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OS EMBAIXADORES DE AURIGEL

Autor
KURT MAHR

Tradução
S. PEREIRA MAGALHÃES

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
A quarta aventura dos colonos de Fera Cinzenta.

Oito mil degredados da Terra vivem em Fera Cinzenta, o oitavo


planeta do sistema Mirta, totalmente afastado das rotas comerciais ou
científicas das espaçonaves interestelares. Estes degredados
começaram a se estabelecer em seu novo mundo, fazendo grandes
progressos. Notaram, porém, que a nova pátria não pertencia
exclusivamente a eles. Há, nos montes, os mungos, uma raça semi-
inteligente de macacos e nas matas virgens da parte mais baixa do
planeta habitam os anões azuis, estranhos seres dotados de
extraordinárias forças paramecânicas e parapsíquicas.
Mas, vida inteligente também existe no décimo segundo planeta
do sistema Mirta: os assim chamados peepsies, que, numa inesperada
invasão, quase destruíram a colônia da Terra. Conseguindo, então,
com muito sacrifício, colocar em condições de funcionamento o
encouraçado espacial inimigo Fair Lady, os degredados da colônia
resolvem fazer uma visita de agradecimento aos peepsies, para cortar
pela raiz qualquer nova tentativa de invasão por parte dos habitantes
do décimo segundo planeta.
Os terranos surgem como Os Embaixadores de Aurigel.
No entanto sua missão toma um desfecho completamente
inesperado...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Mullon — Líder dos colonos exilados.

Chellich — Calmo, frio e calculista.

Iij-Juur-Eelie — Rei-Presidente do planeta Peep. Ditador


egoísta.

Gii-Yeep — Chefe do serviço secreto da ditadura.

Wee-Nii — Almirante da Força Aérea de Peep.

Fij-Gul — Faz uma descoberta lingüística.


1

— Estou preocupado — disse Wee-Nii com sua voz estridente. — Por que razão a
nave não envia mais nenhuma comunicação?
Wee-Nii tinha quase dois metros e meio de altura e era demasiadamente magro.
Toda sua aparência indicava à primeira vista que devia pertencer à classe privilegiada da
nobreza. Além de alto, era esbelto, e essa aparência permitia-se apenas aos nobres que,
em toda sua vida, não precisavam saber o que era um trabalho braçal. Aos outros, os que
tinham que trabalhar, a natureza não permitia um crescimento que chegasse aos dois
metros e o diâmetro da cintura não poderia ter menos de sessenta centímetros.
O homem com quem Wee-Nii acabara de falar tinha a mesma estatura que ele: Fij-
Gul, oficial da Força Aérea de Sua Excelência, o Rei-Presidente, relativamente mais
jovem e visivelmente menos inclinado a participar dos cuidados de Wee-Nii.
— Que pode ter acontecido? — foi a pergunta meio irônica de Fij-Gul. —
Simplesmente um enguiço no transmissor de bordo ou algo semelhante. Acho que não é
motivo para medo ou preocupação.
Wee-Nii fez um gesto indeciso com as mãos de dedos finos.
— “Achar que” não nos vai adiantar nada — continuou ele pensativo. — Temos de
saber e não “achar que”. É exatamente o que nos falta: certeza. O Capitão Sey-Wuun fez
apenas referências sobre os habitantes deste planeta. Achou-os completamente indefesos
e despreparados. Disse mesmo que seria muito fácil encontrar no meio deles traidores
que, por qualquer vantagem que se lhes ofereça, estão dispostos a cooperar conosco. Mais
do que isto, não sabemos.
— Com exceção do fato de que não temos mais trigo — completou Fij-Gul.
O almirante concordou com entusiasmo.
— Isto é verdade. Sua Excelência deve ter tido motivos imperiosos para reduzir tão
drasticamente os gêneros alimentícios da Força Aérea. Caso Sey-Wuun não regresse
dentro de dez dias, temos que pedir a Sua Excelência novos suprimentos, pois nossa
gente não tem mais o que comer.
Fij-Gul foi até a janela e ficou olhando para a cidade, com suas torres altas e
pontiagudas, e as ruas sinuosas e esburacadas.
— Sey-Wuun haverá de voltar, não se preocupe — tentava ele encorajar seu
superior. — O que aqueles seres primitivos poderão fazer contra ele?
Wee-Nii estalou os dedos finos e alongados.
— Não sabemos nem sequer se eles são tão primitivos assim. Sey-Wuun viu os
destroços de uma grande espaçonave nas imediações da cidade. O agente, que ele
contratou lá, lhe garantiu que era um antigo couraçado espacial, com o qual os estranhos
chegaram até Weelie-Wee. Sey-Wuun mandou investigar, mas sua gente não conseguiu
muita coisa. Depois, os nossos destruíram uma boa parte da nave ali parada, para que os
estranhos não pudessem mais se utilizar dela futuramente. Mas... não sei não. De
qualquer maneira ficaria contente, caso Sey entrasse em contato conosco.
Fij-Gul talvez tinha alguma idéia especial, quando perguntou:
— Se ele não der mais sinais de si, que deveremos fazer?
Wee-Nii dava uma impressão de abatido.
— É também o que me pergunto. O montante de nossa Força Aérea, para fins
espaciais, consta de três espaçonaves tão boas como a nave que está nas mãos de Sey-
Wuun. Caso tenha acontecido alguma coisa a ele, e sua espaçonave não volte mais,
restarão ainda duas naves. Acha que devemos mandar uma delas para Weelie-Wee e
corrermos também o risco de ser destruída pelos estranhos ou talvez até capturada?
Fij-Gul fez um gesto de negação.
— Acho que não podemos responsabilizar os estranhos, se Sey-Wuun não voltar.
Ouvi o relatório e, segundo sua opinião, vivem em Weelie-Wee alguns milhares de pobres
loucos, vegetando nas piores condições de vida. Se aconteceu alguma coisa à cosmonave,
deve ter sido somente em vôo. Um meteorito ou algo semelhante. Nesta situação, acho
mais do que natural enviarmos uma outra espaçonave para Weelie-Wee, não é verdade?
Wee-Nii deu um longo suspiro:
— Gostaria que você estivesse certo, Fij-Gul. Tenho, porém, receio de que em sua
cabeça, o desejo seja o pai do pensamento. O desejo de receber um comando
independente, de ter em suas mãos uma espaçonave de longo alcance. Tenho razão?
Fij-Gul tinha a peculiaridade de saber disfarçar completamente, quando se sentia
embaraçado.
— Não pretendo esconder que um tal comando foi sempre a maior aspiração de
minha vida. Independente disso, meus argumentos são objetivos e bem pensados.
Conforme tudo que sei dos estranhos, não estão em condições de destruir, nem de atacar
uma cosmonave da Força Aérea de Sua Excelência, fortemente armada e com tripulação
completa.
— Ao menos, conforme o que eu sei — concordou Wee-Nii pensativo e com uma
ponta de ironia ao mesmo tempo. — Se soubesse que você tem razão, que o que você diz
corresponde aos fatos, não hesitaria em confiar a você uma de nossas espaçonaves, e
mandá-lo para Weelie-Wee. O pior é que eu não sei como andam as coisas por lá...

***

— Claro que é um nome bobo — concedeu Chellich. — Mas temos de ser


coerentes. Se chamamos os habitantes de peepsies, temos então de chamar sua pátria de
Peep, não é verdade?
Arrastando-se com cuidado, saiu de baixo da caixa de comando, limpando algumas
gotas de óleo que lhe caíram na testa, durante o trabalho de reparar os contatos elétricos.
— Para mim, é indiferente — dizia O’Bannon. — Apenas penso que será muito
cômico, quando um dia surgir no catálogo o nome Peep. Certamente vão imaginar que, ao
escolhermos este nome, nós estávamos bêbados.
— Bobagem! Pensem o que quiserem — disse Chellich, entrando novamente para
baixo da caixa de comando. — Independente disso, alguma coisa para beber não seria
nada mal.
— Acho que eu posso lhe arranjar — ofereceu O’Bannon. — Mullon tem na sua
mochila.
— Não precisa mais não — soou a voz de Chellich, vinda de baixo da caixa — já
está quase pronto. Depois desço com vocês para a cantina.
— Pronto? — perguntou O’Bannon sem acreditar. — Quer dizer que já podemos
voar?
— Em tão boas condições, como nunca esteve. Vamos voar com isso para Peep e
fazer uma surpresa aos nossos amigos.
— Você é um cara formidável — disse O’Bannon.
— Eu, não! Formidáveis são os peepsies.
— Quem?
— Os peepsies — confirmou Chellich. Depois voltou a mergulhar para baixo da
caixa do controle geral de toda a fiação elétrica, e explicou:
— Os peepsies estavam com barras de ferro na mão, e bateram a torto e a direito,
sem ter a mínima noção de onde estavam as partes mais sensíveis da nave. Acho que não
entendem nada dos princípios de propulsão das naves. Fizeram uns buracos e amassões,
mas não causaram maiores prejuízos. Por isso é que está indo tão depressa.
— Estou compreendendo — disse O’Bannon — de qualquer maneira você merece
seu bom trago.

***

Mullon alojou o helicóptero sob a eclusa de carga. Este setor era realmente o único
que ainda estava em perfeito funcionamento na gigantesca Adventurous, depois que a
explosão da bomba atômica abalou seriamente a imensa cosmonave. No interior dos
escombros não havia mais perigo de irradiações. Mullon e Chellich tiveram a precaução
de percorrer suas múltiplas dependências com medidores sensíveis, antes de penetrarem
na nave auxiliar, para consertá-la e antes de dispensarem os trajes anti-radiação.
Logo depois do primeiro exame superficial, Chellich afirmou que os danos causados
pelos peepsies eram de pouca monta e seriam sanados em dez dias. Este era o oitavo, e
Chellich prometera que naquele dia mesmo ficaria tudo pronto.
No interior da enorme eclusa, cuja comporta estava sempre fechada, devido à poeira
radiativa que o vento agitava lá fora, havia como iluminação somente uma lâmpada
portátil, colocada por Chellich nas proximidades da entrada, para facilitar a
movimentação do helicóptero.
A claridade da lâmpada não iluminava muito bem o bojo esférico da nave auxiliar,
que deslizava em corrediças para o interior da eclusa. Do helicóptero, Mullon
vislumbrava apenas uma grande sombra escura, causando uma impressão assustadora.
Enquanto Mullon esperava a descida de Chellich e de O’Bannon, lembrou-se das
palavras do Capitão Blailey. Era o homem que estava nas montanhas com uma nave de
reconhecimento da frota terrana, nave esta do tipo gazela, com instruções dos escalões
superiores para que nada acontecesse de mal aos colonos terranos. Suas palavras foram
estas:
— Para lhes ser franco, acho o plano de vocês meio arriscado. Mas se vocês
realmente estão numa situação de emergência, então devem tentar fazer coisas não
indicadas em condições normais. Mesmo assim, se forem prudentes, poderão ser bem
sucedidos. Não contem, porém, com o apoio da Terra. Se lhes acontecer algo no planeta
dos peepsies, ninguém vai chorar por vocês. A Terra deseja estabelecer neste planeta uma
base espacial e, mais dia menos dia, as supernaves da Terra estarão descendo no planeta
dos peepsies. Mas não será naturalmente para socorrer vocês.
Há quinze dias atrás, Mullon se alegrara muito ao ouvir estas palavras. Tinha sido,
até então, um motivo de inquietação para ele a presença do Capitão Blailey e sua gazela,
espreitando no fundo das montanhas, para entrar em ação em caso de necessidade.
Estava mais do que evidente que a campanha contra os peepsies era assunto
meramente dos colonos e ninguém, nem mesmo com a melhor das intenções, devia se
intrometer no negócio.
Mullon não desconhecia que havia um pouco de vaidade pessoal, pueril mesmo, em
tudo isso. Os demais, principalmente Chellich, pensavam também assim, portanto não
tinha motivos de se envergonhar. As ponderações do Capitão Blailey deram-lhe mais
firmeza. A gazela não iria atacar, pelo menos não em Peep, onde, na pior das hipóteses, se
trataria somente da morte de dez homens, pois Mullon não tinha intenção de levar mais
do que isto. Haviam de fazer seu jogo sozinhos.
Quando viu Chellich e O’Bannon saírem da penumbra da nave auxiliar, despertou
de seus pensamentos. A passos rápidos, chegaram até o helicóptero e, mesmo de longe,
O’Bannon gritou:
— Abra a garrafa, Horace, estamos com sede.
— Exatamente você que não fez nada, heim? — disse Mullon bem-humorado.
Olhou para a expressão de Chellich, constatando que parecia muito satisfeito. Seu
semblante irradiava alegria, apesar de seu rosto estar sujo de graxa e óleo.
— Tudo em ordem? — perguntou a O’Bannon, enquanto lhe passava a garrafa.
— Felizmente, só basta subirmos e sair voando.
Mullon levantou a mão, como para retificar alguma coisa:
— Ainda não! Primeiro temos que terminar nossas bombas “rolantes”.
Chellich ria, nadando em otimismo:
— Tenho plena confiança em Wolley e em seu pessoal. Fez grandes progressos nos
últimos dias.

***

Wolley se lamentava um pouco:


— É bom para nós que em Fera Cinzenta não haja imprensa. Não gostaria que os
repórteres desandassem a nos criticar, quando alguém lhes explicasse que um foguete
nosso tem que ser feito com explosivo nuclear.
Chellich e Mullon se divertiam com os comentários.
— Sou um mecânico de mão-cheia — disse Wolley. — Pelo menos é o que todo
mundo diz por aí. Mas este conserto aqui... confesso que o fiz com muito prazer.
O “negócio” não tinha de fato nenhuma semelhança com foguete, mas devia ser
considerado como tal. Ao invés de ter uma fuselagem alongada, mais ou menos em forma
de um torpedo, seu bojo parecia um grande tonel de lixo. Não havia leme traseiro, nem
estabilizadores laterais. Num dos dois lados, numa espécie de balde velho, estavam
alojadas as bombas. O outro estava aberto. Se alguém olhasse lá para dentro, veria com
pouca nitidez um pequeno motor acionado por bateria e um dispositivo semelhante a um
ventilador.
— O principal — falou Chellich, batendo amigavelmente nos ombros de Wolley —
é que a turbina cumpra seu dever. Não se preocupe com o resto. O “negócio” é para ser
usado em pleno espaço e lá ninguém dá importância a estas bobagens. Não há
necessidade de objeto voador ter uma linha aerodinâmica.
A primeira pessoa que Chellich e Mullon foram procurar, após seu regresso dos
escombros da Adventurous, foi o Dr. Ashbury, antigo médico, que agora, por motivos
imperiosos, se transferira para o ramo científico da Química. Ashbury era o homem que
podia produzir a quantidade de gás explosivo de que o foguete “barril de lixo” de Wolley
precisava para atingir um alvo com determinada velocidade.
Fabricar gás, não era difícil. Ashbury decompunha o ar em seus componentes e
depositava separadamente em recipientes adequados o oxigênio e o hidrogênio. Muito
mais complicado era levar estes gases para o foguete e mantê-los sob determinada
pressão.
Depois da visita ao Dr. Ashbury, Mullon propôs que fossem juntos jantarem na casa
dele, e simultaneamente se informassem sobre os progressos que o “grupo de ação” havia
feito.
Quando chegaram à casa de Mullon, tiveram a surpresa de ver, através da vidraça, a
senhora Fraudy, esposa de Mullon, andando para lá e para cá no quarto, com os braços
levantados. Ao penetrarem na porta, ainda ouviram sua voz em tom didático:
— Depois de expressões que contenham sentimentos de crença, desejo, dúvida e
outras coisas semelhantes, empregasse o subjuntivo, sub-jun-ti-vo. Será possível que os
senhores não querem compreender isto?
Surpreso, Mullon abriu a porta do quarto e constatou que além de Fraudy não havia
mais ninguém no quarto. Chellich começou a rir.
— Os alunos já levaram tanta descompostura, que preferiram abandonar a sala de
aula — disse ele.
A senhora Fraudy virou-se, de rosto vermelho e com as mãos apoiadas na cintura.
— Ah! Que surpresa, vocês aqui. Estou praticando minhas aulas. Estes cabeças-
duras estão sempre errando e eu não tenho coragem de dizer-lhes palavras ásperas, como
fazem em geral os professores nas escolas.
Mullon perguntou sorrindo:
— São muito fracos?
— Não são propriamente — emendou a senhora Fraudy. — Em quinze dias de aula
já aprenderam mais que as crianças da Terra, em seis meses. Têm um entusiasmo muito
grande, mas realmente não se pode aprender francês perfeitamente em quatro semanas.
— Também não é necessário aprenderem perfeitamente — disse Chellich. — Para
que os peepsies consigam entender uma língua diferente da sua, torna-se necessário que
apenas dois ou três falem bem.
A senhora Fraudy olhou para o marido e mudou de assunto.
— Os senhores querem jantar outra vez conosco, não é? — perguntou sem muita
cortesia.
Chellich fez um gesto afirmativo.
— Vocês trabalharam bastante para merecerem um bom jantar?
— Naturalmente, eu consertei uma nave inteira.
— De tal modo que possa voar de novo?
— Exatamente — respondeu Chellich.
Fraudy ficou séria de repente.
— Sei que deveria me alegrar com isso — disse ela. — Mas não consigo. Quem é
que me garante que tudo está bem feito?
Mullon se levantou e lhe pousou a mão nos ombros:
— Eu lhe garanto. Você vai ver. Dentro de dois meses estaremos de volta e, neste
meio tempo, teremos provocado tamanha confusão entre os peepsies, que perderão, de
uma vez por todas, a vontade de voltarem para Fera Cinzenta.

