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Apossível formação de uma região garimpeira em Terras Indígenas Yanomami

Resumo
Este projeto de pesquisa tem por objetivo fazer uma análise sobre a territorialização do capital e suas dinâmicas
regionais em relação à exploração garimpeira em Terras Indígenas Yanomami, povo formado por mais de 16 mil índios em
território brasileiro, distribuídos em 250 aldeias. Partindo de eixos como a mobilidade do trabalho e a divisão territorial do
mesmo, encontramos nos garimpeiros, indígenas e “brancos”, uma de suas especificidades de acordo com o sentido do
processo, fundamentando-se no “Sentido da colonização” e na formação de uma classe trabalhadora regional.

Palavras-chave: garimpo em T.I.; garimpo; Yanomami

1. Introdução
Segundo a Funai1, os Yanomami2 em território nacional estão em Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas,
tratadas no art. 231 da Constituição Federal de 1988, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.
Possui uma área contínua de 9419108 hectares de floresta tropical úmida com relevo montanhoso, na fronteira com a
Venezuela, abarcando os municípios Caracaraí, Alto Alegre, Boa Vista, Barcelos, São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do
Rio Negro. Com uma população de aproximadamente 16000 pessoas, sendo que parte desta localiza-se a noroeste de
Roraima, onde estão situadas 197 aldeias que somam 9506 pessoas e outra parcela a norte do Amazonas com 58 aldeias que
somam 6510 pessoas.
Tendo em vista a área, objetivamos aqui o estudo da territorialização do capital na Terra Indígena Yanomami, entre o
final dos anos de 1970, momento em que o ouro torna-se uma commodity negociada livremente em bolsa de mercadorias e
futuros , até os dias atuais. Buscaremos indagar a gênese, ou não, de uma região4 garimpeira e suas especificidades em
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relação à mobilidade do trabalho (GAUDEMAR, 1977), que os nossos olhos, aparece enquanto parte do processo de
territorialização do capital (BOECHAT, TOLEDO, 2012 e RAFFESTIN, 1993), ajudando a caracterizar uma região
(OLIVEIRA, 1981), gerando ou não um processo de acumulação primitiva (MARX, 2013). Resultado que alçaremos
através dos estudos sobre as personas em relação na área estudada, passando pelo prisma do processo de desvinculação do
dinheiro de sua substância social, o valor. (KURZ, 2002). Para tal estudo, precisaremos relacionar o tripé do capital ao objeto
de estudo, enquanto a terra pode parecer personificada pelos Yanomami, o trabalho fica na mão dos garimpeiros e o capital
personificado por empresários brasileiros e estrangeiros que comercializam os minerais no mercado global.
A abrangência temporal propicia o exame comparativo das áreas estudadas em contexto de baixa e alta cotação dos
minérios garimpados, assim como permitirá perceber as influências dos novos metais que passam a fazer parte do circuito
mundial de mercadoria, como Nióbio, Tálio e as chamadas Terras Raras; fundamentais para as indústrias de alta tecnologia e
1 Fundação Nacional do Índio (Funai) é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Foi criado pela Lei 5 371, de
5 de dezembro de 1967. Vinculado ao Ministério da Justiça.
2 “Yanomami” é uma palavra criada por antropólogos a partir da expressão ianomâmi yanõmami thëpë, que significa
ser humano, por oposição a yaro (animal de caça), yai (ser invisível ou sem nome) e napë (inimigo, estrangeiro,
branco, não yanomâmi).
3 Período no qual também é rompido o padrão ouro-dólar.
4 Os conceitos de região, mobilidade do trabalho, territorialização do capital e acumulação primitiva serão tratados
com mais detalhes no capítulo destinado ao referencial teórico, capítulo 3.
com demanda crescente devido aos níveis atuais do desenvolvimento das forças produtivas, que necessitam cada vez mais de
infinitas especificidades para produzir, trazendo 'valor' ao que antes eram meras partículas na terra.
No início do século XXI, devido à crescente demanda, o mundo passou por uma supervalorização das
commodities minerais e agrícolas no mercado financeiro internacional. Juntamente com especificidades locais,
principalmente a tamanha desclassificação (MELLO E SOUZA, 1990) e pobreza geral (KURZ, 1999) dos habitantes de
consideráveis regiões do globo que foram sendo territorializadas pelo capital, formando regiões ímpares em todo o mundo.
Desta forma, trataremos a região como conceito e como caso particular, passando pelo estudo da mobilização do trabalho
como formação dos pressupostos ou das condições de realização do valor. Isto é, abordá-la como criação das relações sociais
de produção, territorializando-se numa realidade particular (2012, p. 450). Nesse sentido nos perguntamos como o processo
de modernização se realiza no caso das Terras Indígenas Yanomami e como esse processo resulta em seu próprio
apagamento e na forma da naturalização da mercadoria.

