Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E Toda A Terra Se Maravilhou - Vanderlei Dorneles - Parousia 2005 PDF
E Toda A Terra Se Maravilhou - Vanderlei Dorneles - Parousia 2005 PDF
uma interpretação crítica” dos fatos, o que de João Paulo II iniciou um processo de
caracterizou um “retorno à Idade Média”, restauração, porém, está para além das
na maneira de o mundo relacionar-se com questões históricas citadas. A restauração
a Igreja Católica.6 Diversificada por sua dessa chaga poderá implicar um definitivo
natureza, a imprensa, desta vez, “mostrou- reposicionamento da Igreja no centro do
se unânime no tom solene e grave de uma mundo político e religioso, o que vai lhe
cobertura que transformou a praça São outorgar o poder de moldar costumes,
Pedro no centro do planeta”.7 ditar leis universais, impor crenças e ritos,
Tanto em vida quanto na morte, o polo- determinar quem deve viver e quem deve
nês Karol Wojtyla exerceu forte influência morrer. Esta ferida histórica, imposta ao
no sentido de restaurar a admiração e o papado pela Revolução Francesa e prevista
respeito mundial pela Igreja de Roma. Na há dois mil anos no Apocalipse, arrebatou
semana do velório, o presidente americano os poderes terrenos das mãos do papado
George W. Bush, seu pai George Bush, o ex- e da Igreja. Mas as imagens de estadistas
presidente Bill Clinton e a secretária de Es- de todo o mundo ao redor do papa morto,
tado Condoleezza Rice ajoelharam-se diante anunciaram silenciosamente que a retoma-
do esquife em veneração e reconhecimento da desse poder é iminente.
da importância do primaz de Roma.8 Uma Para se ter uma visão clara da impor-
comitiva ecumênica brasileira liderada pelo tância do pontificado de Karol Wojtyla e
presidente Lula também homenageou o de seu efeito restaurador, é preciso lembrar
papa e seu pontificado de 26 anos. a geografia do poder no final da década
As imagens do sofrimento do pontífice de 1970, quando ele assumiu a liderança
circularam pelo mundo todo e desperta- do catolicismo, repassar algumas de suas
ram compaixão e simpatia pelo esforço e iniciativas, bem como rever documentos
sacrifício mostrados ao longo de sua vida de seu pontificado. O objetivo deste artigo
e mais acentuadamente nos últimos dias. é fazer uma menção resumida das prin-
O impacto dessas imagens e seu poder de cipais ações pacificadoras do papa a fim
arregimentar simpatias e de despertar apoio de se alcançar uma visão do conjunto das
em prol das causas religiosas de Roma mesmas e de se vislumbrar seu efeito no
certamente ainda serão sentidos. sentido de restaurar as relações da Igreja
com o mundo moderno.
Para Alberto Dines, diretor do “Obser-
vatório da Imprensa”, Karol Wojtyla vai
entrar para a história “pelo carisma, pela Poder disperso
fé que transmitiu, pelas férreas convicções,
pela disposição física, pela coragem de Durante a Idade Média, o papado gozava
enfrentar desafios que poucos pontífices en- de elevado prestígio. O mundo era um só. O
frentaram e, sobretudo, pelo uso que soube continente europeu era o centro da civiliza-
fazer dos meios de comunicação”.9 ção e a igreja estava no núcleo de todas as
decisões envolvendo o poder temporal. No
O pontificado de Wojtyla destacou-se final da década de 1970, porém, o mundo
por seu efeito pacificador e reconciliador. estava dividido em diversas forças, muitas
Ele foi um restaurador de feridas. Visitou delas hostis à Igreja romana.
mais de 100 países, viajou mais de 1 milhão
de quilômetros. Conseguiu aproximar da Essa geografia do poder pode ser resu-
Igreja muitos de seus inimigos históricos. mida em quatro aspectos principais: 1) O
Por meio de documentos assinados por seu mundo político estava polarizado entre os
punho, encíclicas e missas especiais, tratou Estados Unidos e a antiga União Soviética.