***
Desde a explosão da bomba atômica e da destruição da espaçonave dos peepsies,
havia já três meses. Só então que foi possível reunir os treze homens para o início da
expedição. Um sem-número de coisas tinham de ser feitas antes.
Os reparos na nave auxiliar, que recebera o nome de Fair Lady, os aborrecimentos
de Wolley com os foguetes tipo tonel de lixo e as preocupações do Dr. Ashbury com o
acondicionamento da mistura explosiva de oxigênio e de hidrogênio — todos esses
problemas eram apenas uma fração das coisas que tinham de ser resolvidas.
A cidade dos colonos de Greenwich, no Rio Green, estava agora equipada com duas
bombas atômicas, cujo material físsil tinha sido retirado dos reatores da grande máquina
voadora deixada pelos peepsies. Outros quatro reatores ajudaram Wolley a confeccionar
os foguetes que a Fair Lady levaria a bordo.
Instalaram também um sistema permanente de comunicação via rádio com a gazela
do Capitão Blailey, de maneira que este último estivesse sempre a par dos
acontecimentos, apesar de Greenwich, oficialmente, não ter nenhum contato direto com a
operação contra os peepsies. No entanto, o Capitão Blailey haveria de atacar, em caso de
perigo iminente para a cidade.
Criou-se igualmente uma nova escrita, pois Chellich supunha que os peepsies, além
de conhecerem mais ou menos a língua de Greenwich, possuíam também uma grafia
própria e portanto estranhariam muito ao verem no nome da nave seus próprios caracteres
cuneiformes. Até mesmo os membros da tripulação foram treinados para usarem em suas
comunicações escritas a nova grafia.
O Dr. Ashbury, mesmo depois de terminar a difícil tarefa de encher os tanques de
combustível com oxigênio e hidrogênio, numa determinada pressão, não parava de
trabalhar. Chellich precisava para sua expedição de muito material químico, com severas
especificações quanto à qualidade, quantidade e eficácia. Sendo assim o doutor não tinha
descanso.
Parecia, e era mesmo, um milagre que tudo isto fosse feito no curto período de um
trimestre. Milagre do trabalho e da cooperação. Decisivo em tudo isto foi o fato de que a
dedicação da colônia conseguiu restabelecer e recuperar tudo aquilo que fora quebrado ou
danificado, quando da aterrissagem forçada da Adventurous ou do ataque destruidor dos
peepsies. Esta dedicação não mediu esforços, e nem mediu as conseqüências perigosas da
missão, isto é, levar a nave a um planeta vizinho e com isto ter de enfrentar uma raça
estranha e numerosa.
O que a população de Greenwich sentia era uma reação justificada contra os
peepsies que julgaram poder reduzir à condição de escravos oito mil terranos, cônscios de
sua dignidade humana.
Na véspera da partida, Chellich, Mullon, O’Bannon e Milligan se reuniram para um
último exame.
Cada um deles tinha uma missão específica na restauração da cosmonave e nos
preparativos para o grande empreendimento, e agora fariam um balanço geral do que e
como foi feito. Quando o último deles terminou seu relatório, parecia claro que nada fora
esquecido.
No dia seguinte, na manhã do dia 16 de agosto do ano 2.041, tempo de Fera
Cinzenta, a Fair Lady decolou.
2

Uju-Riel foi o primeiro a ver a estranha espaçonave.


Surgiu de repente na tela de seu radar um ponto minúsculo e de movimentos
rápidos, que Uju-Riel supôs ser interferência “parasita”, pois para ele não havia
espaçonave que se deslocasse tão rápido assim.
Mas interferências “parasitas” são, em geral, coisas que desaparecem logo. No
entanto, aquele ponto inquieto atravessou a face superior da tela, numa linha oblíqua e
desapareceu no lado esquerdo. Uju-Riel ficou espantado e tentou medir a velocidade do
estranho objeto. Primeiramente, o radar constatou uma altitude de trezentos quilômetros e
o ponto levara seis segundos para atravessar toda a tela, portanto, previa-se uma
velocidade de vinte quilômetros por segundo.
Esta velocidade, porém, só era possível em supernaves interplanetárias. Das três que
existiam neste planeta, uma estava sob o comando do Capitão Sey-Wuun de caminho
para Weelie-Wee. As duas outras, como Uju-Riel bem sabia, estavam de prontidão nos
espaçoportos de Sielij e de Heejii.
Depois de curta hesitação, Uju-Riel deu o alarme. Anunciou que fora visto um
objeto estranho a trezentos quilômetros de altitude, com uma velocidade de cerca de vinte
quilômetros por segundo, do nordeste para o sudoeste.
Fez questão de comunicar isto, antes que acontecesse qualquer dano ao planeta.
Já que todos sabiam que seria impossível ser a espaçonave comandada pelo Capitão
Sey-Wuun, pois era muito cedo para sua chegada, a maioria começou a levar na
brincadeira o alarme.
Mas, meia hora mais tarde, o objeto apareceu novamente no radar de Uju-Riel, e
desta vez tão perto, que mesmo outros rastreadores mais fracos conseguiram captá-lo.
Além disso, foi captada também pelo posto central de vigilância eletromagnética uma
indecifrável mensagem de rádio, que, sem dúvida alguma, provinha do mesmo objeto
voador. Desta forma, houve uma reabilitação de Uju-Riel, enquanto seus superiores
estavam agora em maus lençóis.
O Almirante Wee-Nii estendeu o alarme geral para toda a Força Aérea de Sua
Excelência, o Rei-Presidente, ordenando que os comandantes dos aeroportos
mantivessem seus aparelhos de prontidão.
Neste ínterim, Sua Excelência foi colocado ao corrente dos acontecimentos e
aguardavam-se suas ordens. Mas Iij-Juur-Eelie, Sua Excelência, o Rei-Presidente,
somente daria ordens depois que o almirante da Frota Real lhe fornecesse todos os
informes sobre o estranho aparelho, ou melhor, sobre a mensagem via rádio, por enquanto
indecifrada, nas mãos dos maiores peritos do planeta. Sua Excelência queria saber
também por que, até o momento, não tinha chegado nenhum informe sobre se a estranha
nave tinha ou não demonstrado qualquer atitude hostil. Por fim, pretendia ainda informar-
se sobre o tamanho do estranho objeto voador.
Não se sabe se foi por este último ponto de vista que Iij-Juur-Eelie resolveu dar
ordem de não se empreender nada contra os estranhos, pelo contrário, que se pusesse em
funcionamento o radiofarol nas proximidades da capital para dar sinais de aterrissagem.
Quem sabe o estrangeiro compreenderia estes sinais e desceria no aeroporto da
capital?
Iij-Juur-Eelie, Sua Excelência o Rei-Presidente, foi magistral no disfarce de suas
preocupações. Sua dignidade de Rei-Presidente o exigia.
Um almirante, no entanto, podia estar preocupado e consolado ao mesmo tempo, era
o que pensava Wee-Nii. O estranho seria certamente uma visita do grande espaço. Para
Wee-Nii, seria esta a primeira vez que seu planeta receberia uma visita do Universo, de
outros mundos. Seria mesmo a primeira vez que veriam seres de outra raça.
Como qualquer outro, também Wee-Nii tinha idéias próprias de como receber
condignamente um visitante do grande Universo.
Primeiramente, troca de radio mensagens a fim de preparar a visita.
Depois, o envio de espaçonave, que deveria se dirigir para o ponto de referência e
inspecionar a nave visitante, enquanto se manteria em Heeninniy, a pátria de Wee-Nii, a
primeira fase do alarme.
E finalmente, a recepção da nave visitante, comboiada por naves de Sua Excelência,
e o desembarque no aeroporto com discursos e demais festejos. Tudo deveria ser
acompanhado pelo rádio e televisão.
Mas, não houve nada disto!
O estranho aparelho apareceu em Heeninniy como um ladrão em altas horas da
noite. Os funcionários do radar ficaram atônitos. Mostrou aos responsáveis que o sistema
de alarme não funcionava, pois do contrário o teriam descoberto e, por fim, deu uma
volta completa em torno do planeta, como se pretendesse primeiro sondar o ambiente
onde iria aterrissar.
Wee-Nii era suficientemente inteligente para compreender que a mentalidade do
estranho visitante não seria obrigatoriamente a mesma que a dele. Poder-se-iam encontrar
muitas outras explicações para o modo esquisito como esta nave penetrava em território
alheio, sem nenhuma preparação, de uma maneira inconvencional e mesmo bárbara.
Talvez, no país do visitante, as chegadas de povos estranhos fossem coisas do dia-a-dia,
dispensando assim qualquer formalidade, que na mentalidade de Wee-Nii e dos habitantes
de Heeninniy seria indispensável.
Era inútil perder mais tempo com estes pensamentos. Mas era bom ficar de olhos
abertos e pronto para tudo.
Fij-Gul já estava acostumado com o fato de que Wee-Nii se preocupava seriamente
com tudo, houvesse ou não razão para tal, daí o motivo de não levar tão a sério sua
exortação para ficar de olhos abertos e pronto para o que desse e viesse.

***

— Olhem aqui um sinal — disse o jovem grumete que Chellich colocara na radio
escuta.
Seu francês ainda estava meio “cru”, talvez porque fosse o primeiro dia em que
estava expressando-se nesta língua. Chellich estudou o sinal na tela do oscilógrafo e
constatou que não tinha nenhuma modulação. Era apenas um impulso eletromagnético,
repetido em intervalos de cinco segundos.
— Procure saber de onde vem — ordenou Chellich. — Já que não há nada por
perto, acho que o sinal é para nós. Devem ter recebido nossa mensagem e nos estão
dando um aviso para aterrissagem.
Confirmou-se em breve esta suposição.
Sheldrake, o grumete, descobriu logo que o sinal provinha de um irradiador
direcional. O transmissor devia estar nas proximidades daquela monstruosa aglomeração
de torres pontiagudas, que Chellich e Mullon já haviam identificado na primeira volta em
torno do planeta.
— Portanto, um radiofarol — concluiu Chellich. — Bem, então vamos aterrissar.
A quarenta quilômetros de altitude, sobre uma pista relativamente grande, na
periferia da extensa cidade, a Fair Lady estabilizou-se. Chellich envolveu a nave com um
campo de gravitação artificial.
Muito otimista, Chellich julgava que se devia deixar um pouco de tempo para que os
habitantes da cidade pudessem preparar uma pequena recepção.
A Fair Lady cobrira a distância entre Fera Cinzenta e Peep em poucas horas. A
maior parte do trajeto fora transposto em alta velocidade. E Chellich estava pensando se
não era exatamente esta alta velocidade da espaçonave que iria fazer com que os peepsies
perdessem todo o receio de que a nave estava chegando de Fera Cinzenta. A nave enviada
pelos peepsies, para trazer a última colheita de trigo, teria ficado normalmente dois meses
lá — primeiro, porque a colheita ainda não havia começado e segundo, para tomar novas
providências, a fim de descarregar outras máquinas e sabe Deus o que mais...
A distância de Fera Cinzenta até Peep era de setecentos milhões de quilômetros.
Uma nave dos peepsies necessitava, no mínimo, de dois meses para vencer tal distância.
Se os habitantes de Peep ainda receassem que a Fair Lady tinha vindo de Fera Cinzenta,
estariam então calculando que ela havia partido numa época em que a espaçonave dos
peepsies ainda estava lá. E, naturalmente, haveriam de achar isto muito improvável.
Chellich não acreditava que os peepsies contassem com a perda de sua grande nave.
Certamente haveriam de pensar que o transmissor estava enguiçado ou alguma outra
coisa impedia o capitão de se comunicar com sua terra. Uma mensagem dizendo que a
espaçonave tinha sido capturada em Fera Cinzenta, ou destruída, seria impossível chegar
até eles. Uma raça tão orgulhosa e cheia de si, não iria jamais aceitar uma hipótese desta.
Não, não havia, por enquanto, nenhum motivo de preocupação. Mesmo quando,
com o tempo, os peepsies começassem a desconfiar, ainda seria muito cedo para se
preocupar com isto.
Chellich voltou sua atenção para a cidade que estava sob a Fair Lady. Em sua
circunvolução pelo planeta, tinha visto muitos núcleos urbanos deste tipo. Mas teria sido
necessário o uso de uma teleobjetiva para descobrir se estas colunas singulares e
pontiagudas eram realmente habitadas. Tinham uma certa semelhança com a construção
dos “formigueiros” da Terra ou com... as estalagmites...
Os peepsies não pareciam ter muito senso para a estética arquitetônica. As casas-
estalagmites eram o fruto de uma arquitetura utilitária, que não conhecia nem mesmo o
uso da proporção. Chellich se perguntava como se podia viver em casas assim.
Ao atingir a altura de oito quilômetros, Chellich observou uma espécie de procissão
que abandonava a cidade na extremidade sul e se dirigia para o lado norte do espaço-
porto.
— A alta comissão de recepção já está a caminho. — Comentou e, depois ordenou:
— Vamos descer um pouco mais depressa.
O campo de gravitação que segurava a Fair Lady, garantindo-a contra uma queda
brusca, foi diminuído. Muito mais rápido do que antes, a nave caía rumo à pista do
aeroporto, produzindo um vácuo atrás de si.

***
Iij-Juur-Eelie julgava ter motivos suficientes para uma suntuosa recepção aos
estranhos. Realmente, os observatórios astronômicos de Heeninniy, equipados com
receptores de alta capacidade, haviam registrado sinais sobre os quais os cientistas
afirmavam que provinham dos transmissores dos estranhos.
Os observatórios selecionaram duas espécies de sinais, com toda precisão, chegando
à conclusão de que, em volta de Heeninniy, deviam existir pelo menos dois mundos
habitados por seres inteligentes.
Acontece, porém, que Iij-Juur-Eelie era um homem de grande previsão...
Existindo nas redondezas raças estranhas, um dia mais ou um dia menos, quando a
navegação espacial dos estranhos atingisse um certo grau de evolução, haveriam de
buscar contato. Já que existiam, provavelmente, duas raças estranhas, era muito
conveniente manter boas relações ao menos com uma delas. Pois, uma confederação de
três, como provava a ciência política, não teria muita estabilidade. Facilmente surgiriam
discrepâncias e quem não se fortalecesse com seu aliado, levava desvantagem.
Iij-Juur-Eelie, Sua Excelência o Rei-Presidente, tinha, pois a intenção de
impressionar os visitantes com suas gentilezas. Ao voltarem para seu mundo, haveriam de
comunicar a seu governo que teriam em Heeninniy um aliado muito importante.
Sua Excelência sabia muito pouca coisa a respeito da aventura que seu Capitão Sey-
Wuun havia iniciado há alguns meses num dos planetas, chamado Weelie-Wee.
Segundo o relatório de Sey-Wuun, não se tratava de uma raça unida, mas de uma
horda de colonizadores muito primitivos. Ainda conforme as declarações de Sey-Wuun,
nenhum dos dois tipos de sinais, captados pelos observatórios astronômicos, podia vir de
lá, pois os bandos primitivos de Weelie-Wee não dispunham de transmissores muito
potentes.
Desta forma, Sua Excelência não se preocupou mais com a questão Weelie-Wee.
Era assunto da Força Aérea que recebera de Sua Excelência a incumbência de
cuidar, ela mesma, do suprimento de víveres para seu pessoal, pois o fornecimento de
gêneros alimentícios para quase três bilhões de habitantes de Heeninniy estava cada vez
mais difícil.
Sua Excelência mandou erguer ao lado do aeroporto uma espécie de tribuna, em
cujo ponto mais alto ele mesmo ficaria. À volta do Rei-Presidente e abaixo dele
sentariam os demais dignitários do reino: Almirantes da Força Aérea, entre eles o
Almirante-Comandante Wee-Nii, altas patentes militares e finalmente os elementos de
maior hierarquia da Administração Civil. Um amplo cordão de isolamento protegia o
enorme palanque, cordão este constituído exclusivamente pela polícia secreta, pois Sua
Excelência não estava muito convencido do amor filial de todos os seus súditos.
Sua Excelência era notório por sua teimosia e mesmo pela maneira inescrupulosa
como exercia o poder que a constituição lhe outorgava, chegando, às vezes, às raias do
exagero. Além disso, era corrente o boato de que ele não ligava muito para a constituição
e mandava como um rei absoluto, autoritário, e não como um Rei-Presidente, dentro das
normas legais.
Consciente de que aquele aparato todo não deixaria de causar profunda impressão
nos estranhos, esperava Iij-Juur-Eelie a aterrissagem da misteriosa espaçonave,
aparentemente com calma e dignidade, mas no íntimo cheio de curiosidade e nervosismo.
Já estava observando que a espaçonave visitante era, pelo menos, tão grande como as três
naves de sua Frota Real, aliás as únicas do Reino, porém, certamente, muito mais potente.
De repente, passou por sua augusta cabeça o incômodo pensamento de que, talvez,
tivesse de tratar com gente que não estava à procura de novas alianças, mas que vinha
para fazer exigências: submissão política, pagamento de tributos ou quem sabe lá o quê...
Tentou expulsar estes pensamentos maléficos e resolveu simplesmente esperar.

