ou o comportamento
selvagem das pessoas, e sobre a questão mais abrangente, ou seja, o
modo como nos vemos a nós mesmos. Resume-se mais ou menos a
isto: há 150 anos, as pessoas viviam com base em livros, jogos ou
obras de instrução moral. Contudo, desde então, adquirimos um
mecanismo que imita a forma como nos relacionamos com o mundo
em geral. Por isso, vemos, mas vemo-nos a nós mesmos a ver.
Pense nestes modelos: existe o ver como vigilância, ou como tes-
temunho imparcial: vemos ondas a rebentar na praia, vemos flores a
desabrochar e a murchar, vemos os nossos filhos a tornarem-se adul-
tos. Este ato de ver leva anos; dura toda a vida. E rejeita a maior parte
dos mecanismos de criação de juízos, mesmo que essa lição demore
algum tempo a aprender. Porém, há situações em que algo acontece
no espetáculo: uma onda traz um corpo – será um cadáver ou uma
sereia? A flor que está a ver é apanhada por uma pessoa bonita. O seu
filho está a fazer qualquer coisa perigosa. Então, tem início o melo-
drama da história, ao qual os filmes recorrem frequentemente.
Houve uma altura em que o filme incluía, na sua estrutura narra-
tiva, mistérios ou missões simples, como é o caso da temática da
«rapariga perdida». Foram inúmeros os filmes que recorreram a este
chavão: em As Duas Tormentas, Lillian Gish interpreta o papel de uma

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mulher caída em desgraça – será que pode ser ajudada? Em Aurora,


Janet Gaynor é uma esposa prestes a ser assassinada – será que pode
ser resgatada? Em Luzes da Cidade, o vagabundo perde a rapariga cega
quando ela recupera a visão. Em Casablanca, Humphrey Bogart fica sem
Ingrid Bergman, mas eis que ela regressa – será que o pode salvar? Em
O Arrependido, Robert Mitchum perde Jane Greer, porém, tem o azar
de a reencontrar. Em Parte Incerta é sobre uma mulher que desaparece e
que deixa ao marido a difícil tarefa de esclarecer a sua ausência.
Por outro lado, à medida que os enredos se foram tornando mais
elaborados, houve uma alteração no potencial do mito. Encontrar ou
salvar a rapariga já não era um simples meio para atingir a felicidade.
Em A Mulher Que Viveu Duas Vezes, James Stewart apaixona-se por
Madeleine Elster – que está possuída por um espírito –, e perde-a;
contudo, depois conhece uma pessoa muito parecida com ela (será a
própria Madeleine?), chamada Judy: será para o salvar ou para o des-
truir? Em A Aventura, uma mulher desaparece, e vamos à procura
dela… até esquecermos a busca, porque surge uma nova mulher. Em
A Máscara, certa noite, uma grande atriz fica subitamente parada, em
silêncio (será que emudeceu?), em palco durante algum tempo… uma
enfermeira começa, então, a tomar conta dela. Em Chinatown, o pico
da tragédia tem início quando a rapariga é salva. Em Esse Obscuro Objeto
do Desejo, de Luis Buñuel, a demanda de um homem por uma mulher
fascinante é dificultada pelo facto de esta ser, na verdade, duas mulhe-
res. (Como acontecia em A Mulher Que Viveu Duas Vezes?) Assim se
resume a história dos filmes nos quais a mensagem é não só «que
divertidos que os filmes são», mas também «estás a ver com atenção?».
É bom que esteja, porque, hoje em dia, como o leitor bem sabe,
ter um estado de espírito descontraído significa, normalmente, que se
está a ser controlado.

Há muitas formas de ver – e são tantas as definições do que um


filme pode ser. Quem está a assistir pode limitar-se a observar enquanto

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espectador impotente, tão imparcial e passivo como uma câmara. Con-


