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ARANTES, OTÍLIA.

UMA ESTRATÉGIA FATAL: A CULTURA NAS


NOVAS GESTÕES URBANAS IN: ARANTES, O.; VAINER, C.;
MARICATO, E. (ORG). A CIDADE DO PENSAMENTO ÚNICO.
PETRÓPOLIS: VOZES, 2000, (11-73P.)

Lidia Santana1
O texto da filósofa Otília Arantes empresarial” encarnado não apenas Arquitetos e urbanistas se inclui-
compreende uma análise crítica dos na ideologia dos planos estratégicos riam entre “o séqüito de coadjuvan-
processos ideológicos que presidem cuja matriz norte-americana teria se tes” dessas coalizões e desempenha-
aos movimentos de globalização em generalizado, mas, também, assimi- riam papel de “operadores-chave”
sua relação com o planejamento de lado nos movimentos do urbanismo da “máquina urbana de crescimen-
cidades, tema amplamente explora- contemporâneo, e nos “Grandes to” no comando da criação da cida-
do pela produção acadêmica no Bra- Projetos” realizados mundo afora de-espetáculo; teóricos, como Fredric
sil desde os anos 90. A erudição e a (p. 47-8). Jameson e Jürgen Habermas, para
fluência argumentativa da autora O foco não se restringe, portanto, não falar dos catalães diretamente
sustentam um discurso competente aos enclaves das metrópoles perifé- envolvidos com o planejamento es-
que desfaz, de modo implacável, pers- ricas, ou às cidades genéricas e sem tratégico de cidades, restariam sedu-
pectivas construtivas que se possa ter identidade dos EUA, as edge cities, zidos, cada um a seu modo, ao es-
diante de um mundo subsumido ao locais de reprodução de tipologias pectro de uma esquerda naturalmen-
capital. urbanas e arquitetônicas que respon- te assimilada ao cultural turn.
Dois eixos centrais se entrecru- dem às necessidades de comando da A análise sobre a continuidade
zam e se reforçam mutuamente no economia global, e em que se opera entre modernismo e pós-modernis-
texto de Arantes: o primeiro se rela- a negociação das condições materi- mo no urbano mostra que a utopia
ciona à identidade de substância do ais e simbólicas do capitalismo modernista se esfuma na racionali-
projeto moderno das vanguardas avançado. Trata-se de uma genera- dade funcionalista da linha de mon-
arquitetônicas com a modernização lização quanto às intervenções ur- tagem fordista, do mesmo modo que
capitalista, daí a continuidade no banas que envolvem cidades euro- as manifestações arquitetônicas no
pós-modernismo com “o formalismo péias como Paris, Lisboa, Barcelona, pós-moderno se subsumem na “mer-
do ciclo anterior”, em que os movi- Londres e Berlim, e cidades dos Es- cadorização integral” da cidade. A
mentos nesse plano resultariam de tados Unidos, especialmente Balti- diferença fundamental entre ambos
“reviravoltas niveladoras” tributá- more, tida como matriz da tournant estaria na ingenuidade dos moder-
rias da hegemonia global; o segun- cultural do capitalismo avançado. nos ao se imaginarem desprendidos
do centra-se na “mercadorização” Segundo a autora, as políticas de da “dura verdade de sua funciona-
da cidade através de “abordagens ocupação do território urbano sob a lidade sistêmica” de origem, enquan-
culturalistas” e políticas de image- globalização determinam de modo to os pós-modernistas não só legiti-
making assimiladas nos projetos ur- generalizado a transfiguração do es- mariam como invocariam a “cidade-
banos, com a conseqüente transfor- paço em “cidade-negócio” capitanea- empresa” (p.17). Em poucas pala-
mação da cidade em “mercadoria da pelo “culturalsimo de mercado”, vras, poderia se dizer que de Corbu-
total” em que os variados encami- ou seja, uma verdadeira “máquina de sier a Koolhaas, nenhuma ruptura
nhamentos arquitetônicos e urbanís- produzir riquezas” conforme Molotch maior, apenas “a mesma e parado-
ticos desde o modernismo não pas- e Logan (1976) precocemente diag- xal animação urbana”.
sariam de representações ideológi- nosticaram. Nesse processo, a adesão Ao relacionar produção arquite-
cas das estratégias de dominação. da população em torno dos “fami- tônica e modernização capitalista,
Partindo daí, a autora deslinda a gerados” projetos de requalificação/ opera a autora uma interpretação
“estratégia fatal” em torno da cons- revitalização urbana, então associa- unilateral das análises marxistas
trução de um “pensamento único dos aos processos de gentrificação, que apresentam a substância do
das cidades”, forjado pela simbiose expressaria o poder da “máquina ide- pós-moderno como a conversão do
entre “o interesse econômico da cul- ológica” mediante expedientes do capital em totalidade, isto é, como a
tura e as alegações culturais do co- tipo “consensos cívicos” ou “coali- realização do moderno, no sentido
mando econômico” (p.67). Nessa zões urbanas pró-crescimento”. oposto ao de ruptura ou mutação do
direção, busca o “encadeamento ob-
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jetivo” do chamado “culturalismo Arquiteta, MSC em Análise Regional (UNIFACS), doutoranda em arquitetura e urbanismo (FAUFBA).