2.1. Ocupação e garimpo na região Norte.


Nos primórdios da colonização brasileira, a região Norte se destaca como produtora de gêneros tropicais, sendo as
produções extrativistas elemento fundamental na economia amazonense (PRADO JR., 2000, p. 218). O extrativismo de
borracha fez-se um elemento muito importante na economia da região, pautados no trabalho escravo indígena e, raramente,
de negros, os primeiros tratados como “admiravelmente preparados” (2000, p. 219) para tais atividades e como os que se
amoldam com “facilidade à colonização e ao domínio do branco” , sendo a mobilização deste trabalho elemento mais
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contingente à colheita e seus períodos. Cabe notar como o indígena já torna-se força de trabalho com o sentido da colonização
(2000, p. 7), tornando-se trabalhador móvel que desloca-se para onde tiver produção, podendo ser reconhecido como “índio
manso” ou “gentio hostil”, esse último geralmente dizimado. Segundo a Funai, os Yanomami foram considerados, por
muito tempo, índios isolados e o contato com a civilização vem gerando conflitos sangrentos revelando alguns dos
“caracteres gerais da colonização brasileira, esta empresa exploradora dos trópicos, se revelam aí em toda sua crueza e
brutalidade” (2000, p. 222). Extrativismo vegetal que se manteria até o início dos anos trinta. Não se trata, aqui, de
simplesmente interpretar nosso passado colonial, mas, a partir daí, considerar que o mesmo possibilita uma interpretação
lógica da forma como se estabelece a mobilização das populações estudadas nessa pesquisa.
Já o garimpo, mesmo caracterizado, atualmente, por uma “corrida do ouro amazônico”, verificada com maior
intensidade a partir dos anos oitenta, além da exploração de cassiterita que destaca-se nos anos setenta, na região Norte tem
uma história antiga. Da mesma forma que em outras regiões mineradoras no Brasil, como Mato Grosso e Goiás, na região
Norte também se encontra o desenvolvimento de núcleos de garimpagem, áreas de impulso inicial à atividade e que passam
a exercer um papel de 'difusoras' para as demais. Datadas da primeira metade do século XX, são elas o eixo goiano Araguaia-
Tocantins, que estabelece uma ponte com o povoamento em Goiás; o oeste maranhense, área de origem de grande
5 “No vale amazônico, as formas de atividades se reduzem praticamente em duas: penetrar a floresta ou rios para
colher os produtos ou capturar o peixe; e conduzir as embarcações que fazem todo o transporte e constituem o
único meio de locomoção. Para ambas estava o indígena admiravelmente preparado.” (2000, p. 219)
contingente de garimpeiros que desbravavam as áreas diamantíferas e de quartzo em Mato Grosso, Goiás e de Marabá; e o
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vale do Tapajós e Rondônia (PÓVOA NETO, 1998, p. 268). Nos anos trinta, a elevação do preço do ouro levou a uma
política de reconhecimento dos garimpos e de estímulo ao aperfeiçoamento técnico da exploração. Nessa época a produção
técnica e científica sobre os garimpos brasileiros intensifica-se; o recém-criado Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM) enviou diversas missões de técnicos à área aurífera maranhense, registrando uma intensificação na garimpagem e
propondo soluções para a melhoria das lavras e a aquisição de ouro pelo Banco do Brasil (1998, p. 271).
Segundo Póvoa Neto, o oeste maranhense apresentava-se como área de emigração para o Centro-Oeste e para
Amazônia, supondo, então, que a experiência e os costumes de garimpagem teriam sido um estímulo para “tentar a sorte”,
ainda que na exploração de outro minério, em um locus distante. É importante ressaltar o papel desses migrantes na
constituição de núcleos de garimpagem, pois isso ajuda a relativizar o papel, geralmente dado como determinante, da alta do
ouro para o boom aurífero na Amazônia. Já nas décadas que seguem o pico do ouro dos anos trinta e quarenta, ocorre uma
retração tanto dos preços, quanto da extração mineral, sendo nesse período constatado grande fluxo migratório para o sul da
região norte, constituindo novas áreas de garimpagem, composta basicamente por trabalhadores vindos da fronteira
maranhense e goiana. A mobilidade garimpeira aparece aqui como uma estratégia de sobrevivência, desde que garantida sua
reprodução, o garimpeiro atravessa até mesmo conjunturas desfavoráveis a atividade.
Para alguns autores, o garimpo vinha enfrentando, já no final da década de sessenta, os primeiros sinais de crise, uma
vez que os aluviões foram todos trabalhados sem modificação na base técnica de extração durante dez anos
(WANDERLEY, 2015, p. 8), ou seja, relacionam a crise com a queda de produtividade da mineração, porém, mesmo com a
baixa produtividade, não ocorre a perda de importância do metal aurífero. Já que desde a descoberta pioneira de reserva de
ouro no Rio Tapajós, mais especificamente no Rio das Tropas em 1958, o núcleo do Tapajós cresceu praticamente esquecido
pelos governos e pelas empresas de mineração até o final dos anos setenta, atraindo uma população em busca de alternativa
ao extrativismo dos produtos da floresta e do látex. Durante duas décadas, a área mantém relações particulares entre terra,
trabalho e capital, que inclui formas de troca e aviamento, com as cotações do ouro afetando periodicamente o aporte
tecnológico e a expansão ou retração da atividade, que em baixa passa a dar lugar à agricultura de subsistência (1998, p. 273).
Nesse ínterim, a lavra permanece quase inteiramente manual até o final dos anos setenta , posteriormente as áreas de
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garimpagem tenderam a se estender por volta de 250.000 km², com mais de 150 corrutelas equipadas com pistas de pouso e
tendo Itaituba8 como centro operacional e financeiro. Tamanha é a especificidade da formação desse grande núcleo de
garimpagem que alguns autores chegam a denominá-lo de 'modelo Tapajós' (1998, p. 268) de garimpo, que viria ser

