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A ILEGITIMIDADE DO TRIBUNAL DO JÚRI1

Raccius Twbow Potter

RESUMO

O presente trabalho examina o rito do tribunal do júri, um procedimento


especial internalizado pelo sistema processual penal brasileiro, competente para
julgar os crimes dolosos contra a vida. Diferencia-se de qualquer outro instituto pela
participação direta de pessoas do povo em seus julgamentos. Ocorre que, pelo fato
de pessoas leigas à ciência do direito definirem o destino de outra, o rito do júri fica
aberto a críticas de todo gênero. Desta forma, primeiramente, busca-se construir as
bases que legitimam a atuação do júri a partir dos discursos clássicos a favor de sua
inserção e manutenção em território pátrio. Em um segundo momento, sob a
perspectiva do processo acusatório e da teoria do garantismo penal, esta pesquisa
tentará desconstituir tais bases, fundamentando uma necessária revisão do
raciocínio jurídico antes empregado, em busca da modernização do processo penal.
Não obstante, ainda que brevemente, lançar-se-á uma alternativa procurando
reformar a dinâmica em que ora se insere o júri, concluindo-se, ao final, senão pela
extinção do instituto, praticamente impossibilitada ante a proteção constitucional,
pela aplicação da alternativa proposta, qual seja, a fixação do escabinato.

Palavras-chave: Tribunal do júri. Legitimidade. Processo acusatório.

1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção
do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, aprovado, com grau máximo, pela banca examinadora composta pelo orientador
Prof. Me. Rodrigo Moraes de Oliveira, Prof. Me. Alexandre Wunderlich e Prof. Phd. Fábio Roberto
D'ávila, em 03 de dezembro de 2007.
2

1 O ARGUMENTO DO JÚRI COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Um dos pilares utilizados para validar a instituição do júri como legítima ao


sistema jurídico pátrio é o discurso do rito do júri estar inserido na atual Carta
Magna, bem como estar localizado dentre as normas de direitos e garantias
fundamentais do homem.

A posição de Cretella Júnior a respeito da previsão do reconhecimento de tal


instituto na Constituição de 1988 parece-nos a mais acertada quando ele enfatiza o
aspecto da simples existência, tratando-se na verdade de um continuísmo das
previsões precedentes, ou, nas palavras do autor: “No texto de 1988, ‘é reconhecida’
equivale, de modo perfeito, a ‘é mantida’.”2

Mais detalhadamente, a respeito da previsão do júri na Constituição de 1988


Nucci argumenta que:

Ninguém mais o retirou da Constituição, embora em 1988, outra vez


demonstrando que o júri serve ao intuito político de “construir democracia”
por decreto, o legislador tivesse revivido os princípios da instituição
(soberania dos veredictos, plenitude de defesa, sigilo das votações e
garantia para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida), previstos em
1946. Assim, para não deixar de ressuscitar o que o regime militar havia
extirpado (esses princípios não constavam da Constituição de 1967, nem da
3
Emenda de 1969), a Constituinte agiu como a de 46.

O júri consta no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, do capítulo


“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, artigo 5º, inciso XXXIII, da
Constituição Federal.

Muitos doutrinadores constitucionalistas utilizam esta previsão na Carta


Magna, com ênfase à inserção nos direitos e garantias fundamentais, para procurar
explicar a manutenção do júri, seja por entender significar, por si só, um direito
essencial ao homem, seja porque se trata de norma processual que serve como
garantia/proteção a outros direitos fundamentais.
2
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição brasileira de 1988. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1992. v. 1. p. 467.
3
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p 57.
3

Na Constituição de 1937, em que houve omissão em relação à existência do


tribunal do júri, Torres esclarecia – baseado no Decreto 167 que veio a declarar o
júri como instituição erradicável do organismo da nova forma constitucional – que a
justificativa da manutenção do júri se dava não pela conveniência opinativa, mas sim
pelo interesse educacional do povo e do direito deste de cooperar na formação de
leis e participar na sua aplicação, tendo em vista o novo regime democrático da
época.4

Moraes entende que o júri representa um tribunal popular de essência e


obrigatoriedade constitucional, regulamentado na forma da lei ordinária.5

José Afonso da Silva, por sua vez, apenas insere o tribunal do júri entre as
garantias penais jurisdicionais que protegem o indivíduo contra atuações arbitrárias,
afirmando que, pelo amparo constitucional que recebe, outro tribunal não pode
reformar o mérito da decisão do júri, podendo apenas anular o processo por vício de
forma, sem mudar, no entanto, o mérito do julgamento.6

Já Cretella Júnior, explicitando uma visão democrática do júri, elucida que o


júri é um direito subjetivo público do cidadão de ser julgado por um conselho de
jurados que emana do povo. Assim, já que o povo escolhe em eleições livres, seus
mandatários para a leitura da lei e para a gestão dos serviços públicos, e escolhe o
“administrador”, o Chefe do Executivo, nas várias esferas, ou seja, assim como o
povo, de certo modo, legisla e administra, também, por seus representantes, julga, já
que, nas democracias, a justiça emana do povo, sendo uma parcela do Judiciário,
delegação da Nação, emanação da soberania nacional.7

No entanto, quem melhor explora esta motivação da proteção constitucional,


em especial o abrigo nos direitos e garantias fundamentais, são os autores
processualistas penais.

4
TORRES, Magarinos. Processo penal do juri no Brasil. Rio de Janeiro: Jacintho, 1939. p. 20.
5
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 110.
6
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 439.
7
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 468-469.
4

Nucci, justificando de forma esclarecedora a origem da previsão, explica que


o júri passou à Lei Fundamental de 1891, ingressando pela primeira vez no contexto
dos direitos e garantias individuais, “possivelmente pelos ventos democráticos que
quiseram demonstrar os republicanos e por seguirem o constitucionalismo
americano”. Após idas e vindas, se afirmou novamente como garantia individual no
ano de 1946, quando o Brasil conheceu uma nova Constituição, inclusive dando
mais segurança ao rito, pois reconhecendo expressamente a soberania dos seus
veredictos. Elucida o autor que é grande a probabilidade desse ressurgimento ser
creditada à ânsia do constituinte da época de fazer retornar tudo aquilo que a
ditadura do Estado Novo havia suprimido. Complementa afirmando que a partir
dessa Lei Básica, em 1967, 1969 e 1988, continuou a figurar como norma
constitucional prevista no capítulo das garantias individuais.8

Este mesmo autor, em outra obra, sinteticamente explicita que o tribunal do


júri deve ser visto como uma garantia individual ao devido processo legal, o que ele
chama de “garantia da garantia”. Argumenta se tratar de uma garantia formal, não
material, pois: “Os indivíduos têm direito a um julgamento justo feito por um tribunal
imparcial, assegurada a ampla defesa, mas nada determina seja esse julgamento
feito pelo povo, no júri”, complementando ser o júri garantia fundamental formal pelo
fato de estar previsto na Constituição como tal. Trata, em um segundo plano, ser o
júri um direito individual, fazendo alusão à possibilidade que o cidadão de bem
possui de participar, diretamente, dos julgamentos do Poder Judiciário.9

Para Tourinho Filho, a previsão do júri no capítulo destinado aos direitos e


garantias fundamentais evidenciou que, pela sua posição topográfica, se trata de
instituição destinada a tutelar mais ainda o direito de liberdade. Explica que isso não
significa que tal direito não encontra tutela no seio do Judiciário, mas sim que o júri
não fica preso às formalidades da lei, já que os jurados têm inteira liberdade de

8
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 57.
9
Idem, Código de Processo Penal Comentado: Estudo integrado com Direito Penal e Execução
Penal, Apresentações Esquemáticas da matéria. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Rev. dos
Tribunais, 2006. p. 666-667.
5

julgar, e o fazem de acordo com sua consciência, sem ficar adstritos à lei e à prova,
como ficam os juízes togados10.

Ensina Marques que o júri é um órgão Judiciário que a Constituição


considerou fundamental para o implícito direito de liberdade do cidadão, pois o
declarou uma garantia individual.11

Abordando um ponto de vista sociológico, Castro leciona que tal previsão


constitucional constitui uma garantia que representa muito para o réu, principalmente
em razão de três aspectos: as particularidades dos vários grupos que compõem o
Estado brasileiro – os jurados julgarão o acusado em conformidade com os padrões
morais da sociedade à que ele pertence, ou na qual cometeu o crime –; a
massificação dos julgamentos – por não estarem julgando profissionalmente, estão
imunes a uma insensibilidade decorrente da banalização do ato de julgar e não tem
compromisso de julgar rapidamente como os juízes togados –; e à utilização da
eqüidade – aproximação entre sentença e justiça pela proporção dos fatores que
levaram o réu a cometer conduta típica e a reprovabilidade social daí recorrente.12

2 O “DIREITO” DO POVO EM PARTICIPAR DAS DECISÕES JUDICIAIS (A


QUESTÃO DO JULGAMENTO PELOS PARES E SUAS DERIVAÇÕES)

O outro pilar adotado para legitimar a atuação do júri como órgão


competente para julgar crimes dolosos contra a vida é baseado no “direito” do povo
de participar das decisões judiciais e do réu de ser julgado pelos seus pares.

Como ensina Ferrajoli, Montesquieu já escreveu que o Poder Judiciário não


deve ser confiado a um Senado permanente, mas sim a pessoas escolhidas dentre
o povo, em determinados períodos do ano, sendo necessário que os juízes tenham

10
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 27. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2005. v. 4. p. 95.
11
MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. São Paulo: Edição Saraiva, 1963. v. 1. p. 53.
12
CASTRO, Kátia Duarte de. O júri como instrumento do controle social. Porto Alegre: S. A.
Fabris, 1999. p. 45.
6

a mesma condição do acusado, sendo, para tanto, seus pares, para que não haja
suspeita do réu ter caído nas mãos de pessoas propensas a lhe tratar com
violência.13

Assim, já nos primórdios da criação do júri moderno ele surgi com a missão
de retirar das mãos do déspota o poder de decidir contrário aos interesses da
sociedade, como uma tábua de salvação, nascendo daí o princípio do devido
processo legal.14

Nesse ponto de vista, Moraes definiu que a instituição do júri é vista como
uma prerrogativa democrática do cidadão, que deverá ser julgado pelos seus
semelhantes.15

Já em 1857, Bueno procurou justificar que a intervenção dos jurados na


administração da justiça é uma garantia importante para as liberdades, interesses e
justiça social. Proferiu ainda que o júri representa o mais firme sustentáculo da
liberdade política e a mais sólida garantia da independência judiciária.16

Argumentava que, pelo lado da liberdade, ou antes, da justiça criminal, sua


boa administração e equidade, a instituição é a mais moral e filosófica possível; e
que pelo efeito dela, a liberdade, a honra, a vida de um cidadão, não serão jamais
sacrificadas sem a intervenção e aceitação de seus pares.17

Continuava argumentando que o júri evita o perigo dos juízes singulares


julgarem com a dureza, inflexibilidade e suspeitas habituais, já que acostumados a
reprimir o crime e os criminosos, tendo uma imaginação já prevenida em relação ao
acusado, inclinam-se a supor-lo ser o autor do crime, a descobrir força nos indícios e
depois nas provas. Em sentido contrário, o júri, tirado do corpo escolhido pela lei e