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sistema, como insinua o conceito de causas e efeitos que se estabelecem sua concretização, que se dá medi-
‘sociedade pós-industrial’. A sobre- entre os processos materiais e ideo- ante atuações públicas e privadas e
posição linear desse pensamento ao lógicos2, “ao negar o caráter eficien- a mobilização e cooperação dos ato-
campo do saber ou à esfera cultural te (e não apenas representativo) e res sociais urbanos.
tende a ver continuidade onde im- intelectivo (e não apenas ideológico Um posicionamento adverso à
pera a diversidade, leva a produzir ou pulsional) do discurso arquitetô- formação de parcerias e ao estabele-
uniformizações onde tudo se multi- nico (...) Otília nos lega um mundo cimento de um ambiente dialógico
plica. Assim é que, os movimentos governado por forças intransponí- entre Estado, mercado e sociedade
arquitetônicos desde a segunda me- veis do capital (...)”3. O mundo irre- civil como o explicitado pela autora,
tade do século se reduzem, na dialé- mediavelmente obscuro do Urbanis- se contrapõe não apenas aos pres-
tica da autora, a uma condição esté- mo em fim de linha. supostos do PE, mas a qualquer pro-
tica homogeneizante, ou à mera re- Segundo Maricato (2001:61), o jeto propositivo voltado para a pro-
presentação ideológica da estrutura Planejamento Estratégico (PE) trou- moção de oportunidades locais, neu-
econômica. xe, ao mesmo tempo, “a perspectiva tralizando iniciativas por novas for-
Sabe-se que o capital sempre foi de um novo papel político e econô- mas de governabilidade urbana a
indiferente ao mundo concreto e mico” para as cidades, diante do partir das práticas sociais e espa-
múltiplo dos valores de uso, e que se “aumento do desemprego e das de- ciais 5.
participa desse mundo é na medida mandas sociais, da guerra fiscal e A ênfase na “pró-colonização
de sua própria valorização. De acor- da diminuição dos recursos públi- urbano-cultural pelo reino da mer-
do com Fredric Jameson (1992), no cos nacionais, decorrentes dos cená- cadoria” que norteia o discurso de
nível econômico da globalização, a rios internacionais”. Nessas condi- Arantes, pode ser vista como um aler-
produção de meios de consumo se ções, o crescimento da indústria do ta, e mesmo como a lógica que move
tornou um fenômeno cultural, o que turismo propiciado pelo aumento da segmentos poderosos do capital,
não significa que o capitalismo te- mobilidade, da renda e do tempo li- mas, sua materialização não se re-
nha se tornado “uma forma cultural vre nas últimas décadas 4, tem se duz a uma homogeneidade ideoló-
entre outras rivais”, como traduz mostrado uma alternativa recorren- gica nem à universalização de seus
Arantes (p.47). Com percepção diver- te nas políticas de desenvolvimento mecanismos e resultados. A ausên-
sa à postulada pela autora acerca da de países e regiões periféricos na cia desse foco deixa sem explicação
dinâmica da relação entre a dimen- busca de captação desses fluxos e os movimentos mais recentes pelo
são econômica e cultural, Jameson sua conversão em divisas e em no- direito à cidade, e neutraliza a dis-
(ibid: 18) refere-se a uma “revolução vos postos de trabalho, diante da cussão da crise do sistema neoliberal
cultural na escala do próprio modo escassez de opções. na atualidade 6 , ao tempo em que
de produção”, compreendendo que O Planejamento Estratégico tem nega a possibilidade de projetos ur-
a inter-relação do cultural com o eco- se destacado como um das alterna- banos socialmente necessários, reme-
nômico “não é uma via de mão úni- tivas de planejamento urbano após tendo qualquer perspectiva emanci-
ca, mas uma contínua interação re- o descrédito do Plano Diretor centra- pacionista para além do capital.
cíproca, um círculo de realimenta- lizador e burocrático, sucedendo os O texto de Arantes reporta-se à
ção”. projetos urbanos concebidos e con- positividade discursiva da crise da
Jameson (ibid: 31) percebe na ‘ló- duzidos pelo setor privado na déca- análise urbana da década de 1960,
gica cultural do capitalismo avan- da de 1980. Trata-se de um estilo de resumida de modo simplificado por
çado’ mudanças substanciais na ar- planejamento que restabelece, assim, Maricato (ibid: 48), como sendo a
quitetura pós-modernista, e releva a relevância do poder público no recusa de parte da esquerda intelec-
sua maior proximidade “entre todas desenvolvimento urbano em que, tualizada em colaborar de modo
as artes” com o campo econômico segundo Borja (1996:98), “o proces- propositivo, por considerar a inevi-
através da relação da obra com o so participativo é prioritário” para tabilidade da manutenção ou repro-
valor do solo. Nesses termos, os 2
grandes investimentos em equipa- “Aos olhos do marxismo vulgar a superestrutura é uma conseqüência mecânica, causal, do desenvolvi-
mento das forças produtivas. O método dialético não reconhece de fato relações desse tipo. A dialética
mentos culturais ou em preservação nega que possa existir em alguma parte do mundo relações de causa-efeito puramente unilaterais; nos
e restauração não se constituiriam dados reais mais elementares reconhece complexas relações de causas e efeitos”. LUKÁCS (1984).
como afirma a autora, “uma dimen- 3
Comentários de GUERRA (2003) sobre o livro da autora intitulado “Urbanismo em fim de linha”, publi-
são associada à cultura na condição cado em 1999.
4
de isca ou imagem publicitária”, mas, O aumento da renda coloca-se aí de um ponto de vista absoluto no caso dos países periféricos, redu-
os próprios equipamentos e edifica- zindo-se crescentemente de um ponto de vista relacional-sincrônico com relação à renda das classes
e países dominantes.
ções preservadas e restauradas cons- 5
tituiriam, simultaneamente, a dimen- Um exemplo disso seria a inviabilidade de implementação das Operações Urbanas Consorciadas como
previsto no Estatuto da Cidade.
são cultural e econômica na estraté- 6
Segundo Harvey (2003), a crise do neoliberalismo se coloca como resposta contraditória de suas pró-
gia de promoção da cidade. prias sociedades, na tentativa de tornar a cidade cada vez mais livre das amarras políticas e do capita-
Ao isolar a componente cultural lismo financeiro. Considera, ainda, que é no plano das relações sociais é nas cidades que as transfor-
do campo das complexas relações de mações necessárias podem acontecer.

