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a trajetória da teoria
marxista da dependência
no Brasil*
Fernando Correa Prado
I. Introdução
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História de um não-debate: a trajetória da teoria marxista da dependência no Brasil
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História de um não-debate: a trajetória da teoria marxista da dependência no Brasil
cia foi sendo sistematicamente pauta- plena ditadura militar. Sem contar ou-
do pelos seus escritos. Nas décadas de tras reproduções em diferentes livros
1970 e 1980, enquanto vários livros de e compilações fora do Brasil – México,
Andre Gunder Frank, Vânia Bambirra, Argentina, etc. –, vale lembrar também
Theotônio dos Santos e Ruy Mauro
Marini eram proibidos pela censura, as
idéias de Cardoso circulavam livremen-
2. Ao final de sua tese Nildo Ouriques acertadamen-
te pelo Brasil. 3 te apontou o seguinte (1995, p. 234): “El colapso del
Diversos textos do Fernando Hen- neoliberalismo hará con que nuevos enfoques sobre
rique Cardoso se prestaram para esta viejos problemas – integración económica, cultural,
política; carácter del estado, etc. – una vez más ga-
tarefa de delimitar o espaço do debate nen relevancia, abriendo así amplios espacios para el
brasileiro em torno à noção de depen- pensamiento crítico”. De fato, mesmo considerando
dência. Entre esses textos, ao menos apenas publicações no Brasil, nos últimos dez anos é
notável o crescente interesse pelo tema da depen-
três artigos merecem destaque, pois ti- dência. Sem chance de esgotar as referências aqui, e
veram ampla circulaação e mencionam seguramente deixando de lado importantes trabalhos,
é possível lembrar a seguinte bibliografia: Traspadini
diretamente autores como Theotônio
(1999); Sader ([org.] 2000); Santos (2000); Martins
dos Santos, Andre Gunder Frank e Ruy (2003; 2006); Traspadini e Stédile ([org.] 2005); Wag-
Mauro Marini: “Notas sobre o estado ner (2005); Amaral (2005); Luce (2007); Carcanholo
(2008); Bonente e Correa (2008); Bueno e Seabra
atual dos estudos sobre dependência”,
(2009); Vargas (2009); e Castelo ([org.], 2010).
“As contradições do desenvolvimento- 3. Para dar apenas alguns exemplos, após Marini ter
-associado” e “As desventuras da Dia- publicado no México Subdesarrollo y revolución,
em 1969, Dialéctica de la dependencia, em 1973, e
lética da Dependência”, este último El reformismo y la contrrevolución. Estudios sobre
escrito em conjunto com José Serra. Chile, em 1976, além de ter organizado antologias
O primeiro artigo mencionado – fundamentais, escrito artigos para as revistas críticas
mais importantes de seu tempo – Pensamiento críti-
“Notas...” – foi apresentado inicial- co, Monthtly review, Les temps modernes, entre ou-
mente num Seminário realizado em tras – e também contribuído em vários jornais pelo
setembro de 1972 em Dakar sobre mundo, o primeiro livro dele publicado legalmente
no Brasil foi América Latina: dependência e integra-
“Estratégias para o Desenvolvimen- ção, de 1992. Enquanto isso, os textos de Cardoso
to da África e América Latina”, sob o circulavam facilmente através dos órgãos de difusão
patrocínio do Instituto Africano de do CEBRAP e seus livros eram publicados com am-
pla divulgação: Dependência e desenvolvimento em
Desenvolvimento e Planificação. Em América Latina, publicado em espanhol em 1969 –
dezembro de 1972 este mesmo texto foi escrito originalmente em 1967 –, saiu no Brasil já em
publicado na Revista Latinoamericana de 1970 pela Editora Difusão Européia do Livro; Políti-
ca e desenvolvimento em sociedades dependentes:
Ciencias Sociales da Facultad Latinoame- ideologias do empresariado industrial argentino e
ricana de Ciencias Sociales (FLACSO) brasileiro, publicado em 1971 pela Zahar; O modelo
político e outros ensaios, publicado originalmente
e, no ano seguinte, além de uma publi-
em 1972 pela Bertrand Brasil em sua coleção “Cor-
cação nos Estados Unidos sob o título po e Alma”, dirigida pelo próprio Cardoso; e, para
“Dependence revisited”, o mesmo tex- ficar apenas na década de 1970, em 1975 é publicado
Autoritarismo e democratização, lançado por Paz e
to fez parte do Caderno CEBRAP n°11
Terra, numa coleção da qual o próprio Cardoso tam-
– ou seja, fora publicado no Brasil em bém fazia parte do conselho editorial.