13
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de: Ana Paula Zomer
Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Rev.
dos Tribunais, 2006. p. 531.
14
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. p. 485.
15
MORAES, op. cit., p. 110.
16
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Direito público brasileiro e a análise
da constituição do Império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. 2 v. p. 329-331.
17
Ibidem, p. 329-331.
7

chamado a decidir casualmente a imputação, sem os hábitos prejudiciais do Juiz


singular, examina a questão por modo mais livre e mediante debates detalhados e
sua resolução não depende apenas de um modo de pensar.18

Por fim, garantiu que é uma grande vantagem o poder-se substituir, dar
preferência “à certeza, à prova moral em vez da certeza ou prova legal”,
conceituando a última como inflexível, absoluta, invariável e muitas vezes absurda e
irracional, podendo inclusive forçar a consciência do julgador contra o que ela leal,
sincera e intimamente está reclamando.19

Em outra obra, o mesmo autor, melhor esmiuçando o tema, retrata outras


possíveis vantagens que a instituição do júri oferece à sociedade: a) a separação
entre a questão de fato e a questão de direito, fundamentando que enquanto a
última demanda estudos e conhecimentos exatos de direito, a primeira ação
pressupõe apenas o bom senso e retidão para declarar se o fato apresentado como
incerto ou duvidoso existe ou não como ato do acusado.20; b) o julgamento ser
realizado pelos jurados, pois segundo ele, esta vantagem provém da diversidade de
caráter, hábitos e do número de julgadores a quem se entrega a apreciação do
fato.21; c) a independência comparada entre o júri e o Juiz singular, pois o governo é
quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, honras e distinções aos
magistrados, enquanto que o júri, por sua vez, não tem nada a esperar ou temer do
governo.22; d) neste rito se cria o espírito público, os estímulos nobres, elevando o
caráter emocional, o sentimento consciencioso do povo, de que ele não é escravo,
de que não haverá punição graves a nenhum cidadão sem a decisão pelos seus
pares, e não de prepostos criados para essa missão exclusiva.23

Torres, por sua vez, ressalta que a função de jurado não constitui um direito
e sim honra e distinção, confiadas ao critério das autoridades judiciárias, além de

18
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Direito público brasileiro e a análise
da constituição do Império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. 2 v. p. 329-331.
19
Ibidem, p. 329-331.
20
Idem. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Empr. Nacional do
Diário, 1857. p. 38-39.
21
Ibidem, p. 38.
22
Ibidem, p. 38-39.
23
Ibidem, p. 39.
8

exercer a função educativa de advertir o povo sobre as causas mais gerais e


remediáveis da criminalidade.24

Tornaghi fundamentou que a humanidade sempre recorreu à participação


dos leigos nos julgamentos para evitar o vezo do Juiz profissional que se acastela na
estratosfera da justiça ideal, pois, por meio deles a justiça tomaria contato com a
Terra, com o mundo onde vivem o criminoso e a sociedade.25

Enfrentando as críticas feitas ao júri, argumenta que as próprias leis não são
feitas por jurisperitos, podendo assim os jurados serem leigos, pois para eles basta a
sabedoria da vida, exercendo a faculdade de deixar de lado a lei em preponderância
à justiça.26

Ainda, filiando-se ao pensamento de Bueno, defende que: a possibilidade de


ser corrompido é menor ao júri, tratando-se de sete pessoas ao invés de uma; o Juiz
togado tem o defeito de deixar-se levar pela costumeira ação de julgar e ao fim de
certo tempo já não se comove com as dificuldades humanas; o júri é preferível em
julgamentos em que a motivação tem maior importância, pois: “ninguém pode avaliar
tão bem quanto o jurado o que os motivos do crime significam em determinado
ambiente. (...). Não é a mesma coisa matar por motivo de honra na capital e no
interior. O Juiz não sabe disso, mas os jurados sabem”.27

No mesmo sentir, em outras palavras, Tourinho Filho discorre que o


legislador constituinte deu o julgamento ao povo, desligado das filigramas do direito
criminal, súmulas e repositórios jurisprudenciais, para que pudesse decidir com sua
sensibilidade, equilíbrio e independência, longe do princípio segundo o qual o que
não está nos autos não existe.28

Nucci conceituou par como “a pessoa humana, aquele que é igual,


semelhante, parceiro, lembrando que todos são iguais perante a lei, sem distinção
24
TORRES, op. cit., p. 09 e 77.
25
TORNAGHI, Hélio. Compêndio de processo penal. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1967. 4 v. p. 251-
256.
26
Ibidem, p. 251-256.
27
Ibidem, p. 255.
28
TOURINHO FILHO, op. cit., p. 98.
9

de qualquer natureza (art. 5º caput, CF)”, e explicou que o julgamento pelos pares
significaria apenas “a garantia de um ser humano leigo julgando outro”, justificando
que cultura ou formação não são qualidades justificadoras da dispensa de um
jurado.29

3 DESCONSTITUINDO AS BASES DE SUSTENTAÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI

A partir de agora, irá se tentar demonstrar que o tribunal do júri não é


legítimo tanto para constar no rol dos direitos e garantais fundamentais da
Constituição – seja por não significar, por si só, um direito essencial ao homem, seja
por não se tratar de norma processual necessária para garantia/proteção de outros
direitos ou garantias – como também seus elementos formadores, ligados à idéia do
julgamento pelos pares, carecem de motivação para serem reconhecidos pelo
sistema processual penal, material penal e constitucional brasileiro.

3.1 DESCONSTITUINDO O ARGUMENTO DO JÚRI COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Conforme abordado anteriormente, o júri está previsto na Constituição


Federal no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, capítulo “Dos Direitos e
Deveres Individuais e Coletivos” (artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal).

Portanto, ao lado do inciso que reconhece o tribunal do júri como instituição


competente para julgar crimes dolosos contra a vida e protegem alguns de seus
elementos formadores, estão outros que, por exemplo, asseguram a igualdade entre
homens e mulheres, a liberdade de expressão, o direito de propriedade, a garantia
ao contraditório e à ampla defesa, apenas para citar alguns (art. 5º, incisos I, IV,
XXII, LV, respectivamente, da Constituição Federal).

29
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado: Estudo integrado com
Direito Penal e Execução Penal, Apresentações Esquemáticas da matéria. 5. ed. rev. atual.
ampl. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006. p. 719-720.
10

Esta discrepância que salta aos olhos de um leitor desavisado é que


fundamenta a discussão sobre os direitos fundamentais que realmente são pilares
de uma nação e aqueles cuja previsão elementar é questionável.

Inúmeros autores já destacaram que o júri, se não deveria estar previsto, ao


mínimo deveria estar melhor localizado e justificada sua previsão na Constituição
Federal.

Nesse prisma Lopes Júnior já destacou que: “É verdade que o Tribunal do


Júri é cláusula pétrea da Constituição, art. 5º, XXXVIII, mas isso não desautoriza a
crítica, até porque podemos, sim, questionar a legitimidade de tal instituição para
estar na Constituição.”30

Nucci, ao enfrentar esta questão, argumenta que há os direitos e garantias


individuais no sentido material, aqueles que realmente o são, fazem parte da
essência do homem e não devem, nem podem deixar de ser previstos em qualquer
Constituição que se pretenda ser democrática; e há os outros direitos e garantias
que se transformam em fundamentais por força de lei, porque foram inseridos numa
Constituição, por decisão específica de um determinado povo, não fazendo parte do
direito das gentes e as nações podem aceitá-los somente se desejarem, porque
“não constituem a essência do homem.”31

Assim, há direitos fundamentais consagrados na Constituição que só pelo


fato de se beneficiarem da positivação constitucional merecem a classificação de
constitucionais (e fundamentais), mas o seu conteúdo não se pode considerar
materialmente fundamental; e há outros, pelo contrário, que além de revestirem a
forma constitucional, devem considerar-se materiais quanto à sua natureza
intrínseca (direito formal e materialmente constitucionais).32

30
LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Introdução crítica ao processo penal: (fundamentos da
instrumentalidade garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 139.
31
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 49.
32
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina,
1993. p. 531.
11

Deste modo, os direitos fundamentais formalmente constitucionais são


simplesmente aqueles enunciados e protegidos por normas com valor constitucional
formal, ou seja, normas que têm a forma constitucional.33

Sobre o tema, Sarlet ensina:

Tendo em vista que a CF de 1988 aderiu a um conceito materialmente


aberto de direitos fundamentais, há que se cogitar, ao menos em tese, da
existência de dispositivos que, apesar de contidos no catálogo dos direitos
fundamentais da Constituição, não são (por sua importância, natureza e
substância) direitos fundamentais no sentido material, ressalvando-se a
existência (já referida) de acirrada controvérsia a este respeito. (...) é
preciso reconhecer que os adeptos da posição divergente (...), encontrariam
em nossa Constituição um terreno fértil para a identificação de preceitos em
condições de serem enquadrados na categoria dos direitos apenas
formalmente fundamentais, visto que, na verdade, poderiam constituir
normas de cunho organizatório, ou mesmo regras que poderiam
simplesmente constar na legislação infraconstitucional. Não se pode,
outrossim, desconsiderar o fato de que há direitos fundamentais que, em
virtude de sua forma de positivação, assumem a aparência de normas
organizacionais.34

Tendo como base o conhecimento exposto, Nucci declara que o júri é


apenas formalmente uma garantia individual, pois “se não fosse previsto na
Constituição, como ocorre na maior parte dos países, jamais iria prejudicar o caráter
de Estado Democrático de Direito que o Texto Básico visa a assegurar”.35

Elucidou que na Constituição de 1946 e sua ressurreição do tribunal popular,


reinserido no capítulo dos direitos e garantias individuais, “como se fosse uma
autêntica bandeira na luta contra o autoritarismo”, não foi refletida com a devida
atenção a permanência ou extinção do júri no Brasil, mas buscou-se somente
reerguer as bases das Constituições anteriores. Afere que em 1988, em vista do
retorno da democracia no cenário brasileiro, novamente foi previsto o júri no capítulo
dos direitos e garantias individuais, trazendo de volta também os princípios da Carta

33
CANOTILHO, op. cit., p. 528.
34
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. atual. ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 150.
35
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 54.
12

de 1946: soberania dos veredictos, sigilo das votações e plenitude da defesa, além
da previsão de competência mínima para os crimes dolosos contra a vida.36

Como se vê, o argumento do júri ser um direito fundamental, irrevogável,


pelo simples fato de estar legitimado pela Constituição não pode prosperar, uma vez
que sua previsão tratou-se de uma opção legislativa, pois, como já referido, não
constitui a essência do homem.37

José Afonso da Silva, por seu turno, referindo-se ao júri, foi muito claro ao
declarar que: “(...) não parece mais cabível mantê-lo entre as garantias
constitucionais individuais, pois aqui sua função não tem maior importância do que
se fosse previsto entre os órgãos do Poder Judiciário.”38

Porto, na mesma linha crítica, discorre que o levantamento de nossas


legislações básicas em busca de uma fonte histórica relacionando a instituição do
júri com os direitos fundamentais, não a justifica enquanto tal, devendo merecer
enquadramento entre os órgãos do Poder Judiciário: “É forçada a presença da
instituição no rol dos direitos primeiros e naturais do homem, necessários à sua
integridade na vida social, especialmente quando o exercício da atividade
jurisdicional está equacionado por garantias constitucionais.”39

Filiando-se também a este pensamento, Tornagui escreveu que o júri como


uma garantia individual seria algo insustentável nos dias de hoje. Suas palavras são
esclarecedoras:

As razões históricas que, em pleno feudalismo, fizeram com que êle


assumisse o papel de paládio da liberdade, dando a todos um julgamento
por seus pares, desapareceram nas sociedades modernas. Não há, pois,
motivo para que figure na Constituição no capítulo “Dos direitos e das

36
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado: Estudo integrado com
Direito Penal e Execução Penal, Apresentações Esquemáticas da matéria. 5. ed. rev. atual.
ampl. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006. p. 666.
37
Idem. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de Oliveira, 1999. p. 49.
38
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
136.
39
PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri: procedimento e aspectos do julgamento,
questionários. 11. ed. amp. atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 124.
13

garantias individuais”. Fôsse essa a única razão de ser do Júri e êle deveria
40
ser imediatamente abolido.

