Você está na página 1de 15

IDENTIFICANDO O PATRIMÔNIO URBANO: INVENTÁRIO DA ZCH DE CAMPOS

DOS GOYTACAZES - RJ.

PRATA, MARIA CATHARINA REIS QUEIROZ. (1); NOBREGA, CLAUDIA C. L. (2)

1. UFRJ. PROARQ
Rua Gilberto Siqueira, 99/301 – Campos dos Goytacazes/RJ/Cep:28010400
catharina.queiroz@gmail.com
2. UFRJ. PROARQ
Rua Barão da Torre 436/302 - Ipanema / Rio de Janeiro / RJ/ Cep: 22411002
claudiaclnobrega@gmail.com
Resumo
Esta comunicação aborda a temática do inventário como um dos instrumentos de proteção ao
patrimônio cultural inserido na malha urbana de uma cidade. Sendo o patrimônio histórico e
arquitetônico parte da herança comum de uma nação, a sua conservação é de interesse geral, tanto
do poder público, como dos proprietários, e de toda a comunidade. No entanto, na prática,
geralmente observamos o abandono do bem cultural e a falta de conhecimento da população sobre a
importância do imóvel para sua cidade. Na pesquisa de doutoramento em andamento, tomou-se
como objeto de estudo a Zona de Comércio do Centro Histórico (ZCH), considerada como área
embrionária de nascimento da cidade de Campos dos Goytacazes, cuja ocupação remonta ao início
do século XVII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expansão da economia
açucareira no estado Rio de Janeiro. O objetivo principal é o inventário de identificação de imóveis de
interesse cultural existentes no local, em uma parte da região definida como Centro Histórico pelos
Planos Diretores do município. Trata-se de um patrimônio valioso, diferente do monumental, rural e
religioso, tombado pelo IPHAN, e que, principalmente pela falta de reconhecimento do seu valor,
corre o risco de se perder. A partir da elaboração deste inventário pretende-se contribuir para
reflexão sobre as ações práticas de intervenções na região e na cidade. Entendemos que esse tipo
de inventário constitui-se em uma ação de preservação do patrimônio edificado, pois permite o
acesso e a produção de conhecimento sobre aquilo que se cadastra. Trata-se da elaboração de um
registro que inclui levantamentos fotográficos, documentais e historiográficos desses bens culturais, a
fim de contribuir com um exame das potencialidades patrimoniais do município, no caso da área em
estudo da ZCH. Em uma primeira etapa de trabalho foi realizado um levantamento fotográfico em
sequência por cada face de quadra. O objetivo deste levantamento preliminar foi identificar através da
fotografia, todos os imóveis de um (01) dos quarenta e nove quarteirões (49) que compõem a ZCH,
denominado neste trabalho por Quadra 1, uma das mais antigas da citada zona. Posteriormente, as
imagens foram analisadas e suas características registradas em uma ficha elaborada pela autora
(QUEIROZ) tendo como referência três formulários do “Inventário Nacional de Bens Imóveis – Sítios
Urbanos Tombados – INBI-SU-2001” do IPHAN: Formulário 1 - Cadastramento do Lote; Formulário 2-
Características Arquitetônicas e Formulário 3 - Estado de Conservação (BRASIL, 2001). Entendemos
que através desse trabalho estamos colocando em destaque a importância do estudo e do registro da
arquitetura existente nos centros históricos das cidades, apontando para a necessidade de
conscientização e preservação de seu patrimônio como documento histórico e arquitetônico, para que
os responsáveis por sua preservação percebam os conjuntos das cidades históricas não mais como
um conjunto de edificações cujos valores estilísticos é necessário preservar, mas como lugares que
detêm significativos valores culturais vinculados aos seus papéis na memória coletiva de sua
população e de seus visitantes.

Palavras-chave: Patrimônio urbano; Inventário; Preservação; Campos dos Goytacazes.


7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO
Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015
Introdução

A compreensão de que uma cidade é composta por edificações e por pessoas levou a uma
reformulação do conceito de patrimônio histórico no século XX, uma vez que nos bens a
serem preservados se incorporou também o valor cultural que envolve a sua produção. O
patrimônio histórico converteu-se assim em patrimônio cultural, um conjunto de elementos
naturais ou culturais, materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente,
no qual um determinado grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade.