que o mesmo artigo foi publicado, no duzido com outro título muito mais
ano de 1976, no livro América Latina: en- direto: “As novas teses equivocadas”6.
saios de interpretação econômica, coorde- Originalmente este texto foi apresenta-
nado por José Serra (1976). E em 1980, do na Conferência Internacional sobre
momento prévio da chamada “abertu- “Sociologia del desarrollo y desarrollo:
ra democrática”, o artigo em questão dependencia y estructuras de poder”,
fez parte também da coletânea de ar- organizado pela Fundação Alemã para
tigos organizada pelo próprio Cardoso o Desenvolvimento Internacional e
intitulada As idéias em seu lugar. Ensaios realizado em Berlim em novembro de
sobre as Teorias do Desenvolvimento, sen- 1973. Logo em seguida foi publicado
do que nessa última versão o artigo na revista Estudos CEBRAP, outro meio
aparece adaptado da edição em inglês: de difusão desta instituição acadêmica,
“A dependência revisitada”. Em suma, mais especificamente em seu número
um texto de amplíssima divulgação. 8, de 1974. No ano seguinte, em 1975,
Neste artigo, Cardoso apenas começa este texto foi novamente republicado,
sua crítica a Andre Gunder Frank e a desta vez como artigo do livro Autori-
Ruy Mauro Marini, mas já demonstra tarismo e democratização. Dirigido agora
certa capacidade de inverter argumen- a um público que, em grande medida,
tos para melhor criticá-los. Em seu co- desconhecia a obra de Marini – quase
mentário a Frank – na verdade apenas nada dele havia sido publicado no Bra-
o nomeia, mas não cita nem faz a me- sil –, Cardoso adotou o segundo títu-
nor referência a alguma obra dele –, lo, muito mais eficaz ao seu propósito
Cardoso deixa aberta uma falsa crítica de atacar as contribuições de Gunder
que viria a ser futuramente a afirmação Frank, Theotonio dos Santos e Marini,
mais recorrente, apesar de incorreta, alvos constantes de suas críticas.
sobre os autores da vertente marxista Como se verá adiante, as chamadas
da teoria da dependência: de que para “teses equivocadas” deram base para
eles “o capitalismo na periferia é in- uma postura comum entre muitos in-
viável”. Em relação a Marini, trata de telectuais, não obstante o fato que as
resumir a tese de “Dialética da depen- críticas às supostas “teses equivocadas”
dência: a economia exportadora”4, mas simplesmente não tinham sustenta-
inverte o argumento de Marini e assim ção na obra dos autores a quem eram
cria outra falsa polêmica em torno à dirigidas. Segundo Cardoso (1975),
função da superexploração do trabalho autores como Andre Gunder Frank,
e da mais-valia relativa.5 Theotonio dos Santos e Ruy Mauro
O segundo artigo antes mencionado Marini defenderiam que “o desen-
foi inicialmente publicado com o títu- volvimento capitalista na periferia é
lo de “As contradições do desenvolvi- inviável”; “o capitalismo dependente
mento dependente associado”, mas o está baseado na exploração extensiva
mesmo texto foi posteriormente repro- da mão-de-obra e preso à necessida-
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velha tese centro-periferia de Prebisch, reba- Apesar das tremendas confusões ocasiona-
tizada como relação metrópole-satélite. das por certas visões primárias da “Teoria
Passando totalmente por alto sobre as no- da Dependência” e do fato decisivo de que
vas tendências da economia internacional, a seus esforços de interpretação terminaram
partir de meados da década de 50, explica- sem status teórico afiançado e sem aprofun-
vam a acumulação nos centros pela explora- dar a análise dos subsistemas industriais de-
ção da periferia (invertendo a tese clássica) pendentes que se propunham estudar, não
e centrando-se no desempenho tradicional resta dúvida de que alguns ensaios pioneiros
dos grandes monopólios internacionais na da época tiveram uma importância funda-
extração de matérias-primas. mental de vários pontos de vista.