***

Chellich estava muito bem e muito contente com sua nova indumentária. Os trajes
que as mulheres de Gray Beast cortaram e confeccionaram eram realmente muito dignos
e, o que era muito mais importante, não deixava perceber nenhuma semelhança com a
moda da Terra, que os peepsies já conheciam desde a sua visita a Fera Cinzenta.
A Fair Lady aterrissou com um impressionante ruído e atrás dela se formou uma
coluna de vento, que, para o prazer de Chellich e de seus companheiros, varreu sem
cerimônia os augustos semblantes das altas autoridades e levantou nos ares, numa mistura
de cores, os longos trajes da assistência no palanque.
Sheldrake, Loewy e Krahl já estavam agachados em seus esconderijos. Chellich já
lhes havia dito que não deviam sair do esconderijo em que estavam, a não ser depois de
cientes de que ninguém, além deles, se encontrava na espaçonave. Tudo isto era para
impedir qualquer sabotagem.
A delegação que deixou a nave, poucos minutos após a aterrissagem, era apenas de
dez homens, envoltos em vestes apertadas, chegando até os tornozelos, dando a seus
portadores a aparência de monges tibetanos. Suas armas estavam discretamente
escondidas.
Logo de início se averiguou ser muito difícil andar com a dignidade que o momento
exigia, devido à gravitação do planeta que chegava apenas a 0,7. É verdade que Chellich
já estava acostumado com esta variação e assim dominou bem a situação, não deixando
transparecer seu esforço. Mas os outros nove, incluindo Mullon, tiveram de fazer grande
sacrifício para se manterem de pé e não darem passadas de mais de um metro.
E ainda de sobra, vinha a pressão do ar que não chegava a 0,53 atmosferas, isto é,
não mais do que a pressão que se sente nos picos de montanhas da Terra com mais de
cinco mil metros de altura. Isto lhes provocava o cansaço e o zumbido no ouvido.
Qualquer movimento mais rápido, como levantar um braço depressa, para não se perder o
equilíbrio, deixava a vista turva e sobrecarregava excessivamente os pulmões.
O palanque estava armado a cento e cinqüenta metros do local de aterrissagem da
Fair Lady. Para percorrer o pequeno trajeto, a comitiva de Chellich levou dez minutos.
Chellich parou próximo do palanque, olhando para o peepsie sentado no ponto mais
alto, que devia ser a maior autoridade da cidade, ou de todo o reino.
Ergueu os braços para a saudação. Isto lhe custou um esforço notável, começando a
respirar ofegantemente. Mas seu esforço foi recompensado. Sua Excelência compreendeu
o gesto e ergueu também os braços.
Foi uma visão meio grotesca, aqueles braços longos e ressecados, com a diminuta
palma da mão e os seis dedos, tipo garras de ave de rapina se levantando para a cabeça
completamente calva, que terminava numa curva quase pontiaguda.
Chellich tirou uma folha de papel do bolso interno de seu casaco, desenrolou-a
calmamente e iniciou uma alocução de saudação, que ele mesmo redigira antes da
aterrissagem. Começou dizendo ser um enviado do planeta Aurigel que girava em torno
do sol mais próximo do sistema Peep. Este sol vizinho distava de Peep sete anos-luz.
Ninguém dos peepsies compreendeu uma única palavra de tudo que ele disse. Mas
Chellich reparou que muitos dos homens uniformizados que estavam nas laterais do
palanque estavam com pequenos gravadores. Provavelmente, estas gravações serviriam,
mais tarde, para reconstruírem o quanto possível a língua estrangeira por meio de
transladores eletrônicos; transladores estes que os peepsies já tinham usado em Fera
Cinzenta. Assim surgiria um caminho para uma futura compreensão mútua.
Quando Chellich terminou sua alocução, Iij-Juur-Eelie, Sua Excelência o Rei-
Presidente, se levantou, pronunciou com ênfase uma série de frases e depois, com passos
lentos, desceu os degraus do palanque. Todos que estavam sentados se levantaram
solenemente. Iij-Juur-Eelie veio ao encontro de Chellich, abriu os braços, colocando a
mão direita no ombro de Chellich, iniciando uma leve inclinação.
Já que Sua Excelência tinha pelo menos dois metros e sessenta de altura, a situação
ficou um pouco embaraçosa para Chellich que, com seu um metro e oitenta e cinco, não
conseguiu colocar sua mão no ombro de Sua Excelência. Contentou-se então com uma
profunda inclinação.
Depois disso, Iij-Juur-Eelie se virou para o lado esquerdo, dirigindo-se para fora do
palanque, fazendo sinal a Chellich que ficasse a seu lado. Atrás de Chellich e do Rei-
Presidente, vieram os colegas de Chellich e as demais pessoas que estavam no palanque.
Chellich constatou que a poucos metros do palanque estava postada uma fila de
viaturas, todas diferentes dos modelos conhecidos. Provavelmente seriam pequenos
objetos voadores, pois não conseguiu ver rodas de tipo algum. Assim que Sua Excelência
se aproximou do primeiro deles, o aparelho se elevou uns vinte centímetros do solo,
soltando pelos dois lados de seu bojo oval uma certa quantidade de poeira.
A primeira viatura, se assim podia ser chamada, recebeu Sua Excelência e Chellich.
Seus companheiros foram acompanhados pelos altos funcionários nos demais vagonetes
voadores. Obedecendo ao toque de uma cometa ou instrumento semelhante, a fila de
vagonetes seguiu rumo da cidade.
Chellich não achou inconveniente ou falta de respeito olhar pela janela e apreciar a
cidade lá embaixo. Não sabia uma palavra da língua dos peepsies e Sua Excelência
também não tinha outro meio de se comunicar, a não ser por um constante sorriso.
Chellich compreendeu logo por que razão os peepsies tinham que usar este tipo de
vagonetes voadores. Pois de ruas ou estradas, como se usava na Terra, não havia sinais
em Peep. O espaço que havia entre as torres, tipo estalagmites, era relativamente amplo,
mas muito irregular e cheio de buracos. Dava a impressão de que, quando os peepsies
construíram a cidade, mal se deram ao trabalho de capinar a rua, sem calçá-la ou prepará-
la de qualquer maneira.
Outra impressão singular davam as torres, quando Chellich as viu de bem perto. Sua
altura média era de quatrocentos metros, se bem que houvesse um grande número de
torres de seiscentos ou setecentos metros. Estas verdadeiras estalagmites pareciam ter
sido feitas em camadas. As paredes externas eram interrompidas por janelas redondas em
filas irregulares, como se cada um escolhesse o local onde desejava luz, ar, ou mesmo
uma vista diferente.
Havia edifícios de colorações bem estranhas, dando a entender que a obra tinha sido
construída em diversas etapas, com grandes intervalos de tempo entre si. Havia também
torres quase cilíndricas que aos oitenta ou cem metros terminavam em amplos terraços ou
plataformas.
Quem sabe estes terraços ou plataformas receberiam mais tarde algumas dezenas de
andares?
Por cima das quase-ruas, oscilavam às vezes pontes ou passagens entre uma torre e
outra, onde havia muitos peepsies olhando curiosos o cortejo lá embaixo. Chellich
reparou também que os uniformizados, que comboiavam dos dois lados a comitiva real e
os tripulantes da Fair Lady, olhavam com muita atenção para estes peepsies postados nas
pontes ou passagens, temendo naturalmente um atentado.
Nas tais quase-ruas não havia muitos pedestres, nem tantas viaturas. Talvez o trecho
por onde passava o cortejo fora fechado ao trânsito, pois, pelos cálculos de Chellich, a
cidade devia ter seus quatro milhões de habitantes e era um pouco difícil que, com uma
concentração urbana assim, as ruas do centro ficassem tão vazias desta forma.
Depois de um trajeto de quase uma hora, a comitiva tomou a direção de uma calçada
que levava para fora da cidade. Calçada esta que era margeada por árvores altas,
parecidas com o álamo. A calçada terminava, depois de uns cinco quilômetros, diante de
uma torre exageradamente alta, cujos lados formavam por sua vez outras tantas torres,
ligadas entre si por pontes em todas as alturas, largas ou estreitas. Tinha-se a impressão
de que todas estas torres, nove ao todo, estavam unidas intimamente e pertenciam a um
só conjunto. Provavelmente seria a residência do homem que estava ao lado de Chellich.
Ao pé da primeira torre, abria-se um amplo portão, por onde os vagonetes entraram
suavemente passando para uma galeria feericamente iluminada. As outras viaturas
vinham atrás, como Chellich constatou, numa rápida olhada. Usando vistosos uniformes,
criados surgiam de todos os cantos e se postavam junto aos vagonetes.
Tinham chegado ao palácio real, conforme tudo indicava.
3

— Tenho uma missão para você — disse o Almirante Wee-Nii, três dias, tempo
Peep, depois da chegada da Fair Lady, a seu ajudante Fij-Gul. — E não sei se ela vai lhe
agradar.
Fij-Gul ouvia com muita atenção.
— Descobriu-se na corte de Sua Excelência — continuou Wee-Nii — que a
espaçonave dos estranhos acha-se vazia e sem nenhuma vigilância. Você está incumbido
de fazer uma inspeção lá.
— Será que há motivos de suspeita, contra os estranhos? — perguntou surpreso Fij-
Gul.
Wee-Nii fez um gesto negativo.
— Primeiramente temos de ser sempre desconfiados com todos os estranhos e, em
segundo lugar, você não deve se preocupar com isso, como eu também não devo. Ordens
são ordens e esta aqui vem da Primeira Câmara Real. Portanto, escolha sua gente, equipe-
se com microcâmaras e... mãos à obra. Quanto mais cedo começar, será melhor.
— Mas — objetou Fij-Gul — não tenho a menor noção de como se abre a comporta.
Os estranhos a fecharam, quando de lá saíram.
— Não é mais problema, Fij-Gul, nossos técnicos não estiveram este tempo todo
dormindo. Portanto, diga-me quando você vai querer entrar na espaçonave e, até lá,
encontrará as escotilhas já abertas.
Fij-Gul já ia se retirando através de uma cortina que fazia às vezes de porta, quando
lhe veio uma idéia importante:
— E se os estranhos me surpreenderem lá dentro, que devo fazer?
Wee-Nii fez uma cara de quem já havia pensado no assunto.
— Então você cairá na desgraça do rei, pelo menos durante a estada dos hóspedes.
Naturalmente a Câmara Presidencial não saberá nada disto e se você for surpreendido,
tem que dizer que agiu por conta própria. Explique isto também à sua gente.
Fij-Gul cumprimentou e saiu.
Estava preocupado. Não era o tipo de missão de que gostava. Preferia que dessem
esta incumbência a outrem.

***

— Não — afirmou Sheldrake com convicção — nunca tive uma tarefa tão
interessante assim. Nunca o tempo me passou tão depressa como aqui na Fair Lady.
Depois, bocejou longamente, sem colocar a mão na frente da boca, pois com a
esquerda segurava as cartas do baralho e com a direita empurrava um pedacinho de
madeira para o centro da mesa.
— Toma lá um dez — disse ele.
— Oba! Isto não é um dez, é um dois — opôs-se Krahl.
Sheldrake retirou o pedacinho de madeira, com cara de desconfiado.
— É uma desgraça a gente não ter dinheiro de verdade — disse ele aborrecido,
empurrando o pedacinho de madeira para o canto da mesa, junto com os outros. — Mas
esta aqui é um dez legítimo.
Loewy sacudiu a cabeça e jogou as cartas na mesa viradas para baixo. Krahl franziu
a testa.
— Bom, o jogo não é a dinheiro, poderia ficar jogando o tempo todo, não há nada a
perder. Mas eu paro aqui.
— Está certo — disse Sheldrake e começou a contar o que havia ganho.
Eram pedacinhos de madeira de tamanho e cor diferentes.
— Se eu estivesse na Terra e o jogo fosse a dinheiro, estaria agora bem rico. Uma
nova jogada?
Loewy e Krahl sacudiram a cabeça.
— Chega, Fred, vamos inventar outra coisa melhor.
— Você quer coisa melhor do que pôquer? — protestou Sheldrake. — Então você
pode...
Foi interrompido. Um ruído intranqüilizante, uma espécie de zumbido encheu de
repente o pequeno compartimento. Sheldrake olhou para cima, para o pequeno aparelho
de alarme fixado na parede, não estava gostando daquele sinal.
— Temos visita — disse laconicamente. — Voltem para seus lugares, rapazes.
Loewy e Krahl se levantaram, afastando-se. Sheldrake foi atrás deles e fechou por
fora a portinhola de entrada para o pequeno compartimento, onde estiveram jogando
baralho e fumando. A portinhola era de tal maneira camuflada que desaparecia na parede.
Loewy e Krahl ganharam o corredor escuro. Sheldrake dobrou à esquerda. Procurou
analisar a causa do ruído. Antes analisou a si mesmo e chegou à conclusão de que estava
completamente calmo, sem medo. Isto lhe fez muito bem. Apalpou a arma que sempre
trazia no bolso lateral. Entrou depois numa bifurcação do corredor, que conduzia ao posto
de radiocomunicação. Encontrou ali ligada, como de costume, a tela que controlava toda
a sala de comando. Percebeu isto pela leve cintilação que surgia de vez em quando na
microtela. É claro que a tela estava escura, pois também a sala de comando o estava,
naquele momento.
Sheldrake fechou os olhos e prendeu a respiração, para ouvir melhor. Não sabia
quem havia aberto a comporta. Mas, considerando que foi o próprio Chellich quem
instalou o alarme e explicou a todos o que fizera, estava praticamente excluído se tratar
de alguém da tripulação da Fair Lady.
“São os curiosos peepsies que andam por aí, querendo ver a nave que veio de
longe”, pensava Sheldrake.
Apesar de ficar muito tempo com os ouvidos atentos, não escutou mais nada. Os
invasores deviam, pois, se mover com extrema cautela. Sheldrake abriu de novo os olhos
e fixou a pequena tela. Estava esperando que a luz se acendesse na sala de comando,
sabendo de antemão que iria levar um susto, quando ou se isto acontecesse.

