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Universidade de São Paulo

Interunidades em Estética e História da Arte


Disciplina: América Latina: laboratório de pesquisas
Professoras Doutoras: Cristina Freire, Maria Helena Rolim Capelato e Vera
Maria Pallamin
Mestranda: Luana Nascimento de Lima Souza
Número USP: 9526503
Data: 07/2016

Memoria da América Latina: ideário e impasses no


fazer.

Resumo

O Memorial da América Latina é um equipamento público cultural fundado na cidade


de São Paulo em 1989, durante a gestão do governador Orestes Quércia, composto de
um conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer, teve seu projeto cultural
desenvolvido pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Neste artigo farei uma análise do projeto
cultural do Memorial em relação à gestão cultural desenvolvida atualmente por essa
instituição.

Introdução

O Memorial da América Latina foi concebido durante a gestão do governador


Orestes Quércia (1987-1991). Foi o primeiro projeto arquitetônico destinado à ideia de
América Latina no Brasil. Para isso, um amplo conjunto arquitetônico foi planejado por
Oscar Niemeyer para ser construído ao lado de onde se inauguraria uma estação do
metrô na cidade de São Paulo. O antropólogo Darcy Ribeiro foi o responsável por dar
conteúdo ao Memorial, imaginando-o como um centro cívico, cultural e artístico
destinado a recordar e cultuar os feitos dos povos latinos das Américas. Um projeto
ousado e grandioso com o objetivo de ser um “convite permanente às manifestações
artísticas e científicas latino-americanas” (LEÇA, 2008).

O projeto cultural do Memoria da América Latina de Darcy Ribeiro (1989)


aponta a missão do memorial de “estreitar as relações culturais, políticas, econômicas e
sociais do Brasil com os demais países da América Latina”. Em concordância com o
sonho da Pátria Grande, popularizado por Manuel Ugarte com a publicação do livro de
coletânea de sua coluna “La pátria grande” (1922), contendo discursos de vários países
hispano-americanos promovendo a ideia de unidade hispano-americana defendida por
Artigas, Simón Bolívar, San Martín e outros “libertadores” da América espanhola, o
Memorial vem desde sua fundação em 1989, desempenhando seu papel a partir do:

Fomento à pesquisa e divulgação de seus resultados; apoio à expressão


da identidade latino-americana e incentivo ao seu desenvolvimento
criativo; coordenação de iniciativas de instituições científicas, artísticas
e educacionais do Brasil e de outros países ibero-americanos; e difusão
da história dos povos latino-americanos às novas gerações de
estudantes. 1

O Memorial da América Latina é administrado pela Fundação Memorial da


América Latina, de direito público, vinculada ao Governo do Estado de São Paulo e
instituída pela Lei 6472/89. Foi estruturado a partir de diversos serviços que visavam
atender ao objetivo de favorecer a integração latino-americana. Entre os quais estão:

 Auditório Simon Bolívar: com capacidade para 1609 pessoas, o auditório se


destina a receber espetáculos artísticos, seminários e congressos e até mesmo
exibições cinematográficas, está fechado ao público desde um incêndio em
2013.
 Biblioteca Latino-Americana Víctor Civita: Com um acervo composto por livros
e materiais multimídia especializados em cultura latino-americana, conta
atualmente com mais de 30.000 volumes que visam dar a conhecer a diversidade
da cultura Latino-americana.

