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Produção, v. xx, n. x, xxx./xxx. xxxx, p.

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doi: XX.XXXX/XXXXX-XXXXXXXXXXXXXXXXX

Análise ergonômica do trabalho e o reconhecimento


científico do conhecimento gerado

Carlos Antonio Pizoa,*, Nilton Luiz Menegonb


a,
*capizo@uem.br, UEM, Brasil
b
menegon@dep.ufscar.br, UFSCar, Brasil

Resumo
Este texto contextualiza na Análise Ergonômica do Trabalho (AET) as preocupações de pesquisadores da área
de ergonomia sobre o reconhecimento científico dos métodos de pesquisa sobre o trabalho. Com base nessas
preocupações e numa revisão sobre as características da pesquisa-ação é feita uma análise teórica da simbiose entre
esse método de pesquisa e a AET, e como isto contribui para que os conhecimentos gerados na AET possam ter seu
reconhecimento científico facilitado junto aos pares das áreas de conhecimento em que a ergonomia permeia.
Palavras-chave
Ergonomia da atividade. Pesquisa. Ciência.

1. Introdução
Iniciando com uma sucinta apresentação validar no núcleo de uma área de conhecimento os
da análise ergonômica do trabalho, este texto resultados das pesquisas realizadas. Geralmente
parte de duas visões: a primeira busca, tendo por esse outro método é a pesquisa-ação, pois a AET
pano de fundo a análise ergonômica do trabalho, carrega muita semelhança em seus procedimentos
levantar as preocupações de pesquisadores da e proposta, mas com uma abordagem particular:
área de ergonomia sobre o tema “cientificidade compreender o trabalho para transformá-lo.
do conhecimento na ergonomia da atividade” e a
segunda sobre a metodologia da pesquisa-ação e
2. Análise ergonômica do trabalho
suas características.
O objetivo do texto é, a partir desses pontos A partir de 1955, após a publicação do livro de
de vistas, promover uma discussão sobre a provável Faverge e Ombredane sobre a análise do trabalho, a
indissociabilidade entre o método da análise atuação de diversos outros pesquisadores expoentes
ergonômica do trabalho (AET) e o método da na área fez com que a ergonomia centrada na
pesquisa-ação como forma de o conhecimento análise da atividade fosse desenvolvida ao longo
gerado nos trabalhos realizados na ergonomia do tempo, tendo suas bases teóricas aprofundadas,
da atividade ter seu reconhecimento científico seus métodos enriquecidos e suas aplicações às
mais facilmente aceito pelos pares das áreas de transformações das condições de trabalho mais
conhecimento em que a ergonomia permeia. elaboradas (GÜÉRIN  et  al., 2001; MONTMOLLIN,
Essa questão é relevante quando se observa que 2007; LAVILLE, 2007).
a pesquisa-ação é uma metodologia de pesquisa Essa evolução levou a reconhecer a ergonomia
reconhecida por diversas áreas de conhecimento situada como um dos dois principais conjuntos
que tratam do trabalho e permeiam a ergonomia, de ergonomias, distinguidos tanto na sua história
e a metodologia AET está mais restrita ao núcleo como nos conceitos e nas práticas, mas que se
da ergonomia. Essa restrição da AET solicita a complementam. O primeiro conjunto, majoritário
“tradução” desse método para outro quando se deseja no mundo e baseado no contexto americano e
*UEM, Maringá, PR, Brasil
Recebido 11/12/2009; Aceito 19/05/2010
Pizo, C. A. et al.
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britânico, corresponde à ergonomia clássica e Nesse processo de contextualização do


é qualificado como centrado no componente trabalho, Güérin  et  al. (2001) colocam que a
humano dos sistemas homem-máquina. O segundo, atividade de trabalho é o elemento central que
enraizado principalmente nos países francófonos, organiza e estrutura os componentes da situação
é classificado como focado na atividade humana de trabalho, estabelecendo o que eles denominaram
contextualizada. Essa dicotomia entre as duas de função integradora da atividade de trabalho.
principais famílias de ergonomias assenta-se em Para essa construção existe um conjunto de
modelos, quadros teóricos e diferentes métodos, pontos importantes, de fases privilegiadas que vão
sendo transversal em relação às ergonomias estruturar a construção ergonômica. Esse esquema
identificadas em função dos diferentes domínios de está apresentado na Figura 1.
intervenção (MONTMOLLIN, 2007). A interação que ocorre entre os atores desse
No contexto da ergonomia centrada na processo conduzido pelo ergonomista gera
atividade, Güérin  et  al. (2001) colocam que um aumento do conhecimento ou do nível de
transformar o trabalho é a finalidade primeira da consciência da atividade que será fator-chave na
ação ergonômica, e o que o ergonomista deve implementação das ações ergonômicas resultantes
realizar de forma a contribuir para: do diagnóstico feito e da transformação desejada.
• A concepção de situações de trabalho que não Güérin  et  al. (2001) destacam ainda que
alterem a saúde dos trabalhadores e nas quais parte do que se construiu deve permanecer e
estes possam exercer suas competências, ao mesmo adquirir uma legitimidade que resista ao tempo.
tempo num plano individual e coletivo, e encontrar Construção esta realizada com a contribuição do
possibilidade de valorização de suas capacidades; e ergonomista junto com os atores do processo. Isso
• Alcançar os objetivos econômicos determinados está diretamente relacionado à maneira como os
pela empresa, em função dos investimentos conhecimentos sobre o trabalho foram produzidos
realizados ou futuros. e transferidos entre os atores e da questão das
Para os mesmos autores a busca desses dois condições de sua apropriação. As características do
objetivos origina a análise ergonômica do trabalho, procedimento aplicado são centrais para assegurar
cujo método busca resolver os problemas da essa transferência, e a sua durabilidade será, por sua
inadequação do trabalho às características humanas vez, maior caso um conjunto de atores-chave tenha
gerados por: sido instrumentalizado.
• Projetos de sistemas de produção, de processos, Para concluir essa apresentação da análise
da organização do trabalho e das tarefas que ergonômica do trabalho, os mesmos autores colocam
foram feitas, muitas vezes a partir de estereótipos que sua compreensão é um meio que permite:
simplificados do que seria a população de • Conhecer melhor e explicar melhor as relações
trabalhadores, que geralmente são “encaixados” entre as condições de realização da produção e a
na produção; e saúde dos trabalhadores;
• Situações de adaptação, transformação ou • Propor pistas de reflexão úteis para a concepção
concepção de sistemas de produção em que das situações de trabalho; e
houve predominância dos aspectos financeiros, • Melhorar a organização dos sistemas sociotécnicos,
técnicos ou organizacionais que não favoreceram a gestão dos recursos humanos e, em consequência,
a reflexão sobre o lugar incontornável do o desempenho da empresa em seu todo.
homem no sistema de produção. Essas situações
minimizam a influência dos meios de trabalho cuja A seguir são apresentadas as preocupações dos
concepção não leva suficientemente em conta as pesquisadores sobre a cientificidade e a construção
especificidades de funcionamento do operador do conhecimento na ergonomia da atividade.
humano e a variabilidade de todo o sistema.
Para contextualizar o que seja trabalho, 3. Ergonomia da atividade e sua
Güérin et al. (2001) caracterizam-no como unidade cientificidade
de três realidades: a das condições de trabalho, a do
resultado do trabalho e a da atividade de trabalho. Na comunidade da ergonomia da atividade, onde
Destacam ainda o conceito do trabalho prescrito e a Société d’Ergonomie de Langue Française – SELF é
do trabalho real, estabelecendo a distinção entre a entidade mais representativa, a discussão sobre sua
tarefa e atividade de trabalho. Esses conceitos são epistemologia é considerada assunto ainda recente
bem sintetizados por Falzon (2007), o qual também (SOCIÉTÉ D’ERGONOMIE DE LANGUE FRANÇAISE,
destaca as noções de regulação e da regulação da 2005). Nesse contexto, a obra coordenada por
atividade. Daniellou (2004a) é um recipiente onde diversos
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Figura 1. Esquema geral da abordagem da ação ergonômica. Fonte: adaptação de Güérin et al., 2001.