Sendo o patrimônio histórico e arquitetônico parte da herança comum de uma nação, a sua
conservação é de interesse geral, tanto do poder público, como dos proprietários, e de toda
a comunidade. No entanto, na prática, geralmente observamos que os imóveis que são
considerados bens culturais encontram-se em completo abandono. A nosso ver, uma das
principais causas deste abandono é o desconhecimento por parte da comunidade sobre o
bem cultural e, uma vez que uma população de uma cidade desconhece seu patrimônio
cultural, nele não se reconhece e nem se identifica. Partindo desta premissa, entendemos
que o inventário é um poderoso instrumento de preservação, na medida em que, ele pode
promover a identificação, o conhecimento e a divulgação de um determinado acervo cultural
de uma cidade.

O patrimônio urbano

Para Choay (2001, p. 177) a noção de Patrimônio Urbano Histórico nasceu na Grã-
Bretanha, na época das transformações efetuadas por Haussmann em Paris, através do
pensamento de John Ruskin. Em seguida, a autora enfatiza a lentidão da evolução do
conceito de monumento histórico e para o de cidade histórica. Segundo ela, vários fatores
contribuíram para que este fato acontecesse, sendo destacado: sua escala, complexidade e
“ausência, antes do início do século XIX, de cadastros e documentos cartográficos
confiáveis” (CHOAY, 2001, p. 178).

O arquiteto, urbanista e historiador italiano Gustavo Giovannoni (1873-1943) foi o precursor


na difusão do termo “patrimônio urbano” e da ideia de que os conjuntos urbanos também
devem ser preservados. Em sua produção escrita Giovannoni faz uma distinção entre
“arquitetura maior” – igrejas, palácios, solares, fortes, dentre outros - e “arquitetura menor”-
composta basicamente por casas e quarteirões que compõem o tecido urbano edificado das
cidades antigas - e destaca seu valor como de um monumento, recomendando a
necessidade da aplicação de leis de proteção para a cidade histórica.

2
Segundo Kühl (2013, p. 21), no prefácio do livro “Textos escolhidos” de Giovannoni, este
engenheiro civil “[...] entendia a cidade como um organismo complexo, a ser trabalhado em
sua inteireza, abordando a relação entre cidade existente, novas áreas de expansão e
zonas de interesse para a preservação de maneira articulada, não como mera oposição”.

É fato que, para Giovannoni, a discussão sobre a atuação nos centros antigos das cidades
modernas se constituía em um problema de restauro urbanístico, que devem ser sempre
“[...] baseados num pensamento de cunho cultural (as questões que dizem respeito à arte e
à história), também para resolver questões práticas, como a salubridade de edificações e os
problemas de circulação” (GIOVANNONI apud KÜHL, 2013, p. 23).

Deste modo, partimos do entendimento que se faz necessário pensar, conjuntamente, o


planejamento urbano dos centros históricos integrados ao planejamento de gestão urbana
da cidade, procurando soluções aos desafios contemporâneos. A contextualização desse
tema de estudo se aplica ao município de Campos dos Goytacazes, a maior cidade do
interior do estado do Rio de Janeiro, cuja origem está atrelada ao povoamento da capitania
de São Tomé, datada de 1627, e à agroindústria açucareira, com a instalação do primeiro
engenho em 1652, dando início ao progresso da região. Tal formação contribuiu para que o
referido município estivesse voltado, durante séculos, para as atividades agrícolas, sendo
fortalecido posteriormente, já no século XX, pela descoberta do petróleo na região do Farol
de São Tomé, precisamente na década de 70. Atualmente, a bacia de Campos é a maior
província petrolífera do Brasil, responsável por mais de 80% da produção nacional de
petróleo, além de possuir as maiores reservas provadas já identificadas e classificadas no
país.