Entre eles sobressai o trabalho de Cardoso
E ao final desta passagem Tavares e Faletto, “Desenvolvimento e Dependência
indica uma nota de rodapé, em que na América Latina” [...]
comenta: (Ibid., p. 27): “Estamo-nos re-
ferindo, basicamente, às colocações do Neste ponto o texto de Tavares con-
tipo Gunder Frank – ‘Desenvolvimen- tinua com um resumo, agora sim, de-
to do Subdesenvolvimento’ e as várias talhado da argumentação de Cardoso
versões do ‘Intercâmbio Desigual’”. e Faletto, antes de tratar da “crise do
Além da mínima preocupação com a transnacionalismo” e das “questões e
precisão na referência e sem intenção opções na América Latina ante a crise
nenhuma de travar um verdadeiro internacional”, que constituem as ou-
debate, sobre o trecho antes citado é tras partes do artigo.
possível observar ainda que Tavares Algo parecido também foi feito por
ou ignorava – o que é difícil – ou sim- João Manuel Cardoso de Mello, mas
plesmente não considerava sério os não num artigo, e sim em sua influen-
trabalhos realizados por Theotônio dos te tese doutoral, defendida em 1975, e
Santos sobre as corporações multina- que pouco depois se tornou livro e con-
cionais, apesar desses serem pioneiros dicionou boa parte das interpretações
e muito bem fundamentados.12 inscritas na chamada “Escola da Uni-
E na sequência dos parágrafos antes camp”. Na “Introdução” de O capita-
citados Tavares complementa: lismo tardio, após discutir a “Economia
Política da CEPAL”, o texto de Cardoso
Deve-se fazer justiça, entretanto, ao esforço de Mello chega a “meados da década
de um grupo de intelectuais latino-ameri- de 60, quando a morte do movimento
canos em Santiago de Chile (entre 1965 e social nacional-desenvolvimentista fi-
1967) para caracterizar, mediante um en- cou evidente” (1998 [1982], p. 24). E
foque totalizador, o que foi chamado como a partir daí comenta o surgimento das
a nova “situação de dependência” nos pa- “Teorias da Dependência” (Idem, itáli-
drões de desenvolvimento industrial urbano cas no original):
dos maiores países da América Latina.
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A industrialização ou se abortara, ou, quan- uma crítica pontual – a de que estes au-
do tivera êxito, não trouxera consigo nem a tores seguem o “critério cepalino de pe-
libertação nacional, nem, muito menos, a riodização histórica” – e abrir caminho
liquidação da miséria. para sua própria tarefa, que seria “a de
Com isto, uma pergunta ficava no ar: por repensar a História latino-americana
que a História teria tomado outro curso, de- como formação e desenvolvimento do
fraudando esperanças que pareceram outro- modo de produção capitalista”.
ra tão bem fundadas? A resposta, no plano Vários problemas merecem ser des-
teórico, consistiu, sabemos todos, na formu- tacados do trecho acima citado, sobre-
lação das “Teorias da Dependência”, que tudo considerando que se trata de uma
nasceram, assim, para enfrentar a questão tese doutoral. Em primeiro lugar, cha-
da não industrialização-nacional. ma atenção a forma com que aborda
A filiação cepalina da idéia de “dependência o nascimento das “Teorias da Depen-
externa” é clara, pois simples decorrência dência”, pois, em contraste do que se
da concepção de desenvolvimento desigual afirma ali, não houve uma origem co-
da economia mundial capitalista, que se mum entre todos os intelectuais que
exprime na relação Centro/Periferia. Deste analisaram a dependência, sem contar
modo, não seria difícil imaginar a História que a preocupação inicial não era de
latino-americana como uma sucessão de modo algum “enfrentar a questão da
“situações de dependência”: dependência não-industrialização”.15 Também é
colonial, dependência primário-exportadora
e dependência tecnológica.
Deste ponto de vista, a primeira vertente 12. Esses trabalhos, escritos a partir de 1966, foram
da Dependência – representada pelos tra- posteriormente incorporados em Imperialismo y de-
pendencia (1978).
balhos de A. G. Frank, centrados na idéia
13. Neste ponto Cardoso de Mello faz referência a
de “desenvolvimento do subdesenvolvimen- Capitalismo y subdesarrollo en América Latina e ao
to”, que se entende nuclearmente como uma livro Economía política del subdesarrollo en Amé-
rica Latina, que fora organizado por Frank, James
contínua rearticulação de uma relação de Cockroft e Dale Johnson (1970) e no qual se inclui
exploração entre Metrópoles e Satélites – alguns artigos de Frank.
consiste, de modo cristalino, numa mera re- 14. E aqui a referência é a edição brasileira, publica-
da em 1970, de Dependência e desenvolvimento na
produção radicalizada da problemática América Latina, além do texto de Cardoso “Teoria
cepalina e, por isto, não apresenta maior da dependência ou análises concretas de situações
interesse teórico.13 de dependência?”, que havia sido publicado no pri-
meiro número da revista Estudos CEBRAP, em 1971.