pesquisadores dessa comunidade apresentam seus de unanimidade, e nesse sentido o autor faz as
pontos de vista sobre aspectos epistemológicos da seguintes constatações:
ergonomia da atividade e que ainda permanece • Para alguns pesquisadores, a ergonomia continuará
atual em seus conflitos e convergências. um “projeto”, uma “arte”, uma “tecnologia” que
É observado nessa obra que a motivação utiliza conhecimentos produzidos por outras
em provocar os debates sobre o tema foram as disciplinas. Se a ergonomia provoca questões
de pesquisa e contribui para a produção de
dificuldades em se obter reconhecimento científico
conhecimento, estas cairão ipso facto no acervo
para as pesquisas sobre o trabalho nas instituições da disciplina científica mais bem situada para
acadêmicas. Ela, a obra, representa o esforço em abrigá-los; e
se discutir de modo sistemático a contribuição da
• Para outros, a ergonomia pode produzir
ergonomia da atividade em produzir conhecimento, conhecimentos sobre a atividade de trabalho
em se definir seu objeto de estudo e os critérios ou sobre a atividade do ergonomista, a qual lhe
de validação das pesquisas e intervenções práticas. pertence exclusivamente, e que nada impede esse
Esses aspectos são destacados pela questão se a conhecimento de ganhar um dia a dignidade de
ergonomia se caracteriza como “ciência”, “arte” ou “científico”.
“método” ser abordada em várias partes da obra. Para o autor é evidente que algumas das
A seguir são apresentadas algumas visões dificuldades epistemológicas com que se debate
emanadas por pesquisadores sobre a questão do a ergonomia são comuns a todas as disciplinas
reconhecimento científico do conhecimento gerado que tratam do ser humano. Nesse aspecto, a
na ergonomia da atividade. pergunta‑chave tornou-se dinâmica: “Que condições
deveriam progressivamente preencher as pesquisas
em ergonomia para que possam ser qualificadas de
3.1. Questões epistemológicas científicas?” Além disso, apresentada inicialmente
como responsabilidade única dos pesquisadores,
Daniellou (2004b) coloca como denominador a questão de cientificidade das pesquisas em
comum o fato de que a reflexão epistemológica tem ergonomia passa a mobilizar outros atores: quem a
por objeto as provas às quais devem se submeter pratica e os protagonistas da vida social.
as pesquisas, as teorias e os modelos que queiram Para dar base a essas constatações, o autor abre
merecer o adjetivo “científico”. Segundo ele, todos discussões sobre os seguintes aspectos:
os autores têm em comum esse cuidado de submeter
• A consciência das bifurcações: o ergonomista é
seu pensamento à prova da confrontação, o que solicitado por um conjunto de teorias e modelos
torna os conhecimentos científicos algo diferente científicos que abrange localmente os fenômenos
da opinião única de seus autores. Também a com os quais ele se defronta. Esses modelos não
elaboração das regras dessas provas não goza se encaixam de modo cômodo para constituir
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um corpo de conhecimentos para a ação, e em (2) Sobre o trabalho; ou (3) Que sejam úteis para a
certas zonas de realidade eles se contradizem e sua transformação positiva.
em outras estão ausentes. Assim, a emergência O autor lembra que a ergonomia foi construída
de conceitos que alimentam a reflexão cotidiana nos países anglo-saxônicos dentro do paradigma
do ergonomista é resultado de um conjunto de da aplicação de conhecimento científicos sobre o
manobras, de “bifurcações”. Essa condição gera
funcionamento do homem no projeto dos meios de
uma justaposição de conceitos que dificulta a
trabalho. Esse paradigma nas pesquisas mundiais
formação de um acordo do que significa produzir
está na origem da produção de um conjunto de
conhecimentos científicos em ergonomia;
conhecimentos que ainda continua útil. Mas a
• A relação entre ergonomia e os conhecimentos prática da análise ergonômica do trabalho e a
científicos: há um acordo latente de que a confrontação com outras disciplinas (psicologia do
ergonomia utiliza conhecimentos oriundos trabalho, sociologia, psicodinâmica do trabalho,
da fisiologia, psicologia e outras áreas de
antropologia, filosofia) conduziram os pesquisadores
conhecimento. Também há certa concordância
a um conjunto de constatações que, pouco a pouco,
de que a utilização não é uma simples aplicação
tornou o paradigma inicial enfraquecido, entre as
desses conhecimentos, sendo que a ergonomia
leva a transformá-los pelo seu caráter integrador.
quais o autor cita:
Por esse fato, a ergonomia é reconhecida por levar • A diferença entre trabalho prescrito e trabalho
as outras disciplinas a produzir conhecimentos em real;
zonas em que a prática as revela lacunares; • O fato de evidenciar a atividade cognitiva e a
• A relação homem e o trabalho: a questão dos competência dos operários;
critérios da ergonomia está relacionada a uma • A complexidade dos raciocínios em inúmeras
discussão dos paradigmas à luz dos quais se situações;
estuda o trabalho. A ergonomia classicamente
• A dimensão dos determinantes da atividade –
leva em conta um duplo critério – o da saúde dos
mostrada, sobretudo, pela antropotecnologia;
trabalhadores e o da eficácia econômica – sobre o
qual exige a construção de compromissos que são • A complexidade dos compromissos elaborados
influenciados por diversos fatores externos. Além pelos trabalhadores e seus efeitos em termos de
disso, tem-se o enigma das relações entre tarefa desempenho e de custo;
e atividade, o trabalho prescrito e o trabalho real, • A complexidade dos fatores de natureza coletiva
os limites da adaptação humana, os modelos do que entram em jogo na elaboração de estratégias
homem e suas dimensões, os modelos da sociedade dos trabalhadores: produção de regras coletivas,
e da mudança social; e dimensões éticas, ideologias coletivas de defesa; e
• A questão dos comportamentos à ação: a referência • A complexidade dos mecanismos de dano à saúde
aos termos “comportamentos” ou “condutas” e o papel positivo que pode ter o trabalho na
do homem no trabalho e a influência que essa construção da saúde.
perspectiva gera no desenvolvimento da ação. O conjunto dessas descobertas contribuiu
As questões das racionalidades (instrumental, para reforçar o estatuto do objeto de pesquisa –
axiológica, prática e comunicacional) que o trabalho propriamente dito – e o interesse pela
levam o ergonomista a descrever-se como ator
análise da atividade como método de descoberta
da transformação das situações de trabalho,
que permitiu não desvendar totalmente o enigma
abrindo um espaço para discutir como ocorrem as
que constitui todo o trabalho, mas progredir em
modalidades da ação do ergonomista.
sua compreensão.
Assim, o autor apresenta uma visão geral sobre
Diversos aperfeiçoamentos metodológicos
como se desenvolveram as questões que incitaram
permitiram que, progressivamente, a análise da
a discussão sobre a epistemologia da ergonomia da
atividade pudesse ser aplicada a quase a totalidade
atividade.
das atividades profissionais. Aqui o autor explica a
distinção entre a análise da atividade, aquela dos
3.2. Questões epistemológicas levantadas comportamentos, condutas, processos cognitivos
pela ergonomia de projeto e interações realizadas por um(a) operador(a)
durante as observações – da análise do trabalho –,
Daniellou (2004c) coloca que o estatuto dos uma abordagem mais global, na qual se insere a
conhecimentos em ergonomia significa saber se os análise da atividade, e que se compõe da análise dos
conhecimentos científicos podem ser produzidos: fatores econômicos, técnicos e sociais e da análise
(1) Sobre o funcionamento humano no trabalho; dos efeitos do funcionamento da empresa sobre a
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população de trabalhadores envolvida e da eficácia • Em relação ao desempenho: podem-se distinguir