6 “que abandonavam a economia da borracha em crise no Sudeste do Pará e buscavam alternativas como a
garimpagem de diamantes em Mato Grosso e Goiás (…) Os primeiros registros seguros quanto à chegada de ouro
maranhense a São Luiz datam do século XIX, extraído da área entre os rios Gurupi e Pindaré. A exploração aurífera
do Maranhão se caracterizava por ser feita principalmente junto aos inúmeros quilombos existentes na área de
floresta.” (PÓVOA NETO, 1998, p. 268) Quilombos desarticulados por expedições militares em um momento e
que ressurgem com o abandona da área pelos exploradores oficiais.
7 Mesmo que “desde os anos sessenta os primeiros requerimentos formais de licenças para mineração e o uso
pioneiro do avião na logística de apoio à atividade já indicassem um processo de concentração do capital” (1998, p.
273)
8 Itaituba é um município localizado no sudoeste paraense, às margens do rio Tapajós.
estendido para diversas outras áreas da região Norte. Tal modelo caracterizar-se-ia por um determinado conjunto de
elementos: a vasta extensão da área explorada; uso do avião para facilitar o problema do acesso; carência de mão de obra
local, suprida basicamente pela migração de maranhenses; a figura do 'dono do garimpo'; a ilegalidade e a não interferência
oficial; e a assimilação progressiva de técnicas mecanizadas. Modelo ainda em voga até hoje na região Norte,
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principalmente nas novas 'fronteiras minerais' que já adentram territórios de difícil acesso no noroeste de Roraima e nordeste
do Amazonas, como no caso estudado na Terra Indígena Yanomami.
Em paralelo, a partir dos anos 70, a região Norte como “fronteira” de expansão do Capital, passa também a ser alvo
do planejamento Estatal, através de projetos de mineração e agropecuária; formação de corredores de exportação,
hidrelétricas, hidrovias, ferrovias e rodovias; além da criação de áreas de proteção ambiental, territórios de populações
tradicionais, pela colonização rural e urbanização. Desta maneira, entendemos que na região em questão existem processos
sociais planejados, orientados pelo fluxo de capital e gestados pelo Estado, mas também processos espontâneos, não
controlados oficialmente, mas que não deixam de estar relacionados à territorialização do capital.