1
Memoria da América Latina. Disponível em: http://www.memorial.org.br/conheca/. Último acesso
29/01/2016.
 Salão de Atos: Destinados a solenidades e recepções oficias do Governo do
Estado de São Paulo. Conta com painéis dos artistas Candido Portinari, Poty e
Caribé.
 Pavilhão da Criatividade Darcy Ribeiro: Dá destaque a uma exposição
permanente de arte popular latino-americana que reúne, em especial, trabalhos
dos países com forte influência das civilizações pré-colombianas: Bolívia,
México, Guatemala, Peru e Equador.
 Praça Cívica: Amplo espaço livre destinado à reunião de multidões. Conta com
um dos principais símbolos do Memorial, a escultura A Grande Mão, de Oscar
Niemeyer.
 Anexo dos Congressistas: Espaço reservado a atividades acadêmicas,
diplomáticas, encontros intelectuais, pequenas exposições e comemorações de
datas nacionais, atualmente é a sede da Secretaria Estadual de Direitos
Humanos.
 Galeria Marta Traba de Arte Latino-Americana: Espaço que prioriza a arte
latino-americana. Conta com estrutura para realização de exposições,
premiações, leilões e coquetéis dos vernissages, no projeto inicial esse espaço
era destinado a um restaurante circular.
 Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL): destinado a
desenvolver estudos latino-americanos sob uma perspectiva interdisciplinar,
coordenado pela Universidade de São Paulo, pela Universidade Estadual de
Campinas e pela Universidade Estadual Paulista.
 Edifício da Administração: Sede da Fundação Memorial da América Latina e do
Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL).

Além dos serviços acima citados, o Memorial alberga a Cátedra Unesco


Memorial da América Latina. A Cátedra é um serviço oferecido pelo CBEAL em
parceria com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência, e Cultura
(UNESCO) com o objetivo de oferecer cursos semestrais sobre diferentes temas
mediante o estudo sistemático das realidades culturais, históricas e políticas dos países
latino-americanos. “Trata-se de um programa de pesquisa e docência desenvolvido por
pesquisadores, brasileiros e estrangeiros de comprovada competência em suas áreas”
(LEÇA, 2008).
Ideário Latino-americano

O conceito de América Latina presente na concepção do Memorial ilustra bem o


que é ser (ou não ser) latino-americano a partir da perspectiva brasileira. A relação do
Brasil com a América Latina tem um antecedente histórico de notável distanciamento.
Pode-se dizer que a inclusão do Brasil na América Latina nem sempre se verificou. A
América Latina era a ideologia que justificava a intervenção francesa, liderada por
Napoleão III, no México entre 1861 e 1867. Havia uma valorização da afinidade
linguística e cultural dos povos latinos como forma de opor-se à dominação anglo-saxã,
e a França se considerava a líder natural desse processo (PHELAN, 1968). Segundo
Leslie Bethell (2009), também são autores do termo os pensadores hispano-americanos:
José María Torres Caicedo, jornalista, poeta e crítico colombiano (1830-1889);
Francisco Bilbao, intelectual socialista chileno (1823-1865), e Justo Arosemena, jurista,
político, sociólogo e diplomata colombo-panamenho (1817-1896). Geralmente, o
conceito referia-se a oposição aos Estados Unidos e a uma ligação forte entre as
repúblicas hispano-americanas. Importantíssimo destacar que o conceito em sua origem
não incluía o Brasil, até então mais identificado com o Pan-americanismo2.

Apesar de o Brasil ter desenvolvido uma relação próxima com os Estados


Unidos, mantinha uma política externa independente que dialogava com URSS e com
diversos países. Durante a Guerra-fria o tratamento dado pelos EUA ao Brasil não foi
diferente do tratamento dispensado aos demais países da América Latina (BETHELL,
2009). Dessa forma, o conceito América Latina em oposição à América Anglo-Saxônica
passou a incluir, de forma quase arbitrária, também o Brasil.

Entre os principais autores a pensar o Brasil na América Latina pode-se destacar


autores como: Eduardo Prado (1860-1901) denunciante do imperialismo americano que
rechaçava o ideário pan-americano, Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) que incluiu
não somente o estudo comparativo entre o Brasil e os EUA, mas também buscou
compreender a vasta porção do continente de fala espanhola (pela qual não nutria muita
simpatia); Joaquim Nabuco (1849-1910) que se tornou um defensor de uma
aproximação com os Estados Unidos e um admirador da civilização norte-americana