econômica. dois tipos de saídas do sistema de produção –
O autor também destaca a diferença entre a análise os desempenhos econômicos e os desempenhos
da atividade (praticada por outros profissionais) e humanos. Os primeiros avaliáveis/avaliados em
a análise ergonômica do trabalho. Um ponto em termos de eficácia na ordem econômica (rendimento,
produtividade, qualidade, confiabilidade,...) e os
comum: ambas produzem conhecimentos a partir
outros em termos de eficácia na ordem humana
da elaboração de um modelo e da verificação de
(competência adquirida/degradada, saúde
sua validade. melhorada/deteriorada,...); e
Uma diferença que se destaca nessa condição
• Na relação entre tarefa e atividade: onde existem
é que os conhecimentos produzidos a partir da
duas posições opostas. Uma que postula que
análise ergonômica do trabalho estão a serviço da
diferença entre o prescrito e o real é uma diferença
ação, e por isso as exigências para sua validação a ser reconhecida, uma descontinuidade de
são mais fortes do que as consideradas na validação princípio entre o modelo e a realidade em geral e
dos conhecimentos que são objeto central de uma entre a tarefa e a atividade no particular. A outra é
busca científica. Produzido sobre dada situação de o que se demanda e o que isso demanda, na qual
trabalho, o modelo feito pelo ergonomista deve ser a ergonomia identifica uma diferença a reduzir.
operante e sua própria estrutura reflete a ambição O autor discorre que essas abordagens estão
de agir para transformar as condições de trabalho. sempre em jogo, e que isso implica em saber
que tipo de integração, funcional ou política,
3.3. Do que a ergonomia pode fazer a realiza a interface e o lugar que nela ocupa
análise? o trabalho (fator integrador/integrável ou de
integração). Aqui ele apresenta como os diversos
Hubault (2004) relata que a ergonomia tem a estados da ergonomia se enquadram dentro dos
paradigmas de continuidade e descontinuidade.
[...] missão de aprofundar a compreensão da relação
entre o que o homem vive no trabalho e pelo
Nesse ponto ele abre que a ergonomia trabalha
seu trabalho, o que ele faz, com o que a empresa em três níveis, cada qual com suas questões e
compreende disso, o que ela faz disto, ainda mais, o seus desafios: (1) nível das condições de trabalho
que ela espera disto, o que ela quer fazer disto [...] (questão‑adaptação; desafio‑segurança/saúde);
(HUBAULT, 2004, p. 106). (2) nível dos sistemas técnicos (questão‑eficiência;
Com isso ele destaca que o ergonomista desafio-confiabilidade); e o (3)  nível dos sistemas
interessa-se pela relação do homem e da empresa, de produção (questão‑eficácia; desafio-qualidade).
do homem e da técnica, do homem e seu ambiente, Diante desse complexo de relações, o autor
enfim de cada nível que se pode conceber uma coloca que uma das missões essenciais da ergonomia
interface entre esses termos. Diante do exposto se é a de
coloca uma primeira questão que é a de saber se [...] formalizar a relação homem-ambiente de modo
na interface o trabalho organiza uma continuidade a levar em conta esta contradição: o homem é um
ou descontinuidade, finalidades e modos de ação, sistema autônomo que não é determinado pela oferta
entre o homem e o espaço instrumental ao qual ele informacional de seu meio, mas que não pode se
deve se integrar. construir sem ela[...] (HUBAULT, 2004, p. 116).
Como descontinuidade, Hubault (2004) Assim é aberta a questão “o trabalho real é
coloca que a ergonomia nasceu de uma questão real?” Os fatos observáveis de que a ergonomia
fundamental: a que obriga a distinguir o que se dispõe dizem respeito ao desempenho, ao
solicita ao homem (a tarefa) e o que isso, para ser comportamento, à tarefa, que ela confronta entre
realizado, solicita a ele. Isso tem origem em um si e aos conhecimentos adquiridos previamente
conflito de lógicas, e a competência do operador sobre o funcionamento humano, que faz emergir
é encontrar os meios de gerenciá-lo por meio a figura da atividade. A partir da objetivação de
de compromissos operatórios. Esse princípio de fatos brutos organizados em sistemas de dados a
descontinuidade diz respeito a vários níveis: ergonomia – uma ciência empírica – constrói, com
• Na relação entre a atividade e o comportamento: o conceito de atividade, não observável, o meio de
no trabalho real que se realiza, os compromissos se compreender, de se levar em conta o que faz
que o operador faz para agir não se veem e o realmente o operador, a própria atividade.
comportamento comunica a parte manifesta do Para embasar a questão da prática, o autor
trabalho (visualmente e verbalmente); compara o processo de construção do conhecimento
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na área da psicanálise e apresenta três pontos que A partir de ensaio literário nesse contexto, o
balizam suas propostas sobre a ergonomia: autor elabora a proposta de produzir conhecimentos