Embora não possa ser considerado, por si só, um elemento essencial ao


homem, conforme recém demonstrado, outros argumentos são expostos para que,
de forma indireta, se pudesse legitimar o júri inserido no título das “Dos Direitos e
Garantias Fundamentais” previstos na Carga Magna.

Nucci explica que o povo o considerou fundamental à pessoa humana


porque, em primeira instância, o júri é uma garantia, pois visa assegurar,
indiretamente o direito à liberdade – representada pelo fato do Estado só restringir a
liberdade do indivíduo que cometa um crime doloso contra a vida, aplicando-lhe uma
sanção restritiva de liberdade, se houver um julgamento pelo tribunal do júri,
respeitando o devido processo legal; e, em segunda instância, o júri representa um
direito, o direito do cidadão de participação na administração da justiça do país.41

Mas essa motivação, também não merece prosperar.

Primeiramente porque esta garantia ao direito de liberdade, só havendo sua


restrição após julgamento, já está devidamente prevista e protegida nos direitos e
garantias fundamentais da Constituição, sendo desnecessária uma instituição
específica vinculada a um tipo penal particular para garanti-la, já que, conforme
exposto, o exercício da atividade jurisdicional está equacionado por garantias
constitucionais42, devendo o julgador observar a constitucionalização do direito
processual e material penal, onde a liberdade deve ser vista como regra.

40
TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1977-
1978. v. 2. p. 97.
41
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 55.
42
PORTO, op. cit., p. 124.
14

O caput do artigo 5º43, seus incisos XXXV44 e XXXVII45, XXXIX46 e XL47, da


Carta Magna, por si só, já desfragmentam a motivação do júri como necessário à
proteção da liberdade do indivíduo, pois esse direito sempre que violado poderá
passar pelo crivo do Poder Judiciário e quando ali chegar para ser julgado não
correrá risco de um julgamento por juízo ou tribunal até então desconhecido, sendo
que só será considerado crime aquilo que já anteriormente for como tal definido,
somente podendo retroagir a lei para beneficiar o réu.

Neste sentido, a previsão dos incisos LIII, LIV e LV, do mesmo artigo citado,
reforçam a idéia, respectivamente: de um julgamento por autoridade competente; de
nenhuma restrição à liberdade sem antes da ocorrência de um devido processo
legal; e a garantia da existência em processo judicial ou administrativo do
contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Como
bem define Cretella Júnior: “A regra da ‘ampla defesa’ abrange a regra do
‘contraditório’, completando-se os princípios que as informam e que se resumem no
postulado da liberdade integral do homem diante da prepotência do Estado.”48

Assim, se está garantindo que qualquer julgamento será realizado por


autoridade na medida de sua jurisdição, que julgará através de um adequado
processo jurídico, observando todas as formalidades e oportunizando a ampla
defesa, o contraditório e a produção de todo o tipo de prova obtida por meio lícito,
pois, sem processo e sem sentença, ou prolatada por magistrado incompetente,
ninguém será privado da liberdade.49

Importante destaque merece ainda ser feito ao princípio da presunção da


inocência, previsto no inciso LVII, do artigo trabalhado, visto que também garante

43
Ressalta a garantia à liberdade quando apregoa que todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
44
Protege a liberdade do indivíduo, deixando expresso que lei alguma excluíra da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
45
Anuncia que não haverá juízo ou tribunal de exceção.
46
Promulga que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
47
Consubstanciado no princípio da irretroatividade da lei penal, podendo ser interpretado de modo
que não poderá ser restringida a liberdade do indivíduo por lei posterior ao ilícito penal.
48
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 534.
49
Ibidem, p. 528-530.
15

proteção à liberdade do indivíduo na medida em que restringe a culpa àqueles que


forem submetidos à sentença penal condenatória transitado em julgado:

No instante preciso em que a sentença penal condenatória transitou em


julgado, o acusado, até então presumido inocente, passa ao status de
culpado, porque a sentença penal de mérito, tornada irrecorrível, assinala o
limite ou barreira em que o Estado exauriu seu poder-dever de acusar,
ficando, desse momento em diante, liberto da obrigação jurisdicional penal.
Só nesse instante, é que se pode dizer: “A é culpado”, “é criminoso” e,
como tal, pode ser objeto de identificação criminal.50

Assim, o direito à liberdade é incansavelmente garantido já no Título II, da


Constituição Federal: “Dos direitos e garantias fundamentais”, tendo talvez como
maior símbolo de sua proteção o princípio do devido processo legal, não
necessitando de outras previsões que o assegure.

Em conclusão Nucci anuncia:

(...) é certo que o júri não faz parte de uma garantia elementar ao direito de
liberdade. (...) o direito à liberdade pode ser restringido pela aplicação da
pena, após o devido processo legal, perfeitamente possível perante o
imparcial juiz togado; logo, possuir ou não o júri, é única e tão-somente uma
51
decisão política, mas não uma garantia fundamental.

Este autor também deixa claro que em hipótese alguma se pode considerar
o tribunal do júri como uma garantia direta ao direito de liberdade, pois essa
conotação lhe iria conferir o errôneo caráter de órgão protetor do agente acusado da
prática de um delito.52

Em segundo lugar, como visto, Nucci expõe que o júri é defendido como a
manifestação do direito do cidadão de participação na administração da justiça do
país.53

Importa referir que José Afonso da Silva destaca os direitos fundamentais


como aqueles que nascem e se fundamentam no princípio da soberania popular.54

50
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 538.
51
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 55-56.
52
Ibidem, p. 202.
53
Ibidem, p. 55.
16

Logo, os defensores do júri poderiam argumentar que sua previsão no rol


dos direitos fundamentais representaria a soberania popular, lugar comum de todos
aqueles direitos.

Assim, a premissa maior agora identificada para legitimar o rito seria:


participar na administração da justiça, enaltecendo o princípio da soberania popular.

Aliás, já no parágrafo único do primeiro artigo da Constituição Federal há


previsão expressa de que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Na realidade este ideal advém da idéia de democracia, que por sua vez,
repousa sobre dois princípios: o da soberania popular, segundo o qual o povo é a
única fonte do poder, que se exprime pelo preceito de que todo poder emana do
povo; e o da participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja
efetiva expressão da vontade popular.55

Nesta perspectiva, Vasconcelos apresenta uma análise crítica da vinculação


do conceito de democracia com o júri, dissertando que: “Democracia e liberdade
foram de tal modo arraigados no conceito do júri, que, hoje, seus defensores não
concebem um regime democrático sem aquela instituição, como se democracia e
liberdade não pudessem sobreviver sem o júri.”56

Em conclusão assevera:

O júri, especialmente o do Brasil, dever ser suprimido, a bem dos interêsses


sociais, a bem da justiça, a bem da própria democracia e da liberdade, para
que não se associem ao conceito de liberdade e democracia seus efeitos
maléficos. (...). Nada no mundo prezamos tanto quanto a liberdade e, por
índole, amamos a democracia, mas entendemos que democracia e
liberdade poderão subsistir sem júri!57

54
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 180.
55
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 131.
56
VASCONCELOS, L.C., A supressão do Júri. Ceará: Editora Instituto do Ceará, 1955. p. 81.
57
Ibidem, p. 90.
17

Lopes Junior enfrenta este paradigma de forma contundente deixando claro


que: “o fato de sete leigos, aleatoriamente escolhidos, participarem de um
julgamento é uma leitura bastante reducionista do que seja democracia.”58. Conclui
que a tal “participação popular” é apenas um elemento dentro da complexa
concepção de democracia, que, por si só, não fundaria nada em termos de conceito.
Explica:

Democracia é algo muito mais complexo para ser reduzido na sua


dimensão meramente formal-representativa. Seu maior valor está na
dimensão substancial, enquanto sistema político-cultural que valoriza o
indivíduo em todo feixe de relações que ele mantém com o Estado e com
outros indivíduos. É fortalecimento e valorização do débil (no processo
penal, o réu), na dimensão substancial do conceito. E o fortalecimento do
indivíduo no processo penal se dá em duas dimensões: potencializando sua
posição e condições de fala no processo penal, através de contraditório e
ampla defesa (reais e efetivos) e na garantia de ser julgado por um juiz
59
natural e em posição de alheamento (terzietà).

Ainda, fundamenta que os jurados não têm representatividade democrática,


mesmo sob o ponto de vista da democracia formal (eleição entre os pares), pois são
membros de segmentos bem definidos, como funcionários públicos, aposentados,
donas-de-casa e estudantes, “enfim, aqueles que não têm nada melhor para fazer e
cuja ocupação lhes permite perder um dia inteiro (ou mais) em um julgamento.”60

Rangel também comenta que a liberdade é decidida por funcionários


públicos, profissionais liberais e estudantes, todos inseridos no sistema de um
mundo globalizado e excludente, em detrimento daqueles outros, em regra,
excluídos socialmente e desempregados, assim os iguais julgam os desiguais e os
debates se estabelecem em nível de exclusão pertencente a um pequeno grupo que
detém o poder. Enfim, a escolha é excludente e falece de legitimidade ética.61

Continua: “No júri, os iguais não julgam os iguais, basta verificar a formação
do conselho de sentença: em regra, funcionários públicos e profissionais liberais. E

58
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 139.
59
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 139.
60
Ibidem, p. 140.
61
RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 88-89, 96 e 98.
18

os réus? Pobres. Normalmente, traficantes de drogas e, excepcionalmente, Um de


nós.”62

Tubenchlak, se alinhando a este posicionamento, conclui:

Conforme já nos foi dado exemplificar, uma lista composta somente por
funcionários públicos é, sob o aspecto legal, idônea, mas não é
democrática, por eleger um setor da comunidade em detrimento dos
63
demais. De igual modo, a lista anual com Jurados “vitalícios”.

Poder-se-ia alegar, no entanto, que o réu, sendo “criminoso”, nunca seria


igual aos jurados, que são “pessoas de bem”.

