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" Lisa Block de BEHAR ~ Adviertendo elector” ln: A ‘argen de Borges. Buenos Ares Sialo Veitiuno ito ves, 10K7 De tradugées, tradutores e processos de recepcéo literdria Tania Franco Carvalhal Universidade Federal do Rio Grande do Sul Se os anos 60 do século que acaba de findar se caracterizaram pelo desenvolvimento da reflexdo terica sobre o literrio, com uma intensif cago que repercute ainda no decénio seguinte, um dos campos benefic ados por esta tendéncia foi, certamente, o da tradugio literdria. Basta evocarmos um clissico do género, Les problémes théoriques de la traduction, de Georges Mounin (1963), para nos darmos conta da com- plexidade desses estudos e vermos como se hesitava entao entre a no- ‘so do “intraduzivel”e seu contrério, Nessa época, sabe-se, um grupo de estudiosos da Universidade de Constanza, reunidos em torno a H.-R. Jauss, desloca a reflexio do autor (emissor) para 0 leitor ou 0 publico (receptor), reabilitando a im- portancia da participacdo deste tiltimo na criagao literaria, A nogdo de “Rezeptionsisthetik” ou estética da recepgiio ganha impulso e, como observa Lisa Block de Behar, esta nogdo “reconoce que Ia presencia dinémica de la historia se interpone entre la literatura y su estudio, entre la obra y el lector pero, desde el momento en que no puede eludirse, 1a asume”.' Isto esté implicito na provocacao contida no titulo da conferéncia de Jauss na Universidade de Constanza, 0 hoje classico estu- do “A historia literéria como um desafio a teoria literdria” (1967). Tam- ‘bém os conceitos de “horizonte de expectativa” e de “leitor implicito” (W. Iser) introduzem novas perspectivas na orientacdo critica e nos eestudos de literatura comparada, como assinalou Paul Corea ao dizer 86 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 5, 2000 que “la vogue des théor consacrées aux sources” Poderiamos igualmente observar que essas teorias da recepeao conjugam 0 estético com 0 hist6rico € em lugar de uma hi formas propde uma histéria de efeitos. O desenvolvimento dos estudos relativos a traducdo como disci- plina institucionalizada se produz neste contexto tedrico-critico no qual tomna-se impossivel dissociar traducao de disseminagao e de recepcao de uma obra. A par de sua fungio de instrumento a servigo de um acesso a outras literaturas, a tradugdo adquire um estatuto préprio e ganha, no campo das pesquisas comparatistas, um lugar de relevo. Susan Bassnett em seu livro Comparative literature. A critical introduction (1991) insiste na centralidade desses estudos em literatura comparada, fazendo convergir de tal maneira as duas orientagdes que, em sua perspectiva, 0 ‘comparatismo se encontra quase sindnimo de uma teoria da traduco.’ Em estudo posterior, intitulado “What is comparative literature?” (1995), cujo titulo em francés ~ “Lire en frontalier” (1996)! — é esclarecedor como orientagio metodolégica, George Steiner vé a literatu- ra comparaca como uma herdeira de Babel e, em conseqiiéncia, oestudo das tradugdes toma-se indispensdvel e prioritério neste dominio da inves- tigagdo literdria, “Cette affaire de traduite a done la primauté en littérature comparée’ — escreve ele — ‘et c’est ce qui la relie & ce que je considére comme un deuxitme point de mire: la dissémination et la réception des ceuvres littéraires & travers temps et lieux.”* Assim, para Steiner, a defi- nigdo do campo de pesquisas comparatistas se faz no mbito dos estudos de tradugao associados aos de recepeao literéria, como anota: ss de la réception a bouleversé les études ria das Tout ce qui se passe entre les langues. entre les textes de périodes historiques ou de formes littéraires différentes. les interactions complexes d'une traduction nouvelle et de celles qui Vont précédée, l'ancienne mais toujours vivante rivalité de ta lettre et de esprit, rout ce commerce est bien celui de la linérature comparée. Etudier, par exemple. la grosse centaine de traductions anglaises de I'Miade et de I’ Odyssée, c'est connattre par expérience I évolution de ta langue anglaise (on devrait dire: des langues anglaises) de Caxton a Walcott: c'est pénétrer les rapports successifs et pérpetuellement changeants de la sensibilité britannique et des représentations de ancien monde: c'est observer Pope qui lit Chapman et Dryden eux- mémes lecteurs d’Homeére et Pope Iui-méme lisant Homere comme a travers le brillant cristal de Virgile.