• A prática participa de uma dimensão metodológica compatíveis com o “policentrismo” observado nos
fundamental dos conhecimentos em ergonomia. conceitos levantados pela construção de lugares em
Onde conhecer manipulando define um método que a relação triangular entre valores, atividades
de análise; conhecer para manipular define uma e saberes torna-se objeto de uma experiência
prática de intervenção; manipular para conhecer epistemológica explícita. Neste processo é elaborada
define uma metodologia de pesquisa. Em todos os a proposta de um dispositivo (espaços de construção
casos visa-se o conhecimento e a manipulação de de saberes integrados) de três polos (Figura 2).
um processo e não de um estado; Esse dispositivo, proposto por Schwartz (2004) e
• Polarizações particulares que favorecem um modo adaptado por Vieira, Barros e Lima (2007), tem a
diversificado de desenvolvimento da ergonomia seguinte configuração:
nutrem relações diferentes com a ciência; e • Polo dos saberes acadêmicos: objetos de esforço
• O peculiar da ergonomia está no seu ponto de vista permanente de estabelecimento de uma ordem
que a distingue de todas as outras áreas sobre o teórica, de explicitação metódica e crítica,
estudo do trabalho. de retrabalho contínuo. É aquele dos saberes
conceituais das áreas de conhecimento permeadas
pela ergonomia;
3.4. Ergonomia, filosofia e exterritorialidade
• Polo dos saberes imanentes às atividades e
Schwartz (2004) destaca na ergonomia a questão retrabalhados por essas atividades: são “cadinhos”
da exterritorialidade dos conceitos, questionando da organização dos saberes, estruturando em
se ao ser epistemólogo e utilizar conceitos já é, uma base histórica seus desdobramentos sobre
de certa maneira, julgar, decidir e engajar-se, pois seus apelos aos saberes formalmente organizados.
qualquer uso de conceitos é uma escolha, uma É aquele dos saberes investidos no exercício do
reivindicação de herança, uma decisão de existência trabalho e na experiência; e
ou inexistência. • Polo filosófico: com vistas aos saberes organizados
Ao utilizar conceitos, estes podem ser diferentes e com relação às forças de apelo, de memória e
devido ao que o autor denominou de possíveis dos saberes investidos. Esse polo teria a função
bifurcações na escolha de itinerários conceituais. de antecipar, com as devidas reservas, as maneiras
Segundo ele, a questão “erro humano ou falha de de tratar seu semelhante e as situações da vida
representação” exprime com clareza esse ponto de social. É aquele que significa uma postura ética e
bifurcação conceitual. Um efeito dessa bifurcação epistemológica, presente nos projetos em comum
conceitual é a manifestação de escolhas mais ou que acordam entre si os dois outros polos.
menos exclusivas que implicam em itinerários de Esse dispositivo torna-se a sede de um
investigação previamente estabelecidos, o que movimento duplo, no seu centro, onde misturam-se
caracterizaria uma parcialidade na abordagem e operam culturas contraditórias, patrimônios
realizada. tendencialmente definidos pelos três polos, e
Na elaboração de sua argumentação, Schwartz mantém-se coeso por causa de seu movimento
(2004) faz uso de exemplos da área de ciências interno em espiral e remetendo os atores de cada
humanas com o intuito de mostrar que as áreas de polo ao exercício de suas próprias responsabilidades
conhecimento possuem lugares escondidos, lógicas profissionais.
internas que não aparecem, filiações e rupturas Os atores “ativos” são remetidos às urgências da
históricas nos sistemas conceituais. Além de remeter vida social e seu movimento de retorno é, em parte,
eventualmente a conjuntos complexos de valores e para avaliar a pertinência do trabalho realizado no
de escolhas e a uma prática que poderia ser uma interior do dispositivo, com uma eventual vocação
boa definição de postura epistemológica. É nesse para o retorno, redesenhando os recursos do saber
contexto que ele estabelece uma relação triangular e desenvolvendo novas forças de apelo. Quantos
entre valores, saberes e atividade com base nas aos atores “profissionais do conceito”, tanto no
seguintes proposições: polo filosófico como no dos saberes acadêmicos
• Nenhuma atividade industriosa se desenvolve e se organizados, eles são enviados às suas disciplinas de
manifesta sem um espaço simultâneo de valores; origem a fim de que participem, agora devidamente
• Esse mundo de valores se comunica em todos os equipados, do debate científico que lhes é próprio.
pontos consigo mesmo; e Esse processo no núcleo do dispositivo é
• Os valores imanentes à atividade são sempre denominado pelo autor de “socratismo ambivalente”,
“retratados” por ela. pois o sentido da troca de conhecimento (mestre/
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Figura 2. Dispositivo dinâmico de três polos de produção de saber. Fonte: adaptação de Schwartz (2004).

