contemplar o universalismo humanista, encontra uma dificuldade
talvez intransponível, a de que as organizações humanas não são apenas localmente diversas, mas possuem uma clivagem essencial, uma diferença fundamental entre organização comunitária e estrutura social. Assim, a civilização ocidental moderna não é uma comunidade, mas uma sociedade. Uma comunidade é uma organização social unitária, sem divisão interna, constitui-se efetivamente e sob o sentimento de bem comum. As relações sociais dentro de uma comunidade são pessoais. Os seus membros, ainda que exerçam funções básicas distintas e, em circunstância específicas, cumpram papéis destacados, o fazem realizando um ritual comum a toda a comunidade. Uma sociedade, ao contrário, é pensada e funciona de fato a partir da existência de indivíduos, pensados como unidades últimas, inconfundíveis, passíveis de desejos e interesses próprios. Sociedade significa distinção, fragmentação ou atomização de seus membros, forçando o pensamento moderno a indagar como os indivíduos isolados podem se relacionar, tornar-se sócios. A individualização dos sujeitos em uma sociedade coloca uma problema totalmente ausente nas formas de organização comunitárias, a saber: se a sociedade é constituída de indivíduos, se é fragmentada e sua estrutura é a da divisão interna, o que a pode manter unida, o que a faz uma sociedade? O que une e integra uma sociedade, garantindo sua coesão social? Esta divisão interna das sociedades modernas e contemporâneas recebeu, pela análise crítica do materialismo histórico, a ideia de sociedade em luta de classes. Isto irá se refletir na temática da cultura em uma divisão cultural. Divisões da cultura na sociedade contemporânea
A divisão cultural quebra as noções clássicas de cultura como
aquilo que dá ou expressa a unidade de um povo: é necessário, agora, falar em cultura dominada e cultura dominante, ou cultura opressora e cultura oprimida, ou, ainda, em cultura de elite e cultura popular. Estas divisões se constituíram ou foram categorizadas, num primeiro momento, pela diferença entre a cultura formal, ou seja, a cultura letrada, e a cultura popular, que corre espontaneamente nos veios da sociedade.
Ora, cultura popular também não é um conceito
tranquilo. Basta lembrarmos os três tratamentos principais que ela recebeu. O primeiro, no Romantismo do século XIX, afirma que cultura popular é a cultura do povo bom, verdadeiro e justo, ou aquela que exprime a alma da nação e o espírito do povo; o segundo, vindo da Ilustração Francesa do século XVIII, considera cultura popular o resíduo de tradição, misto de superstição e ignorância a ser corrigido pela educação do povo; e o terceiro, vindo dos populismos do século XX, mistura a visão romântica e a iluminista; da visão romântica, mantém a ideia de que a cultura é feita pelo povo e, só por isso, é boa e verdadeira; da visão iluminista, mantém a ideia de que essa cultura, por ser feita pelo povo, tende a ser tradicional e atrasada com relação ao seu tempo, precisando, para atualizar-se, de uma ação pedagógica, realizada pelo Estado ou por uma vanguarda política. Cada uma dessas concepções da cultura popular configura opções politicas bastante determinadas: a romântica busca universalizar a cultura popular por meio do nacionalismo, ou seja, transformando-a em cultura nacional; a ilustrada ou iluminista propõe a desaparição da cultura popular por meio da educação formal, a ser realizada pelo Estado; e a populista pretende trazer a “consciência correta” ao povo para que a cultura popular se torne revolucionária (na perspectiva das vanguardas de esquerda) ou se torne sustentáculo do Estado (na perspectiva dos populismos de direita).
Multiculturalismo como arena ideológica na aldeia global
Chegamos assim, na segunda metade do século 20, a uma
ideia muito elaborada, criticada, revista, redefinida e inflacionada de cultura. Isto explica porque o conceito se pulverizou em um sem- número de usos banais em nosso vocabulário cotidiano. Do ponto de vista político, por sua vez, a dispersão do conceito de cultura resulta em ser ele usado por quase todas, se não todas as linhas partidárias e mesmo pelas não-partidárias. A ideia de cultura parece, portanto, ter se esvaziado, sendo mera senha ideológica na boca de qualquer discurso. A inoperabilidade ou operalidade vazia do conceito de cultura exigiu, assim, seu ultrapassamento. Parece ser este esforço para nos desvencilharmos de um conceito gasto e ultrapassado que se exprime sob a ideia de multiculturalismo. O termo é ambíguo, mantendo e rejeitando a noção inflacionada de cultura. Ademais, o multiculturalismo integra o fenômeno mais amplo do chamado pós- modernismo, que, por sua vez, é este ultrapassamento ainda se fazendo de uma época à vindoura. Este a-meio-passo se realiza em movimento de tensão entre o passado e o presente-futuro. Antes, porém, de avançarmos para um delineamento da ideia de multiculturalismo, façamos um brevíssimo resumo da ideia de cultura para que se ressalte os pilares conceituais da ideia de cultura a partir dos quais e os contra o multiculturalismo se constitui. Os traços mais gerais e hegemônicos da ideia de cultura, em sua forma madura até o meados do século 20, são: A ideia de cultura surgiu dentro de um processo civilizatório próprio das sociedades modernas da europa central. Ela envolve uma concepção teleológica da história, uma economia capitalista sustentada pelo desenvolvimento das ciências e das artes europeias, um programa imperial de colonização de outros povos, integrando-os a um sistema cada vez mais amplo de organização simbólica, jurídica, econômica e educacional. Este processo civilizatório gerou, no entanto, sua própria mutação, pois com a chamada globalização as fronteiras políticas e culturais dos Estados-nações são substituídos pela mundialização do sistema produtivo, pela constante e cada vez mais rápida e eficiente comunicação planetária; a imigração de grandes contingentes populacionais passou a se dar em mão dupla: não mais a imigração predatória do período colonial, na qual o colonizador imigrava aos territórios de expansão da civilização europeia, mas, agora, um número crescente de população etnicamente mestiça, integrada parcial ou completamente ao mercado, a lei e à escrita europeias, imigra para os centros altamente desenvolvidos das sociedades capitalistas, em especial à Europa e à América do Norte. É neste contexto histórico de uma nova configuração mundial que se fez necessário repensar e talvez abandonar a ideia de cultura.