Ao contrário, a formulação de F. H. Cardo- 15. Na verdade, isto nem teria sentido, pois os tra-
so e E. Faletto merece um exame cuidadoso, balhos sobre a dependência nasceram precisamente
por sua importância decisiva.14 nos países que estavam se industrializando, porém, é
claro, aprofundando sua dependência. Ademais, con-
forme indica Marini em sua “Memória” (2005, p. 66):
Em seguida Cardoso de Mello apre- “Na realidade, e contrariando interpretações cor-
senta os principais eixos da análise de rentes, que a vêem como subproduto e alternativa
acadêmica à teoria desenvolvimentista da CEPAL, a
Cardoso e Faletto, para depois fazer teoria da dependência tem suas raízes nas concep-
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Esta citação revela como Mantega dependente apenas elevou os salários mar-
está apegado àquela leitura guiada ginal e temporalmente para depois começar
por Cardoso, para quem Frank seria a diminuí-los novamente. [...] A realização
o defensor da “inviabilidade” do de- doméstica no “mercado interno” ainda é
senvolvimento capitalista na periferia, através da demanda de consumo final das
partidário da tendência à “estagnação”. classes alta e média-alta e através do consu-
Para demonstrar a contradição dessa mo produtivo. Contudo, ambas as classes,
crítica, basta reproduzir também uma por sua vez, são dependentes das rendas do
passagem de Frank, retirada proposital- setor externo e, cada vez mais, da sua dis-
mente de um livro que Mantega utiliza tribuição através da mediação do Estado.
como base e chega a fazer referência à Deste modo, o desenvolvimento (ou subde-
mesma página16. Numa passagem de senvolvimento) capitalista dependente do
Acumulação dependente e subdesenvol- mercado “interno” depende cada vez mais
vimento, ao tratar de forma sintética da produção e exportação de matérias-pri-
alguns processos do século XX na Amé- mas e, mais recentemente, também de pro-
rica Latina, Frank afirma (1980, p. 173. dutos industriais, cuja produção por sua vez
Itálico do original): depende da superexploração do trabalho as-
salariado extraído de uma crescente reserva
Comentamos anteriormente que a substi- industrial de trabalhadores “marginais”,
tuição de importações “decolou” durante a os quais, longe de constituírem uma fonte
crise econômica imperialista, que dificultou de demanda efetiva no mercado interno, são
a troca de matérias-primas produzidas com essenciais para a produção lucrativa, reali-
salários baixos pelas manufaturas destina- zação e acumulação de capital através da
das ao mercado de alta renda. Este dilema redução dos custos salariais.17
levou alguns países a produzirem localmen-
te bens de consumo para esse mercado de
renda alta em lugar de importá-los. Isto é, a
substituição de importações era inicialmen-
te dirigida para um mercado “interno” já
existente [...] Contudo, esse desenvolvimen-
to substituidor de importações não criou ções que a ‘nova esquerda’ – particularmente no Bra-
seu próprio mercado interno. No máximo, sil, embora seu desenvolvimento político fosse maior
a substituição de importações criou um mer- em Cuba, na Venezuela e no Peru – elaborou, para
fazer frente à ideologia dos partidos comunistas.” Ao
cado “interno” para os bens de produção menos em sua corrente marxista, essa é a origem
externos e para os investimentos estran- principal da “teoria da dependência”.
geiros. Em vez de levar a um aumento nos 16. Cfr. Mantega (1984, p. 220, nota 17).
17. E aqui Frank abre um parêntesis e indica: “Para
salários – para expandir o poder aquisitivo uma análise mais detalhada, ver Marini”. Uma pesqui-
do mercado interno, como havia ocorrido sa pertinente para a atualidade seria analisar como
e se ainda existe esta excisão entre as esferas de
na metrópole e nos países de povoamento
consumo interno; Virginia Fontes tem entrado neste
recente – este desenvolvimento capitalista tema (2010).