discípulo) é alternado frequentemente entre os 3.5. A importância da AET para o estágio


atores, sendo difícil identificá-lo no decorrer do de maturidade da ergonomia como ciência
processo.
A epistemologia associada a esse gênero de Bouyer (2007), utilizando-se do conceito
dispositivo requer que se confronte rotineiramente de quatro limiares que distinguem o grau de
as normas que lhe são próprias (socratismo maturidade de um discurso científico (positividade,
ambivalente e a disponibilidade a outras estruturas epistemologização, cientificidade e formalização),
conceituais) e as normas vigentes na comunidade coloca que a ergonomia está situada entre o limiar
científica de referência, pois elas são a garantia da epistemologização e o da cientificidade. Para
de uma reapropriação crítica e de uma vigilância ele a caracterização da ergonomia como ciência
específica quanto ao patrimônio acumulado no seio encontra-se confusa, porém mais conscienciosa da
da disciplina. necessidade da interdisciplinaridade na construção
Por fim o autor, questionando se a ergonomia é da ergonomia científica e não reducionista.
ciência, coloca que quanto mais ela se torna ciência, Se a opção é considerar a ergonomia ciência, o
menos pertinente ela se torna como interlocutora autor observa que os modelos explicativos devem
imediata de sujeitos históricos. Quanto mais a acompanhar a evolução das disciplinas que se unem
competência ergonômica se aproxima das pressões para consolidá-los. Nesse contexto interdisciplinar
da transformação in situ, mais ela deve posicionar-se [...] não há limite nos conhecimentos das disciplinas,
para a aprendizagem no triângulo atividades/ que podem ser recrutados para a interpretação de
valores/saberes e menos se justifica a eliminação uma atividade de trabalho [...] (DANIELLOU, 2004c,
dos protagonistas ou forças de apelo-memória, p. 187).
compreendendo-se o ponto de vista científico. No processo de maturidade em direção à
Portanto, a capacidade de mover-se no cientificidade, Bouyer (2007) considera que o passo
triângulo, instaurando grupos cooperativos e mais largo nessa direção foi a metodologia da
fazendo emergir questionamentos pertinentes, é análise ergonômica do trabalho (AET). Ela trouxe
apoiada por uma ampla cultura adquirida sobre a uma nova mentalidade sobre o que consiste estudar
atividade, especialmente o que se pode capitalizar uma situação de trabalho, colocando a atividade de
no polo mais regulamentado cientificamente, no trabalho como espaço privilegiado. O mesmo autor
sentido tradicional da ergonomia. observa que essa situação demandou
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[...] incluir todo um arcabouço científico de outras entrarem em consenso sobre a amplitude de seus
disciplinas (psicologia, antropologia, fisiologia,...) significados. Para amenizar essa situação existem
que, integradas, deveriam dar conta do objeto posto publicações que buscam definir e estabelecer
para análise da ergonomia: o trabalho, a atividade [...] limites para vários termos dentro do contexto da
(BOUYER, 2007, p. 4).
ergonomia (MONTMOLLIN, 2007; KARWOWSKI,
Tecendo a discussão em torno dos fundamentos 2006; STRAMLER, 1993).
sobre cientificidade e métodos, conclui-se que com O uso da AET é fundamental para essa construção
o instrumental da AET é: do conhecimento por permitir, conforme observado
[...] possível construir verdadeiros modelos que, por Bouyer (2007), que as verificações por outros
conforme postulada pela filosofia da ciência em membros da comunidade científica sejam realizadas,
diferentes abordagens, podem ser considerados visto que as fases para tal são fornecidas nas etapas
modelos científicos por permitir, ao observador, explicar da própria AET e o modelo surge desse conjunto
o fenômeno mediante o emprego desta ferramenta ou resultante da validação pelos próprios atores.
modelo por ele construído[...] (BOUYER, 2007, p. 5).

3.6. Síntese 4. Metodologia da pesquisa-ação


Neste tópico é apresentada uma visão sucinta da
Como destacado por Daniellou (2004a), a própria
metodologia de pesquisa-ação, uma metodologia
origem multidisciplinar do início da ergonomia
cuja definição não é trivial. Para Tripp (2005), a
colabora para reforçar as questões levantadas pelos
definição da pesquisa-ação é difícil por duas razões
autores, e observa-se que não há um consenso
interligadas: primeiro é um processo tão natural
quanto ao status da ergonomia (ciência, arte
que se apresenta, sob muitos aspectos, diferente;
ou método), sendo que cada visão segue uma
e, segundo, ela se desenvolveu de maneira distinta
tendência baseada nas origens metodológicas que
para diferentes aplicações. Por esse motivo o autor
a embasaram. Uma percepção abstraída da leitura
coloca que deve-se reconhecer que a pesquisa-ação
dos textos permite que se tente estabelecer uma
é um dos inúmeros tipos de investigação-ação, que
linha de foram considerados:
é um termo genérico para qualquer processo que
• A ergonomia da atividade se desenvolve da siga um ciclo no qual se aprimora a prática pela
ação. Assim, todo trabalho em ergonomia deve oscilação sistemática entre agir no campo da prática
ser baseado em um trabalho de campo que irá
e investigar a respeito dela.
constituir o ambiente necessário para o completo
desenvolvimento do conhecimento em ergonomia; Na breve revisão da origem histórica do método
• A compreensão da existência do dispositivo de da pesquisa-ação, apesar de muitos atribuírem sua
três polos proposto por Schwartz (2004) para que criação a K. Lewin por este ter cunhado o termo
se identifiquem os atores em cada polo e seus em 1946, o mesmo autor elenca diversos trabalhos
linguajares, e com isso conhecer os ambientes que poderiam ser reconhecidos como base do
onde o conhecimento será gerado e validado; método. Para ele, a identificação de saber quando
• Compreender a descontinuidade organizada pelo e onde o método teve origem é difícil porque as
trabalho e a complexidade de relações estabelecidas pessoas sempre investigaram a própria prática com
observadas por Hubault (2004), de modo a a finalidade de melhorá-la.
determinar procedimentos criteriosos para o registro
dos conhecimentos gerados e das ferramentas Franco (2005) realça que desde o aparecimento
utilizadas na realização do trabalho-pesquisa; e do termo e após diferentes incorporações teóricas
• Realizar o trabalho de campo através da análise ao conceito e à prática da pesquisa-ação, muitas
ergonômica do trabalho como ferramenta principal interpretações têm sido realizadas em nome dela. Isso
para a geração dos dados brutos (fatos virtuais ou gerou um mosaico de abordagens metodológicas,
reais) que serão fontes do desenvolvimento do que muitas vezes se operacionalizam na práxis
conhecimento em ergonomia. investigativa, sem a necessária explicação de seus
Essa conduta básica oferece uma estruturação fundamentos teóricos, gerando inconsistências
do trabalho de pesquisa em ergonomia da atividade entre teoria e método e comprometimentos à
que permite estabelecer um vocabulário mais validade científica dos estudos.
amplo e formalizado de forma que atenda a todos A mesma autora destaca a existência no
os atores que irão validar o que foi desenvolvido. método da pesquisa-ação do ciclo em espiral
Observa-se nas leituras que os pesquisadores trazem de três fases proposto por Lewin, que permite
de suas áreas de origem os termos e vocabulários readequações e alterações de rumo do processo.
(linguajares) utilizados em seus trabalhos, e isso Tripp (2005) identifica que a maioria dos processos
normalmente gera áreas de atrito pelo fato de não de melhoria segue esse mesmo ciclo e apresenta
Pizo, C. A. et al.
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alguns desenvolvimentos do processo básico de Quadro 1. Processos de investigação-ação.