feridas milenares e rompeu barreiras que A Guerra Fria impunha o pesadelo de uma
separavam os católicos dos protestantes, hecatombe nuclear que poderia destruir o
judeus, islâmicos, ortodoxos, anglicanos e mundo.10 A Igreja estava à margem do po-
mesmo da Ciência. der político e sem influência de ambos os
A maior ferida para a qual o pontificado lados. 2) No cenário religioso, as divisões
A contribuição de João Paulo II para a restauração do poder papal / 21
culturas e pelas tradições das pessoas para Para Henry Sobel, presidente do Rabina-
desenvolver soluções para os problemas da to da Congregação Israelita Paulista,
humanidade”. O primeiro-ministro do Japão ele (papa) viajou o mundo inteiro promovendo
Junichiro Koizumi avaliou que “a morte do não só o catolicismo, mas a paz mundial. E, em
papa foi uma grande perda. Ele sempre se quase todos os lugares que visitou, fez questão de
esforçou pelo diálogo inter-religioso”. encontrar líderes de outras religiões. Ele tinha um
coração enorme e naquele coração cabiam todos
Também Kofi Annan, secretário-geral
os filhos de Deus: judeus, católicos, muçulmanos,
da ONU, reconheceu o papel do papa nas todos. Só podemos esperar que seu sucessor ouça
questões globais. “Sempre me impressio- e siga seus sábios conselhos.
nou seu compromisso para que as Nações
Unidas se transformassem em uma força O reconhecimento e a veneração de
moral na qual todas as nações do mundo se tantos estadistas (mais de cem no velório)
sentissem em casa e desenvolvessem uma e de religiosos de diversas confissões sina-
consciência comum da existência, ou seja, liza uma outorga de poder moral à igreja
uma família de nações”. O ex-presidente e seu líder. Quais as implicações desse
polonês Lech Walesa, amigo de João Paulo gesto? Como o próximo papa vai usar essa
II, considerou que “o final do comunismo força moral legada por Karol Wojtyla? E
já se vislumbrava no horizonte e apenas a mais: o que pode mudar no mundo face
hora de sua queda continuava sendo uma esse novo status assumido pela Igreja e
incógnita, mas sem o papa, o comunismo pelo papa?
teria chegado a derramar sangue”. E Mi-
khail Gorbachev, o último presidente da
União Soviética, lembrou: “Para mim, João Conclusão – ferida curada?
Paulo II desempenhou um enorme papel A perda de poder político sofrida pelo
para o fim da Guerra Fria. Nenhum conflito Vaticano desde a Revolução Francesa
escapava à sua atenção.” foi uma evidência de que a humanidade,
Do lado judaico, Ariel Sharon, primeiro- incluindo cientistas, pensadores, líderes
ministro israelense, assegurou que o papa políticos e o povo comum, suspeitou de que
“era um homem da paz, um amigo do povo naquele momento (século 18) a Igreja não
judeu, que reconhecia sua singularidade era digna de exercer tal autoridade. Ao lon-
e que trabalhou pela reconciliação dos go da Idade Média, ela fora inconseqüente
povos”. Do islâmico, Mahmoud Abbas, no uso do poder. Significou também que a
presidente da Palestina, destacou que o Igreja perdera o passo da modernidade. O
papa foi “uma figura religiosa, que devo- mundo estava à frente dela e não poderia
tou sua vida à defesa dos valores da paz, mais prestar-lhe obediência. Havia outras
liberdade, justiça e igualdade para todas as instituições a quem a humanidade podia
raças e religiões, assim como o direito de confiar seu destino, suas esperanças, suas
nosso povo à independência”. vidas. A ciência, a razão, a técnica se
tornaram mais promissoras em assegurar
O cantor Bono Vox, vocalista da banda liberdade e felicidade para a humanidade.
U2, considerou o papa “um grande showman, Estas, portanto, suplantaram a Igreja na
um grande comunicador de idéias mesmo se confiança e na crença das pessoas.
você não concordasse com todas elas. Um
grande amigo do mundo pobre”. A modernidade experimentou os re-
sultados dessa mudança de “guarda”. A
O escritor místico Paulo Coelho, numa es- ciência e a razão, porém, também não se
pécie de oração, agradeceu: “Obrigado por ter revelaram inteiramente confiáveis para as
nos lembrado toda a perseverança. Obrigado expectativas humanas. Guerras, revolu-
por ter nos aberto os olhos para o dom da fé. ções, crise ambiental vieram na esteira de
Obrigado por ter tocado nosso coração com seu domínio. No chegada do século 21,
o dom da vontade. Obrigado porque, em um a humanidade parecia encaminhar-se de
momento em que todos se sentiam fracos, o volta para as instituições espirituais, em
seu exemplo nos devolveu a força.” busca de segurança e proteção, num mundo
A contribuição de João Paulo II para a restauração do poder papal / 27
outra vez em desordem, como no tempo gunda vinda de Cristo. O profeta reitera:
que sucedeu a queda do Império Romano. “adoraram-na todos os que habitam sobre
A insegurança, a crise ambiental, a corrupção a Terra, aqueles cujos nomes não estão
na política e nos negócios, o crescimento do escritos no livro da vida” (Ap 13:8, 17:8).