tudo, ao analisar o registo retirado da câmara, muitos espectadores
poderão dizer: «Olhem, vejam o poder que tem a câmara!» Por vezes,
para compreender esse poder, temos de ver alguém a ver.
Já usei vários termos que precisam de uma consideração mais
atenta. Comecemos pelo conceito de «diversão». Ainda há muitas pes-
soas para as quais ver filmes é sinónimo de «diversão», embora haja
quem considere que, nas últimas décadas, a indústria do «entreteni-
mento» muito tem feito para acabar com essa ideia. Porém, «entrete-
nimento» é outra palavra complicada, pois é facilmente associada à
noção de divertimento. Ao longo da sua história, a indústria cinema-
tográfica tem descrito este conceito como uma forma de evasão ou
de descontração, uma fuga de 90 minutos à realidade e aos seus pro-
blemas insolúveis – um escape, por momentos, a uma vida que pode
parecer insuportável.
Em A Quimera do Riso (1941), de Preston Sturges, conhecemos um
realizador de Hollywood bem-sucedido, John L. Sullivan (Joel
McCrea), autor de comédias ligeiras de sucesso como Ants in Your
Pants of 1939. No entanto, agora, um dilema atormenta-o (a expressão
vexada no rosto bem-disposto de McCrea é um dos encantos cómicos
do filme). Ele quer ser levado a sério como realizador, quer ser res-
peitado, quer… que se escrevam livros sobre ele? Anseia por um
encontro com a vida real que lhe permita contar, no ecrã, histórias
sobre adversidades. Por isso, disfarça-se de vagabundo e parte em
viagem. Depois de muitas peripécias, acaba condenado a passar seis
anos num chain gang (prisão de trabalhos forçados), no Sul dos EUA
(atualmente é considerada uma pena dura, mas pior ainda era em
1941).
McCrea leva uma vida de amargura, sem perspetivas. Todavia, aos
domingos, os presos são levados até uma igreja próxima, onde é pro-
jetado um filme. Veem uma animação da Disney, com Pluto; Sully
começa a rir, com os outros desafortunados, e sente-se melhor.

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Agora, Sturges é um grande realizador, e este filme é uma divertida


sátira a Hollywood e ao seu pretensiosismo, além de ser uma comédia
encantadoramente bem estruturada. Aliás, foi filmada numa altura em
que o desespero reinava em todo o mundo e em que o alívio que os
filmes traziam era mais valorizado do que alguma vez fora. E aqui está
Sturges a avisar os realizadores para não serem demasiado sérios nem
presunçosos. E porque não deixar os desgraçados rir e divertirem-se
um pouco? Gosto dessa filosofia (nasci em 1941 e cresci com uma
bizarra nostalgia pela guerra e pela sua relação instável com a felici-
dade), e ainda tenho a esperança de que possam existir bons filmes
que sirvam de entretenimento a quase toda a gente sem serem estú-
pidos ou desonestos.
É importante lembrar que, mesmo durante a Segunda Guerra
Mundial (1940-45), estavam a ser feitos alguns dos melhores e mais
marcantes filmes da história do cinema: A Loja da Esquina, de Ernst
Lubitsch; As Três Noites de Eva, também de Preston Sturges;
O Grande Escândalo e Ter ou Não Ter, ambos de Howard Hawks;
A Carta, de William Wyler; Relíquia Macabra, de John Huston; Laura,
de Otto Preminger; Não Há Como a Nossa Casa, de Vincente
Minnelli.
Estes filmes de Hollywood, todos eles grandes êxitos de bilheteira,
podem facilmente ser catalogados como «entretenimento». No
entanto, esta lista pode ainda incluir produções mais arriscadas que
retratam tempos difíceis vividos noutros países: Henrique V, de Lau-
rence Olivier; Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini; As Crianças
do Paraíso, de Marcel Carné; A Vida do Coronel Blimp, de Michael Powell
e Emeric Pressburger; As Damas do Bois de Boulogne, de Robert Bresson;
e até O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles. Nem todos foram obras
de sucesso, e nem todos eram agradáveis de ver. Contudo, tornaram-se
clássicos, porque um número considerável de pessoas passou a esperar
que os filmes fossem mais do que apenas engraçados. Também
podiam ser formas de arte. Não se deixe intimidar por esta palavra:

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a arte pode ser apelativa e informativa (ou seja, pode ser entreteni-
mento). Pode ser divertida, também.
Não que a palavra «diversão» seja a mais adequada para descrever
os filmes do período da Segunda Guerra Mundial. Em 1945, equipas
de filmagem dos exércitos britânico e norte-americano entraram nos
campos de concentração recém-libertados: Bergen-Belsen, Dachau
e Buchenwald. Por outro lado, equipas russas tinham estado em
Auschwitz. As imagens recolhidas nestes locais eram tudo menos
divertidas, todavia era razoável pensar que exigiam ser vistas.
O cinema tem esse poder: ver pode fazer acreditar. Sob o comando
de Sidney Bernstein, do departamento de apoio psicológico a casos
de guerra, o exército britânico tinha planeado filmar um trabalho que
iria chamar-se Campos de Concentração Alemães: Um Estudo Factual.
Alfred Hitchcock foi um dos profissionais convidados a participar
neste projeto. As imagens captadas são macabras e chocantes, fun-
cionando não só como registo, mas também como prova de um
momento-chave da História da Humanidade. É pior do que alguma
coisa antes vista, porém, absolutamente essencial.
No entanto, durante o esforço de recuperação após o fim desta
guerra, as autoridades determinaram que o filme que tinham feito
corria o risco de ser demasiado perturbador para os espectadores e
que poderia até ser um obstáculo ao progresso e à reconciliação. Por
isso, foi arquivado. As imagens recolhidas só voltariam a ver a luz do
dia em 2014, com a estreia de A Noite Cairá, de André Singer, um
documentário sobre o material recolhido em 1945. Trata-se de uma
obra que devia ser vista, analisada e discutida por todos.
Há situações em que a forma como vemos o mundo pode ser
necessária para garantir a nossa própria existência. Como Ver Um Filme
é um guia para estudar cinema, mas também para se divertir e se
comover mais com ele. Contudo, o ato de ver faz parte do próprio
conceito de cidadania, serve como um testemunho. Os alemães que
viviam perto dos campos de concentração escolheram não os «ver».

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Mesmo assim, algumas das cenas mais impressionantes em A Noite


Cairá são precisamente aquelas em que cidadãos se deparam com o
cheiro nauseabundo e com o cenário de horror dos campos da morte
dos quais eram vizinhos. Se não vir, ou não conseguir ver, não tem
maneira de saber o que se passa, e o cinema – e todas as suas dimen-
sões – oferece uma boa oportunidade para ver os factos. Porque,
embora a câmara possa ser uma máquina, você não é.

Atualmente, um filme pode ter uma duração tão curta como


90 segundos, e pode ser visto num ecrã de computador de formato
quatro por três. Uma tese que apresento neste livro é a de que a nossa
velha definição do que é «um filme» está praticamente ultrapassada.
Durante décadas, havia uma noção consensual do seu significado: um
filme era algo que era feito e anunciado para passar no cinema do
bairro; durava 90 minutos, até certa altura, e agora pode ir além das
duas horas; e costumava contar uma história seguindo determinadas
convenções que todos compreendíamos. Mas agora…
Bom, essas regras estão a ser questionadas, e muitas pessoas não
vão realmente ver um filme, mas milhares de pequenos filmes, ou
imagens em movimento, que podem ser de um amigo a fazer-nos
caretas através de um iPhone, anúncios na televisão, sonhos bizarros
com 20 segundos de duração e que são publicados na Internet, ou o
jogo de basebol de 18 entradas dos Giants contra os Nationals em 2014,
que parece ter uma unidade ou uma história, mas que também é um
verdadeiro caos de fragmentos de imagens, por causa da publicidade,
das estatísticas do jogo e das repetições em câmara lenta. A tudo isto,
e muito mais, podemos chamar «filmes».
Um dia, estava a discutir com um amigo sobre se a Universidade
de Columbia devia ou não atribuir um diploma Honoris Causa a Derek
Jeter, um mítico shortstop dos New York Yankees, que tinha atingido
o pico da carreira precisamente na sua última época, em 2014. O meu
amigo achava que Jeter era um candidato óbvio; eu não tinha tanta

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certeza, embora as minhas dúvidas tivessem que ver com o motivo