investigação-ação (Quadro 1). Nomenclatura Autores
Para restringir o termo pesquisa-ação à forma Pesquisa-ação Lewin (1946)
de investigação-ação mais específica à pesquisa Aprendizagem-ação Revons (1971)
acadêmica, Tripp (2005) prefere que ela seja Prática reflexiva Schön (1983)
denominada como Projeto-ação Argyris (1985)
Aprendizagem experimental Kolb (1984)
[...] uma forma de investigação‑ação que utiliza Ciclo PDCA Deming (1986)
técnicas de pesquisa consagradas para informar a PLA - Participatory Learning and Action
ação que se decide tomar para melhorar a prática [...] PAR - Participatory Action Research
(TRIPP, 2005, p. 447), PAD - Participatory Action Development
Chambers (1983)
PALM - Participatory Action
e na qual essas técnicas devem atender aos Learning Methods
critérios comuns a outros tipos de pesquisa PRA - Participatory Rural Appraisal
Prática deliberativa McCutcheon (1988)
acadêmica (como, por exemplo, enfrentar a revisão
Pesquisa práxis Whyte (1964; 1991)
pelos pares quanto a procedimentos, significância,
Cooperrider e
originalidade, validade, etc.). Investigação apreciativa
Shrevasteva (1987)
Com viés mais sociológico, Thiollent (2005) Genérica em medicina,
Prática diagnóstica
classifica a pesquisa-ação como uma linha de ensino corretivo, etc
pesquisa associada a diversas formas de ação coletiva Avaliação-ação Rothman (1999)
orientada em função da resolução de problemas Aprendizagem transformacional Marquardt (1999)
ou de objetivos de transformação. Ele a distingue Fonte: Tripp, 2005.

da metodologia da pesquisa participante, pois na


pesquisa-ação, além da participação, ela supõe
empirismo e a teoria no método da pesquisa-ação é
uma forma de ação planejada de caráter social,
bem abordada por Argyris, Putnam e Smith (1985).
educacional, técnico ou outro, que nem sempre se
Com base no contexto apresentado, o autor
encontra em propostas de pesquisa participante.
considera que a pesquisa-ação é uma estratégia
Thiollent (2005) ainda limita a pertinência do metodológica da pesquisa social na qual:
alcance da pesquisa-ação à faixa intermediária entre o
• Há uma ampla e explícita interação entre
que é geralmente designado como nível microssocial
pesquisadores e pessoas implicadas na situação
(indivíduos, pequenos grupos) e o que é considerado investigada;
como nível macrossocial (sociedade, movimentos e • Dessa interação resulta a ordem de prioridade dos
entidades de âmbito nacional ou internacional). problemas que serão pesquisados e das soluções a
Essa faixa intermediária de observação corresponde serem encaminhadas sob forma de ação concreta;
a uma grande diversidade de atividades de grupos • O objetivo da investigação não é constituído
e indivíduos no seio ou à margem de instituições pelas pessoas e sim pela situação social e pelos
ou coletividades. Nesse aspecto é destacado que, problemas de diferentes naturezas encontrados
na abordagem da interação social adotada em nessa situação;
sua caracterização, os aspectos sociopolíticos • O objetivo da pesquisa-ação consiste em resolver
são mais frequentemente privilegiados que os da ou, pelo menos, esclarecer os problemas da
realidade psicológica e existencial. Do ponto de situação observada;
vista sociológico, a proposta de pesquisa‑ação dá • Há, durante o processo, um acompanhamento das
decisões, das ações de toda a atividade intencional
ênfase à análise das diferentes formas de ação. O
dos atores da situação; e
que é também observado por Franco (2005) sob um
• A pesquisa não se limita a uma forma de ação
ponto de vista educacional. (risco de ativismo): pretende-se aumentar o
Embora a abordagem de Thiollent (2005) conhecimento dos pesquisadores e o conhecimento
priorize o lado empírico, ele não deixa de colocar as ou o “nível de consciência” das pessoas e grupos
questões relativas aos quadros de referência teórica considerados.
sem os quais a pesquisa empírica – pesquisa-ação Para Franco (2005), no questionamento “de que
ou não – não faria sentido e sobre o qual está pesquisa se fala” quando se refere à pesquisa-ação,
relacionada ao papel da teoria na pesquisa. Ele as respostas devem ser norteadas pelas seguintes
destaca a contribuição específica dos pesquisadores dimensões:
nos discursos que acompanham o desenrolar da • Dimensão ontológica: referente à natureza do
pesquisa e em conduzir uma deliberação acerca objeto a ser conhecido e cuja questão principal é
dos argumentos a serem levados em conta para o que se pretende conhecer quando se utiliza a
estabelecer as conclusões. Essa ponte entre o pesquisa-ação a partir de pressupostos iniciais;
Pizo, C. A. et al.
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• Dimensão epistemológica: referente à relação • Na colocação dos problemas a serem estudados