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dução do staus quo diante da “im- que se torna aos olhos da autora, HARVEY, David. The new imperialism.
possibilidade do planejamento de- apenas um instrumento bastardo de Oxford: Oxford University Press, 2003.
mocrático e igualitário”. Esse tema reprodução da dominação. JAMESON, Fredric. Postmodernism or the
que se reproduz sob diferentes enun- Cultural Logic of Late Capitalism. London:
ciados, obriga a releitura da obra de Referências E & FN Spon, 1992.
Henri Lefébvre e do conceito de hege- BORJA, Jordi. As cidades e o planeja-
monia e das estruturas que lhe dão LUKÁCS, Georg. Beitrage zur Ges-
mento estratégico: uma reflexão euro-
chichte der Aesthetik, 1954. Apud PA-
sustentação, na perspectiva de sua péia e Latino-Americana. In: FISCHER,
Tânia (org). Gestão contemporânea. Rio TETA, Luciano. História de la arquitec-
superação para que a emancipação tura: antologia critica. Madrid: Her-
possa voltar a fazer parte da dinâ- de Janeiro: FGV, 1996.
mann Blume, 1984. p. 26-27.
mica histórica. GUERRA, Abílio. O véu e a mortalha.
Mas, além disso, o texto clama por 2003. Disponível em www.vitruvius. MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades.
uma maior afeição pela arquitetura com.br, acesso em 31/05/2006. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

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