A cidade possui um rico acervo arquitetônico do período colonial, barroco, neoclássico, art
noveau, art déco e principalmente eclético, sendo alguns imóveis já tombados pelo IPHAN -
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Prefeitura Municipal e/ou INEPAC -
Instituto Estadual do Patrimônio Cultural. No seu conjunto, situam-se exemplares
arquitetônicos de considerável variação tipológica, edificações religiosas do século XVIII,
antigos solares construídos entre os séculos XVIII e XIX, e variadas manifestações culturais
– bandas de música, cavalhadas, festas religiosas, ofícios tradicionais –, dentre outras
expressões artísticas populares.

Assim, tendo atravessado variados processos urbanos desde sua fundação, cabe
examinarmos o Centro Histórico de Campos dos Goytacazes, local embrionário de sua
formação espacial, e as perspectivas que se colocam para o seu desenvolvimento futuro.

3
Identificando o patrimônio urbano: inventário da ZCH de Campos
dos Goytacazes

1.1 Criação

Dentre as cidades da região do Norte Fluminense, o município de Campos dos Goytacazes


sempre ocupou um lugar de importância política e econômica. De acordo com Faria (2005,
p. 4783), “os primeiros centros urbanos criados na região [...] foram Campos dos
Goytacazes e São João da Barra (1676). Sem dúvida, a principal área de interesse de toda
a Capitania foi o local onde hoje se localiza o município de Campos dos Goytacazes [...]”.

Possuindo como principal atividade econômica as lavouras de cana de açúcar, a vila foi se
desenvolvendo em estreita relação com a área rural, pontuada por várias chácaras e
canaviais. De acordo com Alves (2009, p.35), em 1785 existiam 245 engenhocas, crescendo
para 300 em 1798, e atingindo o número de 700 engenhos no ano de 1828.

Essa prosperidade, aliada ao nascimento de uma nobreza rural atrelada ao açúcar, levou
Joaquim José Torres, presidente da Província, a elevá-la à condição de cidade, no ano de
1835. Segundo vários autores (Sousa, 1985; Rodrigues, 1988; Alves, 2009), a precariedade
da higiene na cidade foi o fator que levou o governo provincial a enviar a Campos o major
Henrique Luiz Niemeyer Bellegarde, um engenheiro militar.

A partir do século XIX, segundo Chrysóstomo (2006), a categoria de profissional liberal dos
engenheiros militares foi considerada a mais importante no Brasil. A implantação das linhas
férreas, abertura de estradas, medição de lotes e esgotamento sanitário, os identificavam
com o progresso e a modernização, apesar de sua atuação na América Portuguesa neste
período estar dividida por outro tipo de reflexão urbana que também passou a ditar as regras
de intervenção no espaço: o pensamento higienista, advindo de uma “política ilustrada” e da
reafirmação do poder real. Este conceito, segundo a autora, passou a ter grande
importância nas vilas e cidades a partir do ensino de Medicina no Brasil e da criação da
Sociedade de Medicina no Rio de Janeiro em 1829. Em função desse pensamento e das
epidemias frequentes, o Governo Imperial passou a interpor sua autoridade nos governos
municipais exigindo o cumprimento de normas e hábitos de higiene, o que nos esclarece
sobre a vinda do engenheiro Bellegarde a Campos, estando o mesmo incumbido de várias
tarefas: construir muralhas no limite da cidade com o rio Paraíba, buscando evitar os
alagamentos durante as cheias do mesmo, e criar medidas de melhoramentos urbanos,
como arruamentos e arborização.

4
A cidade foi posteriormente concebida em vários planos urbanísticos, a começar pelo traço
do engenheiro francês Amélio Pralon no ano de 1840; passando pelo “risco” de outro
Bellegarde (Pedro D’Alcântara), também engenheiro militar, em 1858; requalificada no plano
higienista do sanitarista Saturnino de Brito em 1902; dotada de nova ordem urbana pela
Empresa Coimbra Bueno em 1944; privilegiando as áreas carentes de infraestrutura na
concepção do PDUC (Plano de Desenvolvimento Urbanístico e Territorial de Campos) em
1979; mas somente em 2008 foi aprovado o Plano Diretor Urbano e definida uma Zona de
Comércio do Centro Histórico (ZCH), na região embrionária de sua formação, dotada de
vários imóveis de características ecléticas e interesse cultural de preservação (Figura 1),
alguns já tombados pelo INEPAC, como a Lira de Apolo e o Hotel Amazonas, ambos
atualmente em estado de franca deterioração (Figura 2).