sujeito-conhecimento e cuja questão principal é conjuntamente por pesquisadores e participantes;
como se estabelecem as relações entre sujeito e • Nas “explicações” ou “soluções” apresentadas pelos
conhecimento; e pesquisadores e que são submetidas à discussão
• Dimensão metodológica: referente a processos entre os participantes;
de conhecimento utilizados pelo pesquisador • Nas “deliberações” relativas à escolha dos meios de
e que passa fundamentalmente à exigência de ação a serem implementados; e
procedimentos articuladores da ontologia com a • Nas “avaliações” dos resultados da pesquisa e da
epistemologia da pesquisa-ação. correspondente ação desencadeada.
Outra questão-chave na pesquisa-ação colocada Com a pesquisa-ação pretende-se alcançar
por Thiollent (2005) é a elucidação dos objetivos que realizações, ações efetivas, transformações ou
ele coloca como relacionamento entre dois tipos: mudanças no campo social. A questão da ação
• Objetivo prático: que seria contribuir para o melhor transformadora deve ser colocada desde o início da
equacionamento possível do problema considerado pesquisa em termos realistas e estabelecido o papel
como central na pesquisa, com levantamento de do pesquisador. Nesse aspecto várias situações
soluções e proposta de ações correspondentes às podem ser distinguidas:
soluções para auxiliar o agente (ou ator) na sua
• Quando os participantes têm uma ideia clara
atividade transformadora da situação; e
dos objetivos e da ação necessária, em que
• Objetivo de conhecimento: que seria obter o pesquisador essencialmente assessora as
informações de difícil acesso por meio de outros decisões correspondentes ao que for factível nas
procedimentos e aumentar o conhecimento de melhores condições e extraem da prática diversos
determinadas situações. ensinamentos;
A relação entre esses dois tipos é variável, sendo • Quando se trata de uma ação tipo técnica, ela
que o autor considera que com maior conhecimento é definida em função dos meios técnicos e
a ação é mais bem encaminhada. Assim, a ênfase econômicos necessários, em função do saber
no alcance do trabalho pode ser dada a um de próprio dos usuários e do contexto social; e
três aspectos: resolução de problemas, tomada • Quando se trata de uma ação de caráter cultural,
de consciência ou produção de conhecimento. educacional ou político, os pesquisadores e
Bem conduzido, o trabalho pode alcançá-los participantes devem estar em condição de fazer
simultaneamente. uma avaliação realista dos objetivos e dos efeitos.
Thiollent (2005) ainda destaca que é necessário Diferenciando o método da pesquisa-ação,
ter cuidados para que a pesquisa-ação resulte em Thiollent (2005) coloca que na pesquisa-ação há um
conhecimentos associados ao ideal científico. Com reconhecimento do papel ativo dos observadores na
ela é necessário produzir conhecimento, adquirir situação investigada e dos membros representativos
experiência, contribuir para a discussão ou fazer dessa situação. Nesse processo, a noção de
avançar o debate acerca das questões abordadas. objetividade estática é substituída pela noção de
Nesse processo, parte das informações geradas é relatividade observacional, segundo a qual a realidade
divulgada para a população envolvida na pesquisa, não é fixa e o observador e seus instrumentos
sob forma e meios apropriados. A outra parte, desempenham um papel ativo na captação da
cotejada com resultados de pesquisa anteriores, é informação e nas decorrentes representações. Essa
estruturada em conhecimentos e divulgada pelos interação entre o observador e o observado não é
canais próprios da área do pesquisador. A estrutura unilateral entre o pesquisador e os investigados;
cognitiva oferece ao pesquisador melhores condições ela é de duas vias, onde todos desempenham
de compreensão, decifração, interpretação, análise e uma função interrogativa, fazendo perguntas e
síntese do “material” qualitativo gerado na situação procurando elucidar os assuntos coletivamente
investigada. “Material” este essencialmente feito de investigados. Isso remete aos desníveis de abstração
linguagem, sob formas de simples verbalizações, no modo de comunicação dos pesquisadores e dos
imprecações, discursos ou argumentações mais ou participantes devido às diferenças de linguagem.
menos elaboradas. No plano da ação, segundo Thiollent (2005), o
O mesmo autor coloca que a significação do que desafio maior é o de juntar as exigências da tomada de
ocorre na situação de comunicação estabelecida consciência (ou da conscientização, a um nível mais
pela investigação passa pela compreensão e a profundo) com as exigências científico-técnicas. As
análise da linguagem em situação, pois é necessário transformações intencionalmente definidas não se
um mínimo de conhecimento nesse setor para evitar traduzem apenas ao nível da consciência individual
ingenuidades. Parte dessa atividade é um processo ou coletiva, há também a aprendizagem de saber
argumentativo que se encontra: fazer e aquisição de novas habilidades.
Pizo, C. A. et al.
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O mesmo autor destaca também que o saber • É um método cíclico que se realimenta do
informal dos participantes não é desprezado e conhecimento ou aumento da consciência gerado; e
sim posto em relação com o saber formal dos • O trabalho deve ser realizado tendo a análise
especialistas no intuito do enriquecimento mútuo. ergonômica do trabalho como ferramenta principal
Quanto ao aspecto de geração de conhecimento, a para a geração dos dados brutos (fatos virtuais ou
pesquisa-ação fortalece a produção e a divulgação reais).
de conhecimentos que, apesar de nãos serem Como comentado por Daniellou (2004a) e
valorizados no plano cultural-simbólico, são de detalhado por Leplat e Montmollin (2007) para as
grande utilidade na resolução de problemas do áreas de biologia humana, medicina do trabalho,
mundo real. O autor conclui que a pesquisa-ação é ciências cognitivas, psicologia do trabalho,
uma orientação destinada ao estudo e à intervenção sociologia do trabalho e organização do trabalho,
em situações reais. entre outras, a ergonomia possui um caráter
integrador de conhecimentos oriundos de várias
Nesse processo de geração de conhecimento,
áreas. Isso faz com que o conhecimento gerado no
Tripp (2005) considera útil empregar cinco
âmbito da ergonomia seja levado para essas diversas
modalidades ao pensar sobre a natureza de um
áreas.
projeto de pesquisa-ação:
Esse processo de retornar ao “meio” da área de
• Pesquisa-ação técnica: abordagem pontual na conhecimento feito pelos pesquisadores faz com
qual toma-se uma prática existente de algum
que o pesquisador tenha de “traduzir” o método
outro lugar e a implementa em sua própria esfera
de pesquisa reconhecido pelos pares do “meio”
de prática para realizar uma melhora;
da ergonomia para um método reconhecido pelos
• Pesquisa-ação prática: abordagem onde se escolhe pares da sua área de conhecimento de origem. Em
ou projeta as mudanças dentro do próprio espaço muitas áreas de conhecimento em que a ergonomia
de melhoria; permeia o método da pesquisa-ação, é um método
• Pesquisa-ação política: refere-se à mudança de pesquisa reconhecido e utilizado em diversos
cultural institucional e/ou de suas limitações; propósitos de estudo, apesar das discussões sobre
• Pesquisa-ação socialmente crítica: modalidade da o controle que se deve ter para manter seu caráter
anterior, cujo resultado é uma mudança no modo científico.
de pensar a respeito do valor último e da política Por outro lado, as preocupações sobre a
das limitações; e cientificidade da ergonomia da atividade e os
• Pesquisa-ação emancipatória: Variação da aspectos destacados sobre o método da análise
pesquisa-ação política que tem como meta ergonômica do trabalho permitem observar que a
explícita mudar o stato quo de um grupo social AET tem forte semelhança com as características
como um todo. e preocupações relacionadas à pesquisa-ação. O
O autor fecha sua análise colocando que uma esquema geral da abordagem da ação ergonômica
pesquisa-ação é tão eficaz, cientificamente ou não, no desenvolvimento da análise ergonômica do
quanto as pessoas que a realizam. trabalho proposto por Güérin  et  al. (2001), a
interação entre os atores e a participação ativa do
pesquisador levantadas por Daniellou (2004a, b, c),
5. Considerações finais os aspectos instrumentais e de comunicação
destacados por Hubault (2004) e Schwartz (2004),
Como apontado por Montmollin (2007), a
respectivamente, fazem com que a proximidade
ergonomia não é só análise da atividade, bem como
entre o método da análise ergonômica do trabalho
a análise da atividade pode ser utilizada em outros e o da pesquisa-ação os torne indissociáveis para
domínios que não o do trabalho. Contudo, a partir que o conhecimento gerado seja reconhecido mais
das discussões apresentadas, é possível levantar amplamente nas diversas áreas de conhecimento.
os seguintes aspectos-chave sobre o método da Não que seja o único método de pesquisa a ser
ergonomia da atividade: utilizado, pois isso depende do objetivo da pesquisa
• Ela se desenvolve da ação; em ergonomia, mas com certeza será o método para
• Os atores são todos os que participam do processo, qualificar melhor a análise ergonômica do trabalho
inclusive o pesquisador/ergonomista; nos espaços da área de conhecimento integrada à
• A interação entre os atores gera um aumento ergonomia que não a permeiam.
do conhecimento ou do nível de consciência da O pesquisador, conseguindo caracterizar essa
atividade, que será fator chave para a transformação simbiose entre pesquisa-ação e análise ergonômica
da situação do trabalho; do trabalho, colocando a última como uma situação
Pizo, C. A. et al.
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Análise ergonômica do trabalho ... do conhecimento gerado. Prod. v. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