***

Wee-Nii tinha mantido sua palavra. Estava aberta a comporta da espaçonave dos
estrangeiros. Mas, nem mesmo assim, Fij-Gul se sentia à vontade.
E se os estrangeiros não tivessem dito a verdade? Se houvesse alguém encarregado
de guardar a nave, para que ninguém penetrasse nela sem autorização?
Seria ele, Fij-Gul, o único culpado. Teria que pagar o pato. Estava, por isso, muito
transtornado e nervoso. O próprio Wee-Nii havia de dizer que estranhava muito que seu
auxiliar, Fij-Gul, tivesse cometido a loucura de invadir a nau dos visitantes com um
punhado de gente sua, infringindo sem apelação todas as leis da hospitalidade!
Seria rebaixado e removido para os cafundós-do-judas daquele planeta. Será que
mais tarde, depois que os visitantes tivessem voltado à sua pátria, haveriam de repô-lo no
seu cargo, com todas as honras e indenizações, como prometera seu chefe Wee-Nii?
Não se podia saber. Promessas, às vezes não passam de promessas. As decisões de
Sua Excelência eram muitas vezes imprevisíveis.
Com uma exclamação de impaciência e de mau humor, que lhe escapou em surdina
dos lábios, avançou para a grande comporta. O farolete de mão tremia nervoso nas
paredes metálicas da nave. Antes de chegar ali com os cinco homens, havia aprendido e
praticado como se abria esta comporta. Achou num instante o botão responsável pela
abertura.
Esperou até que seus homens estivessem todos ao lado dele, para então abri-la. No
momento em que a comporta se fechou com um ruído seco de metal, acendeu-se a luz.
Fij-Gul estremeceu de medo, pois ninguém lhe dissera que a iluminação era
automática. Talvez mesmo seu mandante não soubesse disso. Agindo com prudência, Fij-
Gul aguardou uns segundos e aguçou os ouvidos. Ao notar que nada se mexia, ficou mais
tranqüilo. Não havia mesmo ninguém dentro da espaçonave.
Abriu a escotilha interna e não se surpreendeu mais vendo tudo iluminado. No meio
do corredor havia uma esteira transportadora, que no entanto não estava ligada. Fez um
aceno para seus homens, penetrou cauteloso no corredor. Foi ficando mais corajoso com
o tempo. Quando o corredor principal tinha alguma bifurcação, parava para olhar e
escutar. Tranqüilizou-se, pois realmente não se ouvia o menor ruído.
“Quem sabe os estrangeiros tinham dito mesmo a verdade”, pensou. “A nave está de
fato vazia.”
Para Fij-Gul parecia muito provável que informações e mais detalhes sobre a
viagem dos estrangeiros, se é que existiam, deviam se encontrar na sala de comando ou
no salão principal no centro da nave.
E realmente não se enganou neste ponto.
Depois de procurar por uns trinta minutos, em que ele e os seus se sentiram mal com
a alta pressão reinante no interior da nave, chegou a um recinto arredondado, para seus
conceitos, muito pequeno e baixo, cheio de quadros de comando, telas de todos os tipos,
mostradores, alto-falantes e muita coisa mais, cuja função ignorava.
Fij-Gul não tinha uma noção precisa do que devia propriamente procurar. Achou
alguns recipientes, semelhantes a armários, abriu-os e constatou estarem cheios de mapas.
Nestes mapas havia por sua vez coisas escritas, na grafia esquisita dos estrangeiros. Fij-
Gul não conhecia esta escrita, não tinha pois possibilidade alguma de saber o que era e o
que não era importante. Achou portanto melhor fotografar tudo que lhe vinha às mãos e
não perdeu tempo.
Neste ínterim, seus homens reviravam outros armários e acharam todos vazios, com
exceção de um. Fij-Gul se alegrou com isso, pois quanto menos coisas houvesse para
fotografar, mais cedo podia cair fora.
Ia estendendo os mapas sobre a mesa e fotografando um por um com uma câmara
miniatura.
***
Sheldrake se assustou realmente, quando a luz se acendeu. Viu seis peepsies
penetrarem na sala de comando e esperava que não dessem pela pequena câmara
fotográfica colocada pouco acima da entrada, com um amplo raio de visibilidade sobre
todo o aposento, atingindo até o último canto.
Sheldrake ouviu um dos peepsies, o mais alto, que soltava sons esquisitos,
apontando para um e outro lado. Sabia que havia também um gravador ligado para captar
toda a conversa deles e que mais tarde seria possível traduzir tudo aquilo para o inglês.
Lamentou não ter um aparelho daquele, ali onde estava, pois lhe interessava muito saber
o que eles procuravam tão ansiosamente.
Observou como o maior deles, aparentemente o chefe do grupo, tirava mapa por
mapa do armário, colocava estendido na mesa e fotografava, com uma microcâmara.
Sabia que aqueles mapas foram deixados no armário de propósito por Chellich, para
enganar os peepsies, ficando assim muito contente com o que via. Se os peepsies
conseguissem traduzir todos aqueles documentos, chegariam à conclusão de que tinham
que olhar com muito respeito para aquela gente do planeta Aurigel.
Depois de vinte minutos, tudo estava terminado. Haviam fotografado tudo. O oficial
de Sua Excelência olhou para trás e Sheldrake teve a impressão de que ele se sentia feliz
por haver terminado sua tarefa. Com um gesto nervoso, deu a entender que deviam sair,
ficou para trás e fechou a comporta. Neste momento, a tela de Sheldrake se apagou.
Cinco minutos, após, soou o intercomunicador. Sheldrake atendeu e ouviu a voz de
Krahl:
— Tudo em ordem, Fred. Já estão lá fora.
Sheldrake sorriu contente.
— Então, vamos voltar ao pôquer, minha gente.
Pouco depois estavam sentados no pequeno recinto. Loewy olhou para o relógio.
— Que tal se fizéssemos nossa comunicação de rádio?
Sheldrake tirou o cigarro da boca.
— Espere mais um pouco, por favor. Não tão depressa assim, do contrário vão
concluir imediatamente que nosso rádio se prende à invasão da espaçonave.
Krahl não gostou muito da opinião de Sheldrake:
— Acho que seu raciocínio peca pela base. Como vão concluir alguma coisa, se os
peepsies não têm a mínima noção de nosso código de rádio e não sabem o que fazer com
nossas comunicações?
— Você é muito fantasista — disse Sheldrake num gesto de repulsa. — Acha que
uma raça de alta civilização não tem noção alguma de códigos de transmissão? Seria,
mais ou menos, como dizer que os americanos não sabem como construir um automóvel.
Além disso, pode confiar cegamente em Chellich, ele sabe o que está fazendo.
***
O Serviço Secreto de Sua Excelência trabalhava a todo vapor. O montante dos
documentos, fornecido por um desconhecido oficial da Força Aérea, formava uma pilha
de duzentas e vinte e três folhas, cuja escrita tinha que ser decifrada e traduzida.
Sua Excelência pessoalmente havia dado a ordem de que a tradução e a
interpretação deveriam estar prontas já na manhã do dia seguinte. Não se podia protestar
contra a ordem, embora o chefe do serviço secreto estivesse convencido de que não podia
haver ordem mais insensata do que esta.
As pesquisas sobre a escrita dos estrangeiros estavam ainda muito atrasadas. Seu
princípio básico era diametralmente oposto ao do sistema gráfico dos povos de
Heeninniy. E isso dificultava seus estudos. Tinha um sinal gráfico para cada fonema ou
som, enquanto que a escrita de Heeninniy, altamente desenvolvida, era figurativa, usando
para cada conceito completo, um pequeno desenho esquematizado.
Gii-Yeep, chefe do serviço secreto, cancelou todas as licenças que havia dado um
dia antes a seus funcionários e lhes tornou bem claro que seriam demitidos sumariamente,
se não cumprissem ao pé da letra as ordens de Sua Excelência.
Gii-Yeep não arredou pé do escritório. Assim, conseguiram fazer o que lhes parecia
uma loucura inominável, uma exigência impossível. Logo após o raiar do sol, na manhã
seguinte, a tradução estava completa. Perfazia, na escrita estenográfica de Heeninniy
cerca de setenta folhas do mesmo tamanho do original.
O que Gii-Yeep tinha agora em suas mãos, quando de seu local de trabalho
subterrâneo se dirigia para a torre residencial de Sua Excelência, não era nada menos que
uma descrição exata do planeta Aurigel, de suas relações políticas com outros povos, de
seus planos de expansão e de seu poderio militar e técnico. Quem estudasse
cuidadosamente estes dados, ficaria tão bem informado como se tivesse sido introduzido
em todos os segredos do planeta, durante longas horas, pelo próprio presidente de
Aurigel.
“Foi um trabalho e tanto”, pensava
Gii-Yeep e já estava antevendo os elogios que haveria de receber.
Não seria, porém, motivo de muita alegria, quando soubessem do enorme poderio
militar do planeta Aurigel. Gii-Yeep não era político, mas se o fosse, agora haveria de
concordar que a nação Heeninniy não podia fazer outra coisa nos próximos quinhentos
anos do que se submeter amigavelmente à supremacia do poderoso povo de Aurigel.
Gii-Yeep já estava sendo esperado por Sua Excelência no palácio real.
— Tudo pronto? — perguntou diretamente Iij-Juur-Eelie.
— Perfeitamente, Excelência — respondeu respeitosamente.
— Bom trabalho! Que contêm todas estas folhas? Leia para mim, por favor.
Gii-Yeep obedeceu. Enquanto lia, Iij-Juur-Eelie estava sentado comodamente numa
poltrona, com suas longas pernas esticadas. De repente, porém, Gii-Yeep constatou que
seu soberano intranqüilizou-se... Os olhos piscavam nervosamente e os dedos compridos
de ave de rapina estavam em constante tamborilar.
— O que você diz de tudo isto? — perguntou Iij-Juur-Eelie assim que Gii-Yeep
terminou a leitura.
— Primeiramente, Excelência, que estes estrangeiros estão muito mais avançados
do que nós — respondeu Gii-Yeep.
— No domínio da técnica, possivelmente — concordou Sua Excelência. — Mas
acho que ainda não pretendem nada contra Heeninniy.
— Pelo menos estes documentos não insinuam isto — disse Gii-Yeep.
— Bem, temos tempo de sobra.
Gii-Yeep olhou surpreso.
— Tempo? Tempo para quê?
— Se nós conseguirmos saber, por exemplo — continuou sua Excelência — qual é o
equipamento bélico de sua espaçonave. Se soubermos qual o princípio de sua energia de
propulsão e como funcionam suas armas, tudo isto nos adiantaria muito, não é?
Gii-Yeep se apressou em concordar:
— Certamente, Excelência.
— Nossos técnicos são inteligentes, Gii-Yeep. Se lhes dermos alguns dias ou mesmo
algumas semanas, conseguirão aprender tudo de que nós precisamos. Não há nada mais
fácil do que recuperar um avanço técnico de outra raça, se se tem material suficiente de
pesquisa para isto.
Levantou-se mais rápida e agilmente do que se suporia para sua idade.
— Aliás, os estrangeiros não haverão de gostar que outras pessoas fiquem fuçando
em sua espaçonave — disse Iij-Juur-Eelie em voz baixa. — Temos que... oh!... eu sei,
Gii-Yeep. Quando uma cosmonave cai em pleno deserto de Eenee, de tal modo que toda a
aparelhagem de rádio fique destruída, quanto tempo precisam os passageiros para
voltarem de novo até a civilização?
Gii-Yeep arregalou os olhos:
— Pelo menos dez dias — respondeu perplexo — se conseguirem sobreviver.
— Oh! Sim, nós cuidaremos disso. Não poderá acontecer nada de sério aos
visitantes. Mas, nós não podemos ser responsáveis pela queda de uma nave em nosso
deserto. Afinal, nossa técnica não está tão desenvolvida como a deles, não é?
Gii-Yeep começou a refletir sobre o plano, e quanto mais pensava, mais estranho lhe
parecia tudo. Debruçou-se sobre os dados traduzidos e chegou à conclusão de que eles, os
visitantes, não seriam tapeados assim tão facilmente. E se, ao perceberem o atentado,
chamassem sua força espacial para Heeninniy?
Gii-Yeep ousou expor suas preocupações, embora soubesse que Sua Excelência
poderia se irritar. Iij-Juur-Eelie, porém, estava de bom humor e, um tanto eufórico, não o
levou a mal. Também não deu maior atenção às ponderações de seu súdito.
Com palavras de elogio, Gii-Yeep foi dispensado por Sua Excelência. Mas antes de
deixar o palácio real, como já esperava, foi instruído de que se preparasse para executar o
plano delineado por Sua Excelência, dentro de poucos dias.
Isto lhe veio roubar parte de seu contentamento do trabalho heróico, realizado em
tempo recorde, e do elogio real. A outra parte lhe foi tirada, quando voltou a seu gabinete
de trabalho e recebeu da sentinela do dia a comunicação de que, há meia hora, fora
captada uma mensagem de rádio, que provavelmente só poderia ter saído da nave dos
visitantes. A mensagem fora transmitida num grau de potência muito elevado e constava
de poucas palavras. Por isso, foi possível ao pessoal de Gii-Yeep, neste meio tempo,
decifrar seu conteúdo, que era o seguinte:

“Provavelmente fácil colheita.”

Gii-Yeep achava que só havia uma interpretação para a palavra “colheita”. Mas o
que mais o irritava era o fato de que a espaçonave pudesse irradiar alguma mensagem,
quando todos os visitantes estavam hospedados no palácio. Por este motivo, entrou em
contato com o Comitê Presidencial e ficou sabendo que os visitantes gozavam de plena
liberdade de locomoção, aliás, sem acompanhamento.
Isso o deixou mais aliviado, pois, como chefe do serviço secreto, estava a par da
missão noturna do jovem Fij-Gul e teria que lamentar, caso o oficial da Força Aérea
tivesse sido vítima de um truque dos estrangeiros, porque os visitantes podiam muito bem
ter deixado um vigia escondido na nave.
Só momentos depois, lembrou-se de perguntar para que direção se dirigia a
mensagem dos três vocábulos.
A resposta foi, ao menos para Gii-Yeep, muito significativa. A direção era Feejnee, o
mundo vizinho de Heeninniy, um gigantesco planeta inabitável, com oito luas. No
momento, Feejnee distava de Heeninniy novecentos milhões de quilômetros.
4

