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Larissa Pelúcio
O que pode estar para além do gênero, quando gênero não é algo que
alguém possa se apropriar como sendo de fato seu? E se a apropriação se der, para onde
ir? A transexualidade é mesmo uma expressão que cruza gêneros, e se o faz, de fato os
ultrapassa? Travestis, homens trans, mulheres masculinas, homens femininos escapam ou
realocam os binários feminino/masculino, mas em uma outra ordem? Como escapar da
força molar das leis e manter o potencial rizomático de algumas experiências?
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mais social e histórico do que meramente biológico. Mas é com Michel Foucault (1975)
que este, o corpo, passa a ser compreendido como território político e, por isso mesmo,
disputado por diferentes instituições e por distintos campos discursivos. De forma que as
disciplinas biopolíticas funcionaram como uma máquina de naturalizar o sexo, polarizar
os gêneros em opostos binários, em um esforço normativo que foi também capaz de criar
um vasto elenco de anormalidades cuja marca do desvio esteve (e ainda está) localizada
justamente no sexo e no gênero. Escapar dos paradigmas da normalidade exige
imaginação teórica e certa dose de inconformismo.
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sexuais e de gênero que não estejam conformados a uma moralidade burguesa,
medicalizada e marcadamente eurocentrada. Discursos provenientes de campos
científicos, mas também dos midiáticos e do senso comum, que sedimentaram ideias que
tomam identidades como entidades discretas passíveis de catalogação e classificação
entre normais e desviantes. Desafiar os limites normativos das identidades gera grande
incômodo, mesmo quando se trata de identidades tidas como potentes politicamente,
como é o caso das, hoje reivindicadas, identidades gays, lésbicas, transexuais, travestis.
De certa forma, “fomos todas e todos mais ou menos capturados pelas máquinas
de produção de identidades, uma delas sendo o Estado”. (CORREA em entrevista a
DAUDÉN E BRANT, 2016, p. 221). Afinal, reapropriar-se subversivamente dos termos
que servem para o insulto, como “veado”, “sapatão”, “travesti”, a fim de torná-los
categorias políticas, é uma estratégia que a própria política queer se valeu. Mas não o fez
sem apontar os limites das políticas identitárias.
O queer, como pensamento crítico, se propõe justamente a desafiar as identidades,
não por niilismo, e sim a fim de promover uma profunda revisão teórica e política.
Questionando não os sujeitos que “encarnam” identidades, mas a ordem social e cultural
que as constituí como aceitáveis e normais ou abjetas e patológicas. Talvez por isso, o
queer tenha sido acusado de ser uma teoria despolitizante. É provável que isso se dê,
justamente, porque ao apontarem para as armadilhas das identidades, correram o risco de
serem interpretamos como colocando em xeque conquista inegáveis no campo dos
direitos sexuais e de gênero.
A proposta queer é que operemos a partir da desconstrução como
método capaz de nos dar pistas de como alguns discursos chegam a instituir verdades
sobre comportamentos, corpos, pessoas, instituições. A desconstrução, conforme Jacques
Derrida propôs, procura revelar o jogo de tensões existente na conformação dos
binarismos, mostrando que muito mais que polares (por exemplo, heterossexualidade
versus homossexualidade), os termos fazem parte de um mesmo regime discursivo que
organiza e hierarquiza relações. Em outras palavras:
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normalizadoras dos comportamentos. Ao colocar em xeque as coerências e
estabilidades que, no modelo construtivista, fornecem um quadro compreensível
e padronizado da sexualidade, o queer revela um olhar mais afiado para os
processos sociais normalizadores que criam classificações, que, por sua vez,
geram a ilusão de sujeitos estáveis, identidades sociais e comportamentos
coerentes e regulares. (MISKOLCI, 2009, p. 157).
São muitos discursos que nos atravessam, nos capturam e procuram dizer quem
somos. Todas nós, todos nós, precisamos de um vocabulário que nos ajudem a organizar
nossa própria experiência. Mas o que acontece quando o que esta disponibilizado são
discursos que falham em nos convencer? Como escapar? “Alguém sabe como se atravessa
uma linguagem dominante? Com que corpo? Com que armas?”, interroga-nos Paul
Beatriz Preciado (2009, p. 140). Nossas armas têm sido linguísticas. Estamos em uma
guerrilha linguística, disputando termos, tomando-os de assalto para desembrutecê-los,
para tornar as palavras mais prismáticas, capazes de iluminar um campo maior de
significados. Somo-me a muitas vozes que estão empenhadas em forjar tecnologias de
produção de verdades que venham entre aspas, pois pretendem-se abertas, plurais,
avessas aos monolinguísmos, ao neoliberalismo, que estejam abertas às multiplicidades.
Escapando, assim, das tentações dos termos já instituídos, muitos deles tributários de
discursos patologizantes e criminalizantes.