2.2. Amobilidade garimpeira na Região Norte.


Em pesquisa realizada pela Universidade de Minas Gerais, em 1984 (1991, p. 55), foram entrevistados 500
garimpeiros que trabalham em três regiões amazônicas diferentes. Os resultados apontam que geralmente são originários do
estado do Maranhão e estados nordestinos, com idades de quinze a trinta anos, analfabetos expropriados, provenientes de
área rural que migraram à procura de trabalho, porque a atividade agrícola não permitia condições suficientes para o sustento
da família. Sua renda provem alternadamente do garimpo e da lavra da terra, mas muitas são as histórias de que o “pouco
que ganham é gasto em bebidas, mulheres e algumas extravagâncias”. Quem consegue economizar compra gado, investe na
agricultura ou tenta tornar-se garimpeiro representante do capital, ancorados nas infinitas histórias de bamburros milionários
– estes ocultando os blefes comuns ao garimpo. A malária é uma constante em sua vida, como outras doenças pela
insalubridade do trabalho. Os preços dos gêneros de primeira necessidade são exorbitantes em áreas de garimpo, o que
mantém o garimpeiro em condições miseráveis, sendo a garimpagem uma das poucas fontes de ganho para o colono ou para
o pobre da área urbana.
Para esse contingente de 'desocupados' a adoção da garimpagem aparece como uma alternativa às outras formas de
produção, marcado pelos vínculos precários com a terra ou com a propriedade formal da mesma e geralmente envolvidos
com a ilegalidade da atividade. Vale considerar o paralelo entre as crises que afetam a pequena agricultura amazônica, os
movimentos em busca da garimpagem como atividade10 - complementarmente ou como principal fonte de renda - e sua
relação com projetos planejamento estatal. Nesse contingente garimpeiro formado por colonos desestabilizados pela falta de
condições para venda da sua produção, trabalhadores incapazes de encontrar trabalho nos grandes projetos agropecuários, de

9 Ainda que a partir de 1984, a construção da rodovia 'Transgarimpeira', ramal da Cuiabá-Santarém (BR-163), tenha
facilitado a penetração de empresas com outra forma de garimpagem.
10 Por exemplo em Nova Xavantina, onde tratores e colheitadeiras foram desmontados e adaptados ao garimpo,
atividade mais rentável na época (1998, 279)
mineração ou de construção civil e posseiros expulsos pela concentração da terra, também é mobilizado por grandes projetos
infraestruturais, de pesquisa e prospecção, financiados pelo Estado, como a Perimetral Norte, o Calha Norte e o Projeto
Radam. São essas algumas das bases que auxiliam a explicação da “explosão garimpeira” amazônica a partir dos anos
setenta (BECKER, 1990, p. 21- 22).
Segundo Póvoa Neto, nos anos oitenta, o Brasil apresenta uma interrupção no crescimento de postos de trabalho
assalariado nas cidades, consequência do próprio processo produtivo crítico e da constante (des)valorização do capital. No
entanto, a população economicamente ativa mantém-se em ascendência juntamente com a urbanização, as atividades
terciárias respondem pela absorção da maior parte desse contingente (KURZ, 2014, p. 30). Assim o trabalho por conta
própria tem um crescimento significativo (1998, p. 282). Percebemos uma grande rotatividade da mão de obra, com poucos
empregos estáveis e uma grande maioria de postos de trabalho com vínculos instáveis e com nível de remuneração reduzido,
esses últimos deslocam-se de forma intermitente, à procura de empregos. Tal incerteza, traduzida em mobilidade do trabalho
para o capital, proporciona uma permanente expectativa quanto a quais setores da economia estariam favorecendo a geração
de empregos.
A garimpagem torna-se um investimento atrativo para empreendedores da economia formal (mesmo que
empreendam na economia informal), que com certo montante de capital podem vir a ser os donos de serviços, ou sócios de
algum dono. A modernização do garimpo através dos exemplos de Tapajós permite um acentuado aumento da
produtividade, já que são expressivos os ganhos propiciados pela racionalização (KURZ, 2004, p. 20) da produção,
associando o uso de bombas de sucção, de desmonte hidráulico, de dragas e do azougue. Concomitantemente, a
incorporação dessa tecnologia necessita de serviços de apoio no campo do comércio, reparos em geral, bancos, compradores
de ouro e etc, reforçando uma tendência à urbanização da fronteira. Até o último quartel dos anos setenta, a garimpagem na
Amazônia era pouco perceptível, mas logo após a grande alta do ouro em 1979, a região Norte volta a ser foco das atenções
com sua corrida à garimpagem; exemplo maior desse processo, o fascínio exercido por Serra Pelada em todo país,
desencadeando o que alguns denominam como “novo ciclo do ouro no Brasil”. No caso da área estudada na época, o
garimpo constitui um dos poucos focos de emprego na região (1998, p. 284).