Figura 1 - Imóveis ecléticos da ZCH de Campos dos Goytacazes


Fonte: Autoria própria (2014)

Figura 2 – Lira de Apolo e Hotel Amazonas, inseridos na ZCH de Campos dos Goytacazes
Fonte: Autoria própria (2014)

Segundo Alves (2009, p. 19), a cidade foi implantada a partir de dois pontos de irradiação
inseridos na dita ZCH (Figura 3): a praça principal, denominada Praça São Salvador, e o rio
Paraíba do Sul, embasando, portanto, a sua importância histórica para a cidade. Ainda

5
segundo a autora, “é desses dois polos que saem as principais ruas; partindo desse centro é
que a cidade se expande”.

QUADRA 1
Rio Paraíba do Sul

Praça São Salvador

Figura 3 - Mapa da ZCH (Zona do Centro Histórico).


Fonte: Plano Diretor de Campos dos Goytacazes (2008)

Nesse ponto, ao discorrermos sobre a expansão da cidade, cabe destacar o pensamento


ruskiniano em defesa da manutenção da arquitetura doméstica existente num lugar, ainda
que em ruínas, por serem exemplos representativos à própria história dos edifícios, da
cidade e da vida das pessoas que ali habitam. Não considerar essas edificações,
“constitutiva da malha urbana”, é perder o direito a memória coletiva, pois, segundo Ruskin,
é a arquitetura das cidades antigas que garante a “nossa identidade, pessoal, local,
nacional, humana”. (CHOAY, 2001, p. 180 e 181).

Assim, este patrimônio urbano e cultural torna-se uma representação dessa cidade, um
símbolo de identificação da sociedade que o construiu. Se esse espaço possui importância
histórica, ele é capaz de evocar lembranças de um passado e produzir sentimentos que
podem ser despertados pelos lugares e edificações que, através de sua materialidade, são
capazes de recriar a forma de vida daqueles que no passado deles se utilizaram.

O conceito de identidade deve articular-se, portanto, ao de memória quando se trata de


preservar lugares com sentido de patrimônio cultural. É a identidade que exterioriza o que
somos e de onde viemos. Repensar a cidade sob a ótica da memória, individual ou coletiva,
ou sob o significado de preservação do patrimônio construído, supõe realizar estudos de

6
prioridades sobre a ocupação do espaço ao longo do tempo, valorizando a identidade
cultural do povo que a concebeu.

Percebemos, portanto, que a memória coletiva ou social, considerada uma reconstrução do


passado, é formada através das contribuições de diversas gerações. O legado dessa
memória é transmitido, ao longo do tempo, por meio de suportes de memória. A relação
entre a memória e patrimônio reside justamente nesse ponto: os objetos culturais, os quais
constituem o patrimônio, que podem funcionar como tais suportes.

É, portanto, no centro histórico de uma cidade que supostamente poderemos encontrar e


conhecer a memória inicial de sua formação, guardada em elementos arquitetônicos
resistentes ao tempo, criados por antigos e talvez esquecidos produtores do espaço
coletivo. Através deles e de sua conservação, devemos pensar numa política e num projeto
de preservação que permita a integração das distintas áreas da cidade a este centro, mas
que também ajude no resgate dos valores socioculturais de sua população.

Nesse sentido, compreendemos ser a ZCH caracterizada por edificações notáveis, dotada
de várias construções que retratam a identidade do povo campista. Trata-se de um
patrimônio valioso, diferente do monumental, rural e religioso, tombado pelo IPHAN ou
INEPAC, e que, principalmente pela falta de reconhecimento do seu valor, corre o risco de
se perder.

1.2 A ZCH na atualidade

Nos quatro últimos anos a ZCH vem passando por várias transformações que disciplinam os
usos de seu espaço urbano e de seu patrimônio histórico. O estado geral de conservação de
suas edificações é inquietante e o índice de sua descaracterização vem se acentuando
aceleradamente, dando lugar a inúmeras demolições para construções de estacionamentos
ou edificações de baixa qualidade. A maioria das construções no local encontra-se
desfigurada por letreiros, postes de energia elétrica ou telefonia, conferindo uma aparência
de abandono ou desleixo ao patrimônio cultural.