— Deu certo — disse O’Bannon. — Havia alguém perto de nossa nave, na hora que
Sheldrake transmitiu a mensagem de rádio.
Chellich sorriu contente.
— Provavelmente já a devem ter decifrado. Foi redigida, de propósito, em código
simples. E acho que não lhes será necessário quebrar muito a cabeça para entenderem o
que quer dizer “fácil colheita”.
Mullon meneou a cabeça, negativamente:
— Não acredito, não. Pelo que tenho observado, a mentalidade deles não difere
muito da nossa. Pensam nos mesmos moldes que nós. Basta que nós imaginemos o que
faríamos em determinada situação, para saber o que os peepsies vão fazer.
— Então podemos começar logo — aparteou Milligan. — O que eles irão fazer
agora, depois de terem nas mãos todos os dados sobre Aurigel e de terem interpretado o
rádio de Sheldrake?
Mullon refletiu um pouco. Respondeu depois:
— Sabem agora que nossa técnica lhes é superior, pelo menos, por meio milênio.
São uma raça muito cheia de si... e antes de tudo estão numa situação de penúria, já que
seu planeta é pequeno demais para três bilhões de habitantes. Acho que eles vão tentar se
apropriar dos supostos segredos de nossa técnica.
— De que maneira? — queria saber Chellich.
— Examinando nossa espaçonave e fuçando tudo.
— Não se atreverão a fazer isto — afirmou O’Bannon.
— Naturalmente têm que inventar qualquer meio para chegar a isso. Por exemplo,
alguma coisa que nos afaste por alguns dias da Fair Lady.
Chellich se levantou.
— Mullon, você tem toda razão. É isso que vão fazer. Vão agir com muita cautela,
porque não nos podem matar, pois com isso provocariam um ataque de nossa força
espacial. Poderão, porém, simular ou provocar um acidente, que pareça tão verdadeiro
que ninguém os responsabilizará.
— Que devemos fazer, então? — perguntou O’Bannon.
— Isso vai depender da situação — disse Chellich, bem calmo. — Por enquanto, as
coisas não estão tão desenvolvidas assim. Milligan, já preparou o texto?
— Perfeitamente, há muito tempo.
— E como é ele?
Milligan arredondou os lábios em ponta, e em tom de voz fina e alta, tipo flautim,
soltou o seguinte:
— Eejnii-hee-lii-weeú.
— Não, em in... quer dizer, em francês.
— Atenção! Os estrangeiros planejam dominar Heeninniy.
— Tem certeza de que a frase está correta na língua deles?
— Ora essa! — protestou Milligan. — Há seis dias que estou estudando dia e noite
esta língua e vocês acham que não sou capaz de decorar estas quatro ou cinco palavras?
— Desculpe, Milligan, minha pergunta não foi no sentido pejorativo. Em seis dias
não se pode aprender muita coisa de uma língua difícil assim. Pergunto apenas: você tem
certeza de que as palavras são estas?
— Naturalmente — respondeu Milligan. — Aliás, eu copiei o texto de cartazes na
cidade.
— Copiou? Onde?
— Há na cidade muitos cartazes onde está escrito: “Atenção! Os guerrilheiros
planejam escravizar Heeninniy.” Preciso apenas trocar “guerrilheiros” e “escravizar” por
“estrangeiros” e “dominar”. E nisso não há dificuldade alguma.
Chellich teve sua atenção desviada para qualquer coisa.
— Estes cartazes se relacionam com o quê?
— Ah! Queria mesmo tocar neste assunto com você. Parece que há em Peep uma
oposição bem forte. Os da oposição dão a si mesmos o nome de “guerrilheiros” e
desejam introduzir no planeta uma ordem democrática. Pelo menos, foi isto que me
explicou meu amigo peepsie. Naturalmente, a oposição é ilegal e dá muita dor de cabeça
a Iij-Juur-Eelie, que por isso é obrigado a fazer propaganda, como se vê por aí nos
cartazes.
Chellich concordou.
— Isto nos poderá até ser muito útil — disse ele em voz baixa, falando mais para si
mesmo. — Mas vamos, faça o cartaz quanto antes, não temos tempo a perder.
***
Embora o desejasse intimamente, Sua Excelência não tivera coragem de tolher a
liberdade de movimento dos visitantes. Colocou à disposição deles diversos andares
numa das torres do palácio real, dando a cada um certo número de serviçais. Além disso,
o parque de viaturas do palácio estava sempre à disposição deles. Os motoristas estavam
instruídos para explicarem aos visitantes o manejo dos vagonetes aéreos, caso quisessem
andar sem o motorista.
O único sinal mais evidente de que se tratava mesmo de uma visita oficial eram as
horas de refeição. Sua Excelência fazia questão de alimentar-se em companhia dos
visitantes, com toda pompa da regia hospitalidade. Logo após estes banquetes, seguia-se
um tipo de conversação amistosa em que se expunham mutuamente os pontos de vista,
externando cada um seus desejos. Sua Excelência e seus auxiliares graduados davam
então conselhos e sugestões de como consegui-los mais facilmente.
Fora disso, os estrangeiros não tinham nenhum outro compromisso, estavam
totalmente livres — para maior preocupação de Iij-Juur-Eelie, o Rei-Presidente.
Podiam fazer o que queriam e aproveitavam bem o seu tempo. Sua Excelência não
estava realmente preocupado com os visitantes pretenderem espionar sua terra, pois,
conforme o relatório de Gii-Yeep, estava convencido de que, por serem muito mais
avançados, não tinham nada para espionar.
Mas seu grande cuidado e anseio era convencer os visitantes a fazerem uma tournée
pelo planeta e naturalmente — dentro das previsões — deixá-los no deserto central de
Eenee, enquanto os técnicos espionariam a espaçonave, a Fair Lady. Por enquanto era
muito cedo, os estrangeiros ainda estavam interessados em perambularem pelas escuras
ruelas da cidade. Seria para ele muito mais fácil, caso pudesse dar a ordem ou exigir uma
visita ao interior do planeta.
A curta mensagem transmitida pelo rádio o deixou perturbado. Seria possível que,
em algum lugar de Feejnee ou em alguma de suas luas, estava escondida a frota espacial
dos estrangeiros, aguardando o momento para a invasão?
Era crescente a inquietação. Conseqüentemente, passou a considerar os visitantes
como inimigos.
A partir daí, roído de ódio e pavor, passou a observar cada passo dos visitantes.
Queria até mandar instalar microfones escondidos nos alojamentos dos visitantes, mas
acabou desistindo, levado pelo pensamento de que os estrangeiros dominavam uma
técnica mais avançada e seriam capazes de descobrir tudo, considerando o fato como
traição aos princípios de hospitalidade.
A solução era, então, contar com as notícias do Serviço Secreto de Gii-Yeep, cuja
milícia formava uma rede cerrada de espionagem em torno dos visitantes. Mas estas
notícias não traziam nada de novo, pois os visitantes, pelo menos aparentemente, não
faziam outra coisa senão bater ruas e admirar a vida da cidade.
E assim estava correndo o tempo.
Um dos guardas do Serviço de Segurança, disfarçado, acompanhava os visitantes.
Andavam por uma ruela de casas comerciais, e finalmente entraram numa casa de
“uuhee” e agora, quatro horas depois, ainda não haviam saído de lá. Sua Excelência
sorriu feliz com o pensamento de que o “uuhee” lhes subisse à cabeça.
Não sabia, no entanto, da capacidade de beber de seus hóspedes, pois o “uuhee” não
passava de uma espécie de cerveja fraca.
Chellich e seus nove companheiros levaram uma hora observando as instalações
comerciais. As lojas dos peepsies não se localizavam no andar térreo, como na Terra.
Estavam em geral no alto, nas grandes torres. Quanto mais alto se localizava, mais
distinta era a loja e mais caros seu preços. Para que surgisse realmente uma rua ou um
quarteirão comercial, era necessário uma infinidade de pontes entre as torres; pontes estas
que valiam por pequenas ruas, onde também se instalavam as butiques.
O modo de comprar e vender se assemelhava muito com o que acontece na Terra
nos bazares do Extremo Oriente. As mercadorias eram apregoadas e o freguês não
comprava sem antes pechinchar alguns minutos. Mas não era um simples pechinchar,
muitas vezes se transformava em discussão, em xingatório e em briga.
A Chellich e a seus companheiros foram cedidos pequenos transladores eletrônicos
que traduziam os sons estranhos para o francês, de modo que podiam acompanhar, em
parte, a conversa dos nativos. E com o dinheiro abundante que lhes dera Sua Excelência
compraram muitas lembranças do misterioso planeta Peep. O estranho era que os
peepsies não davam muita importância aos estrangeiros. Chellich achava isto ótimo,
porque assim podiam andar mais à vontade, o que lhes facilitava o trabalho.
Durante o passeio pelas ruas do centro da cidade, Milligan tinha a incumbência de
ficar de sobreaviso a respeito de qualquer agente secreto.
De repente Milligan chamou a atenção de Chellich para dois sujeitos que os estavam
seguindo. De vez em quando, eles olhavam, como que por acaso, para o grupo dos
estrangeiros. Chellich pediu que Milligan descrevesse estes dois tipos. Não conseguiu,
porém, distingui-los no meio da multidão. Para ele, Chellich, todos aqueles “homens” de
cabeça pontiaguda e de rosto mirrado eram iguais. Deixou, pois, que o próprio Milligan
cuidasse de protegê-los dos espiões.
No final da rua, havia no interior de uma torre um enorme salão com uma série de
cantinas para refeições ligeiras. Chellich e seus companheiros entraram numa destas
cantinas, que por sinal estava quase lotada. Acharam uma mesa livre e tiveram de sentar
nas cadeiras altas demais, portanto incômodas para eles.
Milligan, o único entre eles que dominava alguma coisa da língua dos nativos, viu
na entrada a palavra “uuhee”. Devia ser uma bebida maravilhosa, era necessário
experimentá-la. Os peepsies presentes, já estavam bem altos, isto é, bem embriagados. O
barulho ali dentro era ensurdecedor. Milligan propôs que se experimentasse a célebre
bebida dos nativos.
O modo do atendimento era também interessante. Cada um gritava o que queria, na
direção de uma espécie de balcão, atrás do qual estavam dois homens que repetiam o
grito do freguês, assim que o ouviam. Depois que a encomenda estava pronta, gritavam
de novo seu nome. O freguês então se levantava e vinha apanhá-la no balcão, passando
numa caixa registradora. Mas já que eram muitos os que pediam a mesma coisa, havia
constantemente muita confusão e mesmo briga, principalmente porque os peepsies já
tinham bebido bastante.
Milligan arredondou os lábios e caprichou bastante para falar, corretamente, na
língua deles “dez vezes uma porção de uuhee”. Seu semblante se iluminou de
contentamento, quando o homem lá dentro repetiu sua encomenda. A bebida era servida
em taças opacas e colocadas no balcão. Aí é que o homem gritava a segunda vez: “dez
vezes uma porção de uuhee”. Milligan, O’Bannon e Wolve se levantaram para apanhar as
“taças”, que deviam ter meio litro cada uma.
A curiosidade sobre o gosto da bebida estava no semblante dos terranos. A
impressão geral era de como uma bebida tão fraca pudesse embebedar os peepsies tão
facilmente. Alguém falou bem alto sua impressão:
— Cerveja de terceira classe, quase sem álcool, especial para cosmonautas.
O fato de os peepsies se embebedarem tão facilmente deve se explicar pelo motivo
de o álcool produzir muito maior efeito quanto menor for a pressão ambiente.
— Poderemos fazer uma experiência a respeito — propôs O’Bannon.
— Acho melhor não — respondeu Chellich, sorrindo. — Agentes bêbados nunca
dão certo.
E dizendo isto, virou-se para trás, dando de cara com um peepsie. Olhou-o com
muita insistência, e em contraste com os dois agentes secretos, tinha uma expressão
calma, estranhamente calma. Chellich o fitou firme, ao que o peepsie desviou os olhos. O
que os terranos estavam falando, coisas sem valor, sobre o gosto desajeitado da bebida,
não podia ser assunto de espionagem. Momentos depois, Chellich fitou de novo o
“homem” da mesa de trás e constatou que o nativo o acompanhava ainda com o olhar.
Na primeira oportunidade, Chellich se dirigiu a Milligan:
— Olhe bem aquela mesa na segunda fila, na direção da porta. Não será um dos
“homens” que nos estavam seguindo?
Disfarçando, Milligan olhou para trás.
— Aquele de semblante tranqüilo?
— Exatamente.
— Não, não é nenhum dos nossos dois espiões. Quem sabe já é um terceiro?
Mas isto não dava sentido para Chellich, pois, pelo que se lembrava, aquele
“homem” já estava ali, quando os terranos chegaram. Que pretendia ele, se não era
nenhum espião?
Mais uma vez, Chellich fixou os olhos naquele “homem” esquisito. E desta vez, o
solitário não desviou os olhos, mas piscou uma, duas vezes, tendo o cuidado de que
ninguém descobrisse seus sinais. Notava-se que ele tinha alguma coisa especial para falar,
mas evitava de toda maneira ser percebido por sua gente.
Chellich imitou seu gesto e, quanto podia, repetiu ou retribuiu as duas piscadelas do
peepsie, que esboçou então um frágil início de sorriso, concentrando agora seu olhar na
taça de “uuhee”, disfarçadamente.
No momento, Chellich não sabia como se devia portar.
Conservou dentro de si tudo que sentia. Não seria mesmo possível comunicar a nove
homens juntos uma novidade tão sensacional, sem que todos virassem de uma só vez a
cabeça para o lado e ficassem olhando de onde vinha a novidade. Tinha-se que evitar a
todo custo chamar atenção do público.
Instantes depois, o “homem” se levantou. Chellich o observava com muita atenção e
viu como ele moveu rapidamente os dedos da mão direita para lhe mostrar um pedaço de
papel, que escondia na mão. Com a mesma rapidez, dobrou de novo os dedos e veio na
direção de Chellich.
A pouca distância dele, virou para a esquerda, talvez para escapar do largo corredor
que dividia o local em duas partes. Neste instante, tropeçou no pé de uma cadeira que lhe
estava no caminho. Parecia que ia cair. Chellich foi então ao seu encontro para ampará-lo
na queda. O peepsie se agarrou na roupa de Chellich e se aprumou novamente, fazendo
uma reverência para agradecer o amparo do estranho e dizendo algumas palavras, que
foram traduzidas na mesma hora pelo translador que Chellich trazia.
— Muito obrigado.
Depois, como se nada tivesse acontecido, o peepsie continuou seu caminho, passou
pelo grande corredor e desapareceu.
Chellich sabia que o pedacinho de papel, que o peepsie mostrara na mão direita,
devia estar agora no seu bolso. Não fora sem razão que o homem simulara a queda e se
agarrara nele.
Será que alguém havia percebido o truque do peepsie?
Parecia que não. A gritaria dos bêbados continuava e ninguém dava maior atenção à
mesa dos terranos.
Mesmo assim, Chellich deixou o papelzinho onde estava e só, duas horas depois,
quando já tinham deixado aquele recinto e já estavam descendo num elevador, em direção
aos seus vagonetes, foi que ele tirou o papel do bolso para entregá-lo a Milligan, a fim de
decifrá-lo.
Ficou um tanto surpreso ao constatar que não havia necessidade de decifrar o texto,
pois estava redigido na mesma grafia que Chellich e seus colegas haviam inventado em
Fera Cinzenta e que estava também sendo usada durante sua estada em Peep. Seu teor era
o seguinte:

“Favor dirigir-se aeroporto. Saída sul, ao pôr do sol de hoje.”

O francês estava estropiado, mas dava para entender. Chellich teria que se encontrar
na saída sul do aeroporto com alguém, provavelmente o mesmo peepsie da cantina. Para
que e com que finalidade? A princípio, Chellich não quis se preocupar muito com isto.
Guardou o bilhetinho assim que o elevador parou. Ali era o grande parque de
estacionamento, em que os peepsies deixavam seus vagonetes, enquanto faziam suas
compras. Eram ao todo quinze elevadores que ligavam o parque do estacionamento com
os andares superiores da torre. No momento, o trânsito não era intenso e não havia fila
para os elevadores.
— Milligan — disse Chellich em voz bem baixa — pegue um cartaz, volte e cole-o
no interior da cabina do elevador, com muito jeito para não ser notado.
Milligan já estava preparado para isto. Voltou ao elevador e esperou até que a porta
fechasse e o carro subisse. Tirou do bolso um dos cartazes já preparado e o colou na
chapa de aço interna, durante a subida. Foi um trabalho rápido e fácil, pois o dorso do
cartaz já estava com a camada de cola. Foi só estendê-lo na parede do elevador. Parou
num andar onde não havia ninguém, saltou e pegou outro carro.
Poucos segundos depois estava de novo embaixo, no estacionamento. Chellich já
havia encontrado seus vagonetes e estavam para sair dali.
— Foi tudo bem? — perguntou Chellich.
— Naturalmente — respondeu Milligan. — O primeiro já está afixado e ninguém
sabe quem foi, nem de onde veio.
— Ao menos, é o que esperamos.
5