dos doutoramentos Honoris Causa em geral. Foi então que um outro
amigo me perguntou se eu já tinha visto o anúncio da Gatorade em
que Jeter entrava. Fui ao YouTube e vi um dos melhores filmes do
ano.
É um filme curto, e tão antiquado como Tyrone Power, filmado a
preto e branco, num lindo dia de sol. A pátina «dourada» da imagem
sugere bem-estar, contentamento e felicidade pelo bom tempo que se
fazia sentir. Estas sensações são obtidas pelo enfoque persistente na
imagética usada, que se move da direita para a esquerda, através dos
movimentos de câmara, da linha da ação ou do destino do protago-
nista. Estes recursos têm sido usados no cinema há mais de um século,
embora alguns espectadores mal reparem neles, pois são emocional-
mente transportados pelas dinâmicas que eles criam.
O protagonista é Derek Jeter – alto, ainda jovem, de cabelo rapado,
com uma camisa simples, sem colarinho, e um olhar descontraído e
amistoso. Está dentro de um táxi, a caminho de um jogo no Estádio
Yankee (um percurso que fez milhares de vezes, embora raramente
de táxi). Então, pede ao taxista que pare e diz que vai a pé o resto do
caminho.
Não sei quantas vezes Derek terá feito isso na sua vida, mas tenho
a certeza de que, no seu caminho até ao estádio, não estava a tocar o
My Way, de Frank Sinatra, na rua. No entanto, a confiança de Sinatra
entra agora em sintonia com o calor da imagem e com a direção que
o jogador seguiu por impulso.
As pessoas começam a reparar em Jeter – ele é famoso em todo
o país, e mais ainda no Bronx. O atleta sorri, acena com a cabeça, fala
com os fãs (devo sublinhar que não tenho qualquer razão para supor
que Derek Jeter não seja um tipo decente e afável).
A música aproxima-se do clímax. Ele entra no recinto. Veste o equi-
pamento às riscas. Está prestes a sair para o campo. Levanta o braço
para tocar no lema de Joe DiMaggio, gravado numa placa à saída

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– «Quero agradecer a Deus por me ter feito um Yankee» –, e depois,


filmado por trás, de um ângulo inferior e reverente, vemo-lo ao ar
livre, no estádio lotado, a acenar, em reconhecimento pela devoção.
Há até um momento em que diz ligeiramente adeus para a câmara,
como se estivesse a afirmar: «Sempre soube que aí estavam.» E per-
cebemos (porque é uma coisa que temos visto acontecer ao longo
de toda a vida) que vem aí algo mais: é a insígnia G, de Gatorade,
a cores. O tributo de despedida daquele que foi talvez um dos maio-
res shortstops (interbases) da história (a sua performance está a par de
lendas como Honus Wagner e Cal Ripken) foi apenas um anúncio.
E nós ficamos a sentir-nos estúpidos.
Jeter é membro do Baseball Hall of Fame e tem sido amplamente
recompensado: financeiramente, claro (tem património avaliado na
ordem dos 180 milhões de dólares, ou seja, 190 milhões de euros);
com o carinho sentido dos fãs; com vitórias consecutivas; com uma
carreira num só clube; e com uma reputação exemplar, o que, atual-
mente, não é vulgar no mundo desportivo. Então, perguntei ao meu
amigo: «Imagina que o anúncio tinha sido filmado no campus da Uni-
versidade de Columbia, com Jeter a aceitar o tributo de estudantes e
professores. Isso seria um argumento contra ou a favor da atribuição
do título honorário? Ou será que o tom comercial e laudatório do filme
poderia comprometer a reputação de uma grande universidade?»
Talvez o realizador do filme deva ter algum crédito. Será que tam-
bém se formou no curso de Cinema da Universidade de Columbia?
Estou a insistir neste minifilme porque está incrivelmente bem
feito, mas, em última análise, é triste, e também porque suporta a
minha teoria: para ver um filme corretamente, temos de nos ver a nós
mesmos a vê-lo.
Estarei a ser demasiado duro com a intenção «divertida» desta
pequena peça promocional? Poucos minutos depois de estar no You-
Tube, o filme teve mais de dois milhões de visualizações, e muitos
sentiram que era animador e grandioso. Porque não haviam os

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nova-iorquinos, e todos nós, de apreciar o encanto modesto de Jeter?


Se se sentir animado ao ver o anúncio, bom, nada do que eu diga pode
alterar essa sensação. Todavia, a emoção da música de Sinatra (um
hino à determinação) e a textura da imagem fizeram-me lembrar de
outra obra cinematográfica excecional. Veio-me à memória o momento
da aterragem, em Nuremberga, do avião que transportava Adolf
Hitler, no «documentário» inspirador, mas bastante desprezado, de
Leni Riefenstahl, O Triunfo da Vontade, de 1935. Se acha que estou a
exagerar, veja por si (também está no YouTube). A luz do sol, o san-
tificado tom do preto e branco, os movimentos, o crescendo da
música, a multidão e ainda a postura estranhamente humilde destes
«deuses» – os ingredientes são semelhantes. Mais ainda: estamos mesmo
a ver e a ser conduzidos por eles.
Os cineastas gostam de dizer que os documentários e os cinejor-
nais são sagrados, invioláveis. No entanto, hoje em dia, em muito
daquilo que vemos, o sagrado está a ser contaminado pelo mercanti-
lismo, pela propaganda e pelas diversas formas de transformar a his-
tória em ficção.

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