Neste instante, não podemos esquecer que, quando os réus não pertencem
ao nosso convívio eles são criminosos, mas, quando pertencem, são garotos
travessos que cometeram travessuras e não crimes (como o caso do Índio Pataxó e
do garçom que foi covardemente agredido por jovens de classe média de
determinada cidade do Planalto Central).64

O Juiz é quem escolhe os jurados através do seu conhecimento pessoal ou


informação fidedigna (conforme art. 10 do Decreto 167, de 5 de janeiro de 1938), ou
seja, estamos no período democrático, mas o sistema ainda é o da ditadura: é o
dedo em cima dos que pertencem à sua sociedade, ao seu meio social. Nesse caso,
o júri, hodierno, carece de representatividade social, ferindo, inclusive, o princípio da
isonomia de todos perante a lei.65

Ainda, novamente citemos as palavras de Rangel, ante a clareza com que


expõe a questão:

Trata-se, na verdade, de uma luta entre classes que, sem que percebamos
ocorre diariamente no plenário do tribunal do júri. O leitor já viu um morador
do morro ou favela fazer parte do corpo de jurados? Não precisa ser do

62
Idem. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005.
p. 483.
63
TUBENCHLAK, James. Tribunal do júri: contradições e soluções. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 1997. p. 194.
64
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. p. 520-521.
65
Ibidem, p. 522.
19

mesmo morro ou favela do acusado por questões óbvias, mas uma pessoa
que conheça aquela realidade por viver e não por ler nos jornais? Não, claro
que não. Já viu o juiz enviar ofício à associação de moradores de uma
comunidade pobre solicitando nomes de pessoas, idôneas, para integrarem
o corpo de jurados? É obvio que não e a resposta Deles seria a seguinte:
não posso chamar para integrar o corpo de jurados pessoas que têm
proximidade com os possíveis autores do fato. Tenho que preservá-las.
Todavia, quando jovens de classe média alta espancam, por exemplo, um
índio ou garçom que estava trabalhando em um bar em um Estado da
Federação, quem os julga não são os integrantes daquela comunidade
indígena nem o sindicato dos garçons, óbvio, mas a classe média formada
por funcionários públicos e profissionais liberais que convivem com eles no
mesmo espaço, freqüentam o mesmo clube, cujos filhos estudam no
mesmo colégio e/ou faculdade.66

Desse modo, o sistema atual de escolha dos jurados representa na verdade


uma justiça de classe, partida, sem ética da alteridade, permanecendo o processo
de exclusão social a negar legitimidade na decisão do júri brasileiro.67

Caindo por terra estes dois fundamentos legitimantes abordados por Nucci
(direito à liberdade garantido pelo devido processo legal e a manifestação do direito
do cidadão de participação na administração da justiça do país), subsistem ainda
aqueles citados anteriormente no título correspondente (1 O argumento do júri como
direito fundamental).

Sobre o interesse de educar o povo sobre questões jurídicas, despertando


no povo e nos jurados a noção do direito e o senso de responsabilidade no dirigir de
sua conduta68, na realidade isto não é um direito fundamental, pois, se assim fosse,
também teríamos que ter no rol dos direitos fundamentais o interesse de educar o
povo sobre questões, por exemplo, de direito civil ou direito do consumidor. Muito
mais comum e útil seria ao povo saber quando existe direito possessório sobre
imóveis, ou quando tem direito a restituição de dinheiro sobre produtos defeituosos,
do que se um homicídio qualquer foi praticado para assegurar a impunidade de
outro, só para citar um exemplo.

66
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. p. 521.
67
Idem. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Júris, 2007. p. 111.
68
TORRES, op. cit., p. 20.
20

O povo deve conhecer seus direitos e deveres, mas isso se dá através de


educação, não julgando casos práticos, extremamente técnicos, que decidem a vida
de um terceiro, que por sinal, não tem culpa se um dos jurados não foi bem educado
sobre questões processuais penais.

Vascondelos critica:

Não sabemos que escola é essa, em que o júri, as mais das vêzes, longe
de refletir a opinião pública, escandaliza-a com absolvições inescrupulosas,
ou decide com extrema benevolência, quando não julga com excessivo
rigor, nas causas que afetam sua classe. Longe de ser um aprendizado,
suas decisões constituem um mau exemplo para os espíritos mal formados
69
e um estímulo para a prática delituosa.

Garófalo, em conclusão, já escreveu:

O jury é uma escóla que confirma pela experiencia de todos os dias o que já
entrou na consciencia popular: que a lei não é igual para todos, que os
poderosos a evitam e que só nos pobres e desprotegidos faz sentir a sua
70
acção!

Da mesma forma, dizer que o júri está cravado profundamente na


consciência popular é exagero, pois mesmo em países do sistema consuetudinário,
que cultivam o júri, as pesquisas indicam apenas que a população acredita que o júri
deve ser mantido, do mesmo modo que todo povo conservador também crê que
outras instituições seculares também precisam subsistir, porque na dúvida é melhor
manter do que extinguir.71

Note-se que estamos falando em direito consuetudinário. Talvez a chamada


consciência popular esteja homenageada justamente quando há uma melhor
aceitação das decisões do júri pela sociedade. No entanto, prevalecendo o direito
codificado, este argumento perde sua razão de ser, pois o mesmo povo que é
obrigado a seguir inúmeras leis escritas, termina por não aceitar quando o tribunal
do júri decide contra legem um caso individual que lhe é apresentado.72

69
VASCONELOS. op. cit., p. 79.
70
GAROFALO, R. Criminologia: estudo sobre o delicto e a repressão penal. Tradução de: Júlio
Matos. São Paulo: Teixeira e Irmão Editores, 1893. p. 439.
71
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 189.
72
Ibidem, p. 189-190.
21

Além do mais, o júri é um tribunal característico de países que adotam o


sistema da common law, jamais da civil law, ou seja, não é plausível que um país de
direito codificado como o Brasil consiga conviver harmoniosamente com um tribunal
de decisões essencialmente consuetudinárias.73

E, nas palavras de Nucci: “Além disso, para dar consciência cívica à


sociedade, há outras formas de fazê-lo, não sendo necessária a existência de um
órgão do Judiciário para tanto.”74

Torres também ressalta a importância do direito do povo de cooperar na


formação e aplicação das leis.75

No entanto, o povo pode participar sim da criação, modificação e aplicação


das leis quando exerce o papel representativo nos Poderes Legislativo e Executivo.

Além disso, os juízes togados, que recebem diariamente os reclames do


povo, fazem, modificam e aplicam as leis através de suas jurisprudências, na
proporção com que se desenvolve o pensamento social, o que, com o decorrer do
tempo, acaba por ser codificado em novas leis ou orientações jurisprudenciais.

Vasconcelos também aborda esta idéia legitimante do júri e critica o fato do


instituto servir de corretivo para leis iníquas:

(...) não é desrespeitando leis promulgadas pelos poderes constituídos que


se deve chamar a atenção para suas reformas. Há para isso os canais
competentes. Ademais, as decisões extra-legais servem também de mau
exemplo e fomentam o desrespeito às leis, diminuindo seu valor perante a
76
opinião pública.

Fundamento legitimante semelhante apresenta Cretella Júnior, que aduz


que a instituição do júri é uma das manifestações da soberania nacional, assim
como o voto em eleições, pois, se o povo tem o direito de votar por representantes

73
Ibidem, p. 191.
74
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 189.
75
TORRES, op. cit., p. 20.
76
VASCONCELOS, op. cit., p. 79.
22

na administração pública, Poderes Legislativo e Executivo, deve ter o direito de


julgar, Poder Judiciário, já que nas democracias a justiça emana do povo.77

Primeiramente, cabe mencionar o pensamento de Frederico Marques no


sentido de que: “O jurado não tem parcela alguma de mandato popular, pois que não
é escolhido pelo povo para o exercício de suas funções, (...) não representa parcela
alguma da sociedade.”78

Então porque o povo não poderia também julgar indiretamente através de


representantes eleitos?

Vasconcelos já respondera que:

(...) a experiência tem mostrado ser isso inconveniente porque, salvo em


países onde o povo adquiriu um certo grau de cultura, o sistema de eleição
dos juízes tem dado péssimos resultados, pois que, além de a eleição nem
sempre recair nos mais capazes e dignos, os juízes eleitos não oferecem
garantias de independência e imparcialidade, pois, via de regra, estão
79
presos aos políticos partidários e sujeitos às influências partidárias.

Não obstante essas observações, o que legitima verdadeiramente a atuação


dos juízes não é o fato de serem eleitos entre seus pares (democracia formal), mas
sim a posição de garantidores da eficácia do sistema de garantias da Constituição
(democracia substancial).80

O Juiz não tem por que ser um sujeito representativo, posto que nenhum
interesse ou vontade que não seja a tutela dos direitos subjetivos lesados deve
condicionar seu julgamento. Sequer o interesse da maioria ou da totalidade dos
lesados deve condicionar o julgamento do Juiz, pois, ao contrário do Executivo ou do
Legislativo, poderes da maioria, o Poder Judiciário julga em nome do povo81, que
exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um

77
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 468-469.
78
MARQUES, op. cit., p. 88.
79
VASCONCELOS, op. cit., p. 74.
80
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 139.
81
Ibidem, p. 140.
23

determinado ordenamento jurídico82, não da maioria, senão que para a tutela da


liberdade das minorias.83

Em outras palavras:

A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da


Constituição e não da vontade da maioria. O juiz assume uma nova posição
dentro do Estado de Direito e, a legitimidade de sua atuação não é política,
mas constitucional, e o seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos
direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia
dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial (e não
84
meramente formal).

Além disso, de nada serviria um Juiz eleito, se não lhe damos as garantias
orgânicas da magistratura e exigimos que assuma sua função de garantidor.85

Para ratificar este posicionamento, Ferrajoli ensina:

O juiz não deve ter qualquer interesse, nem geral nem particular, em uma
ou outra solução da controvérsia que é chamado a resolver, sendo sua
função decidir qual delas é verdadeira qual é falsa. Ao mesmo tempo ele
não deve ser um sujeito “representativo”, não devendo nenhum interesse ou
desejo – nem mesmo da maioria ou da totalidade dos cidadãos –
condicionar seu julgamento que está unicamente em tutela dos direitos
subjetivos lesados (...), contrariamente aos poderes executivo e legislativo
que são poderes da maioria, o juiz julga em nome do povo, mas não da
86
maioria, em tutela das liberdades também das minorias.

Em outro trecho, se referindo ao Poder Judiciário, continua:

(...) ele não é representativo, mas sujeito somente à lei e obrigado a buscar
o verdadeiro, quaisquer que sejam os sujeitos julgados e contingentes
87
interesses dominantes. O juiz, diversamente dos órgãos dos Poderes
88
Legislativo e Executivo, não deve representar nem maiorias nem minorias.

No que diz com o intuito político de construir democracia por decreto89, ou


um amparo à ânsia de ver retornar regimes ditatoriais 90, se na época da edição da

82
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 76.
83
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 140.
84
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 140.
85
Ibidem, p. 140.
86
FERRAJOLI, op. cit., p. 534.
87
Ibidem, p. 535.
88
Ibidem, p. 548.
89
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 57.
24

Constituição de 1988 procurou-se reforçar abrigo contra outros regimes ditatoriais,


se deve destacar, primeiramente, que outras proteções, muito mais amplas, já
estavam previstas contra regimes totalitários naquela Carta Magna e que, em
segundo lugar, a razão de ser do júri, como já destacado, nos remete a épocas
tirânicas, não mais vividas no regime democrático brasileiro.