2
Doutrina encabeçada pelos Estados Unidos entre os séculos XIX e XX que defende a aliança política de
todos os países do continente americano.
com uma visão da América Espanhola/América Latina em grande medida negativa.
Com outra perspectiva, Manoel Bomfim (1868-1932) representa um importantíssimo
expoente entre os pensadores que manifestaram seu engajamento intelectual pela causa
latino-americana atribuindo os problemas da América Latina ao “parasitismo social”,
construído sistematicamente pelo tipo de colonização imposta pelas metrópoles sobre os
organismos que eram as colônias. Já Gilberto Freyre (1900-1987) demonstrava uma
clara disposição em defender, idilicamente, a América Ibérica e mestiça diante de um
mundo de intolerância e guerra. Sergio Buarque de Holanda (1902-1982) demonstrou
um grande interesse pela literatura dos países vizinhos e pela comparação da história
dos países hispano-americanos com a nossa. Fernando Henrique Cardoso, ao viver o
exílio político no Chile incluiu o Brasil no pensamento social latino-americano ao
publicar Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1970), primeiramente em
espanhol.

O projeto cultural do Memorial

Darcy Ribeiro, considerado un brasileño latinoamericano, desenvolveu vários


estudos sobre a América Latina a fim de sanar sua inquietação: entender o Brasil. Esse
objetivo é explicitado com a publicação de O Povo Brasileiro (1995). Entender como
esse Brasil se constitui latino-americano para Ribeiro significava uma oportunidade de
compreender melhor o que foi, ou o que é a América Latina para o Brasil. No projeto
cultural do Memorial da América Latina encontramos explícitos os anseios de uma
América Latina reinventada, capaz de superar seus problemas e de se fortalecer
conjuntamente. Havia no trabalho de Darcy uma constante preocupação em esclarecer o
potencial criativo e tecnológico dos nossos povos, uma obstinação em fazer as pessoas
acreditarem que o desenvolvimento também nos era possível e que a construção do
mundo moderno também nos dizia respeito.

Abaixo as funções descritas no programa de autoria de Darcy Ribeiro3:

3
RIBEIRO, Darcy. Memorial da América Latina. 1989.
 Estreitar as relações culturais, políticas, econômicas e sociais do Brasil e de São Paulo
com a América Latina;
 Constituir-se como um instrumento concreto de colaboração científica e tecnológica,
cultural e educativa;
 Coordenar iniciativas internacionais de alcance continental, que encarnem os interesses
dos povos latino-americanos;
 Aprofundar a convivência e a amizade dos povos da América Latina, dando aos
brasileiros e aos paulistanos um papel ativo na promoção da solidariedade latino-
americana;
 Operar como núcleo de criação e intensificação de uma consciência crítica latino-
americana, marcada por sua lucidez, frente a realidade presente e altamente motivada
para superação do atraso e da dependência;
 Fomentar todas as formas de expressão da identidade latino-americana e de incentivo à
criatividade cultural;
 Organizar e manter um centro de informações básicas, que retrate a realidade latina
americana, em todos os aspectos, através de uma biblioteca especializada e de um banco
de dados;
 Difundir o conhecimento objetivo da história dos povos latino-americanos, acentuando
o orgulho de nossa identidade, como um dos principais blocos mundiais e como matriz
de uma futura civilização, generosa e solidária;
 Incentivar a cooperação entre as instituições científicas, artísticas educacionais de São
Paulo e suas congêneres da América Latina.

Nota-se o objetivo audacioso de promover a integração regional, ainda que a


partir de uma iniciativa do estado de São Paulo. Evidencia-se também uma visão de
América Latina como um subcontinente que precisa vencer o subdesenvolvimento e
unir-se contra a dependência econômica gerada pelos Estados Unidos e anteriormente
pela Europa. Esse posicionamento traz consigo várias nuances que retomam o debate do
“sentido” de uma América Latina. A oposição à América anglo-saxônica é novamente
reforçada ao declarar a necessidade de superação da dependência. A concepção de
América Latina como a civilização do futuro também encontra espaço entre as funções
do Memorial da América Latina. Sendo assim, admite-se mais uma vez que em termos
de “civilização” ainda não o somos enquanto região. A ideia de uma sociedade em
construção que almeja chegar a um patamar que até agora nos foi negado é explicita na
obra de Darcy Ribeiro e no discurso dos demais envolvidos com a idealização do
Memorial.