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Berenice Bento escreveu que os feminismos, assim como o queer, são teorias
pirotécnicas, porque nos oferecem instrumentos para o cerco, para a guerra e para o
espanto. Acho que foram, sobretudo, das teorias que desafiam esses lugares de disputa,
assim como das experiências que esgarçam o espartilho dos binarismos que vieram nossas
inspirações e produções cucarachas em relação ao queer. Nosso espanto passa também
pelas acusações que nos são dirigidas não por “fundamentalistas”, por representantes de
discursos conservadores, mas quando elas vêm daqueles setores que julgamos parceiros,
com os quais acreditamos estar construindo discursos qualificados para o enfrentamento
às exclusões, aos autoritarismos mal disfarçados de cientificidade. Por isso, Bento e
Miskolci não acreditam na velha dicotomia “nós fazemos política, vocês fazem pesquisa”,
endereçando a crítica a algumas alas do movimento LGBT que diz que sem identidade
não se pode fazer política, como um dia algumas feministas disseram que sem o sujeito
mulher não se pode lutar por direitos emancipatórios para o feminino.
Como fazer política, como fazer ciência quando os corpos são instáveis e os
desejos rizomáticos? Houve um momento que o feminismo branco, heterossexual e de
classe média foi convocado a dar essa resposta para as mulheres do então chamado
terceiro mundo a “identidade mulher”. Tiveram que encarar os lugares de fronteiras, onde
lésbicas se uniam a mulheres transexuais, que também se assumiam lésbicas. Ali, onde
negras e imigrantes, antes de serem mulheres, eram corpos subalternizados pela raça e
etnia. Por isso, dizer gay, lésbica, travesti, transexual é dizer muito pouco. Aliás, é quase
sempre ofender, muito mais do que descrever (MISKOLCI, 2012). Fere, quando o que
queremos é problematizar esses termos. Desejamos seguir no esforço de resignificação e
de politização dessas categorias. Nós ambicionamos saber como se chegou a esse
vocabulário de exclusões, porque, antes de serem categorias reinvindicadas, estas são
identidades impostas. Assumimos que é preciso interrogar os saberes que divulgaram
verdades sobre esses corpos, encapsulando subjetividades, patologizando desejos.
Preciado (2009) diz que os movimentos feministas e aqueles que nos anos de 1960
e 70 lutaram pelos direitos das então chamadas minorias sexuais, protagonizaram a
primeira “revolução feita com linguagem, sexo, drogas e música.” Ainda é a escrita
perturbadora de Preciado que trago aqui: “o movimento gay, lésbico e trans coloca a
vulnerabilidade do corpo e sua sobrevivência no centro do discurso político e faz da
cultura, como fórum de criação e intercâmbio de ideias onde se definem os limites do
socialmente possível, o centro da luta” (2009, p.147. Traduções minhas).
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Assim, penso que é preciso lembrar-nos que a vocação teórica dos feminismos,
dos estudos de gênero e do queer, tem sido justamente a de provocar torções nas linhas
retas de algumas propostas científicas/políticas. Por isso, é preciso resistir à tentação de
assumir determinadas linguagens, quando o caso é recusá-las. Mais que rejeitar
determinados termos identitários trata-se de não substitui-los simplesmente sem por em
xeque a própria matriz que os forja. Refiro-me aqui ao recente conceito de cisgeneridade,
proposto pelo movimento de pessoas trans, nascido no bojo do transfeminismo no Brasil.
Cisgeneras seriam todas as pessoas que não são transexuais ou travestis. Aqueles que
estariam, independente de sua orientação sexual, conformes ao gênero assignado a elas
no nascimento.
Para a pensadora e ativista transfeminista Hailey Kaas,
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entre “Nós” e “Outros”, ao invés de criar pontes e fomentar alianças que desfoquem das
ficições identitárias para os aparatos que as criam como mais ou menos legítimas.
Os enfrentamentos ao um vasto sistema de exclusões orquestradas pelo Estado,
propagada pela mídia conservadora e atualizada nas ruas em manifestações racistas,
machistas e homofóbicas, se dá, certamente, para além do gênero, ainda que no presente,
esta tenha se tornado uma palavra incendiária, nem tudo se encerra aí. Mas certamente,
muito do que tem nos provocado teórica e politicamente seja tributário à potencia
transgressiva dessa categoria.
Referências Bibliográficas
LOURO, GUACIRA LOPES. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação.
Revista de Estudos Feministas, Florianópolis , v. 9, n. 2, pp. 59-90, 2001 . (Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n19/n19a04.pdf).
MISKOLCI, Richard. Não somos, queremos: reflexões queer sobre a política sexual
brasileira contemporânea. In: COLLING, Leandro (Org.). Stonewall 40 + o que no
Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011, p. 37-56.
______. Teoria queer – Um aprendizado pelas diferenças. São Paulo: Autêntica, 2012
(Col. Cadernos da Diversidade
PELÚCIO, Larissa. “Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer
no Brasil?”. Revista Acadêmica Periódicus, vl. 1, no. 1. 2014.