* aul CORNEA. "La liea- ture en Rouranie™ Ins Con- orative liverarure world wide: ssues and methods La Iinéronre compare dane le ‘monde: questions et métho- des, Ong, Tania F Cava Porto Alegre. LPM, Vit, ILC, 1997, 125 * Suan BASSNETT. Compara tive tneramure. A eritcal Jnroduction, Oxford, Black: well, 199, * George STEINER. Op cit, Ostord, Clarendon Pres, 1995. Em frances, Passion Inpuies. Paris, Gallimard 1946, * George STEINER, p.133 * George STEINER, p. 132 * George STEINER. p35, De tradugdes, tradutores ¢ processos de recep literiria 87 Nesta transcrigao, pelo menos trés elementos se esclarecem: a literatura resulta de tramas intertextuais, a literatura comparada se defi- ne pela mobilidade mesma que caracteriza seus estudos, ocupados com passagens, intercimbios, migragdes ¢ trocas (comércio, diz Steiner), ¢ a tradugio se valida como sindnimo de leitura, Estudé-los significa en- tender como determinados autores foram lidos ¢ 0 que estas leituras dizem sobre os povos. as Iinguas ¢ as culturas que as receberam, Para Steiner, tradugao, disseminagao e recepcao literdrias esto ainda natu- ralmente associadas porque as questdes que um comparatista propoe a ssimesmo so sobretudo aquelas que intentam saber com preciso quem Jeu um certo livro, quem o péde ler e quando. Assim, observa ele: “De quels extraits, de quels comptes rendus, de quelles citations et de quelles traductions des idéalistes allemands Coleridge a-t-il pu disposer?” Ou, mais adiante: “combien de temps fallut-il aux traductions-imitations frangaises de Byron pour atteindre le Caucase?” Tentando definir a tarefa do comparatista, Steiner acentua 0 fato de que a cada etapa de seu trabalho, “il devra prendre ses plus hautes responsabilités quant & cces questions de traduction et de dissémination’”” Deste modo, gragas a essas aproximagdes, nao podemos deixar de reconhecer, hoje, que as tradugGes so elementos importantes nos processos de circulagao literdria e que devem ser estudadas em si mes- mas € nas diferentes formas de sua contribuigdo, como concretizagio possivel de outros textos e de outras culturas. Trata-se, sem diivida, de ‘um recurso indispensavel & escrita da hist6ria literdria, pois que a andlise das tradugdes, no seu conjunto, possibilita acompanhar a evolugdo das formas ¢ dos efeitos, dos géneros ¢ do gosto, através da penetragao tardia de idéias, de estilos ¢ de atitudes criticas que nao sio as nossas. Além disso, como estratégia e lugar das mediagdes interlxerdrias, a tradugdo 6 considerada atualmente como um recurso essencial nas rela ges com 0 Outro. O tradutor € um intermedidrio exemplar que torna possivel 0 conhecimento nao apenas de uma literatura engendrada em outra lingua mas também de costumes ¢ dados culturais veiculados pelo texto traduzido. Dessa maneira, ele facilita contatos inesperados, permite © conhecimento de procedimentos e de formas literérias que recebem freqiientemente uma acolhida imprevista da literatura/cultura de chegada que trazem consigo novas orientagdes ¢ novas tendéncias. Mas hd neste contexto um outro dado fundamental. Nas refle- xGes mais recentes sobre a teoria da tradugao, esta € considerada como um fator determinante na configuragao da literatura mesma da lingua na qual traduzimos. Isto porque ela exerce forte impacto sobre a literatura de chegada, trazendo consigo orientagdes e solugdes novas ao literdrio, £8 Revista Brasileira de teratura Comparada, n° 5, 2000 Trata-se do que Manfred Schmeling pensou sobre a recepedo produti- va (198475), observando que todo tipo de influéncia “ne s'explique plus, désormais, causal-génétiquement d'une oeuvre & autre, d’un auteur & lun autre, d’une nation & une autre” mas que ela se integra em um “procédé de réception complexe auquel participent trois instances: I’auteur, oeuvre, le public”.