Na Inglaterra, berço do júri moderno, o que se quis com a realização do júri


foi retirar das mãos do rei o poder de decidir.91

Retirava-se assim a atribuição do Poder Executivo julgar e não do Poder


Judiciário.

Portanto, a relevância histórica do júri é inegável, mas tal força deixou de ser
uma marca a partir do momento em que o Judiciário tornou-se independente e
passou a ser constituído de homens probos e libertos do jugo governista, não sendo
atualmente a única instituição privilegiada de aplicar a lei ao caso concreto.92

Em outras palavras, com um Poder Judiciário independente e imparcial,


julgamentos democráticos podem ocorrer dentro ou fora do tribunal do júri.93

Além disso, o júri é órgão do Poder Judiciário e este sim é o grande defensor
do povo contra os eventuais abusos do Estado, sendo justamente por isso que a
Constituição menciona que nenhuma lesão será excluída da apreciação do Poder
Judiciário.94

Assim, hoje em dia, países nitidamente avançados em matéria de liberdades


públicas têm abandonado esse sistema de julgamento, adotando formas alternativas

90
Ibidem, p. 57.
91
RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 90.
92
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 186.
93
Ibidem, p. 189.
94
Ibidem, p. 190.
25

de participação popular nos negócios da justiça, tais como o escabinato e o


assessorado.95

Ademais, não é verdade de que o júri próprio tem ressalvado a liberdade


ante governos tirânicos, pois em diversos países isso não é posto em prática.96

Garófalo menciona exemplos onde o júri não tem assegurado a liberdade


apregoada:

Nas provincias napolitanas o terror dos camorristas é tal que para obter a
condemnação d’elles é necessário fazel-os julgar em terra muito distante
d’aquella em que o crime foi praticado. O mesmo succede em Sicilia
relativamente aos attentados em que entra a Mafia. Na Romania é muito
difficil, pelo medo que inspiram os contrabandistas, fazer condemnar os
crimes de sangue quando as victimas são guardas fiscaes.97

Este mesmo autor conclui ainda que foi por preconceito que se quis adotar o
júri em quase todos os Estados que tem uma Constituição livre98, pois, se realmente
livre é a Constituição, mesmo que abolido o júri, os princípios liberais ficariam
intactos.99

Segundo José Afonso da Silva, o júri estaria inserido no rol já mencionado


porque ali estariam implantadas as garantias que visam tutelar a liberdade pessoal,
tratando-se de uma proteção contra atuações arbitrárias, pois outro tribunal não
pode reformar o mérito da decisão do júri, podendo apenas anular o processo por
vício de forma, sem mudar, no entanto, o mérito do julgamento.100

Contudo esta “proteção” enclausura o julgamento do mérito nos crimes


dolosos contra vida, não podendo ser revistos por outro tribunal, somente pelo
próprio tribunal do júri.

95
Ibidem, p. 185.
96
VASCONCELOS, op. cit., p. 77.
97
GAROFALO, op. cit., p. 431.
98
Ibidem, p. 421.
99
Ibidem, p. 443.
100
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 439.
26

Se poderia alegar, não obstante, que existe a possibilidade da realização de


um novo julgamento, baseando-se na previsão do artigo 593, inciso III, alínea ‘d’, do
Código de Processo Penal, quando a decisão for manifestamente contrária à prova
dos autos, seja ela condenatória ou absolutória.

Mas, ainda neste caso, como ressalta Lopes Júnior, “Esse ‘novo’ júri será
composto por outros jurados, mas como o espetáculo será realizado pelos mesmos
‘atores’, em cima do mesmo ‘roteiro’ e no mesmo cenário, a chance de o resultado
final ser igual é imensa.”101

Se novamente os jurados decidirem de forma manifestamente contrária à


prova dos autos (condenatória ou absolutória) poderia haver um novo recurso?

Lopes Júnior responde: “Não, pois a última parte do parágrafo terceiro do


art. 593 veda expressamente essa possibilidade. Logo, se no segundo júri eles
decidirem novamente contra a prova dos autos, não caberá recurso algum.”102

Assim, autoriza-se aos jurados o papel de julgar completamente fora da


prova dos autos sem que nada possa ser feito, possuindo assim um poder de tornar
o quadrado, redondo, com plena tolerância dos Tribunais e do senso comum teórico,
que limitam-se a argumentar, fragilmente, com a “supremacia do júri”, como se essa
fosse uma verdade absoluta, inquestionável e insuperável.103

Desta maneira, o princípio do duplo grau de jurisdição, garantia básica no


processo penal104, é claramente violado no tribunal do júri, isso porque não é
permitido ao réu o direito de buscar o reexame da causa por órgão jurisdicional
superior, mas sim ao mesmo órgão, sob as mesmas condições: o tribunal do júri e
seu corpo de jurados.

101
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 143.
102
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 144.
103
Ibidem, p. 144.
104
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado: Estudo integrado com
Direito Penal e Execução Penal, Apresentações Esquemáticas da matéria. 5. ed. rev. atual.
ampl. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006. p. 54.
27

Ainda defendendo a previsão constitucional da instituição, Tourinho Filho


ressalta o caráter protetor do direito de liberdade do ponto de vista dos jurados, pois
não estão presos à lei.105

Esta liberdade trata, lembra Castro, da desnecessidade de fundamentação


dos votos pelos jurados, o que será, juntamente com a idéia de se tratar de um
direito de ser julgado pelos seus semelhantes, pois um conselho que emana do
povo106, pertinentemente tratado no subtítulo a seguir.

Em outras palavras, o que se viu até aqui é que tudo aquilo que o júri
procura assegurar senão é merecido ser assegurado, por não ter razão de assim o
ser, já está protegido na própria Constituição, com normas genéricas com até maior
amplitude de garantias, levando-nos a crer, portanto, que o instituto do tribunal do
júri não passa de mera forma procedimental, não havendo argumentos que
justifiquem sua permanência no rol dos “Direitos e Garantias Fundamentais”.

Nesse sentido e à guisa de conclusão, Ferreira Filho comenta o tema


criticando a permanência de regras que ficariam melhor no Código de Processo ou
no Código Penal, mas que foram constitucionalizadas, mesmo sendo dispositivos de
importância menor, incluindo-se neste rol o júri.107

3.2 DESCONSTITUINDO O ARGUMENTO DO “DIREITO” DO POVO DE PARTICIPAR DAS


DECISÕES JUDICIAIS (JULGAMENTO PELOS PARES)

Outrora abordada a falta de legitimidade do júri para constar no rol dos


direitos fundamentais previstos na Carta Magna, agora se procura desconstituir a
tese de que a legitimidade de manutenção de tal organismo se dá em virtude da
necessária presença do povo nas decisões que, nunca é demais lembrar, não
precisam motivar sua decisão.

105
TOURINHO FILHO, op. cit., p. 95.
106
CASTRO, op. cit., p. 45.
107
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 11ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1982. p. 286.
28

Inicialmente, quanto ao destaque feito por Moraes ao fato de que ser julgado
pelos semelhantes é uma prerrogativa democrática108, como já fundamentado no
subtítulo anterior, isto é uma idéia reducionista do que representa a democracia.

No que diz com a justiça emanar do povo109 que pode decidir e ser julgado
como e por pessoas comuns, formadas em um conselho naquela comunidade,
acostumadas com os hábitos regionais e não viciados à prática jurisdicional110,
argumentos utilizados por Cretella Júnior e Bueno, tal fundamentação também não
oferece subsídios suficientes para legitimar o júri.

Primeiramente porque o Juiz togado sai do povo. É da comunidade. Faz


parte deste mundo. O Juiz não é um ser que não vive a realidade. Muito pelo
contrário, esta idéia é retrograda, pois cada vez mais os Juizes estão imersos na
vida social de uma comunidade e realmente preocupados com ela. E, se a eles é
investida tal confiança, porque não assumiriam tal responsabilidade? E porque razão
os leigos assumiriam?

Na mesma dúvida se encontra Vasconcelos que aduz não saber porque o


júri deve ser melhor defensor dos direitos e das liberdades do povo do que os juízes
togados, pois os últimos são escolhidos dentre os que abraçam a carreira jurídica e
cuja função específica de julgar lhes proporciona cultura e experiência no trato das
causas e dos homens.111

Ainda, na mesma linha, contra-argumentando os defensores do júri que


alegam que o Juiz togado vive em mais contato com os livros do que com o povo e
que o hábito de lidar com crimes e criminosos incute-lhe na imaginação a idéia de
que todo acusado é criminoso, acabando, por torná-lo inflexível e parcial, enquanto
os jurados escapam à rotina profissional e refletem melhor a opinião pública,
julgando casualmente, sem idéias preconcebidas, Vasconcelos critica:

108
MORAES, op. cit., p. 110.
109
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 468-469.
110
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Apontamentos sobre o processo
criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Empr. Nacional do Diário, 1857. p. 38-39.
111
VASCONCELOS, op. cit., p. 75.
29

Esquecem, porém, que os juízes saem dentre o próprio povo e que, na


atualidade, conceber um juiz isolado do povo, lidando apenas com livros e
processos, é o mesmo que conceber um Robinson Crusoe na sociedade
moderna. Os juízes, hoje, compartilham com o povo de seus problemas e
de suas dificuldades. Mas, se se admitisse o perigo da rotina profissional e
o rigor exagerado das decisões dos juízes togados, não se poderia
esquecer que, de suas decisões, cabe sempre recurso para um tribunal
superior e que o julgamento pelo júri oferece perigo maior para o acusado,
para a sociedade e para a justiça, porque não há coerência, nem
uniformidade de critério nos seus julgamentos, pois êstes são proferidos por
sentimento, e a justiça ou injustiça da decisão do júri, num mesmo caso,
dependerá do modo como a sorte permitir a formação do conselho de
112
sentença.

Continua, referindo-se à opinião pública e a forma com que é absorvida


pelos juízes togados:

Os juízes que digam qual o proveito que tiram do contacto com os jurados e
suas decisões... Se as decisões do júri raramente traduzem a opinião
pública e se raramente encarnam o verdadeiro espírito de justiça, que
exemplo poderia dar o júri para os juízes togados, a quem usurpa a função
113
de julgar?

Quanto ao discurso, analisado por Tornaghi, de que sete pessoas decidem


com maior coerência um caso ao invés de uma única pessoa114, parece-nos, no
mínimo, equivocado, pois é preferível ser julgado por um especialista ao ser julgado
por sete leigos.