particular da primeira, terá mais facilidade em PRODUÇÃO, 27., 2007, Foz do Iguaçu. Anais... Foz do Iguaçu:
PUC-PR, 2007.
movimentar-se entre os espaços de conhecimento
DANIELLOU, F. Apresentação à edição brasileira. In: DANIELLOU,
dentro de sua área de atuação. Isso ocorre pela redução F. (Coord.). A ergonomia em busca de seus princípios: debates
da necessidade de “tradução” do método AET nessas epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher, 2004a. p. 8-10.
movimentações, principalmente considerando as DANIELLOU, F. Introdução - questões epistemológicas acerca da
variações e denominações do método pesquisa‑ação ergonomia. In: DANIELLOU, F. (Coord.). A ergonomia em busca
observado por Tripp (2005) e Franco (2005). de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgard
Blucher, 2004b. p. 1-18.
Essa expectativa decorre, como posto por DANIELLOU, F. Questões epistemológicas levantadas pela ergonomia
Daniellou (2004b) e Tripp (2005), pelo fato de que de projeto. In: DANIELLOU, F. (Coord.). A ergonomia em busca
uma pesquisa para ser reconhecida tem que ser de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgard
Blucher, 2004c. p. 181-198.
validada pela comunidade em que ela é apresentada
FALZON, P. Natureza, objetivos e conhecimentos da ergonomia:
e que sua aceitação depende em parte do método elementos de uma análise cognitiva da prática. In: FALZON, P.
utilizado e de sua condução. Por isso é importante (Ed.). Ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher, 2007. p. 3-19.
que a condução da pesquisa e a representação do FRANCO, M. A. S. Pedagogia da Pesquisa-ação. Educação e Pesquisa,
conhecimento sejam aceitas pela comunidade na v. 31, n. 3, p. 483-502, 2005.
qual se quer validá-la. GÜÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá‑lo: a
prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher, 2001.
Como colocado pelos mesmos autores, a
HUBAULT, F. Do que a ergonomia pode fazer análise? In: DANIELLOU,
aceitação não é estática, unânime e se altera F. (Coord.). A ergonomia em busca de seus princípios: debates
com o tempo, conforme a área do conhecimento epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher, 2004. p. 105-140.
vai evoluindo. Assim, os trabalhos desenvolvidos KARWOWSKI, W. Encyclopedia of ergonomics and human factors.
devem ser sempre submetidos à comunidade para London: Taylor & Francis, 2006.
obter conhecimentos de como está evoluindo o LAVILLE, A. Referências para uma história da ergonomia francófona.
In: FALZON, P. (Ed.). Ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher,
seu pensar sobre o tema, o método e também para 2007. p. 21-32.
modificar esse caminho. LEPLAT, J.; MONTMOLLIN, M. As relações de vizinhança da
Uma continuidade desse trabalho será o ergonomia com outras disciplinas. In: FALZON, P. (Ed.).
levantamento das produções científicas que tenham Ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher, 2007. p. 33‑44.
lançado mão da análise ergonômica do trabalho MONTMOLLIN, M. Vocabulaire de l’Ergonomie. Tolouse, France:
Octarès Editions, 2007.
para: identificar o método de pesquisa adotado; a
SCHWARTZ, Y. Ergonomia, filosofia e exterritorialidade. In: DANIELLOU,
comunidade a qual pertencem os pesquisadores e F. (Coord.). A ergonomia em busca de seus princípios: debates
qual trabalho foi apresentado. Com isso será possível epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher, 2004. p. 141-179.
averiguar a realidade dessa indissociabilidade SOCIÉTÉ D’ERGONOMIE DE LANGUE FRANÇAISE - SELF. Ergonomie
e a chance de uma possível classificação da de l’activité et francophonie: héritages, réalités, perspectives.
2005. Disponível em: <http://www.ergonomie-self.org/diffusion/
análise ergonômica do trabalho como um tipo de contributions.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2008.
pesquisa‑ação com propósitos ergonômicos. STRAMLER, J. H. The dictionary for human factors/ergonomics.
Boca Raton, Florida: CRC, 1993.
Referências THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 14 ed. São Paulo:
Cortez, 2005.
ARGYRIS, C.; PUTNAM, R.; SMITH, D. M. Action Science: Concepts, TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e
methods, and skills for research and intervention. San Francisco: Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005.
Jossey-Bass, 1985. VIEIRA, C. E. C.; BARROS, V. A.; LIMA, F. P. A. Uma abordagem da
BOUYER, G. C. A ciência ergonômica entre a epistemologização e a psicologia do trabalho, na presença do trabalho. Psicologia em
cientificidade. In: ENCONTRO NACIONAL DE ENGENHARIA DE Revista, v. 13, n. 1, p. 155-168, 2007.

Ergonomic work analysis and the scientific recognition


of knowledge generated
Abstract
This paper contextualizes in Ergonomic Work Analysis (EWA) the concerns of researchers in the field of ergonomics regarding
the scientific recognition of research methods in their work. Based on these concerns and a review of the characteristic activity
of research, a theoretical analysis is undertaken of the symbiosis between this method of research and EWA, and of how
this contribution to knowledge generated in EWA may have facilitated its scientific recognition among peers of the areas of
knowledge that ergonomics permeates.
Keywords
Activity ergonomics. Research. Science.

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