No correr da tarde, colocaram mais nove cartazes, com o que se esgotara o estoque
do momento. Não foram observados e Sua Excelência haveria de quebrar a cabeça!
Quem é que estava violando tão ostensivamente as leis da hospitalidade e por que
razão o fazia?
Chellich podia estar muito contente com o resultado daquele dia. Acreditava que os
cartazes provocariam enorme confusão e haveriam de ajudar os peepsies a esquecer um
pouco Fera Cinzenta. Esta era a única pretensão do grupo de terranos em Peep.
Mas o dia ainda não tinha terminado, e seu ponto alto seria certamente o encontro
com o misterioso peepsie no setor sul do aeroporto. Quem sabe estaria aí mais um fator
para fazer a “pedra rolar” mais depressa?
Chellich estava resolvido a manter o assunto em segredo. Se o tal peepsie
pertencesse ao grupo dos chamados “guerrilheiros”, então estaria aí uma rara e
importante oportunidade.
Cerca de uma hora antes do pôr do sol, o cortejo dos vagonetes aéreos chegou ao
palácio real. Chellich e os seus se recolheram aos aposentos. Milligan foi encarregado de
explicar a Sua Excelência, na hora do jantar, que Chellich talvez não viesse a tempo, por
estar ocupado na espaçonave.
Meia hora após o retorno da cidade, Chellich deixou o palácio novamente.
Entretanto, havia confiado exclusivamente a Mullon que ele iria ter um encontro com um
“homem” que lhe queria dizer alguma coisa importante. Mullon fez questão de
acompanhá-lo e Chellich não tinha nada contra, pois não estava excluída a hipótese de se
tratar de uma cilada.
***
— Feejnee está a novecentos milhões de quilômetros — disse Wee-Nii — e a cada
segundo se afasta mais quatro quilômetros, Excelência.
— Sei disso — respondeu secamente Iij-Juur-Eelie.
Sabia que poderia causar má impressão a seu comando, então acrescentou em tom
mais amigável:
— Pelo menos, é o que calculava. Acho que temos de pensar de novo, almirante.
Aqui não podemos nos preocupar com os riscos. Uma de nossas naves tem de voar para
Feejnee. Não o convoquei ao palácio para perguntar se é possível ou não, mas porque
desejo saber qual é a chance de sucesso que podemos ter.
Wee-Nii se recostou na poltrona e aproveitou este curto instante para lamentar a
pobre tripulação que Sua Majestade ia mandar na segunda de suas três naves para
Feejnee.
— Acho mais do que evidente que os estrangeiros disponham de uma vasta cadeia
de radiofonia — continuou Sua Excelência — se existe de fato uma base em Feejnee ou
em algum de seus satélites. Agora eu lhe pergunto: existe, apesar de tudo, uma
possibilidade de localizarmos esta base e de construirmos em sua proximidade uma
contrabase, sem que os estrangeiros percebam?
Wee-Nii demorou um pouco a responder.
— Para uma resposta satisfatória, teria de saber que tipos de aparelhos de
radiogoniometria e demais rastreadores os estrangeiros possuem e qual seu raio de ação.
— Bem, isto você não sabe, por enquanto, nem eu — continuou Sua Excelência um
tanto ríspido. — Imagine a situação mais desfavorável e faça seus cálculos dentro destas
limitações.
Wee-Nii começou a calcular. Por mais que tentasse afastá-lo, sempre lhe surgia na
cabeça o fantasma de que a chance de êxito num empreendimento assim estava na base
de um para cem mil. E teve a coragem de dizer isto a Iij-Juur-Eelie.
Não é necessário dizer que Sua Excelência se enfureceu com isso.
— Você não está compreendendo que se trata de nossa sobrevivência? E mesmo que
as chances fossem ainda mais reduzidas, teríamos de tentar. Então?
— Se a espaçonave dos estrangeiros transmitir mais um rádio — explicou Wee-Nii,
fazendo grande esforço para não perder a calma — deveríamos então estar de prontidão
para determinar com exatidão a direção do rádio. Novecentos milhões de quilômetros não
é tanto assim. Deve ser possível descobrir se esta base se localiza em Feejnee ou em uma
de suas luas, e na Ultima hipótese, em qual destas luas.
“Assim que estivermos de posse destas informações, poderemos tentar nos
aproximar do inimigo em Feejnee ou numa de suas luas. Esta seria a única possibilidade.
Quanto à chance de sucesso, já fui bem claro...”
— Claro demais, pela terceira vez — interveio Sua Excelência mal-humorado. —
Deixe, pois, uma das duas naves em condições de decolagem imediata, instrua sua
tripulação e leve toda munição de que dispusermos.
— Armas e munições? — perguntou Wee-Nii assustado.
— Claro, armas. Ou você acha que os nossos devem voar para Feejnee para dar um
abraço nos estrangeiros e lhes dizer bom-dia?
— Vossa... Vossa Excelência está pensando num ataque? — disse Wee-Nii,
horrorizado.
Sua Excelência franziu a testa e comprimiu os olhos:
— Realmente, eu não sabia — disse ele, não se controlando mais — a quem dar
ordens. Mas pode deixar, o comandante da nave logo receberá as instruções diretamente
de mim. Entendido?
Wee-Nii se curvou respeitosamente.
— Está bem, Excelência.
— Mais uma pergunta: Sey-Wuun já se comunicou?
— Ainda não, Excelência.
— Esquisito! Que terá acontecido a ele? Wee-Nii fez um gesto indeciso:
— Talvez chuva de meteoros contra a nave, ou mesmo ataque dos nativos
primitivos.
— Bobagem! Você mesmo os chama de primitivos e no entanto acredita que possam
atacar com sucesso nossa nave!
— Excelência, esta expressão “nativos primitivos” foi invenção do Capitão Sey-
Wuun. Formou-se um conceito, sem se conhecer a verdadeira extensão deste
primitivismo.
— Bem, e o senhor, o que pretende fazer?
— Pedir-lhe uma subvenção adicional, Excelência — respondeu prontamente Wee-
Nii, com muita franqueza. — A Força Aérea não tem mais condições de cuidar de seu
sustento.
— Isto você tem que tirar da cabeça — disse Iij-Juur-Eelie com incrível calma. —
No momento, cada um recebe uma libra de trigo com uma porção de diijeeh. E o tesouro
nacional, como você sabe, está mesmo na lona, ou na maré vazante, como se diz na
marinha. Vocês meteram na cabeça este projeto e agora terão que levá-lo até o fim.
Mande uma outra nave para Weelie-Wee, se a primeira não voltar.
Wee-Nii se curvou novamente:
— Era exatamente esta autorização que eu tencionava pedir.
— Para até quando vocês têm provisões? — queria saber Sua Excelência, o Rei-
Presidente.
— Mais ou menos para duzentos dias.
— E quanto tempo precisa a nave para a viagem de ida e volta, mais a estada para o
carregamento?
— Pelo menos cento e oitenta dias, Excelência.
— Então você está vendo que é possível. E para lhe ser mais claro ainda: o tesouro
nacional não dispõe mais de nenhuma reserva que possa colocar à disposição da Frota
Espacial. Vocês têm de fazer alguma coisa por conta própria.
Wee-Nii ainda acreditava que as coisas mudariam, assim que se precisasse da Frota
Espacial contra os estrangeiros. Mas não deixou extravasar seu pensamento. Iij-Juur-
Eelie fez-lhe um aceno com a mão, indicando que não havia mais nada a tratar.
Wee-Nii se levantou e saiu, depois de ter feito as três reverências, como era de
praxe.
***
No portão norte do aeroporto, o guarda de serviço informou que nas próximas horas
não haveria aterrissagem nem decolagem e que se podia chegar sem perigo com os
vagonetes aéreos até a Fair Lady. Chellich disparou então para o sul. Entrementes estava
escurecendo rapidamente e já que a pequena viatura não tinha lanternas nem farol, estava
certo de que ninguém do posto de vigia do portão norte haveria de notar que ele não se
dirigiu para a grande espaçonave Fair Lady, mas tomou a direção do setor sul.
Fazia meia hora que o sol se escondera no poente. Chellich, porém, achara prudente
ainda não ir ao encontro do estranho. O peepsie haveria de esperar, se tivesse realmente
algo importante a comunicar. Ainda lhe custou um pouco encontrar a saída sul, pois não
estava diretamente oposta ao portão norte. Junto da entrada havia uma pequena guarita,
porém, de boa altura e, quando Chellich parou, surgiu um peepsie uniformizado. Chellich
abriu a janelinha do vagonete, dizendo:
— Hóspede de Sua Excelência! — esperou até que o translador tivesse traduzido
sua frase.
O rapaz de uniforme abriu o portão, cumprimentando com reverência profunda. A
viatura disparou.
No banco de trás estava sentado Mullon, olhando para fora.
— Não se vê ninguém.
— Nada de estranho nisto — respondeu
Chellich. — É claro que o peepsie não vai querer falar conosco perto do posto
policial.
Dobrou para a direita, estacionando a viatura no lado interno do espaçoporto. Nos
últimos metros diminuiu a velocidade, para que Mullon pudesse observar melhor. Mas
não deu certo. Não viram nada.
— Não vamos desanimar — disse Chellich. — Vamos procurar do outro lado.
Fez uma ampla curva com o vagonete, escapando assim de ser visto por um dos
guardas e conduziu a viatura novamente para o outro lado de um posto policial, e dirigiu-
se outra vez ao campo de pouso.
— Se nós não o encontrarmos agora, voltaremos para casa — disse Chellich.
O portão com a guarita ao seu lado já estava se delineando no escuro e ainda não
havia sinais do estranho. Chellich receava dar na vista se continuasse a andar de um lado
para o outro e assim foi reto na direção da saída.
Pela segunda vez, o sentinela saiu de sua guarita estranhamente alta e fez a
reverência perante o hóspede real.
— Acho que nos perdemos e vamos voltar para a cidade pelo portão norte.
O sentinela esperou paciente até que o translador lhe desse a frase em sua língua.
Depois soltou uns sons agudos como flautim, muito sibilantes, que Chellich a princípio
julgava ser apenas a confirmação de sua primeira frase. Até que veio o som do translador:
— Se o senhor veio para cá porque combinou encontro com alguém, então talvez eu
possa ajudá-lo.
Chellich olhou para cima, fitando o peepsie, que aguardava de pé, ao lado da
viatura. Tentou se lembrar da fisionomia do estranho que lhe metera o pedacinho de papel
no bolso, no início da tarde.
Seria a mesma fisionomia do guarda? Seriam idênticos os dois “homens”?
“Com os diabos!... como é difícil distinguir algum traço diferente na fisionomia
desta gente!”, pensou admirado.
— Sim...!? — respondeu Chellich meio indeciso.
— Acho que deve ser muito difícil para o senhor — argumentou o sentinela —
distinguir duas pessoas da minha raça ou reconhecer uma delas. Se quiser acreditar em
mim, sou o homem que hoje à tarde lhe colocou o bilhetinho no bolso do casaco.
— Não há nada para acreditar. Se você sabe da história do bilhetinho no meu bolso,
então você é a tal pessoa, ou um confidente dela. Que posso, pois, fazer por você?
O peepsie fez um movimento de mão, dizendo:
— Quer deixar a viatura aqui ao lado do portão?
— Não. Qual é a outra sugestão que você dá?
— Leve-o para o lado, solte o ar do motor. Quando o guarda da ronda passar por
aqui, finja que está consertando alguma coisa aí.
— Boa idéia — acudiu Chellich.
Tocou o carro para o lado. Já um pouco afastado do portão de entrada, deixou
escapar o ar, isto é, desligou a turbina que produzia o colchão de ar, dando a impressão de
que estivesse enguiçado. Saltou da viatura e veio com Mullon para o portão.
Como era de se esperar de sua raça orgulhosa, cheia de si, o peepsie não sentiu
nenhuma dificuldade em iniciar o diálogo. Estava completamente à vontade, quando
começou:
— O senhor deve ter ouvido falar dos “guerrilheiros”. É assim que nos chamam. O
que nos interessa é a liberdade de três bilhões de homens. Soubemos que os senhores
pertencem a uma raça estranha e poderosa e lhes queríamos pedir que não dessem apoio
ao nosso regime atual.
Chellich ouviu calmamente a tradução e respondeu:
— Você nos está julgando muito a par da situação aqui em seu mundo, meu amigo.
Fomos recebidos muito cordialmente por Iij-Juur-Eelie. Mas não sabemos nada dos
conflitos internos deste grande mundo e não podemos ter a pretensão de exercer
influência sobre nenhuma facção.
O sentinela se sentiu na obrigação de dar maiores explicações:
— A forma de governo de Heeninniy — continuou o estranho peepsie — está
expressa na constituição. Ela estabelece que o Rei-Presidente é o chefe da nação e os
negócios do Estado são geridos por um conselho de ministros. No entanto todo este
conselho de ministros está praticamente preso nas mãos de Iij-Juur-Eelie. Não se toma
nenhuma resolução, nada se faz, sem que seja por iniciativa dele. Não pode haver
oposição no parlamento, pois Sua Excelência, há muitos anos, estabeleceu um decreto-lei
mandando acrescentar à constituição uma cláusula que impede qualquer oposição. De
acordo com a constituição, nosso governo devia ser pela representação popular, mas na
realidade o povo tem que ser uma pessoa só, Iij-Juur-Eelie. Quem não quiser se submeter
a este regime ditatorial é considerado criminoso. É contra esta tirania que lutamos e se o
senhor não tiver dúvidas de que estou lhe dizendo a verdade, certamente concordará
conosco que esta luta é legítima.
Os pensamentos de Chellich se desenrolavam rápidos. A idéia de se aproveitar dos
“guerrilheiros” para provocar mais inquietação em Peep era antipática e traiçoeira. Mas,
afinal de contas, estavam também em jogo oito mil homens em Fera Cinzenta.
O peepsie soltou um som alongado que parecia um suspiro.
— O que acha que nós podemos fazer por vocês? — perguntou diretamente
Chellich.
— É difícil dizer. Não que nós não precisemos de sua ajuda, não. Mas o que vocês,
como hóspedes, poderão fazer, sem se exporem à ira do tirano?
Chellich teve uma boa idéia:
— Há alguma possibilidade de mantermos contato mais constante?
— Certamente. O senhor já deve ter perguntado a si mesmo de onde é que nós
conhecemos sua escrita e sua língua. Sua Excelência possui um serviço secreto. Com
muito sacrifício, alguns dos nossos conseguiram entrar para essa polícia. Quando o
senhor quiser sair e solicitar acompanhante, então em geral se consegue que um dos
nossos esteja de prontidão.
— Certo, mas precisamos então de uma senha ou de um sinal para nos
identificarmos.
— Sim, mas isto é muito fácil. Quando um dos nossos se sentar no carro dizendo:
“Espero que tenhamos uma viagem bem divertida”, o senhor responderá: “Eu também
espero que a viagem seja mesmo divertida.” Saberá então com quem está viajando.
Chellich começou a sorrir.
— Formidável. Mas para ajudá-los, precisamos possuir informações suficientes.
Será que sua gente nos poderá transmiti-las?
— É claro. Somos-lhe muito gratos por nos querer ajudar e haveremos de fazer tudo
para lhes facilitar a missão.
Chellich achou por bem interromper aí o encontro. Prometeu ao “guerrilheiro” que
iria pensar bem no melhor modo de lhes ser útil. Agradeceu, muito comovido, a
confiança do pobre peepsie.
Chellich e Mullon voltaram ao carro, ligaram o ar da turbina e atravessaram todo o
aeroporto no sentido oblíquo, saindo pelo portão norte. Entraram na cidade sem que
ninguém suspeitasse de nada. À noite, a visão ainda era mais acabrunhadora do que com
a luz do dia, pois toda a vida da cidade se desenrolava no interior das torres. E mais ainda
pelo motivo de as ruas não terem iluminação, a não ser os sinais de trânsito nos
cruzamentos.
Chellich fez o percurso todo sem dizer uma palavra. Mullon também não sentia
necessidade de se comunicar. Até que explodiu de repente:
— Não me agrada nada esta história, Chellich. Os “guerrilheiros” parecem
“rapazes” honestos. Temos o direito de açulá-los contra seus irmãos, somente por causa
de oito mil terranos?
Chellich olhou para ele estupefato:
— Não o estou reconhecendo — disse Chellich com uma ponta de ironia. — Então
você acha que devemos perder a oportunidade?
— Não sei o que você pretende, que oportunidade é esta de que fala. Vamos supor
que seu plano provoque uma revolução. Isto significa derramamento de sangue, talvez
milhares de peepsies mortos, até que a revolução tenha vencido ou perdido. Temos o
direito de entregarmos à morte centenas de milhares de gente daqui deste planeta por
causa de oito mil terranos, que nem estão ameaçados de morte? Que só temem por sua
liberdade?
— Já pensei nisto tudo, Mullon. Devo-lhe dizer que suas ponderações são dignas de
qualquer homem sensato. Creio, porém, que seus cálculos estão incorretos. Fera Cinzenta
é um planeta independente, corre o perigo de ser subjugado pelos peepsies de uma
maneira ilegal e violenta. Fera Cinzenta quer apenas se defender. Já que é um mundo sem
outros recursos, não está havendo uma guerra direta, mas tão-somente atuação
clandestina de alguns agentes. Infelizmente, não temos opção, não podemos escolher os
meios nesta guerra clandestina ou não declarada. Temos de agarrar qualquer oportunidade
que se nos apresente.
— Você está coerente, mas eu não consigo estar em paz com minha consciência.
E depois de alguns instantes:
— Gostaria de beber alguma coisa agora. Esta história dos peepsies está me
estragando a vida.
***
Chegando ao palácio, foi-lhes comunicado que Sua Excelência houvera por bem
transferir a hora do jantar, até que os dois mais eminentes membros da delegação do
planeta Aurigel estivessem de volta de suas atividades na espaçonave. Sua Excelência
consideraria uma grande honra, se, meia hora após o retorno dos dois hóspedes, todos se
encontrassem no salão, para o jantar.
Conforme a opinião de Chellich, esta aparente deferência tinha de significar alguma
coisa. Não era nada cortês, deixar que oito pessoas esperassem com fome, só porque ele e
Mullon estivessem ocupados na cidade. Iij-Juur-Eelie devia ter uma “surpresa”, pois
desejava encontrar todos reunidos à mesa.
Como logo se constatou, eram dois os motivos. Primeiro, Sua Excelência exortou os
hóspedes que, em seu esforço para conhecerem Heeninniy, não se detivessem apenas na
capital.
— O país inteiro está à vossa disposição — assegurou com ênfase. — Entrego-lhes
um dos meus aparelhos particulares para o momento em que quiserem conhecer todo o
planeta. Aconselho mesmo um vôo através de todo o nosso mundo.
Em seguida passou a falar das maravilhas de seu país, que na sua opinião deviam ser
visitadas, sem querer, contudo, influir na livre escolha de seus hóspedes.
Chellich acreditava já estar a par do motivo daquele convite. Tinha quase certeza de
que Sua Excelência queria a todo custo conhecer os segredos da Fair Lady e,
principalmente, o sistema de propulsão das turbinas e sua técnica. Num vôo em volta do
planeta, forçaria um acidente, obrigando os hóspedes a se ausentarem da capital e de sua
espaçonave, por mais dias.
Chellich estava meio indiferente quanto a esta proposta. Não queria dizer sim, antes
de consultar um dos “guerrilheiros”, isto é, um de seus novos amigos do serviço secreto,
sobre que tipos de preparativos estavam fazendo para o tal “acidente”.
O segundo motivo pelo qual queria ter todos reunidos à mesa era o seguinte:
— Para os meus irmãos de raça, a aparição repentina e inesperada de vocês produziu
naturalmente um choque. Vocês devem compreender: Uma raça vive milênios sozinha em
seu mundo, sem suspeitar da existência de outras raças inteligentes. Um dia, quando esta
raça isolada chega ao ponto de pretender conquistar o espaço, desce em seu solo uma
nave estranha. A técnica desta nave recém-chegada é naturalmente de uma raça mais
adiantada. Os estrangeiros desta nave superior se comportam como se viagens de
centenas de anos-luz fossem coisa rotineira para eles, enquanto que para a raça isolada
uma viagem de alguns milhões de quilômetros já é uma grande aventura. Os senhores
podem, então, imaginar a reação da raça isolada perante a visita. Sentem-se ludibriados
em seus sonhos e esperanças. A psicologia poderá facilmente explicar que é mesmo
necessário e natural que esta raça isolada crie então em seu íntimo uma espécie de
ressentimento contra estes estrangeiros.
Com os grandes olhos ressaltados, como se quisesse registrar o grau de penetração
de suas sábias palavras, Sua Excelência percorreu sua seleta audiência.
— Vossa Excelência tenciona dizer que ressentimentos de repulsa se desenvolvem
contra nós? — perguntou Chellich.
Iij-Juur-Eelie fez um gesto:
— Sim. E realmente lamento ter de lhes dizer isto. Mas é voz geral do povo que os
senhores vieram para cá com o único intuito de obterem informações e assim prepararem
uma futura invasão de nosso planeta.
— O que, naturalmente, como Vossa Excelência bem o sabe, é completamente falso
— retrucou Chellich.
Sua Excelência, melosamente, não poupou palavras para explicar a seus queridos
hóspedes que ele não compartilhava dos boatos completamente sem base e mesmo
nocivos ao sentimento de hospitalidade e mais ainda, os condenava.
— Provavelmente, estes boatos são espalhados por aí pela oposição. Mas, seja quem
for o responsável, os senhores compreendem agora que prestariam um grande serviço à
política interna do país, se, atendendo a meu convite e sugestão, se afastassem por uns
dias da capital, a fim de conhecerem também outros pontos agradáveis.
“Até que enfim, os gatos saíram do saco, isto é, as cartas estavam na mesa”, pensou
Chellich admirado pelo fato de que o anfitrião falasse tão abertamente da oposição hostil
do povo.
Seria bem mais diplomático não mencionar estas coisas. Suas palavras haveriam de
produzir um mal-estar nos terranos e lhes seria difícil, com meios próprios, averiguar se
esta animosidade contra eles existia de fato, ou era um cavalo de Tróia de Sua
Excelência. Mas, de qualquer maneira, estava evidente que Iij-Juur-Eelie se utilizava
destas circunstâncias para dar alguma lógica a seu plano, isto é, afastar os hóspedes bem
para longe de sua espaçonave.
— Considerando os fatores alegados por Sua Excelência — começou Chellich —
seria talvez melhor mesmo aceitarmos a sugestão. Vamos pensar a respeito e amanhã de
manhã dar-lhe-emos uma resposta. Antes de tudo, porém, queremos agradecer as
gentilezas. Posso, para finalizar, lhe fazer ainda uma pergunta?
— Naturalmente, por favor!
— Como foi que se constatou que, entre o povo, há ressentimento contra nós?
— Nossos homens encontraram, em vários pontos da cidade, cartazes
confeccionados à mão, onde se dizia: “Atenção! Os estrangeiros planejam dominar
Heeninniy.”
***
Na mesma noite, Sheldrake e Krahl, partindo da Fair Lady, se dirigiram para a parte
central do espaçoporto, a fim de darem mais um motivo para aumentar a desconfiança
dos peepsies.
Deixaram a nave terrana sem serem percebidos e caminharam um quilômetro rumo
ao centro do campo de pouso. Cavaram um buraco no chão, que não tinha mais de meio
metro de profundidade. Acreditavam que o buraco estava mais ou menos no meio do
aeroporto. Uma caixa de plástico, do formato de uma maleta de mão, foi ali colocada e
coberta de terra. O local foi bem pisoteado para não deixar nenhum vestígio.
***
Nesta mesma noite, se deu mais um fato importante. Fij-Gul, o assistente de Wee-
Nii, que, na noite anterior, fizera mais uma visita clandestina à Fair Lady, começou a
alimentar uma terrível suspeita. Devia ser alguma coisa com relação aos estrangeiros...
Alguma coisa neles, ou em suas afirmações, não estava combinando bem. Mas, o
que seria?
Depois de ter refletido muito a respeito, levantou-se no meio da noite e dirigiu-se ao
Arquivo da Força Aérea, localizado numa torre no setor sul da cidade. Encontravam-se
também neste arquivo os poucos relatórios do capitão do primeiro vôo para Weelie-Wee.
Anexado a estes relatórios, lá estava também um translador, onde se havia registrado a
língua dos primitivos colonizadores de Weelie-Wee.
Havia ainda um outro translador, com o registro da língua dos estrangeiros que no
momento eram hóspedes de Sua Excelência. Fij-Gul, que, como oficial do estado-maior,
tinha livre acesso ao arquivo e às suas instalações armou os dois transladores em seu
escritório, arranjou papel e um lápis e começou seus estudos lingüísticos.
Inicialmente pronunciou algumas frases simples nos transladores e procurou ouvir
os sons na língua estrangeira. Constatou assim que não havia nenhuma semelhança
fonética entre as duas. Isto não o deixou muito satisfeito, pois fora ao arquivo com a
convicção de que iria fazer uma descoberta sensacional.
Começou então a pronunciar palavras soltas, comparando a tradução de cada uma,
na convicção de que descobriria uma semelhança, mais facilmente nas palavras do que
nas frases.
Mas mesmo com este método, parecia não conseguir nada. Até que pronunciou a
palavra “povo”, para ser traduzida nos dois transladores. Recebeu então de um aparelho
uma sucessão de fonemas, soando mais ou menos com “piipl” e do outro com o som de
“pöpl”. Não restava dúvida quanto à semelhança entre as duas palavras.
E Fij-Gul ficou sabendo, de repente, o que o havia feito errar. Não devia comparar
meramente os sons entre si, mas a estrutura morfológica das palavras, ou seja, os sons
consonantais. A palavra “povo” tinha em ambas as línguas as consoantes p e pl. A única
coisa que variava era a vogal entre elas.
Entusiasmado com sua descoberta, Fij-Gul experimentou a palavra “população”,
provando mais uma vez a veracidade de sua pesquisa. Julgando-se meramente o som, as
palavras nada tinham em comum. Mas uma delas tinha as consoantes, ou os fonemas
/p/, /pl/ e /ss/, além de um timbre nasal no fim, enquanto a outra língua apresentava /p/,
/pj/, /Ish/ e um índice de nasalização final.
Muito estimulado, Fij-Gul continuou pesquisando e mesmo que as semelhanças não
fossem tantas, encontrou, no decorrer da noite, pelo menos vinte palavras que entre as
duas línguas tinham estrutura consonantal semelhantes.
A empolgação chegou a tal ponto que queria, naquelas horas da madrugada, se
dirigir à casa do Almirante Wee-Nii, para lhe falar de suas descobertas lingüísticas.
Antes de fazê-lo, porém, se pôs a pensar o que o almirante iria dizer de tudo aquilo.
Chegou então a concluir que a sua descoberta não era suficiente para incriminar os
estrangeiros. Desvendara, com grande esforço, que vinte palavras com a mesma
significação nas duas línguas tinham a mesma seqüência de fonemas consonantais. Isto
talvez não fosse suficiente para afirmar que as duas línguas eram da mesma família.
E mesmo que ele, ou um filólogo pudesse comprovar uma origem comum, que
adiantaria isto? Nada.
Os primitivos colonizadores de Weelie-Wee podiam muito bem, há séculos atrás, ido
a Aurigel, e terem-se radicado ali. Nem por isso tinha de haver necessariamente uma
ligação entre Weelie-Wee e Aurigel. Podia mesmo ser que os colonos nem soubessem da
existência dos estrangeiros.
Positivamente, não havia nenhum motivo de despertar Wee-Nii antes do nascer do
sol. Meio desiludido, Fij-Gul voltou para sua residência e procurou descontar um pouco o
sono perdido.
6