A este respeito Vasconcelos já indagou:

Que justiça é essa que proíbe o exercício da medicina, da odontologia, da


farmácia, da engenharia, aos que não adquirirem as habilitações exigidas
em cada um dêsses ramos do saber humano e confia a defesa da
sociedade, em relação ao crime (!), a pessoas inteiramente leigas?115

Não é necessário maior esforço para reconhecer que a margem de erro é


infinitamente maior no julgamento realizado por pessoas que ignoram o direito em
debate e a própria prova da situação fática em torno do qual gira o julgamento, e,
como se não bastasse, são detentoras do poder de decidir de capa-a-capa e mesmo
“fora-da-capa” do processo, sem qualquer fundamentação.116

112
Ibidem, p. 75-76.
113
VASCONCELOS, op. cit., p. 80.
114
TORNAGHI, Hélio. Compêndio de processo penal. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1967. 4 v. p. 255.
115
VASCONCELOS, op. cit., p. 86.
116
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 145.
30

Garófalo no mesmo passo disserta:

Mas por muito pouco aptos que sejam os juristas penaes, elles são sempre
preferiveis, todavia, aos jurados designados pela sorte, expediente infeliz de
epochas barbaras perpetuado até aos nossos dias como instituição
117
inseparavel da liberdade politica de um paiz.

E, nos dizeres de Lopes Júnior:

É como querer comparar a margem de erro de um obstetra e sua equipe,


numa avançada estrutura hospitalar de uma grande capital, com a de uma
parteira, isolada em plena selva amazônica. É óbvio que o risco está
sempre presente, mas com certeza a probabilidade de sua efetivação é
bastante diversa. E se a parteira, em plena selva amazônica, é útil e
necessária, diante das inafastéveis circunstâncias, o mesmo não se pode
dizer do Tribunal do Júri, instituição perfeitamente prescindível.118

Em outro momento, Lopes Júnior afirmou, entre outras, polêmicas, mas


nunca mal fundamentadas colocações, que os jurados estariam para o direito assim
como os curandeiros estariam para a medicina.119

A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao mais


complexo desconhecimento do processo e de processo são graves inconvenientes
do tribunal do júri, o que não significa idolatrar o Juiz togado, mas sim compreender
a questão a partir de um mínimo de seriedade científica, imprescindível para o
desempenho do ato de julgar.120

Assim, de um modo geral, parece curioso em uma época de especialização


de conhecimentos e de divisão de trabalho, a reserva do julgamento penal a homens
escolhidos à sorte, sem garantia alguma de cultura geral ou de reflexão, entregando
a decisão entre opiniões diferentes sobre, por exemplo, um caso de
envenenamento.121

117
GAROFALO, op. cit., p. 421.
118
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 146.
119
Idem. Colocação exposta na III Jornada Lia Pires de Tribunal do Júri: delito, direito e sociedade,
ocorrida entre os dias 24 e 26 de abril de 2006. Palestra: Instrumentalidade garantista e
Tribunal do Júri, no dia 24 de abril de 2006, anotação feita por Raccius Twbow Potter.
120
Idem. Introdução crítica ao processo penal: (fundamentos da instrumentalidade
garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 141.
121
GAROFALO, op. cit., p. 422.
31

Os jurados não têm conhecimento legal e dogmático mínimo para a


realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e
processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova, que
exige uma prévia cognição e compreensão da complexidade jurídica, sendo
inadmissível o empirismo trivial empregado pelo júri.122

Após narrar alguns erros e contradições que presenciou, Garófalo ainda


dissertou:

Comprehendi então a difficuldade capital em que se encontram os jurados


sem cultura jurídica de perceberem um discurso, ainda mesmo claro, de um
juriscunsulto, assim como a difficuldade por parte d’este de suppor ignorado
o sentido das palavras e phrases jurídicas mais elementares. Mas, se não
usasse d’essas palavras e phrases, como poderia fallar? E, n’uma
legislação codificada, como evitar nos debates definições e palavras
123
abstractas e rituaes, incomprehensiveis para os jurados?

Aliás, segundo pesquisa realizada com os jurados do 3º tribunal do júri de


São Paulo, 47,91% dos entrevistados entenderam que para ser jurado e dar
decisões no tribunal do júri seria necessário conhecimento jurídico, contra 43,03%
que entendiam contrariamente e 9,06% que foram indiferentes ou não
responderam.124

Ou seja, os próprios jurados concordam que não estão aptos a efetuar a


difícil tarefa de julgar.

Quanto, ainda, conforme defende Bueno, à alegada sensibilidade, equilíbrio


e independência dos jurados, não sofrendo influência política governamental que os
Juizes togados sofreriam125, cabe destacar que todos nós somos influenciáveis por
tudo e todos que estão a nosso redor, mas o simples fato da vida do réu estar sendo
decidida por pessoas que não precisam justificar seus votos deixa-os ainda mais a
vontade para votar “viciados”.

122
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 141.
123
GAROFALO, op. cit., p. 427.
124
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 338.
125
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Apontamentos sobre o processo
criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Empr. Nacional do Diário, 1857. p. 38-39.
32

Assim, através das experiências pessoais que já passaram; do alcance das


atitudes do juiz (quando pronuncia, adita a denúncia ou colhe provas); da má
influência dos artigos 59 (antecedentes, conduta social, personalidade do agente,
etc) e 63 (reincidência) do Código Penal; da notícia sensacionalista vinculada na
mídia; da concepção cênica que se forma em plenário, sempre em desfavor do réu;
ou ainda, da possível corrupção que possa ocorrer favorecendo uma ou outra parte,
os jurados estão muito mais suscetíveis a se corromperem do que os juízes togados.

Ratificando este posicionamento:

É o famigerado princípio da íntima convicção em desarmonia com a


Constituição da República (art. 93, IX), que exige que toda e qualquer
decisão judicial seja fundamentada, sob pena de nulidade, e a do júri não
pode fugir desse imperativo. Se assim o fosse, dar-se-ia transparência às
decisões do júri. A experiência do jurado (leia-se o medo o qual já sentiu)
leva-o a decidir sobre a vida do outro, porquanto, naquele momento, seja
diferente dele, mas é que um dia a localização processual pode se
126
inverter.

E sobre a influência midiática:

O Juiz leigo (...), vai decidir, no júri, por íntima convicção, sem dar seus
motivos e sem, necessariamente, vincular-se à lei. Daí porque é
extremamente sensível à opinião pública. (...). Eis por que é maléfica a
atuação da imprensa na divulgação de casos sub judice, especialmente na
esfera criminal e, pior ainda, quando relacionados ao Tribunal do Júri.
Afinal, quando o jurado dirige-se ao fórum, convocado para participar do
julgamento de alguém, tomando ciência de se tratar de “Fulano de Tal”,
conhecido artista que matou a esposa e que já foi “condenado” pela
imprensa e, conseqüentemente, pela “opinião pública”, qual isenção terá
para apreciar as provas e dar o seu voto com liberdade e fidelidade às
provas?127

Se antigamente, quando da Revolução Francesa, não havia independência


efetiva dos juízes, sendo melhor o julgamento feito pela própria sociedade128, hoje
os juízes togados são muito menos suscetíveis a pressões e influências políticas,
econômicas e, principalmente, midiáticas, na medida que são fortalecidos pelas

126
RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 31.
127
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 104.
128
Ibidem, p. 33.
33

garantias orgânicas da magistratura: a vitaliciedade, inamovibilidade e a


irredutibilidade de vencimentos.129

Vasconcelos arrazoa:

E, se se apontar a possibilidade de cederem certos juízes, a trôco de


favores governamentais, o mesmo se poderia dizer dos jurados, que nada
têm a perder e entre os quais a corrupção pode medrar mais fàcilmente,
além de estarem mais expostos às influências da imprensa e à arrebatada
130
eloqüência dos advogados.

Garófalo, sobre a corrupção entre os jurados, denuncia:

(...) corre a opinião de que os officiaes de justiça recebem dinheiro para


perpetuamente excluírem do sorteio alguns jurados ou, em dados casos,
mediante attestados de doença deixados em branco; igualmente se crê que
existe nas mãos de empregados inferiores do fôro penal um registro
alfabetico em que são collocados, ao lado do nome de cada jurado, o seu
carcter e as suas relações. N’esse registro fariam estudo os advogados que,
segundo se diz, pleiteiam fora do tribunal e junto de cada jurado a causa
131
dos clientes. (...). Em alguns pontos da Italia, a funcção de jurado é um
mister lucrativo: ha jurados cuja tarifa varía segundo se lhes exigem
attenuantes ou plena absolvição.132

No que diz com a possibilidade de serem corrompidos, este mesmo autor


nega a equiparação entre os juízes togados e os jurados, já que os Juizes de
carreira têm um nome a salvaguardar e uma posição social a manter. Tem de evitar
leves suspeitas e, ainda quando de índole pouco honesta, será reto por
necessidade, por cálculo, porque lhe é benéfica a fama de virtuoso e, agindo com
descrédito, a perderia.133

Por outro lado, o jurado é desconhecido e seu arbítrio é pleno. Terminado o


julgamento confundir-se-á na multidão de que saiu e onde ninguém poderá segui-lo
para pedir-lhe contas da possível injustiça praticada: “Quem não vê que este terreno
é o mais propicio á corrupção?”134

129
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 140.
130
Ibidem, p. 77.
131
GAROFALO, op. cit., p. 428.
132
Ibidem, p. 438.
133
Ibidem, p. 431.
134
Ibidem, p. 432.
34

Por fim, afora influencias externas, cabe destacar que em plenário, vários
fatores podem exercer controle sobre a decisão dos jurados, sendo imensurável a
diferença da facilidade com que um julgamento por Juizes leigos torna-se parcial
com aquele decidido por Juiz togado:

Equiparar o julgamento realizado pelos juízes leigos, muito influenciados


pela aparência, pelos mínimos gestos, pelas palavras mais singelas e pelo
comportamento apresentado em plenário por qualquer das partes,
especialmente pelo réu, ao realizado pela magistratura togada é, no
mínimo, irresponsável. O juiz tem condições de separar em sua mente –
ainda que seja difícil, pois também é ser humano e, por isso, falível – o mau
comportamento de um réu em audiência da prova de sua culpa, extraída do
processo; tem possibilidade de desprezar a palavra mais ríspida que lhe foi
dirigida pelo defensor em algum momento processual, sem que isso possa
prejudicar o interesse do acusado; consegue, esforçando-se para isso,
distinguir as pessoas físicas do réu e do advogado das figuras processuais
de acusado e defensor. Não porque o magistrado seja superior aos jurados,
mas porque seu conhecimento técnico fornece-lhe os instrumento para
fazê-lo, além de suas decisões serem submetidas, sempre, ao duplo grau
135
de jurisdição.

No que diz com a colocação de Tourinho Filho sobre os jurados não terem
de ficar presos às provas processuais ou justificativas jurídicas para absolvição ou
condenação136, bem como, segundo Tornaghi, que o júri é preferível nos
julgamentos em que a motivação tem maior importância, pois o jurado é quem
melhor avalia os motivos do crime em determinado ambiente137, na realidade, este
fator nem pode ser considerado positivo para o julgamento.

Em primeiro lugar, ficar preso às provas processuais não é algo prejudicial,


mas sim benéfico ao réu, pois nada mais se está do que seguindo os princípios da
legalidade e do devido processo legal.

Em segundo lugar, tentar determinar que no júri a fundamentação é o que


tem maior importância e por isso seria melhor alguém que não precisasse justificar
sua motivação para julgar, já que estaria livre para tomar decisão importante
também não merece prosperar, pois se tem importância é que deveria estar
presente a motivação.