O Pavilhão da Criatividade destinado à exposição permanente de arte popular de


artesões especialmente da Guatemala, do México e do Altiplano Andino traduz o desejo
valorizar a capacidade latino-americana ainda que de forma exótica, exaltando a herança
das altas civilizações pré-colombianas como uma forma de resgatar uma glória histórica
que prove a não inferioridade dos povos daqui. Outro aspecto a se observar é que a
unidade do Brasil em relação à América Latina é construída em alguns momentos de
maneira forçada. O resgate da imagem de Tiradentes no painel de Cândido Portinari no
Salão de Atos expressa a necessidade de preencher o vazio de próceres do Brasil se
comparado a países vizinhos.
Certamente, o Memorial, assim como todas as instituições, precisa repensar seu
papel constantemente, representar e fomentar a união entre distintos povos e culturas
sob a denominação América Latina não é tarefa das mais fáceis, talvez intangível. Nas
reflexões teóricas sobre museus estão presentes horizontes metodológicos que podem
ser úteis aos desafios presentes no Memorial. O crítico de arte Mario Pedrosa ao falar
sobre o papel dos museus defendeu que:

“O Museu não pode se resumir a ter um acervo de obras de arte mais


ou menos importantes, expô-las permanentemente ou periodicamente. Deve
cuidar de suas funções educativas, em cursos de iniciação e de estética, com
um arquivo mais completo possível, uma biblioteca especializada. Não deve
ficar trancado dentro de suas paredes, mas sair pelos outros centros urbanos
do interior, com mostras circulantes adequadas e guias capazes; ir à televisão
para explicar quadros e obras aos telespectadores e o significado dessas
obras, etc.”. (Pedrosa, 2013, p. 70)

Acervo e ação educativa se mostram fundamentais aos museus, ainda que sejam
possíveis outros formatos. O museu se refere também à cultura material. No universo
dos museus o acervo é sim importante, sendo fundamental para o entendimento da
apropriação social de segmentos da natureza física – e ainda mais, de apreender a
dimensão material da vida social (MENESES, 1994, p. 30). Porém, é preciso entender
que toda operação com documentos é de natureza retórica, são narrativas sendo
construídas. Nesse sentido, o Memorial não é diferente. O museu precisa ter como meta
a “alfabetização museológica”. Tornar os usuários capazes de dominar a convenção e
viabilizar a fruição autônoma (MENESES, 1994, p.33). Sendo assim, como pensar uma
fruição autônoma para do Memorial da América Latina?

A exposição museológica pressupõe, forçosamente, uma concepção de


sociedade, de cultura, de dinâmica cultural, de tempo, de espaço, de agentes sociais e
assim por diante (Shanks & Tilley 1987). Muitas vezes estas concepções se apresentam
de forma estereotipada, “é um risco presente quando objetos são expostos como coisas
sem levantar discussão de como o comportamento humano produz e utiliza coisas com
os quais eles próprios se explicam” (MENESES, 1993. p. 212).
Ao pensarmos o museu histórico, vemos que este não é compatível com síntese
de uma “História Universal” ou de uma “História Nacional”. O aspecto estrutural da
história deve ser mantido. Os objetos precisam estar relacionados às estruturas a que
pertencem. Contudo, é preciso reconhecer que os objetos não podem representar
processos, dinâmica social. Portanto, ensinar História é ensinar a fazer História, o
museu histórico deve também ensinar a fazer História com objetos.