Através de um projeto intitulado "Requalificação, valoração e preservação cultural do


Patrimônio Histórico da Cidade", o poder público municipal vem promovendo adequações de
infraestrutura urbana (drenagem, pavimentação, instalação de dutos subterrâneos para
cabeamento de rede elétrica, telefonia, internet e televisão), variadas intervenções (Canal
Campos-Macaé), além de revitalizações de edifícios públicos, monumentos e praças
(Prudente de Moraes, Rodoviária Roberto Silveira, Museu Visconde de Araruama,

7
Monumento ao Expedicionário e Chafariz Belga), visando à valorização do centro histórico
da cidade. Tendo suas obras, que ainda encontram-se em andamento, terem sido iniciadas
em junho de 2012, observamos de imediato a permanência de vários problemas, como a má
utilização dos espaços públicos e uma destacada alteração em seu entorno, segmentando
ruas e isolando edificações históricas, contrariando a Recomendação de Nairóbi, datada de
1976, que destaca cada conjunto histórico - aqui entendido como centro histórico - e sua
ambiência, devendo ser considerados em sua totalidade, estando seu equilíbrio e caráter
específico dependente da síntese dos elementos que o compõem e que incluem as
atividades humanas, as construções, a estrutura espacial e as zonas que o circundam.

Percebemos que, embora as diretrizes de desenvolvimento econômico e social da


administração municipal possam enfatizar a importância do resgate da memória como
afirmação da identidade local, os elementos arquitetônicos remanescentes do centro
histórico não têm recebido atenção adequada das políticas de desenvolvimento urbano pelo
aparente desconhecimento do valor de inúmeros edifícios.

1.3 Inventário da ZCH

O inventário tem sido utilizado como instrumento destinado a conhecer e proteger o


patrimônio cultural brasileiro desde o primeiro quartel do século XVIII, quando o Frei
Agostinho de Santa Maria realizou o levantamento e a descrição de imagens sacras que
retratavam a Virgem Maria em várias igrejas localizadas na Bahia e nos estados do Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão e Pará. Esse
trabalho foi divulgado em dois volumes da obra denominada “Santuário Mariano e histórias
das imagens milagrosas de Nossa Senhora”, publicado em Portugal no ano de 1722
(AZEVEDO, 1987, p. 82).

Ainda segundo o mesmo autor, o inventário desempenha:

[...] um papel próprio na preservação do acervo cultural, podendo ser


transformado em um instrumento complementar ao tombamento,
possibilitando que a vigilância do Estado e da sociedade seja estendida a
todo o universo cultural da nação, através da conscientização popupar e da
adoção de medidas administrativas (AZEVEDO, 1987, p. 82).

A Constituição Federal de 1988 do Brasil, em seu art. 216, § 1º, conceitua patrimônio
cultural brasileiro e institui o inventário como um instrumento jurídico de preservação:

8
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação. (grifo nosso)

Na prática, de acordo com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional),


um inventário de conhecimento (ou de varredura) é um estudo que objetiva conhecer a
totalidade de bens culturais de determinada região, que identifique e cadastre as
ocorrências materiais ainda existentes, funcionando como um mapeamento abrangente do
patrimônio cultural, cujo objetivo final é sua proteção e valorização (IPHAN, 2015).

Tomando como objeto de estudo a Zona de Comércio do Centro Histórico (ZCH),


considerada como área embrionária de nascimento da cidade de Campos dos Goytacazes,
esta pesquisa vem realizando um inventário de identificação de imóveis de interesse cultural
existentes no local, em uma parte da região definida como centro histórico pelos Planos
Diretores do município. A partir da elaboração deste inventário pretende-se contribuir para
reflexão sobre as ações práticas de intervenções na região e na cidade.

