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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS-CFCH


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Análise do diálogo Lísis, de Platão

Eduardo Andrade
Letícia Scarlett

Recife, 2017.
1. “​Eu estava caminhando da Academia diretamente para o Liceu pelo lado de
fora e bem aos pés dos muros da cidade. Quando me encontrava em frente ao
pequeno portão onde está a fonte de Pánops, deparei com Hipótales, filho de
Jerônimo,Ctesipo, do demo de Peânia, e outros jovens reunidos com
eles.”​(Platão, 203a)
2. “Não é sempre que o chamam pelo nome – respondeu – pois ainda é chamado
pelo nome do pai por ser ele muito conhecido. Contudo, bem sei que é difícil
ignorares o aspecto do garoto, pois isso basta, por si só, para ele ser
reconhecido”​(Platão,204e)
3. “Estes cantos referem-se sobretudo a ti pois, se conquistares o teu favorito
sendo ele tal como cantas, serão em tua honra os discursos, os cantos e os
elogios, como se fosses tu o vencedor por obter um favorito desse jaez [...]. E ao
mesmo tempo, os belos, sempre que alguém os elogia e enaltece, enchem-se de
orgulho e arrogância.” ​(Platão,205e)
4. “Então, eles têm mais em conta um escravo do que a ti, filho deles, segundo
parece, e confiam-lhe mais as próprias coisas do que a ti e permitem que ele
faça o que quiser, enquanto a ti, iimpedem de fazê-lo? Responda-me ainda o
seguinte: permitem que governes a ti próprio ou nem isso confiam a ti?”
(Platão,208c).
5. “Temo que não seja por isso que eles te impeçam, filho de Demócrates, visto
que ao menos em uma coisa, suponho eu, teu pai e tua mãe confiam em ti e não
esperam até que tenhas idade: quando querem que alguém leia ou escreva algo
para eles, és tu, presumo eu, quem preferencialmente escolhem entre os da casa.
Não é?” ​(Platão, 209a-209b)
6. “Contudo, se te tornares sábio, meu bom garoto, então todos serão teus amigos
e todos ficarão íntimos de ti, pois lhes serás útil e bom. Mas se não te tornares
sábio, ninguém será teu amigo, seja teu pai, tua mãe ou teus familiares.”
(Platão, 210d)
7. “Então, ao ver a ti e a Lísis, fiquei impressionado e vos considero felizes, uma
vez que, mesmo sendo tão jovens, sois capazes de adquirir este bem com rapidez
e facilidade: tu encontraste nele, pronta e intensamente, um amigo desse jaez;
assim como ele, por sua vez, encontrou em ti”​ (Platão, 212a)
8. “Quando alguém se torna amigo de outrem, qual dos dois (212b) vem a ser
amigo34 do outro: quem ama se torna amigo de quem é amado, ou quem é
amado se torna amigo de quem ama? Ou não há diferença?”
(Platão,212a-212b)
9. “[...]Há pouco admitíamos que, se um deles amasse o outro, ambos seriam
amigos; mas agora, se ambos não amarem, nenhum dos dois será amigo um do
outro.”​ (Platão, 212d)
10. “É o caso das crianças muito novas: umas ainda nem amam, enquanto outras já
odeiam, como quando são castigadas pela mãe ou pelo pai. Entretanto, ainda
que sintam ódio naquele momento, são os entes mais queridos aos pais.”
(Platão, 212e-212a)
Análise
1. Primeiros momentos: breves considerações sobre o Eros.
No início do texto, é retratado o momento de encontro entre Sócrates, Hipótales e
Ctesipo, que se dá através do acaso e do diálogo. Neste primeiro contato, Hipótales
tenta convencer Sócrates a ir a um ginásio para compartilhar discussões com ele.
Hipótales, por sua vez, está apaixonado por Lísis, especificamente, pela sua beleza
física. Sócrates associa essa paixão como irracional, pois, como logo mais é explicitada
no diálogo, a atitude, as ações e demonstrações de amor por parte de Hipótales eram um
tanto desmedidas, exageradas (Hipótales lhe escrevia poesias, enaltecendo todas as
conquistas de Lísis e seus antepassados) (Platão, 204d). Sócrates então procura
orientá-lo acerca de como ele deveria agir frente ao jovem.
Primeiramente, ao afirmar: “Estes cantos referem-se sobretudo a ti, pois, se conquistares
o teu favorito sendo ele tal como cantas, serão em tua honra os discursos, os cantos e os
elogios, como se fosses tu o vencedor por obter um favorito desse jaez.” Sócrates
mostra o lado um tanto “altruísta” ou egoísta da paixão de Hipótales, pois a caracteriza
como uma busca individual de satisfação de si próprio, pois, através de seu discurso, de
suas composições, Hipótales ganharia uma espécie de “prêmio”, no caso, Lísis. Por
último, Sócrates afirma, na segunda consideração de sua fala, que enaltecer e elogiar os
belos, os encheriam de arrogância e orgulho, dessa forma, se distanciariam cada vez
mais do amante. (Platão, 205e-206a)
2. Da ​philia​ e suas dimensões
Nesse segundo momento, a cena se dá no Ginásio, no qual Sócrates começa a discutir