A primeira coisa que Chellich fez de manhã, foi organizar uma excursão com sua
gente pela cidade. Pediu acompanhamento para isto. Como de praxe, cada carro dava
para dois passageiros, de maneira que se formou uma fila de cinco vagonetes de colchão
de ar. Os guias solicitados já estavam a postos no estacionamento da torre.
Ao subir no carro em que estavam sentados Chellich e Mullon, o guia peepsie foi
logo dizendo: “Espero que tenhamos uma viagem bem divertida.” Chellich sorriu para
ele, pediu que tomasse lugar, e deu-lhe a contra-senha.
Mullon estava sentado, como de hábito, no banco de trás. Os vagonetes, um depois
do outro, deixaram a torre, saindo pelo amplo portão e passando pela avenida dos alamos,
em direção à cidade.
— Que há de importante? — perguntou Chellich ao peepsie.
— Duas naves estão sendo preparadas para decolarem — disse prontamente
homem. — As duas únicas de que dispõe a Força Aérea, já que Sey-Wuun foi dado como
perdido.
— Destino?
— Weelie-Wee e Feejnee — retrucou o guia. — De Weelie-Wee ela deve trazer trigo
e em Feejnee vão observar se lá existe uma base estrangeira.
O susto não foi pequeno para Chellich. Calculou depressa e achou logo que uma
nave dos peepsies, nas condições atuais, levaria mais ou menos oitenta dias, tempo de
Peep, para chegar até Weelie-Wee, aliás, Fera Cinzenta na língua dos terranos.
A Fair Lady cobriria o mesmo trajeto em poucas horas. Portanto, mesmo que
partissem setenta e cinco dias após a largada da nave peepsie, ainda chegariam a tempo e
impediriam a aterrissagem dos peepsies.
Setenta e cinco dias! Será que este espaço de tempo era suficiente para “sacudir”
bem o governo de Peep com esclarecimento do povo e publicação de seus absurdos,
fazendo sobressair também o fabuloso mundo de Aurigel, de maneira a demovê-los de
atacar Fera Cinzenta?
— É claro que temos uma base de nossa frota espacial em Feejnee — respondeu
Chellich, com a maior naturalidade, tentando dominar a apreensão que sentia. — E, se eu
fosse Iij-Juur-Eelie, não mandaria nenhuma belonave para lá. Nossa gente dá muita
importância à sua segurança.
— Acho que isto já foi dito a Sua Excelência — disse o peepsie. — Mas,
desgraçadamente, suas ordens têm de ser cumpridas cegamente. O pessoal tem de entrar
nestas velhas e duvidosas naves, mesmo sabendo que não voltarão mais. Ou porque são
abatidos em combates ou porque nossas naves não foram construídas para longas
viagens.
“Isto quer dizer”, pensava Chellich, “que não haverá nenhuma nave capaz de ir
para o espaço em Peep, se conseguirmos destruir a nave que enviaram para Fera
Cinzenta.”
— Fora disso, mais alguma novidade?
— Sim. Comenta-se que o senhor resolveu fazer um circuito pelo planeta. O
aparelho que o senhor vai utilizar está sendo preparado e vai cair no deserto de Eenee. Os
senhores podem escapar com vida, mas terão que caminhar pelo deserto e levarão pelo
menos dez dias para chegar de volta ao mundo civilizado, pois as instalações de rádio
estão sendo preparadas de tal maneira que se romperão em mil pedaços na aterrissagem
forçada.
Chellich fez um aceno de cabeça, como se já soubesse disso.
— Já traçaram a rota desta excursão?
— Não. O senhor pode escolher, mas o piloto tem instruções de sobrevoar o deserto
de Eenee, assim que se lhe apresentar a ocasião.
Chellich pediu que lhe descrevesse a situação geográfica do deserto. Conforme o
guia, tratava-se de uma região semelhante ao deserto de Gobi, na Terra.
Depois passaram a falar dos planos para apoio do movimento dos “guerrilheiros”,
que Chellich já tinha delineado.
— O problema vital parece ser — explicou Chellich — em caso de uma revolução
declarada, como impedir que as forças armadas tomem partido a favor da Sua Excelência.
Para isto, tem de haver um trabalho “subterrâneo”, preparado de antemão. É preciso
bastante dinheiro, bastante mesmo. Como é que estão as finanças de vocês?
— Péssimas — foi a resposta incisiva do peepsie. — A preocupação com o dinheiro
foi sempre nosso mal. Iij-Juur-Eelie sabe o que faz. Assegura a amizade dos ricos e da
nobreza com concessão de muitos favores e privilégios. Por isso, do nosso lado não há
gente de posse.
— Já imaginava isto mesmo. Temos de arranjar recursos. Estamos prontos a dar a
vocês uma boa parte do dinheiro que Iij-Juur-Eelie nos coloca à disposição. O total não
será mais do que, mais ou menos, vinte mil diijeeh.
O guia arregalou os olhos ao ouvir o número. Para os fundos das finanças do partido
era bastante dinheiro.
— É claro que isto é muito pouco — continuou Chellich. — Temos a bordo de
nossa espaçonave alguns objetos para vocês venderem. Aparelhos técnicos e produtos
químicos como provavelmente não existirão aqui em Heeninniy. Num cálculo superficial,
poderão arranjar com isto uns quinhentos mil diijeeh, ou mesmo mais. Dá para o início.
Devem investir uma parte do dinheiro, de sorte que lhes renda juros.
O guia continuava em respeitosa admiração. Chellich continuou explanando seus
pensamentos:
— Seria muito interessante que aproveitassem e explorassem a queda intencional na
propaganda contra Iij-Juur-Eelie. Quem sabe vocês tornem do conhecimento público que
os cartazes, de que certamente já ouviram falar, foram colados por ordem de Sua
Excelência, a fim de insuflar o povo à guerra. Espalhem que Iij-Juur-Eelie tem intenções
de atacar os homens de Aurigel e façam o maior rebuliço depois de nossa queda no
deserto.
O peepsie estava impressionado. E Chellich sentiu que os “guerrilheiros”, embora
tivessem boa vontade, eram no entanto principiantes, que não entendiam nada de como
fazer uma revolução.
Entrementes, os vagonetes voadores já estavam no centro da cidade. Chellich estava
agora obrigado a prestar muita atenção ao trânsito. A conversa esfriou um pouco.
— Parece que houve um acidente num cruzamento — falou Mullon.
Um engavetamento de muitas viaturas. E quando Chellich, numa grande curva,
tentou passar de lado, uma espécie de caminhão parou à sua frente, de modo que nem
para frente, nem para trás, podia locomover-se.
O peepsie abaixou a janela e olhou para fora. Alguns guardas uniformizados
estavam diante do carro acidentado e conversavam. Das torres, os curiosos olhavam lá
para baixo. O caminhão na frente não dava sinais de querer sair dali.
Chellich desceu e viu a causa do entupimento no trânsito: um peepsie,
aparentemente desmaiado, senão morto, estava ao lado do carro acidentado, e se o
caminhão continuasse a andar, produziria um remoinho tão forte, sob sua carroceria, que
o infeliz talvez não agüentasse.
Um dos guardas descobrira a presença de Chellich e se aproximou dele:
— Houve um acidente — disse com cara de ingênuo.
— Isto eu já vi — respondeu Chellich.
— Não se preocupe conosco, podemos esperar até que tudo termine.
— Oh! Não — disse o peepsie, depois de transladar as palavras de Chellich. —
Temos ali atrás um carro parado, que está em posição de se deslocar facilmente. Por
favor, tome-o, para não precisar esperar.
Chellich acabou concordando. Mullon e o guia peepsie também apearam. O carro da
polícia estava bem afastado do engarrafamento, de modo que se podia manobrá-lo
facilmente.
Mullon e o peepsie entraram. Chellich abriu a porta do outro lado e queria sentar ao
volante. Neste momento ouviu um grito de surpresa de Mullon. Virou para trás e viu três
homens uniformizados, sentados no banco de trás. Já haviam algemado Mullon e o guia.
Haviam caído numa armadilha, como crianças inexperientes. A primeira coisa que
os guardas fizeram foi tomar-lhes as armas de ultra-som.
— Toque de volta para o palácio de Sua Excelência — ordenou um dos guardas — e
não tente fazer nenhuma besteira. Sabemos que vocês são perigosos, não queremos correr
nenhum risco.
Chellich queria protestar, mas achou que não tinha nenhum sentido. Devia haver um
motivo para este ataque bem preparado. E quanto mais refletia, mais certo estava do que
se tratava. No carro em que viajaram até o ponto do acidente, deviam ter instalado
microfones e aparelho de transmissão.
Conduziram-nos, para uma cela estreita, sem janela e sem nenhum tipo de móvel.
Era numa das torres do conjunto do palácio real, bem afastado do setor residencial, onde
Chellich e os seus haviam sido hospedados até o momento.
A detenção se efetuara sem nenhuma formalidade. Foram desarmados brandamente,
contra o que não se opuseram. Suas perguntas sobre O'Bannon e os outros colegas
ficaram sem resposta. Também não lhes disseram o que ia acontecer com eles.
A cela recebia um pouco de luz de uma diminuta clarabóia bem no alto, entre a
parede e o teto.
— Aqui estamos então — disse Mullon para quebrar o silêncio. — Caímos na
esparrela como patinhos, não é?
Chellich, aborrecido, apenas abanou a cabeça.
— É... não se pode dizer outra coisa. Só quero saber como Iij-Juur-Eelie vai querer
continuar a brincadeira. Deve estar com um medo horrível de que nossa frota, de uma
hora para outra, surja aqui em Peep e ponha fim às suas injustiças.
— De nada nos adianta pensarmos assim — contradisse Mullon. — Afinal, ele nos
apanhou em crime de lesa-pátria, ou crime de sei lá o quê!
— Perante seu próprio povo, pode valer como pretexto, mas não para nós.
Suponhamos que houvesse de fato uma frota terrana aqui nas imediações, certamente não
iria esperar até que Sua Excelência viesse se justificar com todas as suas provas.
Olhou bem em redor e pôde constatar que não havia microfones escondidos
naquelas paredes nuas e frias.
— Iij-Juur-Eelie deve estar esperando muita coisa de nossa prisão e quanto mais eu
penso, mais me convenço de que vai demorar muito até que saibamos o que vai
acontecer.
— Fico com dó do pobre peepsie — disse Mullon, levando a conversa para outro
lado. — Com ele, o processo vai ser sumário.
— Nem isto a gente pode dizer com certeza. Os “guerrilheiros” ocupam muitos
cargos no serviço secreto. Quem sabe podemos esperar alguma coisa deste lado?
Mullon olhou para o teto, dizendo:
— Talvez!
***
Entrementes, Fij-Gul transmitira suas informações a Wee-Nii. Este estava ouvindo
com interesse as explicações e, exatamente quando Fij-Gul estava para tirar as conclusões
de seus estudos filológicos, chegou do Comitê Presidencial a notícia de que a espaçonave
estrangeira devia ser equipada pelo menos com duzentos homens. Mas, não havia
comandante para ela.
Ninguém sabia ainda de onde Sua Excelência tirara a coragem para se apossar
assim, em plena luz do dia, da nave estrangeira, contrariando todas as boas normas da
diplomacia, o que lhe poderia acarretar terríveis conseqüências.
Wee-Nii procurou se informar no Comitê Presidencial do que havia acontecido de
novo, para tão brusca alteração dos planos. Mas lá também ninguém sabia nada. Wee-Nii
transmitiu, pois, a ordem recebida a Fij-Gul e este teve a impressão de que, nas últimas
horas, todas as missões difíceis vinham estourar nas suas mãos.
Mandou colocar em estado de alarme o regimento de guarda do aeroporto e se
encaminhou para a nave estrangeira, que repousava imponente e tranqüila. Fij-Gul
examinou com desconfiança e medo as muitas clarabóias distribuídas no bojo esférico da
gigantesca nave, temendo a toda hora que de uma delas irrompesse de repente uma
chama mortífera ou uma saraivada de tiros pesados.
Entretanto, nada se mexia.
Quando Fij-Gul e seus homens estavam a cem metros da nave, veio do lado da pista
um vagonete de colchão de ar. Saltaram dois oficiais e Fij-Gul reconheceu os técnicos,
cuja missão era abrir a comporta da grande nave.
***
— Falando sinceramente, para mim é gente demais! — exclamou Sheldrake. — São
pelo menos duzentos homens e não há nenhum dos nossos com eles.
Krahl e Loewy olhavam apreensivos para a tela panorâmica. O vagonete de colchão
de ar disparou da margem do aeroporto e parou a cem metros da Fair Lady. Viram os dois
homens apearem e se dirigirem para a nave.
— São os especialistas em arrombamento — explicou Sheldrake — treinados para
abrir as comportas das naves estrangeiras.
Loewy apontou para a tela.
— Que vamos fazer com os outros? Vamos deixá-los entrar?
— Não tenho vocação para suicida — disse Sheldrake pulando para a poltrona do
piloto. — Deve ter acontecido alguma coisa a Chellich e a seus companheiros, do
contrário os peepsies não se atreveriam a invadir a nave. Vamos agir, portanto, por conta
própria. Quem sabe é bom termos dois reféns.
Ligou uma série de botões e começou a escutar o ruído lá embaixo.
Os dois técnicos já haviam alcançado a comporta e não se encontravam mais ao
alcance das objetivas da tela panorâmica. Instantes depois, ouviu-se um zumbido. Era o
sinal de alarme de que a comporta tinha sido aberta.
O pelotão de guardas com o oficial à frente já estava a oitenta metros. Sheldrake os
contemplava com um sorriso irônico. Quando o pelotão se aproximou mais uns vinte
metros, num movimento brusco, empurrou a alavanca para baixo...
***
Fij-Gul viu como a comporta se abriu, depois que os técnicos mexeram um pouco na
parede externa, notando que ela estava vazia. Ficou mais aliviado. Um avalanche de
pensamentos invadiu sua cabeça, o mais vivo deles era um novo sentimento de admiração
por Sua Excelência. Embora fosse um homem duro, severo, não era nada bobo e, quando
fazia uma coisa, tudo era bem calculado. Sabia sempre o que estava fazendo.
Estes pensamentos, que de inteligentes não tinham nada, pelo menos serviam para
acalmar Fij-Gul, dar-lhe mais coragem, tanto assim que, de repente, tomou a dianteira do
pelotão, marchando resoluto para a espaçonave.
De súbito, porém, teve a impressão de que o ar na sua frente estava cintilando.
Devia ser mera sugestão, provocada pelo seu estado de nervos. Passou a mão pelos olhos
e tocou para frente marcialmente. No mesmo instante bateu contra uma muralha invisível.
Como sua passada fora dada com extrema força, para ajudar a vencer o medo, o choque o
jogou por terra. Acudiram alguns soldados, levantando-o e o colocando de pé. Pelas
fisionomias dos guardas, notou que todos estavam assustados.
Atônito, de braços esticados para frente, aproximou-se mais uma vez do local onde
sua passagem fora impedida. Não via nada na sua frente, a não ser o ar que tremulava um
pouco, e mais à frente, a uns cinqüenta metros, o bojo arredondado da nave. Quando suas
mãos sentiram de novo a misteriosa barragem, tremeu. Deu um grito e deixou seus braços
caírem, como se tivesse levado um choque. Levantou-os de novo, para apalpar o que lhe
estava na frente.
Constatou com surpresa que seus dedos não conseguiam tocar ou melhor, apalpar
aquela coisa incrível. Havia no ar qualquer coisa de força invisível que impedia a
aproximação da mão.
Aos poucos, seu sistema nervoso foi se acalmando, conseguindo pensar com mais
clareza. Era um oficial do estado-maior, e como tal, um homem de formação superior.
Admitiu a possibilidade de que os estrangeiros estivessem de posse de uma força
com a qual podiam envolver sua espaçonave numa camada protetora.
Isto não era novidade. Experiências neste sentido tinham sido feitas até em
Heeninniy... aliás sem resultado até o presente.
Neste meio tempo, os dois técnicos, que já estavam esperando na entrada da
comporta, foram avisados do que estava acontecendo. Quando Fij-Gul começou a acenar,
eles se aproximaram. Fij-Gul lhes gritou que no meio do ar havia uma barreira invisível e
ouviu sua resposta:
— Que besteira é esta?
Para as vibrações sonoras, portanto, a camada de proteção não era um obstáculo.