tráfico e dos vícios têm gerado uma situação Nisso, ele está falando de um grupo de
de caos. Na crise, a humanidade costuma pessoas que preferem seguir os ensinos da
buscar apoio e segurança espiritual. O papa “besta” a seguir as orientações da Palavra
João Paulo II despontou no final do século de Deus. A cura da ferida, portanto, é um
20 como um referencial de segurança. Como fato previsto para os últimos dias. Essa
chefe da Igreja romana, ele tornou-se uma cura significa a retomada de seu culto, a
evidência de que a Igreja mudou. restauração de seu prestígio e autoridade
sobre as nações.
A perda de poder político e de prestí-
gio por parte do papado, por ocasião da Para teólogo adventista Alberto R.
Revolução Francesa, não foi um acaso da Timm, “a maior contribuição de João Paulo
história. Foi profetizada no Apocalipse II foi o diálogo inter-religioso com líderes
de João. O profeta vira uma “besta” que não-cristãos, o que ajudou significativa-
emergiria do “mar” (Ap 13:1), portanto, do mente para a construção de uma nova he-
Velho Mundo, a Europa, e que se tornaria gemonia católica no mundo. Ele acrescenta
extremamente poderosa. Seu poder seria que João Paulo II “com certeza conseguiu
tal que tomaria o destino dos homens em restaurar em parte a ferida de morte” da
suas mãos. Teria autoridade sobre a vida e “besta”, profetizada no Apocalipse.43
a morte das pessoas. Mas ele também vira
Amin A. Rodor, diretor do seminário
que ela seria ferida de morte e essa ferida
teológico Adventista do Sétimo Dia, em
interromperia seu poder.
São Paulo, considera que o pontificado de
Os primeiros protestantes identificaram Karol Wojtyla, embora ambíguo em vários
a “besta” do Apocalipse com o papado. aspectos, teve uma agenda efetiva, em que
Mais recentemente os adventistas do sé- conseguiu reunir grupos tradicionalmente
timo dia estão entre os que mantêm essa separados. Para ele, a teologia católica não
interpretação. O texto apocalíptico afirma: mudou. Mudou a maneira de tratar as dife-
“vi uma de suas cabeças como ferida de renças. “O papa tornou a igreja católica, se
morte” (Ap 13:3). Segundo Ellen G. White, não aceita, vista com bons olhos. Ele levou
“a aplicação da chaga mortal indica a queda a igreja para os debates tradicionais sobre
do papado em 1798”, com a Revolução aborto, direitos humanos e ciência.”44 Essa
Francesa.42 Contudo, falando da atuação é centralidade da Igreja que faltava para a
do anticristo, aquele que pretende exercer restauração de seu papel hegemônico no
funções exclusivas de Cristo, como perdoar mundo.
pecados, o apóstolo Paulo declara que tal
A Igreja sozinha, contudo, a despeito
personagem permanecerá até ao segundo
da popularidade que Wojtyla despertou
advento de Cristo (2Ts 2:8), o que indica
para com o papado, não poderá assumir
que a ferida de morte não desfaria o poder
qualquer controle político no mundo. Sua
dessa instituição. Ela apenas o deixaria
autoridade limita-se ao campo ideológico
inerte por um tempo.