sobre a ​philia (amizade), inicialmente com Lísis, e logo mais com Menêxeno, que se
apresenta como amigo muito próximo de Lísis. O diálogo, de conclusões inacabadas,
tenta descobrir quais seriam as dimensões da ​philia​, suas origens, causas e condições.
Utilidade
As primeiras considerações, neste diálogo, acerca da amizade, é a Utilidade. Sócrates
inicia sua fundamentação através do exemplo da relação de Lísis com seus pais, que,
hipoteticamente, por amá-lo, lhe daria liberdade para ser feliz e fazer o que quisesse. E
então Lísis diz que na verdade é impedido, pelos pais, de fazer muitas atividades, e que,
na verdade, muitas delas eram feitas por terceiros. Sócrates diz então, que ele nada
governa, nada pode exercer, já que outros o fazem por ele. Sócrates tenta associar essa
privação de liberdade, ao fato de Lísis ter conhecimento para certas coisas, mas outras
não, dessa forma, não seria a idade o critério, mas sim o momento no qual Lísis é tão
sábio quanto os pais, e na medida em que soubesse cada vez mais, confiaria as demais
atividades a ele, e dessa forma não o impediria de fazê-la.
Dessa forma, aqui se estabelece uma das primeiras condições de amizade no texto,
quando Sócrates sintetiza:“Se te tornares sábio, meu bom garoto, então todos serão teus
amigos e todos ficarão íntimos de ti, pois lhes serás útil e bom”. O que denota que, o
que condiciona a amizade seria a relação de utilidade, pois se um indivíduo é sábio em
uma atividade que executa, de certa forma ele terá alguma utilidade para um grupo de
pessoas, que logo ficarão próximas desse mesmo indivíduo, por exemplo, se tomarmos
aqui o nosso corpo como algo de grande valor, algo extremamente íntimo para nós, mas,
por ventura, nós o confiamos ao médico, tem-se então certa proximidade.
Reciprocidade e as contradições do amor
Sócrates estabelece ao longo do diálogo, hipoteticamente, que a condição da amizade
seria então a reciprocidade. Primeiro Sócrates se mostra admirado com a relação de
amizade entre Lísis e Menexeno, pois um encontrou no outro uma forma de amizade, e
logo indaga a Menexeno: “Quando alguém se torna amigo de outrem, qual dos dois vem
a ser amigo do outro: quem ama se torna amigo de quem é amado, ou quem é amado se
torna amigo de quem ama? Ou não há diferença?”. Menexeno diz não haver diferença,
já que está inserido num contexto na qual a amizade entre ele e Lísis, é visivelmente
recíproca.
No entanto, Sócrates se questiona e afirma que não necessariamente aquele que ama,
estabelece uma relação recíproca com aquele que é amado, é possível que ocorra uma
não-correspondência nessa relação, quando diz e complementa: “há pouco admitimos
que,se um deles amasse o outro, ambos seriam amigos; mas agora, se ambos não
amarem​, ​nenhum dos dois será amigo um do outro”.
Mais adiante, Sócrates estabelece uma relação na qual aquele que é amado (o agente
passivo dessa problemática), é amigo do amante, mesmo que o amado seja recíproco ou
não ao amor do amante. A mesma lógica vale para quem é odiado, que é inimigo
daquele que o odeia. A partir dessa ideia, ele exemplifica: “É o caso das crianças muito
novas: umas ainda nem amam, enquanto outras já odeiam, como quando são castigadas
pela mãe ou pelo pai. Entretanto, ainda que sintam ódio naquele momento, são os entes
mais queridos aos pais.”.
É interessante notar, que ao final dessas considerações iniciais, não se estabelece uma
definição clara do que é amizade. Sócrates, ao longo do diálogo, tenta se aproximar
cada vez mais da verdade sobre a ​philia​, muitas vezes entrando em contradição. Tanto
entra em contradição que o diálogo sobre a amizade não tem uma conclusão de
pensamentos, apenas uma discussão que não exatamente chega a uma definição clara, o
que fica a critério do leitor avaliar.
Dessa forma, é um tanto incômodo quando Sócrates tenta estabelecer relações de causa
e efeito para uma relação tão complexa como a amizade, apesar de que nas primeiras
considerações, especialmente na questão da reciprocidade, Sócrates considera as
inúmeras complexidades e formas de como o amor e a amizade podem se manifestar,
seja ela de forma contraditória ou recíproca. Quando Sócrates retoma a ideia da
utilidade, é possível relacionar a questão da ​philia ao interesse ou até mesmo a uma
naturalidade, visto que, ao longo da discussão, só é possível a aproximação através da
noção do contraditório, a necessidade do vazio ser preenchido pelo cheio, por exemplo.
O que chama a atenção, é que o autor (Platão), nos aproxima tanto de sua obra, que
acabamos por participar da discussão, e ao final, tendo a mesma sensação de dúvida e
incerteza em relação a definição do que seria amizade em todas as suas dimensões.

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