Partimos do princípio que esse tipo de inventário constitui-se em uma ação de preservação
do patrimônio edificado, pois permite o acesso e a produção de conhecimento sobre aquilo
que se registra. Trata-se da elaboração de um cadastro que inclui levantamentos
fotográficos, documentais e historiográficos desses bens culturais, a fim de contribuir com
um exame das potencialidades patrimoniais do município.

Em uma primeira etapa de trabalho foram desenvolvidas técnicas e meios de pesquisa para
identificar, através da fotografia, todos os imóveis de um (01) dos quarenta e nove
quarteirões (49) que compõem a ZCH, denominado neste trabalho por Quadra 1 1. Trata-se
de uma das quadras mais antigas da ZCH e, consequentemente, da cidade. Posteriormente,
as imagens foram analisadas e suas características registradas em uma ficha elaborada
pela autora (QUEIROZ) tendo como referência três formulários do “Inventário Nacional de
Bens Imóveis – Sítios Urbanos Tombados – INBI-SU-2001” do IPHAN: Formulário 1 -

1
Veja Figura 3, um Mapa da ZCH, onde está indicada a Quadra 1.

9
Cadastramento do Lote; Formulário 2- Características Arquitetônicas e Formulário 3 -
Estado de Conservação. (BRASIL, 2001).

A mencionada Quadra 1 é delimitada pelo quadrilátero formado pelas Ruas Barão de


Amazonas, Dr. Inácio de Moura, Boa Morte e Av. Alberto Torres. Com o objetivo de ilustrar
essa comunicação, apenas a Rua Barão de Amazonas será analisada após a realização de
seu inventário, tendo em vista o tamanho da referida quadra e o número expressivo de
edificações que ela contém: trinta e oito imóveis. A seleção desta foi feita por possuir um
imóvel tombado por órgão estadual – Hotel Amazonas -, e por ainda possuir duas
edificações de estilo eclético (Figura 4).

Segundo o INEPAC (2004, p. 21), esta rua era uma das mais importantes da cidade no final
do século XIX:
A rua Barão do Amazonas é uma das mais antigas de Campos e teve desde
sua abertura os mais variados nomes. Foi primeiramente conhecida por rua
do Alecrim depois rua do Alagado do Osório e rua do padre Paiva. Passou a
se chamar rua Barão do Amazonas por deliberação da Câmara Municipal
em 10 de janeiro de 1867, com o fim da guerra do Paraguai . A rua foi
praticamente em certa época o centro comercial de Campos, com hotéis,
casas comerciais, e residências particulares.

Com o crescimento da cidade, e o surgimento de ruas mais amplas, para


onde foram se mudando o comércio, a rua Barão do Amazonas foi
gradativamente perdendo sua importância, no entanto sua memória
histórica será sempre lembrada.

Figura 4 – Quadra 1 da ZCH. Rua Barão de Amazonas.


Fonte: Autoria própria (2015)

Os imóveis da Rua Barão de Amazonas foram indicados por letras, de “A” a “Q”, onde
destacamos com a cor vermelha as letras que identificam as edificações que podem ser
consideradas como patrimônio urbano da cidade. Apontado pela letra “E”, podemos
observar o Hotel Amazonas, antiga Casa do Barão de Pirapitinga, situado entre duas ruas
na ZCH de Campos dos Goytacazes, RJ: sua fachada principal é voltada para a Rua Barão
do Amazonas, número 58, e sua fachada posterior para a Rua Boa Morte.

O solar foi edificado em dois pavimentos. Suas fachadas dão diretamente no alinhamento da
calçada. Todos os vãos da fachada possuem vergas arqueadas e no 2º pavimento as
janelas se abrem para um guarda corpo em ferro fundido, onde ainda possui as iniciais do
Barão de Pirapitinga, primeiro proprietário. Para se adequar ao novo uso (hotel) sofreu

10
inúmeras intervenções durante os anos, mas sem perder por completo suas características
originais externas. Hoje se encontra em péssimo estado de conservação.

