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O caráter universal das produções negras

Destaques na música e no cinema no último ano mostram que formato é acerto


na indústria cultural

Podemos perceber em 2017 muitas produções negras foram premiadas


e se não premiadas foram muito aclamadas pelo público. E isso tem a ver com
a identificação do público, não só da população negra, mas de todos os
públicos, talvez por causa do formato das produções, que ao invés de serem
excludentes, possuem caráter universal, permitindo a identificação de todas as
etnias com as temáticas tratadas.

Nesse sentido, escrevo as minhas impressões sobre dois seriados, um


álbum [audiovisual]: “Ela Quer Tudo” do Spike Lee, “Greenleaf” de Oprah
Winfrey e o audiovisual 4:44 do Jay-Z.

“Ela quer tudo”

Com direção de Spike Lee, a série é a reformulação do longa com mesmo


nome, também do Spike Lee, produzido em 1986. A trilha sonora é impecável,
assim como as construções das personagens da série. Ao contrário do que
especula-se, o centro dessa série não está nos relacionamentos da
personagem Nola ou até mesmo nela, mas sim nos personagens que trazem
uma multiplicidade de narrativas e complexidades em si. Sinto que é mais para
refletirmos sobre nós do que tentar resolver a vida da personagem principal.

Vou falar de dois personagens que achei bem complexos durante o seriado:
Racheletta Moss e James.

Racheletta fala de si mesma em terceira pessoas e a própria Nola nos chama


atenção para o que isso oculta: uma infância difícil. Racheletta em uma
conversa com Nola pontua a sua infância com a mãe viciada em crack e aqui
quero retomar a Paula, mãe do Black, no filme Moonlight. O crack nas
comunidades negras americanas foi um divisor de águas e tentativa também
de desmobilização nos movimentos de resistência por direitos civis.

Quando ouvi o relato de infância de Racheletta Moss, pensei logo em Black.


Existe um marcador bem tenso entre as infâncias que foram afetadas pela
epidemia do crack nos EUA, essa tentativa de ressignificar a si mesmo de se
tornar distante das características, narrativas e identidades que tinham nesse
período, no caso de Racheletta Moss uma postura disciplinada e impecável, no
caso de Black o poder no trafico garantindo sua autoridade e sua proteção.
Enquanto James me pareceu a diversos homens negros perdidos que vejo por
aí, homens que não conseguem dizer sim ou não, que ficam em cima do muro,
que não sabem nem conseguem se posicionar diante de nada e são
constantemente levados, empurrados e guiados, incapaz de seguir com as
próprias pernas a algum lugar, o tempo todo as reflexões são mastigadas e
colocadas para esse personagem. É um personagem que precisa de
intervenção, que apenas segue sua vida: Nola o mantém em suas regras e ele
as aceita sem questioná-las, a esposa vive dizendo que ele é um alpinista
social e que tem “jeito de favelado”, ela não perde a oportunidade de pontuar o
quanto está fazendo um favor em continuar ao lado dele, o amigo de James de
infância o diz o quanto o ensinou na rua e o quanto ele o ensinou a sobreviver
na periferia.

James é um personagem que não se questiona em nenhum minuto, é sempre


levado a tomar decisões por conta das pressões externas, para ele tudo bem
ficar no quarto de hospedes, pegar 10 mil emprestado pra comprar um quadro
da Nola, etc. Ele é incapaz de se impor a não ser para pedir sexo.

James não está muito distante de diversos homens em vários tipos de


relacionamentos por aí com a masculinidade construída de forma a não pensar
e refletir sobre si mesmo, a não se dar importância.

“Greenleaf”
Em um primeiro momento, me chocam as questões ocultas nas igrejas durante
a história, a forma como são conduzidas “ofertas”, etc. Mas, logo percebo que
não é sobre isso o seriado, mas para pensarmos em punição e poder, muito do
discurso de Ângela Davis “Democracia da Abolição” está nas entrelinhas desse
enredo de forma sutil. O centro da história é um tio (Mac) ter estuprado
sistematicamente a sobrinha Faith e a mesma ter cometido suicídio Por causa
disso, Grace (irmã da Faith) volta para a mansão dos Greenleaf.

O desenrolar da história é um jogo de gato e rato entre Mac e Grace, enquanto


Mac utiliza-se de sua influência por conta de estar à frente da igreja Calvary,
Grace tenta recolher e encontrar vitimas em vida para fazer um dossiê de
acusação a Mac. Nesse jogo somos levados a ter diversas percepções, uma
hora pensamos que Mac não fez nada disso, em outras que ele é um cretino,
em outras que Grace está pegando pesado, nós somos levados a ter diversas
reações sobre justiça. E a série tem uma trama muito boa. Outros assuntos são
abordados e todos criam uma predisposição do telespectador como uma forma
de criar empatia com a situação.