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to de Cardoso, o que muito tem a ver de 1970 e inícios de 1980, convém tra-
com uma reflexão, mais do que sobre tar apenas de um texto, publicado em
a dependência, sobre os grupos de es- 1982, cujo título quase poderia ser adi-
tudiosos que reflexionaram sobre a vinhado: “Seis interpretações sobre o
dependência. Esse utopismo supõe um re- Brasil”. Para o autor, existiriam “seis
torno às fontes do pensamento latino-ame- ou sete” interpretações sobre o Brasil
ricano não acadêmico, desenvolvido fora nos últimos 50 anos, entre as quais es-
das sociologias “científicas” dos últimos 20 tava a “interpretação da superexplora-
anos, e, se Cardoso não se propõe um novo ção capitalista”, da qual fariam parte
intento de mediação e arbitragem entre dife- Gunder Frank, Marini, Theotônio dos
rentes fontes de pensamento – como infati- Santos e, menos à vontade, também
gavelmente tem feito –, é provável que possa Florestan Fernandes.22 Ao menos nesta
dar uma obra mais vigorosa e de maior peso versão original do texto, Bresser-Perei-
social. Sua proposta de pensar um “outro” ra – que sempre buscou definir sua pró-
desenvolvimento acha-se no cerne de um pria interpretação com certa distância
revigoramento do veio mais criativo do pen-
samento político latino-americano: o veio
humanístico e libertário.
18. Não é o caso de tratar aqui da sua interpretação
de Caio Prado Jr., que tampouco é primorosa.
De fato, Fernando Henrique Cardoso 19. Ainda não tivemos acesso à tese, mas seria válido
deixou uma obra de maior peso social: conferir qual o conteúdo do livro que está na tese e
o que foi incorporado posteriormente.
as consequências de oito anos como
20. Principal obra de Marini, Dialéctica de la depen-
Presidente do país, resultados certa- dencia é considerada por muitos o ponto mais alto
mente pouco utópicos, mas não se trata da formulação marxista sobre a dependência (Oso-
rio, 2004; Ouriques, 1995; Sotelo Valencia, 2005).
aqui de avaliar esse legado.
21. Após ter sido contador da primeira campanha
De volta ao percurso proposto, e che- a presidente de Fernando Henrique Cardoso, entre
gando ao fim dessa parte, convém tratar 1995 e 1998 foi Ministro da Administração Federal
e Reforma do Estado do governo de Cardoso e, no
também, mesmo que muito brevemen- segundo mandato, foi Ministro de Ciência e Tecno-
te, da interpretação sobre a teoria mar- logia por seis meses. Em 1987 havia sido Ministro da
xista da dependência feita por mais um Fazenda do governo Sarney.
22. Esta era apresentada como a quinta interpreta-
intelectual cuja influência é incontestá- ção, sendo as demais: “(1) a interpretação da vocação
vel e que, entre outras atividades polí- agrária, em conflito nos anos quarenta e cinqüenta
ticas, contribuiu diretamente ao “peso com (2) a interpretação nacional burguesa [...] (3)
a interpretação autoritário-modernizante, enquanto
social” da obra de Cardoso. Trata-se de que os intelectuais de esquerda irão se dividir em
Luiz Carlos Bresser-Pereira.21 três posições nem sempre claramente distintas: (4)
Em diversos textos Bresser-Pereira a interpretação funcional capitalista, (5) a interpre-
tação da superexploração capitalista, e (6) a inter-
procura dar uma postura própria sobre pretação da nova dependência. Finalmente, quando
as interpretações do Brasil. Para manter o regime de 1964 entra em crise, a partir de meados
a revisão no mesmo período dos traba- dos anos setenta começa a delinear-se a interpreta-
ção do projeto de hegemonia burguesa industrial”
lhos antes mencionados, ou seja, finais (1982, p. 269-270).
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Sader argumenta ainda que, ao ser Partido dos Trabalhadores (PT) vinha
praticamente a única referência, as teses adotando frente ao neoliberalismo. Ali
de Fernando Henrique Cardoso termi- argumenta, entre outros pontos, que
naram por assumir o papel de ideologia (1995, p. 207):
que sustentou a transição conservadora
no Brasil do regime ditatorial implan- En la respuesta del PT todo parece ‘resumir-
tado em 1964 à democracia formal que se’ en la búsqueda de un nuevo modelo de
se estabeleceria desde 1985. De acordo desarrollo, pero éste no es pensado a partir
com Sader, portanto, a transição à de- de las clases sociales (y de los intereses de
mocracia formal no Brasil teve como las mayorías) ni tampoco a partir de las
telão de fundo uma interpretação teó- condiciones impuestas por la dependencia,
rica que apresenta a aliança de classes sino por las necesidades de un gobierno que
como passo inicial e necessário ao cha- está sometido al diseño de la política eco-
mado “desenvolvimento”. Tratando de nómica necesaria para dar estabilidad a su
sua própria geração, Sader afirma ainda eventual gobierno.