135
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 158.
136
TOURINHO FILHO, op. cit., p. 98.
137
TORNAGHI, Hélio. Compêndio de processo penal. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1967. 4 v. p. 255.
35

Importante ressaltar a visão dada por Bueno, quando aduz que em todo
julgamento há duas operações: a do fato e a do direito. Este autor argumenta que a
primeira operação é simples, demanda apenas o bom senso e sincera expressão da
convicção pessoal, enquanto que a segunda, operação do direito, demanda
conhecimento profissional, ciência e inteligência das leis, e o reconhecimento da
disposição do direito prévio à hipótese dada.138

Para ele, representa uma grande vantagem a separação das duas


operações, principalmente se tratando de matéria criminal, pois o povo pode decidir
as operações de fato, sem o inconveniente de questões complexas e difíceis da área
cível, e é a parte que ainda mais interessa à sociedade.139

No entanto, com esse discurso, além de menosprezar o valor e


complexidade das discussões penais ante àquelas de direito civil, o autor está
generalizando as questões de fato da área penal, como se facilmente pudesse
qualquer pessoa analisar os ilícitos nos caso práticos.

E, como ressalta Vasconcelos, o julgamento do fato não é simples,


dependendo de “uma operação lógica, que exige reflexão, raciocínio rápido,
tirocínio, espírito crítico e grau de percepção das coisas. Sem isso, decidi-se, mas
não para fazer justiça.”140

Este mesmo autor ainda lembra que há casos em que se impossibilita


separar o fato do direito, pois o julgamento de um implica o julgamento do outro,
como nas ocorrências de qualificação do crime ou dos crimes de falsidade
ideológica, quando o seu julgamento é da competência do júri.141

Continua fundamentando que, mesmo que fosse restringida a competência


do júri aos crimes em que fosse possível fazer a separação do fato e do direito, ou,
138
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Direito público brasileiro e a análise
da constituição do Império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. 2 v. p. 331.
139
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Direito público brasileiro e a análise
da constituição do Império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. 2 v. p. 331.
140
VASCONCELOS, op. cit., p. 84.
141
Ibidem, p. 84.
36

se não fosse restringida, nos primeiros proporcionaria tratamento desigual no


julgamento, pois uns passariam a ser julgados por juízes togados e outros pelo júri
e, nos últimos, ocasionaria um julgamento de matéria de direito por parte de quem
“não entende de direito, o que equivale a dizer oficializaria o julgamento
inconsciente.”142

No mesmo sentido:

A missão de julgar requer profissionalismo e preparo, não podendo ser feita


por amadores. É impossível constituir um grupo de jurados preparados a
entender as questões complexas que muitas vezes são apresentadas para
143
decisão no Tribunal do Júri.

Majoritariamente, o tribunal do júri é considerado órgão do Poder


Judiciário.144

Sendo assim, não fundamentar a decisão significa quebrar a orientação


constitucional do artigo 93, inciso IX, quando prevê que “todos os julgamentos dos
órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob
pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença,
em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;”

Como cita Lopes Júnior: “O golpe fatal no júri está na absoluta falta de
motivação do ato decisório.”145

Mais uma vez se valendo de analogia, não fundamentar a decisão seria


como um médico receitar um remédio para uma doença que ele desconhece ou,
conhecendo, não revela ao paciente.

A motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial. Não


se trata de demonstrar erudição jurídica e jurisprudencial ou discutir obviedades, e

142
Ibidem, p. 85.
143
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 183.
144
Idem. Código de Processo Penal Comentado: Estudo integrado com Direito Penal e
Execução Penal, Apresentações Esquemáticas da matéria. 5. ed. rev. atual. ampl. São
Paulo: Rev. dos Tribunais, 2006. p. 667.
145
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 142.
37

sim explicar o porquê da decisão, o que levou a tal conclusão sobre autoria e
materialidade.146

Deve-se motivar sobre a matéria fática, pois a motivação demonstra o saber


que legitima o poder. A pena somente pode ser imposta a quem racionalmente pode
ser considerado autor do fato criminoso imputado.147

Portanto, a decisão dos jurados é absolutamente ilegítima porque carece de


motivação, não havendo menor justificação para seus atos, tratando-se de puro
arbítrio, no mais absoluto predomínio do poder sobre a razão.148

E, como cita Lopes Júnior: “poder sem razão é prepotência.”149

A afirmativa “sim” e a negativa “não” corrobora o vetusto sistema da íntima


convicção do júri, uma verdadeira afronta ao princípio constitucional da motivação
das decisões judiciais, pois “Julgar de acordo com a consciência e os ditames da
justiça significa o quê e como deve julgar, mas ao dizer ‘sim’ ou ‘não’ não motiva a
decisão.”150

Rangel aprofunda:

Não faz sentido que o poder emane do povo e seja exercido em seu nome,
por intermédio dos seus representantes legais, mas quando diretamente o
exerça não o justifique para que possa lhe dar transparência. Todos atos do
Poder Judiciário devem ser motivados, e o júri não pode fugir dessa
151
responsabilidade ética.

É que, o júri, quando do seu surgimento, justificava a ausência de motivação


em virtude de todos conhecerem tudo a respeito do fato. Contudo, na sociedade

146
Ibidem, p. 142.
147
Ibidem, p. 142-143.
148
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 143.
149
Ibidem, p. 143.
150
RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 123.
151
Ibidem, p. 124.
38

atual, não há espaço para uma decisão sem arrimo e justificativa em meio idôneo de
prova, razão pela qual também se deve refutar o sistema de íntima convicção.152

A situação se agrava se considerarmos que a liberdade de convencimento,


vale lembrar, imotivado, é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos
que não estão no processo, pois a íntima convicção, despida de qualquer
fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de
qualquer elemento.153

Complementando:

Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela


“cara”, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência
física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento,
enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor
que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer
fundamentação. A amplitude do mundo extra-autos que os jurados podem
lançar sepulta qualquer possibilidade de controle e legitimação desse
154
imenso poder de julgar.

Ou, em outras palavras:

Esse sistema, ao desobrigar o julgador de demonstrar a consonância da


sua decisão com a verdade obtida pela atividade contraditória, dialética, das
partes, extingue qualquer fronteira porventura existente entre a
discricionariedade e a arbitrariedade na atividade jurisdicional,
possibilitando aos integrantes do Conselho manipular os fatos e o direito
como melhor lhes aproveite, julgando o fato da vida a eles apresentado,
consoante critérios puramente subjetivos, pessoais e, quando não, formar o
seu convencimento a partir de elementos não só estranhos aos autos, mas
estranhos, inclusive, ao ilícito que ao acusado se imputa. Faz, em outras
palavras, dada a natureza instrumental do dever de motivar
adequadamente, letra morta os princípios garantidores de um Direito Penal
da liberdade, em especial, o princípio da estrita legalidade; torna inúteis e
mero exercício de retórica os princípios fundamentais de um modelo
processual penal acusatório, garantista.155

Rangel explica ainda que não há compatibilidade entre a íntima convicção


adotada no tribunal do júri e o princípio constitucional da motivação das decisões

152
Ibidem, p. 124-125.
153
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 143.
154
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 143.
155
ALBERNAZ, Flávio Böechat. O Princípio da Motivação das Decisões do Conselho de Sentença.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 19, p. 55, jul/set. 1997.
39

judiciais e, também abordando sob o prisma da necessária filtragem constitucional


das normas processuais, elucida:

A sociedade tem o direito de saber as razões pelas quais um de seus


membros foi absolvido ou condenado. O réu tem o direito de saber as
razões de sua condenação. Trata-se de um imperativo constitucional que
fulmina de nulidade o ato que emanar do judiciário sem fundamentação.(...).
A motivação é exatamente o freio para se impedir o arbítrio. (...). O prático
não consegue olhar para a Constituição e aplicá-la às normas legais
ordinárias. Fica preso às regras do código e tenta interpretar a Constituição
de acordo com o Código, e não o contrário. A lei (processual) não é um ímã
magnético que prende o intérprete as suas normas, mas sim um trilho que o
faz deslizar para chegar a um resultado constitucional de sua aplicação. É o
primeiro passo, não o último.156

E conclui:

Dessa forma, entendemos que a decisão do Tribunal do Júri deve ser


fundamentada para ser compatível com a Constituição, a fim de nos
afastarmos de forma efetiva do arbítrio e do despotismo que inspira regimes
autoritários. (...). A fundamentação é um instrumento de controle de que
dispõe a sociedade sobre as decisões judiciais, evitando os excessos e os
abusos por parte dos órgãos estatais, limitando o exercício do poder. É um
adeus ao passado fascista.157

A alegação, emitida por Bueno, de que o júri eleva o sentimento civil da


158
nação , também não merece prosperar, pois se o objetivo do júri fosse elevar o
sentimento civil da nação, não deveria ser obrigatório.

Rangel já mencionou que: “A função do jurado, no Brasil, não é um exercício


de cidadania, como nos EUA, mas um serviço obrigatório, razão pela qual o cidadão
não pode se furtar à participação no júri, salvo nos casos expressos em lei.”159

Ainda, dissertou que ser jurado deveria ser direito fundamental de todo e
qualquer cidadão e não obrigatoriedade aos maiores de vinte e um anos com notória
idoneidade, pois “Isso, por si só, não é o suficiente para entregar nas mãos do outro

156
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. p. 454-455.
157
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 9. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. p. 455.
158
BUENO, José Antônio Pimenta, Marquês de São Vicente. Apontamentos sobre o processo
criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Empr. Nacional do Diário, 1857. p. 39.
159
RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 98.
40

a vida humana como bem maior que deve ser preservado, sem que haja uma maior
responsabilidade de quem julga.”160

Vasconcelos ao encontro deste raciocínio assevera:

Ademais, se se entende que a instituição do júri deve ser mantida em


benefício e em nome do povo para que e porque forçá-lo a tomar parte nos
serviços do júri, sob ameaças de penalidades? Se é em nome do povo que
se defende a instituição, porque não acorre livremente o próprio povo às
sessões de julgamento, para atender a sua convocação? Será por falta de
compreensão do cumprimento do dever? (...). Não se poderia interpretar a
falta de cooperação do povo nos serviços do júri, não como uma falta de
compreensão do cumprimento do dever legal, mas como um repúdio à lei
que, abusivamente, em seu nome, decreta a instituição?161

Para demonstrar na prática tal posicionamento, tome-se como base a


pesquisa realizada junto aos jurados do 3º tribunal do júri de São Paulo onde,
59,76% dos entrevistados responderam que não seriam jurados espontaneamente,
sem ter sido convocados e, de acordo com 48,78%, o serviço prestado à Justiça
pelos jurados deveria ser remunerado, contra 34,32% de entendimento contrário e
16,9% que foram indiferentes ou não responderam.162

Outro fundamento para existência do júri, mencionado por Tornaghi, é


aquele de que as leis também não são feitas por especialistas163, bastando a
sabedoria da vida, deixando de lado a lei em preponderância à justiça, mas,
conforme visto, este argumento já foi rebatido em subtítulo diverso (3.1
Desconstituindo o argumento do júri como direito fundamental) quando devidamente
foram apresentados contra-argumentos a esta premissa.