Outro ponto forte é que Oprah demarcou muito bem um seriado


majoritariamente (chuto 97%) com atores e atrizes negros e negras e a
complexidade dos personagens são também para se pensar, Jacob (irmão de
Grace) tem as mesmas questões que James de “Ela quer tudo”: é sempre
empurrado para as coisas. Zora (filha de Jacob) é maravilhosa, é jovem e cheia
de autoestima e opinião própria, Mae (mãe de Grace) no fim percebemos que
ela tem muito de Racheletta Moss entre outros personagens riquíssimos de
complexidade.

O que quero ressaltar é que essa série é pouco sobre as corrupções internas e
ocultas das igrejas e mais sobre como pensamos punição e justiça e os déficits
de atendimento das instituições estatais em prover isso aos cidadãos na nossa
sociedade. E como a trama do poder influência as decisões da justiça.

Jay-Z “4:44”: “Iluminatti!, dizem alguns!

E o que uma voadora da Solange Knowles não faz né minha gente?!

[Pra quem não acompanha os bafos né:

http://emais.estadao.com.br/noticias/gente,jay-z-fala-pela-primeira-vez-sobre-
briga-com-solange-knowles,70001944607]

Depois dessa voadora divina e magnânima temos três álbuns maravilhosos:


“Lemonade” da Beyoncé, “A seat at the table” da própria Solange Knowles e o
“4:44” do Jay-Z (ou como a Ju gosta de chamar José Z) todos com fotografia,
clipes, sons, samples, visual e os shows [só vi pela internet] impecáveis.

Mas estou aqui para falar sobre José Z no “4:44”, é um pedido de desculpas do
começo ao fim e uma declaração de amor, além do reconhecimento das
batalhas das mulheres [não só de Bey], há diversas vezes falas de Dona Gloria
Carter (mãe de José Z) e da Blue Ivy (filha de José Z), aqui pontuo que tanto
em “Lemonade” como em “4:44” há uma tentativa de resgate da ancestralidade
e da “fórmula” para manter uma família negra.

Nessa busca por ancestralidade no clipe “Bam” música com participação do


Damian Marley, Jay passa pelo studio Tuff Gong International, selo criado por
Bob Marley e que tem direitos autorais e produziu músicas como “No woman,
oh cry”. Além dessa visita ao estúdio, Jay perpassa pela musicalidade
jamaicana, com depoimentos de diversos músicos locais. Durante o clipe, a
rainha Sister Nancy dá um depoimento que está no clipe. E sua música “Bam
Bam” também é base não só de “Bam” do JayZ como também de “Hold up” da
Beyoncé.

Destaco três clipes “The Story of O.J”, já fiz uma resenha desse clipe no
Facebook e não tenho o que acrescentar e “Smile” que é a história da própria
mãe do Jay-Z (chorei com esse clip) fala sobre a orientação sexual ter sido
ocultada por diversas razões e “Family Feud” onde o próprio Jay-Z entra em
um confessionário com nada mais, nada menos que Beyoncé, e que Beyoncé
está de Inquisidora (medo, Deus...) para realizar o julgamento final de Jay-Z.

Esse último clipe contou com a participação do Flying Lotus na produção já


conhecido por seus clipes chocantes e bem feitos sobre a comunidade negra
americana e por tratar das subjetividades negras através dos seus vídeos. Vale
a pena procurar os clipes e vídeos curtos de Flying Lotus.

Além disso, acho que é uma obra que tenta ao menos refletir sobre as
masculinidades negras e as suas nocividades para a construção de um legado.
Considero importante um rapper como Jay-Z, que tem influência, começar a se
posicionar sobre as merdas que faz, e mais que isso, não repetir, já que deus
[literalmente] perdoou ele.

No mais, penso que os posicionamentos dos homens negros nas mais diversas
questões são mais que necessárias, Jay-Z traz em “4:44” posicionamentos
sobre a questão carcerária, indústria cultural, o genocídio da população negra,
racismo entre outros, tudo isso nas entrelinhas de suas declarações de erro e
amor, no seu reconhecimento quanto pessoa.

Todos os vídeos que foram lançados desse álbum tem uma história para contar
e uma reflexão para deixar ao telespectador.

E o que entrelaça todas essas obras, na minha opinião, é o resgate da


memória, das pessoas que foram primordiais e essenciais na construção de
uma indústria cultural negra forte e potente, como foram seus passos, como
são, quem são, nome e sobrenome. É um clamor para que nenhuma dessas
pessoas caia no esquecimento ou no ocultamento proposital das mídias ditas
“tradicionais”.

PS: Quem assistiu Greenleaf e viu o discurso da Oprah sobre Recy Taylor,
sabe que Greenleaf é uma resposta da produtora sobre poder e impunidade.

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