Esta casa que até hoje ainda conserva um aspecto imponente, foi
construída na 2ª metade do século XIX, para residência na cidade, de
família da nobreza rural campista do vale do baixo Paraíba. Sua construção
talvez seja da mesma época (1861-1865) em que o barão da Lagoa
Dourada edificou seu palacete (hoje Liceu de Humanidades de Campos).
Erguido entre duas ruas, tendo sua fachada principal voltada para a rua
Barão do Amazonas e sua fachada posterior para a rua da Boa Morte. Casa
senhorial, podendo ainda hoje ser apreciada a sacada com belo trabalho de
ferro fundido (1º andar) que se prolonga em toda extensão do prédio. Sofreu
sucessivas demolições, inclusive do pequeno alpendre em forma de dossel,
sobre a porta principal e que ia até o meio fio da calçada; além de partes
laterais da fachada principal e grande parte da fachada posterior (INEPAC,
2004, p. 21).

Os dois imóveis identificados com as letras “K” e “L” são edificações de aparência eclética,
estilo que predominou na cidade durante o apogeu da cultura canavieira. Construídos em
apenas um pavimento, hoje são utilizados como pequenos comércios, mantendo as
características arquitetônicas originais, apesar das transformações realizadas para
adequação aos novos tempos, onde podemos apontar a utilização de portas de aço em seu
fechamento para a rua.

O imóvel “K” sofreu intervenção em sua fachada com aplicação de cerâmica até metade da
parede. Em contrapartida, a edificação identificada com a letra “L” não recebeu esse tipo de
intervenção, mas os ornamentos em sua platibanda não possuem destaque devido à pintura
em tom rosado ter sido utilizada em toda a sua extensão, prática contrária ao que era
realizado no início do século em imóveis ecléticos, onde os ornamentos da fachada eram
destacados por tonalidades diferentes das paredes . Ambos os imóveis estão relativamente
conservados, sem grandes modificações, apesar da poluição visual causada pela fiação
elétrica.

Todos os outros imóveis da rua são construções novas, sem estilos definidos, num claro
empobrecimento estético da ZCH.

Conclusão

A identidade histórica de uma cidade deve ser mantida, como elemento comum e promotor
do desenvolvimento. A sua valorização deve ser considerada e preservada, mantendo uma

11
relação ativa com o novo contexto urbanístico e social, capaz de narrar histórias, num
diálogo permanente com a modernidade. Nesse sentido, quando se considera o patrimônio
cultural como alicerce para o desenvolvimento da cidadania, deve-se reconhecer o direito à
memória histórica e a necessidade de contribuir para a preservação dos bens culturais
existentes no país.

A história de cada bem cultural deve ser, portanto, estudada, analisada, antes de se propor
ações de intervenções. As modificações realizadas sem base teórica e historiográfica que as
sustentem, acarretam quase sempre a perda de parte de nossa cultura. Regida
principalmente por princípios como os da conservação integrada, originam contribuições e
instrumentos metodológicos básicos para bem estuda-las, como por exemplo, os
inventários.

Compreendemos, portanto, que tão importante quanto preservar, é desenvolver o


sentimento de amor e respeito pelos lugares, prédios, monumentos, enfim, todos os “lugares
da memória” que fazem parte do nosso cotidiano (NORA, 1993). A melhoria da qualidade de
vida nas cidades depende em parte do conhecimento e valorização da cultura que nos
cerca.

A pertinência das reflexões acerca do tema é marcada pela urgência, haja vista a
degradação do centro histórico de Campos e a desqualificação social que ali se
concretizam. É necessário conhecer para intervir e, posteriormente, preservar o que ainda
resta da cultura histórica do centro e da memória da cidade.

Acreditamos que através deste trabalho estamos colocando em destaque a importância do


estudo e do registro da arquitetura existente nos centros históricos das cidades, apontando
para a necessidade de conscientização e preservação de seu patrimônio como documento
histórico e arquitetônico, para que os responsáveis por sua preservação percebam os
conjuntos das cidades históricas não mais como um conjunto de edificações cujos valores
estilísticos é necessário preservar, mas como lugares que detêm significativos valores
culturais vinculados aos seus papéis na memória coletiva de sua população e visitantes.

Referências bibliográficas

ALVES, H. M. A Sultana do Paraíba. Reformas urbanas e poder político em Campos dos


Goytacazes, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2009.