que as análises de Cardoso num primei-
ro momento “não tiveram maior im- Através de uma revisão tanto dos
portância na esquerda”, sendo que tais textos políticos como dos escritos aca-
análises ganharam terreno apenas após dêmicos dos principais intelectuais
o aperto repressivo que se deu em 1968 ligados então ao PT – como Maria da
dentro da ditadura militar brasileira. Conceição Tavares, Paul Singer, Edu-
Segundo ele (Ibid., 110), “a importância ardo Suplicy, Aloísio Mercadante, Car-
de FHC veio depois da derrota insurre- los Nelson Coutinho e também Guido
cional à ditadura, através de sua teoria Mantega, entre outros –, o autor chega
da dependência, já num marco de opo- a algumas conclusões que viriam a se
sição institucional, hegemonizada pelo revelar muito acertadas no momento
grande capital em oposição ao Estado, de ascensão daquele partido à presidên-
tese à qual se subordinou a esquerda.” cia do Brasil, anotando ao menos cinco
E como foi possível mostrar, tal “subor- características fundamentais do debate
dinação” da esquerda brasileira, ao me- interno do maior partido de “esquer-
nos no plano ideológico, se manteve em da” da América Latina (Ibid., p. 214):
diferentes aspectos até a atualidade.
Essa subordinação foi lucidamente a) ocurre una creciente ‘institucionalizaci-
descrita por Nildo Ouriques em sua ón’ de la izquierda bajo el discurso de de-
tese doutoral, mencionada em nota fensa de la democracia; se olvida que en una
logo no início deste escrito. Após a verdadera democracia deberían coexistir
elaboração de uma história crítica da en conflicto los polos opuestos de la so-
teoria marxista da dependência, Ouri- ciedad burguesa: las clases populares y las
ques dedica um capítulo à avaliação dos dominantes; b) la sumisión de las reformas
caminhos táticos e estratégicos que o estructurales a la ‘necesidad de estabilizar
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la economía’; o sea, las primeras sólo son to mundial a partir da década de 1970,
posibles cuando la segunda ya es una reali- e a forte herança de um marxismo pura-
dad; c) el desplazamiento de la reflexión del mente acadêmico –, Ouriques (Ibid., p.
campo de la economía política y de su críti- 188) assinala também, mas sem traba-
ca hacia el ‘fácil’ terreno de la formulación lhar a fundo, o “carácter profundamen-
de la política económica; d) el abandono te antidemocrático del debate acerca
gradual de la perspectiva antiimperialista de la dependencia ocurrido en Brasil,
y revolucionaria como un objetivo del plan que permitió conocer apenas la visión
económico; e) la tecnocratización del discur- weberiana acerca de la dependencia, re-
so económico de la izquierda que cada día se presentada fundamentalmente por los
parece más al de la clase dominante. trabajos de Cardoso o la contribución
de Furtado.” Na verdade, quase sem-
Em seu trabalho Ouriques revelou a pre representada por Cardoso.
tendência – presente não apenas no PT, Foi precisamente este caráter do de-
mas também em “otras regiones tan dis- bate brasileiro sobre a dependência,
tintas de la realidad que observamos en marcado por um “pensamento único”
Brasil” – ao “regreso del desarrollismo e por uma “inércia intelectual”, que o
como fundamento teórico y político” de presente artigo buscou revelar. Neste
parte del “pensamiento de izquierda y caminho, foi possível estabelecer tam-
progresista en la región”, não obstante o bém um amplo mapeamento bibliográ-
fato de que “muchos estudios acerca de fico para as pesquisas sobre o tema, que
la dependencia afirmaban que una polí- cada vez mais crescem em quantidade
tica de reformas sin estrategia revolucio- e qualidade no Brasil. E ainda que um
naria de ruptura con el poder burgués trabalho como este seja sem dúvida in-
constituye la ‘antesala de la contrarrevo- suficiente – pois um debate que envol-
lución’” (Ibid., p. 218 e 228). ve interpretações teóricas sobre o Brasil
Ao recordar outros elementos de ex- e a América Latina e, junto a elas, lutas
plicação de tal regresso do desenvol- práticas pela transformação da realida-
vimentismo – como a eliminação de de, obviamente não será “resolvido”
muitos quadros políticos da esquerda com meros textos –, talvez contribua
revolucionária nas mãos das ditaduras, em algo para a recuperação plena do
o avanço da contra-revolução no âmbi- pensamento crítico latino-americano.
Referências bibliográficas
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Fernando Correa Prado
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