Com efeito, é numa situação muito concreta e localizável na
qual começa a despontar as noções de pós-modernidade e multiculturalismo: O marco inicial desta discussão é o livro de Jean- François Lyotard, intitulado A condição pós-moderna. Como nos lembra Lorenzo Macagno, em seu O delima multicultural, o livro de Lyotard é o “resultado de um relatório solicitado a Lyotard pelo presidente do Conselho das Univerdades do Governo de Québec. Ou seja, trata-se de uma reflexão, cujo laboratório intelectual corresponde a um país – Canadá – onde o multicultaralismo constitui, a partir de 1971, uma política deliberada e sistematicamente aplicada”. O Canadá, em particular a região de Québec, é uma sociedade constituída por um tripé cultural, a população de língua e identidade inglesa, francesa e indígena. O caso canadense, no entanto, é apenas uma especificação local de um contexto mundial amplo. O centro problemático da circunstância pós-moderna é a remodelação política e social de sociedades cada vez mais dividas e fluidas. Assim, o multicultaralismo toma a forma das questões de definição de identidades diversas, por vezes conflitantes, mas integradas à estrutura global da nova política-econômica . Em suma, trata-se das questões de identidade e reconhecimento. Estes dois polos, o da identidade e o do reconhecimento, geram contradições que permeiam multiculturalismo. Como conceito de ultrapassamento da ideia clássica e moderna de cultura, o multiculturalismo borra as distinções que foram as bases da ideia inflacionada de cultura, porém, não se trata de uma simples superação ou abandono da ideia de cultura, pois mantém- se os marcos mais gerais da civilização europeia capitalista. Do ponto de vista da questão da identidade, coloca-se em questão as noções de História linear e progressiva, com sua base etnocêntrica e desenvolvimentismo colonial. A necessidade de definir positivamente as culturas não-ocidentais relativiza o critério eurocêntrico: a Antropologia social ou política adquire a tarefa, bem-sucedida, de compreender as comunidades antes chamadas primitivas em seu termos e organização próprios; mas também as divisões internas às sociedades não-europeias europeizadas, as diversas populações antes marginalizadas, periferizadas, dos grandes centros urbanos, até então identificados sob as noções de “popular” ou “classe trabalhadora”, passam a formar mosaicos sociais, ao mesmo tempo semi-integrados e distintos em suas reivindicações político-econômicas. Esta fragmentação, ou super especificação local, seja em relação às comunidades etnicamente bem definidas, seja em relação aos mosaicos sociais urbanos, transformam os estudos históricos. A História não é mais simplesmente a grande narrativa do progresso linear da civilização europeia, mas um estudo localizado de infindáveis micronarrativas. A desintegração da acepção de cultura como unidade simbólica de um povo não atinge apenas a definição identitária de grupos sociais coesos ou de comunidades étnicas relativamente autônomas, mas também as suas divisões internas. Isso se dá no cruzamento da questão da identidade com a problemática do reconhecimento. Aqui, a generalidade da distinção “natureza” vs “cultura” é substituída pelas questões de gênero, etnia e um ressurgimento das questões raciais. Não se trata apenas de um problema de construção identitária das chamadas minorias, mas do seu reconhecimento político. Isto é, uma reivindicação de representação política e a construção de novos direitos, ou seja, de políticas públicas afirmativas.
Conclusão: O que resta do culturalismo no multiculturalismo?
Se por um lado, a pós-modernidade em geral e, sua
contrapartida prática, o multiculturalismo, questionam e desintegram os pilares conceituais da modernidade cultural, por outro, mantém-se herdeiras e reivindicatórias da ideia de emancipação. Não se trata, evidentemente, de emancipação nos termos modernos de autonomia e soberania nacionais, mas de emancipação política, social e econômica. Mais especificamente para o multiculturalismo urbano, esta reivindicação, que é, por si só, legítima e necessária, parece, no entanto, limitar-se a uma tendência integradora ao marco geral da universalização capitalista. Para quê, afinal, lutar pelo reconhecimento identitário? Mais uma vez, e idealmente, para cumprir completamente, o ideal de justiça e equanimidade social.
Bibliografia
Chaui, Marilena. Cultura e democracia: discurso competente
e outras falas (Cortez, 2007). Eagleton, Terry. A ideia de cultura (Editora da Unesp:2005). Macagno, Lorenzo. O dilema multicultural (Editora da UFPR, Graphia: 2014). Santos, José Luiz dos. O que é cultura (Editora Brasiliense: 2002, 8ª reimpresão da 16ª edição de 1996).