Para elucidar a questão das identidades e do fazer histórico dos museus o


pesquisador Mario Chagas em seu livro “A imaginação museal: Museu, memória e
poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro” mostra como o Museu do
Índio já continha um importante elemento comum ao projeto do Memorial da América
Latina: a possibilidade de ser um espaço de pesquisa. O Museu do Índio contou com a
participação significativa de Darcy Ribeiro na sua concepção e desde o início previa
exposições e:

“Além destas atividades de divulgação para o público em geral, o


Museu funcionará como centro de pesquisas proporcionando aos estudiosos
de problemas indígenas a oportunidade de examinar a coleção de artefatos,
consultar o arquivo cinematográfico, a discoteca, e também de utilizar, no
mesmo local, uma biblioteca especializada (apud Chagas, 2009, p. 167)”.

Darcy Ribeiro considerava os museus atores importantes no processo


educacional e atribuía parte do preconceito contra os povos indígenas aos museus
etnográficos tradicionais que representavam o “índio” de maneira exótica, diante disso,
o Museu do Índio buscou construir uma nova narrativa sobre os povos indígenas, na
qual a alteridade daria lugar à identificação.

Ainda que o museu se relacione em seu fazer com a questão da


identidade. A identidade é um processo, não um produto que só pode ser apreendido e
entendido em situação, não abstratamente. O emprego do típico (fácil de descambar
para o estereótipo) constitui simplificação que inelutavelmente mascara a complexidade,
o conflito, as mudanças, e funciona como mecanismo de diferenciação e exclusão. Não
é possível, por intermédio de exposições museológicas, expressar a “significação” de
determinado grupo ou cultura, “povo”, nação ou segmento social (Meneses, 1994, p.
38). Diante disso, é impossível que o Memorial da América Latina traduza em seu
complexo de edifícios e espaços de exposição o que é ser latino-americano.
O Memorial que não foi?

Ver o Memorial da América Latina, acompanhar sua programação ou mesmo


ouvir a opinião dos diversos públicos sobre o Memorial traz várias reflexões e
questionamentos. Por que um Memorial da América Latina em São Paulo? Por que na
Barra Funda? Para que serve o Memorial? América Latina? São questionamentos que
certamente não se responderão com esse artigo. O que pretendo aqui é reconhecer que
ainda que o Memorial não seja exatamente um museu, dispõe de aspectos museológicos
e compartilha de muitos dos desafios que os museus trazem em suas funções. Nesse
sentido, a questão que busquei levantar aqui é como a instituição cultural Memorial é
perpassada pela concepção de “América Latina” atualmente.

Existe pouca bibliografia acadêmica sobre o Memorial, seja enquanto


monumento arquitetônico, instituição cultural, fundação pública ou sobre sua história.
Entre os raros trabalhos está a monografia de graduação em História na Universidade
Federal de São Paulo de Tiago Souza Martins. Em sua monografia Martins analisa o
Pavilhão da Criatividade. Por possuir um acervo em exibição permanente, o Pavilhão é
o edifício do Memorial que mais se assemelha a um museu. Porém não o é:

Por se tratar de um espaço dedicado a exposição de objetos seria


coerente tratar então o Pavilhão como um museu? Não necessariamente. O
Pavilhão não é um museu propriamente dito, primeiramente porque o espaço
não possui essa categorização, não possui as especificidades técnicas desta
instituição como uma reserva técnica e não há também museólogo (Martins,
2011, p.39).