e simbólico. No entanto, o Apocalipse
Na seqüência das visões apocalípti- também já previu que nos últimos tempos,
cas, João afirma que “a sua chaga mortal uma nova força, uma outra “besta” emer-
foi curada; e toda a Terra se maravilhou girá e cujo poder, de natureza política,
após a besta” (Ap 13:3). Isso indica que, será empregado em favor dos propósitos
quando a “besta” conseguir o apoio dos da primeira “besta”, de forma que a restau-
poderes constituídos e voltar a ser seguida ração final de sua chaga será feita a partir
e adorada em toda a Terra, sua ferida estará de uma aliança entre ambas. O segundo
restaurada. E nessa nova atuação ela durará poder descrito no Apocalipse (ver 13:11-
até que venha o reino de Deus, com a se- 18) aponta para os Estados Unidos. Há
28 / Parousia - 1º semestre de 2005
mais de cem anos, Ellen White declarou Francesa com a expressão “era”. A fase
que “pela mais elevada autoridade terres- em que ela “não é” refere-se ao período
tre” será feito decreto para que, “sob pena subseqüente, quando a “besta” perdeu seus
de perseguição e morte”, os habitantes da poderes políticos. E, quando fala de seu
Terra adorem e sigam os caminhos indica- ressurgimento, o Apocalipse está preven-
dos pela besta, cuja ferida mortal, então, do uma nova idade escura, em que este
estará plenamente curada.45 É por isso que poder assumirá novamente o controle dos
o gesto de um presidente protestante dos destinos do mundo, havendo a partir daí
Estados Unidos ajoelhar-se perante o papa nova política de intolerância e persegui-
tem um significado relevante. ções a dissidentes.46 Isso torna a iniciativa
de aproximação dos dissidentes feita pelo
No capítulo 17 do Apocalipse há uma último pontífice apenas uma estratégia no
descrição ainda mais detalhada sobre a jogo do poder.
“besta” que emergiu do mar, historicamente
Se a retirada do apoio, do culto e da venera-
identificada com o papado. Nas revelações
ção por parte das nações em relação ao papado
recebidas, o vidente percebeu que a “besta
foi a incidência da ferida de morte sobre a
estava assentada sobre muitas águas”. Na
cabeça da besta descrita no Apocalipse 13, a
verdade essa figura ilustra a origem e a na-
retomada dessas atitudes de forma preliminar
tureza de seu poder. A besta não tem poder
no velório de João Paulo II significa que a
próprio, só aquele que é outorgado a ela
ferida está em processo de cicatrização.
pelas nações da Terra que lhe reconhecem a
autoridade espiritual. Explicou um anjo ao Com seu exuberante pontificado, João
vidente: “As águas em que está assentada Paulo II conseguiu projetar a Igreja como
a besta e a mulher são povos, multidões, uma instituição capaz de orientar a huma-
nações e línguas” (Ap 17:15). Mais à frente nidade insegura daqui para frente. Como a
o texto informa que o poder descrito na Igreja usará esse saldo de poder e de prestígio
visão é o de uma cidade que “reina sobre ainda é uma incógnita. Mas só para aqueles
os reis da Terra” (17:18). que ainda não conhecem o Apocalipse.
A atuação da besta é dividida em três
fases diferentes nessa visão. É dito que
“a besta era e já não é, mas está para su-
bir do abismo” (17:8). Uma corrente de
interpretação entende que o dito se refere
a atuação do papado até a Revolução
Referências observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/5bloco/index.
asp?edi=321
1
Uma primeira versão, mais popular, deste artigo
8
Cf. AFP, “Presidente George W. Bush reza
foi publicada pela edição de maio de 2005 da Revista pelo papa na Basílica de São Pedro”, 06/04/2005,
Adventista, com o título “João Paulo II, o restaurador em http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/
de feridas”, bem como em alguns sites da Internet, mundo/1931001-1931500/1931444/1931444_1.
entre eles, o www.advir.com.br. xml.
2
Ver Caderno Especial dos jornais O Estado de
9
Alberto Dines, “Karol Wojtyla”.
S. Paulo e Folha de S. Paulo, do dia 9 de abril de
10
Marcelo Musa Cavallari, “O pastor inesperado:
2005. papa polonês marcou século”. Época, 4 de abril de
3
O Estado de S. Paulo, Caderno Especial, 9 de 2005, Caderno Especial, 3.
abril de 2005, p. H1.
11
Cf. Vanderlei Dorneles, Cristãos em Busca do
4
Ibid, p. H4. Êxtase, 2ª ed. (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress,
5
Ibid, p. H1. 2003),74-81.
6
Cf. Ulisses Capozzoli, “Religião e ciência à 12
Stanley Grenz, Pós-Modernismo (São Paulo:
moda da mída”, 05/04/2005, no Observatório da Vida Nova, 1997), 17.
Imprensa on line, em http://observatorio.ultimose- 13
Sérgio Paulo Rouanet, “A deusa da razão”, em
gundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=323PAP005. A Crise da Razão, Org. Adauto Novaes (São Paulo:
7
Alberto Dines, “Karol Wojtyla”, em http://
A contribuição de João Paulo II para a restauração do poder papal / 29