* Pode-se também compreender a importincia das tradugdes na organizagio de diferentes sistemas literdrios através das reflexdes de Itamar Even-Zohar (desde 1978)" ¢ as que José Lambert explicita em “Plaidoyer pour un programme des études comparatistes: littérature comparée et théorie du polysystéme™", Os autores integram respe vamente os grupos de pesquisa das universidades de Tel Aviv e de Louvain e estudam as inflexdes das tradugdes nas literaturas de chega- da, Even-Zohar desenvolveu a nogdo de polissistema a partir das con- cepgdes dos formalistas russos (Poetics today,1979 € 1990) ¢ Lambert explora a descri¢ao teérica do sistema literario em inimeros trabalhos, Do mesmo modo, Yves Chevrel no texto “Le texte étranger: la littérature traduite” (1989) do Précis de linérature comparée, que or- ganizou com Pierre Brunel, observa que “Le systéme francais du XVII e sitcle est profondément modifié par les textes traduits”, sublinhando que a Franga das Luzes traduziu muito e foi pioneira em varias iniciati- vas, fornecendo material para novas tradugdes, em outras linguas, do texto que ela tinha inicialmente traduzido, Esse fato evoca-nos 0 suces- 0 das tradugdes de textos gregos nas edigdes “Les belles lettres”, mui- 10 difundidas no Brasil, e como muitos textos de Dostoigvsky e de outros autores russos chegaram a alguns de nossos tradutores pela versio em francés. De acordo com Chevrel, nesta perspectiva seria necessério erguntar em que medida os tradutores franceses foram eles proprios influenciados por esse papel de intermedisrios europeus que Ihes coube representar. De certo modo sabiam que os textos por eles difundidos conteriam elementos de sua prdpria cultura e veiculariam também da- dos da experiéncia de cada um. ‘Vé-se nessas breves alusdes que 0 trabalho do tradutor adquire pouco a pouco outras dimensdes. De um lado, & ele quem estabelece as relagdes, quem toma mais fécil o conhecimento, a aproximagao de po- Vos e culturas, a quem é dado, por vezes, selecionar os textos a serem Tangados na outa cultura, a quem, em suma, 6 entregue a tarefa de transpo- los. De outra parte, o tradutor interfere diretamente na produgio litersria de um pais na medida em que ele recria, segundo um modelo anterior, formas e idéias que € preciso inserir na sua propria tradiga0. E um aspec- to que se pode identificar na repercussao de um movimento como 0 da * Manfred SCHMELING. fe via yprasis de ta eranara comporada, Barcelona, Alfa 1984, “amar EVEN-ZOHAR. The position of translated Iaerunre within the hrerary polssytem, Te Aviv, 1978, " Joxé LAMBERT, In: Actes du Congrés de lo SFLGC “Montpelier, 1980. Domesma autor, “Traduction”. In Théorie litéraive,Problemes ft perspectives. (Org. J Bessiére, E.Kushner, D. Fokkema M-Angenot), Pa tis, PUF, 198, © André LEFEVERE. tn: trarstation history « cule [Ed Susan Bassnett and Ande Lefeverl London, Pinter, 9 27 De tradugdes, tradutores e processos de recepso literéria 89 poesia concreta na literatura brasileira, cuja atuagiio, além da propria pro- dugdo vanguardista, associou tradugdes € reavaliagdes de autores esque- cidos e marginalizados, interferindo positivamente na nossa literatura por nla introduzir autores € orientagdes revolucionérias. Como esclarece Haroldo de Campos em “Poesia de vanguarda brasileira e alema”, de A arte no horizonte do provavel, 10 empenho de criar a sua tradigao — ou a sua antitradicao —e de retirar da custédia timorata dos historiado- res da literatura 0 vivo do passado literirio para restabelecer as veredas escamoteadas duma evolucdo de formas cujo vetor fosse a criagao, a poesia concreta brasileira — sintonizada em suas preocupagdes com a Jovem guarda da poesia alema — selecionou ainda. para a divulgacao no Brasil, autores como um Christian Morgenstem e um August Stramm, além dos pintores-poetas Kandinsky ¢ Klee"(1977:169), André Lefevere em “Translation: its genealogy in the West”, co- menta que a traducao é, em grande parte, responsavel pela imagem de uum texto, de um escritor e de uma cultura. A certa altura, anota: Together with historiography anthologizing and criticism it prepares works for inclusion in the canon of world literature. I introduces innovations into a literature. It is the main medium through which one literature influences another. It can be potentially subversive and it can be potentially conservative!’ (O carater subversivo da tradugao assinalado por Lefevere acres- centa ainda outro sentido & figura do tradutor, reconhecendo-the uma importancia ndo considerada antes € acentua sua atuac30 no sistema literdrio como sendo potencialmente positiva ou negativa, responsavel Por avangos ow retrocessos em seu desenvolvimento. Na medida em que a literatura traduzida age sobre a literatura nacional, estabelecendo com ela um processo de trocas e nela injetando elementos novos, 0 tradutor interfere na prOpria tradicao literéria. Nes- sa mesma perspectiva, Lefevere observa ainda que “translation is one of the most obvious forms of image makings of manipulation, that we have” (990:26-7). Da consciéncia deste papel, portanto, se conclui que o estudo das tradugdes pode nos dizer muito nao apenas sobre o universo literdrio nas relagdes entre as literaturas, mas também sobre o mundo no qual vives. Tradugao e tradigao “Translation is not only the appropriation of previously existing textes in a mode of vertical succession; it is the materization of our 90 Revista Brasileira de Literatura Comparada,n® 5,200 relationship to otherness, to the experience — through language — of ‘what is different”, escreve Sherry Simon no ensaio inttulado “The language of cultural difference: figures of alterity in canadian translation”, atrain- do nossa atengo para como sio respeitadas a alteridade e as particula- "Sherry SIMON. In ridades nas tradugGes, 0 que tem muito a ver com as normas historicas Rethinking transiavion ¢ institucionais que dominam as tradigGes nacionais, mesmo que elas eojogsn (Ed. Lawrence no sejam eternas, Venuti, London, Routledge, ‘Um dos primeiros aspectos a sublinhar é a maneira como o tradu- 992, tor entra em contato com a cultura a que pertence 0 texto que ele deve traduzir. Para alguns trata-se de um procedimento fic, de acordo com as experiéncias particulares que Ihe permitiram viver em um determina- do pais ou de visité-lo com uma frequléncia capaz de assegurar-Ihe certa intimidade com sua cultura. Para outros, a experiéncia é sobretudo livresca, construida & distincia e sempre por intermédio de um terceiro, E 0 caso dos tradutores que se utilizam de uma lingua estrangeira para transpor de outras que nao conhecem. Ha, pois, o uso de uma media- 0. O tradutor vale-se de uma tradugfo anterior, em lingua e cultura que ele conhece bem e sobre esta base organiza seu trabalho, Excelentes tradutores adotaram este procedimento para traduzir de Iinguas que conheciam pouco e algumas vezes o talento individual, a formagio literdria, o dominio integral da lingua de chegada permitiram que ‘ trabalho resultante tivesse qualidade apesar de equivocos que s6 seriam evitados e dirimidos pelo confronto com o texto em lingua original. Por outro lado, hé que se ressaltar as dificuldades das tradugdes que lidam com texto de tradigdes literdrias diversas. No texto final, ha uma superposicdo de tradigGes. O distanciamento cultural insere no tex- to que resulta certos componentes que no se encontravam no texto original eo transformam, Suprimindo alguns elementos que seriam desconhecidos ao leitor, introduzindo outros que Ihe so familiares, o tradutor facilita sua aceita- ‘¢40, possibititando ums acothida mais imediata. Nesse sentido, a observa- ide José Lambert é pertinente ¢ esclarecedora quando diz que “chaque culture et chaque littérature (re)formulent,& leur facon, 1a traduction et ses variantes” (1995:192), Parafraseando 0 autor, € possivel dizer que os tradutores (re)formulam, a seu modo, a prépria tradigdo. Eo que observou Antonio Candido no prefécio & tese pioneira em estudos de recepcao literdria entre nds de Onédia Cétia de Carvalho Bar- ‘bosa, intitulada Byron no Brasil. Traduedes, defendida na Universidade de So Paulo, em 1969." Ali, a autora realiza o estudo das traducdes Oneia Cia de Cato como elemento definidor da recepedo de Byron no Brasil. Bla ofazem BARBOSA. Opis Ste Paw. duas etapas: inicialmente, identifica 0s tradutores ¢ as tradugdes no peri- De tradugoes, radutores e processos de re-epgto terri 91 odo de 1830 a 1911; logo, desenvolve a anslise critica dessas tradugoes, ‘Onédia segue duas orientagdes te6ricas em literatura comparada que estavam em vigor: a de Etiemble, em Comparaison n'est pas raison (1963), € a de Harry Levin, sobretudo em Refractions (1966), ambos adeptos do estudo de tradugdes. Ela combina dois métodos, a pesquisa hist6rica e a reflexao critica ou estética, alids complementares, segundo Etiemble. A classificagaio cronolégica das traducdes permite & autora determinar com precisio 0 desenvolvimento hist6rico