12
AZEVEDO, Paulo Ormindo de. Por um inventário do patrimônio cultural brasileiro. Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan, nº 22, 1987. Disponível em:<
http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3239> Acesso: 08 jan. 2015.

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Trad. Beatriz M. Kuhl. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.

BRASIL. LEI No 10.257, de 10 de julho de 2001. Poder Judiciário, Brasília, DF. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso: 14 out 2014.

CAMPOS DOS GOYTACAZES (cidade). Lei n.º 7.972, de 31 de março de 2008. Institui o
Plano Diretor do Município de Campos dos Goytacazes. DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO,
de 11 de dezembro de 2007. Republicado no D.O.M, de 20 de dezembro de 2007.
Disponível em: http://www.campos.rj.gov.br/listaPlano.php. Acesso: 14 out 2014.

CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária no nacional.


Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan, nº 23, 1994.

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Inventários urbanos como instrumentos de conservação. In:


LIMA, Evelyn Furquim Werneck; MALEQUE, Miria Roseira (org.). Espaço e cidade:
conceitos e leituras. 2 ª ed. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2007

____ . Patrimônio Cultural: Conceitos, políticas, instrumentos – São Paulo: Belo Horizonte:
Anablume: IEDS, 2009.

CHASTEL, André. A invenção do inventário. Revue de l'Art, n°. 87. Paris, CNRS, 1990.
Tradução e notas de João B. Serra. Disponível em:
<www.cidadeimaginaria.org/pc/ChastelInventaire.pdf> Acesso: 5 mai 2015.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 1ª reimpressão. Trad. de Luciano Vieira


Machado – São Paulo: Estação Liberdade: Ed. UNESP, 2001.

CHRYSOSTOMO, Maria Isabel de Jesus. Ideias em ordenamento, cidades em formação: a


produção da rede urbana na província do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Planejamento
Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

13
FARIA, Teresa Peixoto. Configurações do espaço urbano da cidade de Campos dos
Goytacazes, após 1950: novas centralidades, velhas estruturas. In: X Encontro de
Geógrafos da América Latina - por uma Geografia Latino-americana: do labirinto da solidão
ao espaço da sociedade. São Paulo, 2005. p. 4778-4799. Disponível em <
http://www.uenf.br/Uenf/Downloads/FAVELA_BAIRRO_4202_1177360740.pdf> Acesso: 27
abr. 2015.

FEYDIT, Julio. Subsídios para a história dos Campos dos Goitacazes. Desde os tempos
coloniais até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Esquilo, 1979 [1ª edição: 1900].
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio
cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

GIOVANNONI, Gustavo. Textos escolhidos. Trad. Renata Campello Cabral, Roberto M. de


Andrade, Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL (INEPAC). Fichas de Inventário:


Projeto Inventário de Bens Culturais Imóveis... . Rio de Janeiro, 2004. p. 155-158.

MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz de Rezende (Org). Inventários de identificação: um


programa de experiência brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN, 1998.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista do Programa
de pós-graduação em História da PUC - Projeto História. São Paulo: n.º 10, 1993. p. 7-28.

PAES, Sylvia M. S. Os impasses da revitalização da área central da cidade de Campos


dos Goytacazes (1991-2005). 2006. 108 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento
Regional e Gestão de Cidades) – Universidade Cândido Mendes, Campos dos
Goytacazes/RJ.

RECOMENDAÇÃO DE NAIRÓBI, 1976. Portal do Iphan. Cartas Patrimoniais. Disponível em


<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=249> Acesso: 06 mai 2015.

RODRIGUES, H. S. Campos: na Taba dos Goytacazes. Niterói: Imprensa Oficial, 1988.

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. Tradução Eduardo Brandão. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

14
SILVA, Heitor de Andrade. Revitalização urbana de centros históricos: uma revisão de
contextos e propostas: a Ribeira como estudo de caso. 2002. 186 f. Dissertação (Mestrado
em Conforto no Ambiente Construído; Forma Urbana e Habitação) - Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2002.

SOUSA, Horácio. Cyclo Áureo. 2. ed. Rio de Janeiro: Damadá, 1985 (1ª edição: 1935).

15

Você também pode gostar