Como já foi mostrado neste artigo, o projeto cultural do Memorial contém


objetivos que não competem a uma instituição desse porte. São objetivos que
extrapolam as competências de um ente da federação, além disso, são bastante
subjetivos e não apontam uma linha de ação, monitoramento ou avaliação de seus
alcances. É um projeto cultural em tom de manifesto. São anseios apaixonados ou
simplesmente uma temática apaixonante que para todos os efeitos obriga a instituição
“Memorial da América Latina” a rememorar o que é ou não é a América Latina. Assim
como nos museus, o papel educativo e formativo aqui também é evocado. Contudo,
uma temática tão controversa, algumas vezes deslocada no tempo, outras no espaço, ora
pertinente, ora não, em muitas ocasiões parece ser mais um fator limitador da gestão
cultural e não um fator de potência.
A revista do Memorial da América Latina n°50 comemora os 25 anos de criação
do Memorial com uma edição especial que traz uma entrevista de João Batista de
Andrade que havia acabado de assumir a presidência do Memorial em setembro de
2012. Na ocasião ele relata o atual processo de “recriação” do Memorial, diz que seus
objetivos iniciais eram “irreais” e defende a necessidade de estabelecer o Memorial
como um “centro cultural complexo”. Um dos principais argumentos utilizados para
defender sua posição é que “Uma pergunta recorrente era como se fazia para entrar no
Memorial. Percebi que estava muito isolado da população, fechado em si mesmo, apesar
de seus excelentes conteúdos.”. Aqui fica evidente o mesmo fenômeno que em muitas
instituições culturais do Brasil: o baixo número de frequentadores. Além disso, a
temática América Latina aparece como algo a ser revisada, ampliando o escopo de
atuação do Memorial. Essa permanente revisão é intrínseca ao fazer do museu.

“No museu, principalmente no museu histórico que superou a


função de repositório e dispensador de paradigmas visuais, a inteligibilidade
que a História produzir será sempre provisória e incompleta, destinada a ser
refeita. Daí, porém, sua fertilidade. Por isso tudo, talvez o museu histórico já
esteja maduro para fazer aquilo que só o museu pode fazer bem, com
competência e por vocação (ainda não atualizada): explorar, não sínteses
históricas sensoriais, mas a transformação dos objetos em documentos
históricos. Em vez de teatro, laboratório, com tudo aquilo de criador que essa
idéia contém” (Menezes, 1994, p.41).

A ideia de “laboratório” também é útil ao Memorial da América Latina. Para o


arquiteto Le Corbusier, as artes inseridas nos centros das cidades são a expressão da
vida e os espaços deverão ser abertos e acessíveis a todos. Os edifícios que os
complementam, ao contrário dos monumentos estáticos, deverão ter uma função
dinâmica e atuante, “um tipo de arquitetura nem efêmera nem eterna” 4. Os novos
museus a serem implantados deveriam considerar a relação entre seus espaços
experimentais e os espaços ao ar livre; suas instalações flexíveis e variadas
proporcionariam “novas oportunidades e experimentação, isto é, virão a ser uma espécie
de laboratórios de investigação” 5. O Memorial da América Latina também construído
de acordo com o paradigma modernista deve ser capaz de ser esse espaço “laboratório”
de refazer constante.

4
LE CORBUSIER. “O Coração como ponto de reunião das artes.” ROGERS, E. N., SERT, J. L.,
TYRWHITT, J. El Corazón de La Ciudad: por uma vida más humana de la comunidad. Barcelona:
Hoelpi, 1955, p. 41.
Uma vez que “o fazer museológico é compreendido como um processo
caracterizado pela aplicação das ações de pesquisa, preservação e comunicação”
(SANTOS, 2008, p. 134). O refazer do museu está no entendimento de que este é “uma
instituição histórico-socialmente condicionada, não pode ser considerado um produto
pronto, acabado; ele é fruto das ações dos sujeitos que o estão construindo e
reconstruindo a cada dia” (SANTOS, 2008, p. 140).

Seja qual for a instituição cultural o trabalho de se repensar será uma constante.
Certamente que número de frequentadores, ou popularidade, constitui indicadores
importantes do “fazer-se” da instituição. Atualmente, a identidade visual do Memorial
traz a frase de sustentação “Memorial – Espaço de Cultura e Lazer” abdicando do
conceito que o motivou: “América Latina”. O abandono e a negação de seus objetivos
iniciais podem até facilitar o trabalho, mas trazem consigo o risco do esvaziamento e a
ameaça de criar um espaço cultural sem forma e consequentemente, de reduzido
potencial educativo. Trabalhar com a ideia de “América Latina” apresenta uma enorme
gama de impasses, a dificuldade existe, mas é no “refazer-se” que está sua riqueza.

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