das influéncias literdrias € a repercussio de Byron na literatura brasileira. A andlise critica, por outro lado, enfatiza as solugdes encontradas pelos tradutores € favorece 0 estudo comparado dos textos traduzidos. No prefiicio do livro, Candido sublinha a importincia de pesqui- sas deste tipo para os estudos de literatura no Brasil, no ambito dos quais ndo se pode evitar a orientagao comparatista considerando as re~ ages que nossa literatura sempre manteve com as da Europa, Ao comentar a evolugHo que a autora estabelece a partir das tradugdes iniciais de cunho arcédico para as de cunho romantico, escre- ve Candido: “Estas (as de cunho romintico) mostram como os textos de Byron foram ajeitados pela sensibilidade local, que de um lado exagerou (08 seus sragos, e de outro escolheu neles o que se ajustava melhor & ‘moda literdria daqui. Neste sentido, € fundamental 0 estudo sobre a opgao de Francisco Otaviano, que empusrou os brasileiros para um cer to Byron (o melodramitico, o folhetinesco), enquanto ficava quase es- quecido o Byron melhor, das sétiras ¢ do Don Juan”. Fica claro entdo que uma tradugdo pode alterar 0 texto original sob influéncia do contexto da literatura de chegada, Bem mais tarde, analisando as tradugdes de Baudelaire no Brasil, em A educacdo pela noite e outros estudos (1981), Candido voltaré a insistirneste dado, colocando em evidén- cia como 0s tradutores do poeta francés acentuaram certos aspectos de sua obra em detrimento de outros, em escolha dirigida pelas tendéncias de época ou as caréncias que eles reconheciam na literatura brasileira, ‘A possibilidade que tem uma tradugio de repercutir efetivamente na literatura que a acothe, nos faz lembrar o que diz Roland Barthes em SIZ, 0 estudo sobre a novela Sarrasine, de Balzac, publicado em 1970. Em certa passagem, lé-se:"Tl ya d'un cOté ce qui est possible d’écrire et de autre ce qu'il n'est plus possible d’écrire: ce qui est dans la pratique de I’écrivain et ce qui en est sort: quels textes accepterais-je d’écrire (de ré-Gerire) de désirer, d’avancer comme une force dans ce monde qui est le mien?”. Retomando ¢ transformando as palavras finais do autor, dirfamos “que textos aceitaria eu traduzir para lang4-los como uma forga neste ‘mundo que é 0 mew?”, 92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° Tal € 0 sentido da tradugo como resultado de um desejo, de uma escolha deliberada por parte do tradutor. Desta maneira, as tradugdes contribuem a alterar profundamente as normas estéticas em curso, in- troduzindo um autor consagrado — Byron ou Baudelaire — em uma outra literatura. Trata-se, de acordo com Pascale Casanova em publica- do recente — La république mondiale des lettres, 1999"—, de uma “intraduction”, terminologia empregada pela autora para identificar 0 processo de introduzir em uma dada literatura inovagdes que pertencem a outra, Casanova considera que o programa de traduzir os clissicos elaborado durante o século XIX. pelos romanticos alemaes é uma inici- ativa deste tipo. Segundo ela, a esta nogdo se acrescenta outra, a de “ittérarisation”, definida como “toute opération — traduction, autotraduction, transcription, écriture directe dans une langue dominan- te — par laquelle un texte venu d'une contrée démunie littérairement parvient & s'imposer comme littéraire auprés des instances légitimes”. ‘Vista assim, a tradugtio é mais do que uma via de acesso a0 universo literdrio, € uma forma de reconhecimento literdrio € nao ape- nas uma “transposigao lingitistica”. Yves Chevrel em seu La littérature comparée (1989) salienta que “traduire, éditer une traduction, n’est pas seulement envisager une opération d ordre linguistique, c'est aussi prendre une décision qui met en jeu un équilibre culturel et social”. Portanto, a tradugao de um texto raramente € independente do sistema que deve acolhé-la, s papéis hoje atribuidos aos tradutores e as tradugOes nos pro- cessos de disseminagio € de recepgdo literérios, aqui mencionados, seriam certamente suficientes para que se considere a importincia des- te tipo de estudo no ambito da literatura comparada, para que nele en- contremos interesse € para que se converta em objeto de permanente reflexao. " Pascale CASANOVA. Op it Pais, Seuil, 1998,

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