2.3. Os Yanomami e o garimpo


O povo Yanomami é formado por aproximadamente 16 mil índios em território brasileiro, distribuídos em torno de
250 aldeias. Ocupando a região do alto rio Branco, oeste do estado de Roraima, bem como a margem esquerda do rio Negro,
norte do estado do Amazonas. Os Yanomami são seminômades, possuem língua e cultura próprias e sua subsistência (caça,
pesca, agricultura e coleta de frutos) depende da floresta e do rio. Mesmo tendo contatos com missões nos séculos anteriores e
com extrativistas, da borracha ao garimpo, há pouco eram considerados pela Funai como Índios Isolados.
Apropósito dos Yanomami, o ex-ministro da Justiça, Jarbas Passarinho reconheceu em 1993:
“Logo que o Projeto Radam evidenciou a presença de ouro no subsolo, e a Perimetral Norte levou o acesso até a terra
milenarmente ocupada pelos Yanomami, que aconteceu? A morte de mais de 50% da tripo de Catrimani, causada por
gripe e doenças, que não são mortais para nós, mas o são para índios não-aculturados. Não foi só nessa tribo, mas em
várias outras, onde se deu presença de garimpeiros. Eles poluíram os rios com mercúrio, afastaram a caça pelo barulho,
provocaram fome e desnutrição dos índios, enquanto contra nós avolumava-se a acusação de que praticávamos o
genocídio. Não era exagerada a denuncia.” (COMISSÃO NACIONALDAVERDADE, 2014, p. 210)
Em dezembro de 1973, promulga-se o Estatuto do Índio11 (Lei n o 6.001/1973). Vários dos seus artigos tornam
legais, sob condições restritivas, práticas correntes e denunciadas desde o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O artigo 43
estabelece a “renda indígena”, legalizando assim a exploração de madeira e outras riquezas das áreas indígenas. O artigo 20
introduz a possibilidade de remoção de populações indígenas por imposição da segurança nacional, para a realização de obras
públicas que interessem ao desenvolvimento nacional, incluindo a mineração. O que se pode entender por segurança
nacional e por desenvolvimento é deixado vago, mas será usado na tentativa de proibir, na década de 1980, a demarcação de
terras indígenas na faixa de fronteira. Dessa forma, o Estado põe-se como dúbio, ao mesmo tempo que demarca terras
indígenas, também promove a ocupação da área. Em 1985, é elaborado o projeto Calha Norte, que só vem a público em
1986. Nos Yanomami de Roraima, o projeto abrirá pistas que servirão para a expansão da fronteira de garimpagem na área.
Ação muito condenada pelas ONGs que acompanham a situação dos Yanomami de perto, como a CCPY, URIHI – Saúde
Yanomami e outras . Tais ONGs que acompanham os indígenas estão relacionadas com as mais estranhas empresas
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privadas e a investigações do Estado. Por exemplo a CCYP que tem como maior patrocinadora a empresa de tráfego aéreo
da América do Norte (NORAD) e a URIHI que foi investigada pela CPI das ONGS. Curioso pensar que o contato com tais
organizações também funcionam como uma forma de colonização, uma colonização da subjetividade.
Segundo a Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 232), um dos casos mais flagrantes de apoio do poder público
à expensão da garimpagem se deu na gestão de Romero Jucá à frente da Funai, na região de Paapiú e Couto Magalhães,
onde o garimpo tem origem com a ampliação de uma antiga pista de pouso pela Comissão de Aeroportos da Região
Amazônica (Comara), em 1986. A Funai e os demais agentes públicos se retiram da região, tendo como álibi um conflito
entre garimpeiros e Yanomami, que resulta na morte de quatro indígenas, deixando a área favorável ao garimpo . 13