Não obstante, a sabedoria da vida, deixando de lado a lei em


preponderância à justiça, na verdade é o mesmo discurso que prega o saber do
homem simples, que desta forma é abordado por Lopes Júnior:

160
Ibidem, p. 115.
161
VASCONCELOS, op. cit., p. 74-75.
162
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 330-331.
163
TORNAGHI, Hélio. Compêndio de processo penal. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1967. 4 v. p. 251-
256.
41

Com certeza, é bastante sedutor o discurso manipulado em torno do “saber


do homem simples”, mas é demagógico e busca apenas desviar o eixo da
discussão. Quanto refutamos a necessidade desse tipo de participação do
“homem simples”, não o fazemos por arrogância científica ou desprezo do
saber decorrente da experiência (como certamente argumentarão os
defensores do júri), senão que deixamos o populismo de lado para definir as
diferentes dimensões da participação do homem na distribuição da
164
justiça.

Assim, mesmo não sendo considerado fundamental conforme abordagem


realizada no subtítulo anterior, também não é legitimo para permanecer no sistema
processual penal, pois quebra uma série de princípios penais, além de apresentar
fundamentos insustentáveis para a auto-suficiência do instituto.

4 ESCABINATO: UMA ALTERNATIVA AO JÚRI

Uma das melhores sugestões possíveis em substituição ao júri tradicional,


sem alteração constitucional, está na incorporação do sistema do escabinato.

Conforme ensina Nucci: “Países francamente democráticos estão


terminando com o júri e, no máximo, elegendo uma nova forma de composição mista
das cortes: o escabinato. São os casos da França, da Alemanha, da Bélgica, da
Itália e da Grécia.”165

Este sistema modifica a estrutura do órgão colegiado, que passa a ser


composto por juízes de carreira e leigos, decidindo conjuntamente.166

Desta forma, os leigos aportariam regras da experiência à rotina judiciária,


ventilando a tarefa mecânica de julgar, enquanto que os Juizes-técnicos
influenciariam os leigos prestando-lhes assessoramento jurídico qualificado e
conhecimento na atividade jurisdicional.167

164
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 146.
165
NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo, SP: Juarez de
Oliveira, 1999. p. 182.
166
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 147.
167
Ibidem, p. 147.
42

Esta modificação inicial no órgão colegiado acarretaria muitas outras


modificações em seqüência, na própria forma de funcionamento da instituição,
afetando a incomunicabilidade, a quesitação, a necessária fundamentação das
decisões judiciais pelo conjunto dos juízes leigos e os de carreira, entre outras.168

Além da clara contribuição ao julgar com juízes técnicos, com saber jurídico
indiscutível, talvez a maior contribuição do sistema do escabinato esteja no
intercâmbio do saber.

Neste sistema, o que se sugere é que os juízes leigos sejam somente leigos
em relação à matéria jurídica, à disciplina do direito, mas técnicos em áreas úteis ao
julgamento, como em economia (para julgamentos que envolvam questões
comercias), em educação e pedagogia (para julgamentos de crianças e
adolescentes), em informática (para delitos cometidos por Internet), em psiquiatria,
sociologia e antropologia (em relação às causas criminais), entre outros.169

Importa ainda ressaltar que, no sistema do escabinato, o julgamento é feito


por um colegiado único, por juízes leigos e profissionais, decidindo sobre o fato e
sobre o direito, sendo que o conhecimento de um supri a lacuna do outro.170

Embora o respeito que os juízes inspiram, exercendo grande influência


informativa durante a deliberação, devido a sua posição de superioridade técnica, o
que poderia inibir os leigos, aponta-se na separação dos juízes leigos aos
profissionais uma saída ao problema.

Desta forma, à decisão do júri (leigo) é atribuída um efeito consultivo, sem


efeito vinculante ao veredicto (técnico e definitivo). A solução encontrada pelos
jurados seria enviada aos magistrados profissionais, que poderiam aceitar ou
rejeitar, no todo ou em parte, a sugestão, mantendo o poder decisório. Assim, se

168
Ibidem, p. 147.
169
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 148.
170
Ibidem, p. 148.
43

buscaria a vantagem do júri popular, qual seja a sensibilidade e eqüidade, sem


retirar das mãos do Juiz profissional o poder da última palavra.171

Países como a Alemanha já incorporaram o escabinato em substituição ao


júri tradicional. No país referido, o Tribunal dos Escabinos é composto por juízes
honorários (escabinos) ao lado de um ou dois juízes profissionais, e nas Câmaras ou
Turmas dos Tribunais também há dois juízes leigos ao lado de um ou três juízes
profissionais.172

Também outros países europeus, inclusive com longa tradição no sistema


tradicional de jurados, está se operando uma modificação para o escabinato, como
as já referidas França, Itália e Portugal.173

Isto se dá porque a rejeição ao tribunal do júri é muito maior do que ao


escabinato no meio jurídico europeu, pois cresce a consciência da complexidade
das sociedades contemporâneas e, conseqüentemente, da própria complexidade
que envolve a fenomenologia da violência, passando a exigir a visão interdisciplinar
da questão que é dada pelo escabinato e os leigos em direito mas técnicos em
áreas úteis ao julgamento.174

Diante da dificuldade, para não dizer impossibilidade, de extinção do júri por


extirpação de cláusula pétrea da Constituição, talvez o sistema do escabinato,
mesmo não escapando de críticas, seja a melhor alternativa ao tribunal do júri, pois
certamente seus inconvenientes são muito menores. Não obstante, vale lembrar que
sua instituição acarreta não somente a mudança da composição do órgão colegiado,
mas também, entre outras conseqüências, a exigência necessária da
175
fundamentação.

Ante as críticas desenvolvidas e a sugestão ora apresentada do sistema do


escabinato, uma certeza podemos ter, e ela é bem exposta por Lopes Júnior: “Em

171
Ibidem, p. 149.
172
Ibidem, p. 148-149.
173
Ibidem, p. 148.
174
LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 148.
175
Ibidem, p. 149-150.
44

última análise, a única opção que desponta como absolutamente inadmissível é


continuar exatamente como está, pois são tantos e tão graves os problemas do
Tribunal do Júri que ele representa a própria negação da jurisdição.”176

CONCLUSÃO

Outra conclusão não se pode chegar quando defendemos a manutenção de


um processo acusatório em todo o processo penal: o júri está arraigado em uma
base inutilizável de ideais não mais necessários ou justificáveis diante da já
esclarecida e reformulada forma de pensar do direito penal moderno sob sua
perspectiva garantista.

Isto significa dizer que não foram poucos os estudiosos que se debruçaram
neste tema na tentativa de reconstruir seu esqueleto e motivação no momento de
sua criação e expansão pelo mundo.

Embora uma corrente conservadora e respeitável permaneça defendendo o


júri e seus discursos legitimantes, um a um dos fundamentos formadores e que
procuram justificar sua existência foram derrubados durante este trabalho, não
existindo justificativa para sua permanência.

Dentre os principais discursos tratados, destacamos, brevemente, que o júri


não é legítimo para:

a) educar o povo sobre questões jurídicas, pois, em um primeiro momento


estaríamos errando (sobre a liberdade ou não de um cidadão) para aprender a julgar
da maneira correta e, em segundo plano, há questões jurídicas de maior relevância
no cotidiano dos cidadãos do que crimes dolosos contra a vida praticados por
terceiros;

176
Ibidem, p. 150.
45

b) constituir o direito do povo de cooperar na formação e aplicação das leis,


já que o povo o faz indiretamente através do voto, sendo responsáveis para tal, os
Poderes Legislativo e Executivo, respectivamente;

c) instituir democracia por decreto ou proteger contra o retorno de regimes


ditatoriais, uma vez que se o Estado efetivamente é liberal, não é a extinção do júri
que lhe irá extirpar a democracia e, além disso, o Brasil não vive em épocas
tirânicas como aquelas que motivaram a instituição do júri;

d) proteger contra atuações arbitrárias, pois embora outro tribunal não possa
reformar o mérito da decisão do júri, esta “proteção” enclausura o julgamento do
mérito nos crimes dolosos contra vida, não podendo ser revisados por outro tribunal,
somente pelo próprio tribunal do júri, e sendo arbitrária reiteradamente a decisão dos
jurados, assim permanecerá;

d) manifestar a soberania nacional, porque o jurado não tem parcela alguma


de mandato popular, pois que não é escolhido pelo povo para o exercício de suas
funções, não representando parcela alguma da sociedade;

e) garantir formalmente a proteção ao devido processo legal e,


conseqüentemente, à liberdade, uma vez que a liberdade e o devido processo legal
já estão devidamente previstos e protegidos nos direitos e garantias fundamentais
da Constituição, sendo desnecessária uma instituição específica vinculada a um tipo
penal particular para garantir-lhes e, conforme exposto, o exercício da atividade
jurisdicional está equacionado por garantias constitucionais, devendo o julgador
observar a constitucionalização do direito processual e material penal, onde a
liberdade deve ser vista como regra;

f) efetivar a participação do cidadão nos julgamentos, pois a democracia é


um conceito muito mais complexo do que a escolha formal-representativa de sete
leigos pertencentes a nichos bem definidos na sociedade;

g) certificar que a justiça emane do povo que pode decidir e ser julgado
como e por pessoas comuns, formadas em um conselho naquela comunidade,
46

acostumadas com os hábitos regionais e não viciados à prática jurisdicional, porque


o juiz também sai do povo e pertence à comunidade, sendo preferível ser julgado
por um especialista a ser julgado por sete leigos;

h) assegurar um julgamento em que não se fique preso às provas


processuais, sendo desnecessária a fundamentação ante sua importância nos casos
onde o jurado avalia melhor os motivos do crime, eis que ficar preso às provas
processuais não é algo prejudicial, mas sim benéfico ao réu, pois nada mais se está
do que seguindo os princípios da legalidade e do devido processo legal e, além
disso, se no júri a fundamentação é o que tem maior importância por esta razão é
que deveria estar presente;

i) tornar o julgamento não influenciado pela política governamental, pois se


antigamente não havia independência efetiva dos juízes, sendo melhor o julgamento
feito pela própria sociedade, hoje os juízes togados são muito menos suscetíveis a
pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiáticas, na
medida que são fortalecidos pelas garantias orgânicas da magistratura: a
vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos;

j) elevar o sentimento civil da nação, pois se o objetivo do júri fosse esse,


não deveria ser obrigatório;

k) deixar preponderar a sabedoria da vida do homem simples, uma vez que


trata-se de uma idéia demagoga e populista para legitimar a instituição, pois o direito
é uma ciência e como tal, somente os técnicos designados para julgar devem
efetivar tal função.

Salutar lembrar que a extinção do júri não iria resolver todos os problemas
existentes no processo penal. Na verdade, o Código de Processo Penal merece uma
reforma ampla e interdisciplinar, pois nada justifica a inércia legislativa neste sentido.

Contudo, de qualquer forma, o júri é ultrapassado e completamente


desnecessário. Se mudança constitucional de cláusula pétrea é uma forma difícil ou
47

impossível para extinção do rito, que ele sofra uma modificação estrutural com a
instalação de uma forma de escabinato, conforme referido na pesquisa.

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