O impacto dessa migração em massa para as novas áreas de garimpagem é enorme, já que chegaram cerca de 40
mil garimpeiros no final da década de 1980 em busca de seu Eldorado. Não há um número oficial de mortos em decorrência
do contato entre os Yanomami e os garimpeiros, mas estima-se que chegue aos milhares (2014, p. 233). Comunidades
inteiras desapareceram em decorrência das epidemias, dos conflitos com garimpeiros ou assolados pela fome. Os indígenas
são aliciados não só pelos garimpeiros, mas subjetivamente com o mundo da mercadoria e seu fetiche (2013), que largam
11 Concomitante à fundação da Funai.
12 Segundo o boletim URIHI número 6: “O campo de pouso do Paapiú, onde funciona um posto indígena da Funai,
obra do Projeto Calha Norte, foi escandalosa e abertamente utilizado como plataforma e base de apoio para alcançar
os garimpos abertos em suas cercanias, enquanto as autoridades federais emitiam promessas de que a invasão seria
contida e os invasores expulsos. (…) tudo sob a égide do Calha Norte.”
13 “Em Paapiú concentrava-se a maior parte dos homens – aproximadamente dois mil – e exatamente de Paapiú
chegavam as notícias mais alarmantes. (…) A maloca yanomami está a poucos metros de distância, em péssimas
condições, cheia de buracos e de lixo. (...) As mulheres ficam se balançando, apáticas, em suas redes: não cozinham
e não tecem mais. O córrego de onde retiram a água está completamente poluído por mercúrio e barro. As crianças
estão como hipnotizadas pela presença dos garimpeiros e procuram aprender o modo de vida dos invasores (...)”
(1991, p. 125-128).
e/ou associam seus modos de vida ao garimpo. A prostituição e o sequestro de crianças também agravam a situação social
(PATEO, 2005, 86). Uma nova divisão do trabalho passa a surgir devido às especificidades regionais, que coloca garimpeiros
despossuídos para se relacionar com os povos Yanomami.
A vida material e espiritual sofre uma reviravolta, por exemplo a água que apresenta muitos riscos à saúde dos
próprios indígenas. Em estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), em parceria com o Instituto
Socioambiental (ISA), mostra-se que a contínua garimpagem em territórios Yanomami tem trazido graves consequências, já
que algumas aldeias, em 2016, chegaram a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio, decorrente, em sua
maioria, da ingestão de peixes contaminados. Dentre os malefícios causados pelo mercúrio estão doenças cardíacas e na
visão, problemas reprodutivos e renais, diminuição da memória, alteração no sistema nervoso central e no cérebro.
Desta forma, é possível identificar heranças do sentido da colonização, que além de ser a produção de gêneros
tropicais, também passa por uma forma de expropriação muito particular, a de exterminar as populações indígenas que vivem
próximas aos recursos interessantes ao mercado. Com o garimpo não foi diferente, assim pretendemos compreender as
formas contemporâneas desse processos, considerando tal passado. Também procuraremos tratar outra forma de
expropriação, a tamanha desclassificação dos garimpeiros e como a mobilidade do trabalho auxilia na formação de uma
região garimpeira, entendendo o processo de ocupação da fronteira, não como um assentamento em bases agrícolas,
principalmente por tratarmos de Terra Indígena oficializada pelo Estado, mas como uma superposição de inúmeras frentes,
com ritmos e dinâmicas ímpares. Dinâmicas essas que implicam na existência de trabalho móvel, com trabalhadores
assalariados ou não e com trabalho de indígenas, conformando novas relações de trabalho.

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