Havia acabado de constatar. Mas os dois técnicos se aproximavam. Orgulhosos de seu
serviço, marchavam ao encontro de Fij-Gul, quando, com os pés erguidos no ar, não
conseguiram completar o passo, como se um raio tivesse caído à frente deles. Perderam o
equilíbrio e rolaram para trás.
Fij-Gul não conseguiu dominar um sorriso irônico.
— Eu os avisei — disse o oficial. — Parece que vocês agora estão presos.
Deu ordem a seus soldados para que dessem a volta em torno da nave e
procurassem, tateando com os braços esticados para frente, a fim de acharem uma
passagem. A ordem não foi prontamente obedecida, pois os soldados estavam com muito
medo.
Os dois técnicos repetiram a operação, para medirem a resistência daquela muralha
invisível. Tudo inútil.
— Talvez seja melhor vocês examinarem o interior da nave — disse finalmente o
oficial — para ver se esta camada de proteção pode ser desligada.
— A nave deve estar repleta de estrangeiros e você acha que devemos penetrar nela
assim?
Fij-Gul se lembrou de sua responsabilidade perante Wee-Nii.
— Devem entrar, sim. Como estão vendo, ninguém, fora de vocês, pode fazer
alguma coisa. Além disso, a nave está completamente vazia, como nós sabemos. Esta
camada de proteção ligou-se automaticamente devido à nossa aproximação.
Ele mesmo não acreditava no que estava dizendo.
Levados pelas palavras de Fij-Gul, os técnicos retrocederam rumo à comporta. Fij-
Gul viu como eles estavam com a arma na mão e subiram pelos degraus da escotilha.
Depois, na escuridão do interior da nave, ele os perdeu de vista.
Do outro lado, estavam voltando os soldados enviados para procurarem uma brecha
na muralha invisível. Nos seus olhos se lia o terror. Mas cumpriram seu dever e chegaram
à conclusão de que não havia passagem em lugar nenhum.
Os dois técnicos estavam presos e, se não conseguissem desligar o mecanismo que
produzia o campo energético em torno da nave, ficariam para sempre ali.
Para sempre?
Fij-Gul se lembrou de sua constatação de que as ondas sonoras atravessavam a
barreira invisível. Podia-se, pois, bombardear a nave com canhões, possantes,
naturalmente.
Mas a questão continuava. Para que serviria uma espaçonave destruída? Fij-Gul
colocou o pelotão de guardas na frente da nave e transferiu seu comando a um sargento.
Depois voltou às pressas para Wee-Nii, para colocá-lo a par dos fatos.
***
Chellich estava roendo as correias que o atavam à estranha cadeira, não porque
pensasse em ficar livre e fugir, mas apenas para ter alguma coisa que fazer.
Tiraram-no da cela para colocá-lo numa sala vazia, cuja instalação tinha uma
lâmpada fraca, uns quadros de comandos elétricos e a tal cadeira estranha, com
alavancas, botões e cabos. Não era, pois, difícil descobrir sua finalidade. Era uma destas
instalações que a técnica moderna criou para substituir os antigos instrumentos de tortura,
a roda, os ferros em brasa e etc. Arrancavam os segredos das bocas mais fechadas.
Além de Chellich, estavam na sala mais dois peepsies. Um deles, Gii-Yeep, tinha
um translador dependurado a tiracolo. Chellich tinha sido apresentado a ele, uma vez, e
se lembrava dele devido a uma cicatriz na face esquerda. O outro, Chellich não conhecia.
Gii-Yeep se postou na frente de Chellich, dizendo:
— Vamos lhe fazer algumas perguntas e suponho que você seja tão inteligente para
respondê-las imediatamente.
Chellich encarou seus olhos, mas não disse nada. Gii-Yeep continuou:
— Que tipo de força é esta que circunda sua nave como uma muralha invisível?
Chellich respirou mais aliviado.
“Quer dizer que Sheldrake e os outros dois rapazes reagiram prontamente”,
meditou.
A Fair Lady estava protegida. E nem com todos os canhões e bombas, os peepsies
iriam conseguir quebrar aquela proteção. Não deixou transparecer sua alegria e continuou
em seu mutismo.
O outro peepsie não estava mais ali. Depois de uns instantes da primeira pergunta de
Gii-Yeep, Chellich ouviu o estalo de um interruptor e no mesmo momento sentiu o
choque fortíssimo que lhe arrancou lágrimas de dor e de ódio.
Mas não respondeu nada. Gii-Yeep renovou a pergunta e perante o silêncio de
Chellich, o outro aplicou ao prisioneiro uma descarga pelo corpo todo.
Esta última não fora assim tão brava como a anterior.
— O que você está esperando? — perguntou Gii-Yeep irritado, vendo seus métodos
falharem.
— Por uma explicação — respondeu Chellich prontamente. — Quero saber
primeiro por que motivo estou aqui, onde estão meus companheiros, o que pretendem
conosco e também quero saber se vocês são tão loucos, ao ponto de não perceberem que
a nossa frota espacial estará aqui em poucas horas, com pelo menos quinhentas naves,
para transformar toda Heeninniy num montão de cinzas! Diga-me isto primeiro, depois
vou ver se posso responder sua pergunta.
Gii-Yeep fez uma cara de idiota. Depois respondeu:
— Você está aqui, acusado de crime de alta traição e seus colegas também estão
presos. Só para que você saiba que sua caturrice não vai adiantar nada, quero lhe dizer
que não precisamos necessariamente de você. Entre seus colegas, encontraremos
certamente um que nos responda prontamente. Agora, o que vai acontecer com você, após
este interrogatório, não sei, porque não tenho nada a ver com isto. E a preocupação com
sua frota espacial, é melhor deixar por nossa conta.
Para Chellich, não havia nada de novo em tudo que ouviu. Tinha aproveitado o
tempo para refletir. Veio-lhe uma idéia que o fascinava, quanto mais pensava.
Poderia enganar um homem como Gii-Yeep ou os técnicos peepsies?
— Então, você quer responder agora a minha pergunta? Que tipo de força é esta que
protege toda a sua nave?
Chellich ainda estava hesitante. O segundo peepsie já estava perdendo a paciência e,
sem nenhum aviso, lhe aplicou mais um choque elétrico. Chellich se curvou todo,
gritando de dor.
— Parem. Prestem atenção. Trata-se de um campo antigravitacional.
— Sim, mas o que quer dizer isto?
— Quer dizer que qualquer energia cinética de um objeto que queira penetrar neste
campo, é destruída ao atingi-lo.
— Como é que se produz um campo energético deste tipo e como se pode desligá-
lo?
Novamente uma grande pausa por parte de Chellich, premiada com o choque de
corpo todo, que ele achava muito mais suportável que o anterior.
— Meu Deus! — disse gritando. — Será que vocês não conhecem nada disso? E eu
tenho que lhes explicar toda a técnica do campo antigravitacional artificial?
Gii-Yeep fez um gesto afirmativo:
— Exatamente, você vai descrever tudo pormenorizadamente e este homem ali
atrás, no quadro de comando, é o nosso técnico mais competente e vai tomar nota de tudo
que você disser.
— Vocês pretendem construir também um campo magnético semelhante? —
perguntou Chellich.
— Isto não é de sua conta — foi a resposta estúpida de Gii-Yeep.
— É, sim. Preciso saber de que fontes energéticas os senhores dispõem. Um único
campo de antigravitação consome mais energia do que uma cidade de quatro milhões de
habitantes.
Gii-Yeep olhou para Chellich e depois para o tal técnico.
O segundo peepsie, atrás do quadro de ligação, deve ter feito algum sinal
confirmando, pois Gii-Yeep se dirigiu mais uma vez ao seu prisioneiro:
— Produzimos energia com reatores nucleares — explicou ele a Chellich. — Já
temos em atividade, na usina de fissão atômica, alguns reatores experimentais, mas ainda
não são muito eficientes.
Chellich gostou da explicação do peepsie e continuou:
— Suponhamos: caso vocês quiserem produzir um campo energético, capaz de
neutralizar a camada de proteção de nossa espaçonave, precisarão então de uma energia
de dez bilhões de Megawatts. Vocês conseguirão isto?
A expressão no rosto de Gii-Yeep era um misto de arrogância e de ironia:
— Se você acha que nos vai assustar com seus números astronômicos, creio que está
no caminho errado. Se constatarmos que você não está exagerando, haveremos de
conseguir os dez bilhões de Megawatts.
— Está bem — disse Chellich — mas vocês têm as instalações para isto?
— Você terá que nos ajudar.
— Não — disse ele categórico e gritando de dor, quase ao mesmo tempo, pois o
técnico lhe aplicara a descarga no corpo inteiro junto com o choque de alta-tensão na
garganta.
— Você vai nos ajudar nisso — estava eu dizendo.
— Não! — gritou Chellich furioso.
E desta vez, as duas descargas simultâneas o deixaram inconsciente por alguns
instantes. Quando voltou a si, sentia uma tempestade na cabeça.
Mas não se entregou. Era muito cedo. Deixou que repetissem os choques ainda
quatro vezes. Quando voltou a si pela quarta vez, balbuciou:
— Está bem... vou lhes dizer. Mas quero primeiro alguma coisa para beber.
***
O plano de Sua Excelência nasceu do acaso. Mas mesmo depois de maiores
reflexões, parecia perfeito e muito promissor. Quando mandou instalar microfones nos
carros que estavam à disposição dos estrangeiros, não foi porque tivesse alguma suspeita
deles. Simplesmente porque um carro parecia bem mais apto para disfarçar estes objetos,
do que as paredes de um quarto. E podia ser que em viagem fizessem algum comentário,
entre si, que interessasse a Iij-Juur-Eelie.
O fato de logo na primeira viagem, depois que mandou colocar os microfones, poder
ficar a par daquela conversa e saber que os estrangeiros conspiravam com os
“guerrilheiros”, foi mero acaso. Então ele, às pressas, forjou aquele vasto plano.
É claro que temia a frota espacial dos inimigos, mas não acreditava que fossem
atacar e destruir sem mais nem menos Heeninniy. Tinha finalmente seus dez presos e
mais ainda: podia provar que eles, os estrangeiros, infringindo todas as regras
diplomáticas, tinham se aliado à oposição ilegal e entrado em conchavo para elaborar um
plano a fim de subverter a ordem vigente.
Entretanto, teria de devolver os prisioneiros e as relações com Aurigel já
começariam num clima de tensão! Como contornaria essa situação?
Neste meio tempo, porém, continuaria o interrogatório dos estrangeiros e ninguém
melhor do que Gii-Yeep para garantir que as respostas viriam rápidas e “espontâneas”
No entanto, já o primeiro contragolpe, após o aprisionamento dos estrangeiros,
estava fracassando. Fij-Gul, com seu pelotão militar não conseguira se apossar da
espaçonave e os dois técnicos, que abririam a comporta, estavam presos, talvez para
sempre.
Depois deste incidente, ninguém mais sabia se a espaçonave estava vazia ou havia
alguém lá dentro vigiando. O envoltório de proteção podia ter se ligado automaticamente.
Se houvesse alguém lá dentro, este devia estar dormindo, quando Fij-Gul penetrou pela
primeira vez na nave.
A última hipótese encerrava algo de desagradável ou mesmo de perigoso.
Mas havia outra coisa que aumentava grandemente a inquietação de Sua Excelência:
esta manhã se registrou um sinal, partindo do aeroporto da capital. Foi um fortíssimo
sinal de rádio.
Desta vez não foi uma mensagem, mas apenas um único sinal. Os especialistas de
rádio de Gii-Yeep estavam de prontidão para determinar a posição do transmissor, assim
que fosse ao ar novamente. O fato estava envolvido em mistério, pois os operadores de
rádio estavam convencidos de que um sinal daquele não podia partir da nave.
Mas então, de onde partira? Será que seria obra dos “guerrilheiros”? Será que
tinham recebido a incumbência de avisarem a frota estrangeira em Feejnee, agora que os
visitantes não o podiam mais fazer?
Sempre os malditos “guerrilheiros”! Sua Excelência quase teve um ataque de cólera
ao saber que um dos chefes do serviço secreto era um “guerrilheiro”. Ordenou
imediatamente um rigorosa investigação no “serviço secreto”, à procura de “traidores”.
Mas no momento havia coisas mais importantes a fazer. Primeiramente, a inquirição
dos prisioneiros.
O “guerrilheiro” detido estava encarcerado, aguardando a sentença de um tribunal
especial.
A nave com destino a Feejnee, sob o comando do Capitão Niij-Seem já estava a
caminho. Niij-Seem era de plena confiança. Tinha recebido uma série de instruções e
certamente as cumpriria ao pé da letra, caso chegasse inteiro até Feejnee, o que, aliás, o
Almirante Wee-Nii não acreditava.
Sua Excelência lamentava profundamente que o Almirante Wee-Nii tivesse, tão
levianamente, dado permissão para que a última nave que lhes restava, partisse para
Weelie-Wee. Niij-Seem ou o Ministério da Defesa poderiam utilizar muito melhor a única
nave e, em caso de extrema necessidade, poderiam adquirir o trigo que lhes faltava, em
outra fonte, isto é, através de um severo racionamento em todo o planeta.
Mas enquanto Iij-Juur-Eelie estava ponderando o que devia fazer, se dava ou não a
licença para a decolagem de sua nave, esta partiu afoitamente, sob o comando do Capitão
See-Pee, rumo a Weelie-Wee. Neste momento já estava fora do alcance do fraco rádio do
planeta e não podia mais ouvir a ordem de regresso.
Iij-Juur-Eelie esperava, pelo menos, que o Capitão See-Pee fosse mais prudente do
que Sey-Wuun, de quem até então não se sabia nada, supondo-se naturalmente que ele e a
tripulação haviam perecido em qualquer acidente.
Dentro de mais alguns dias, a nave seria dada oficialmente como perdida. Sua
Excelência se preocupava muito com este planeta misterioso, principalmente depois que
surgiram as discrepâncias com Aurigel. Caso se constatasse, porém, que os habitantes de
Weelie-Wee eram responsáveis pelo desaparecimento de Sey-Wuun e de sua nave,
haveriam então de pagar bem caro.
Quando estes pensamentos agitavam a cabeça de Sua Excelência, estava sentado em
seu escritório, um grande salão no ponto mais alto da torre, exatamente onde havia uma
saliência, em forma de terraço. Lá de cima, se descortinava quase toda a cidade. Era neste
salão que se concentravam todos os meios de comunicação com os elementos mais
importantes da administração, governadores, generais e almirantes.
Foi ali que recebeu a notícia de que o prisioneiro estrangeiro, que se chamava
“Tchee-Lich” ou algo semelhante, havia iniciado seu depoimento, quer dizer, que tinha
explicado ao técnico Wiir-Nee como se produzia o envoltório de proteção em torno da
nave e como se podia desligá-lo.
Depois, quase em seguida, veio outra notícia de que o “guerrilheiro” detido tinha
conseguido escapar, sem que houvesse nenhuma pista de sua fuga.
O rubor da cólera subiu ao rosto de Iij-Juur-Eelie e, esbravejando, ameaçou severas
penas para os culpados da fuga. Mas havia coisa mais importante: o depoimento do
estrangeiro “Tchee-Lich”. E isso era de vital importância.
Se o técnico Wiir-Nee já estivesse pronto, podia ir começando a preparar os
aparelhos necessários para conseguir neutralizar a misteriosa barragem da grande nave.
***
Já um pouco refeito, Chellich começou a refletir sobre o que havia dito ao técnico e
achou que estava tudo certo.
Não foi fácil dar de cabeça, a um técnico, os elementos básicos para a construção de
um mecanismo, por meio do qual este julgaria poder resolver o problema do campo
artificial de gravitação.
Porém guardou certos segredos concernentes à feitura do aparelho.
O que Chellich lhe havia descrito, era um instrumento cujos componentes deixavam
supor que se iriam conseguir os resultados prometidos. Nem mesmo um especialista
experimentado, caso nunca tivesse mexido com a técnica de formação de campos
artificiais de gravitação, poderia descobrir a menor falha nos dados alinhados.
E no entanto, havia uma falha, mínima, imperceptível, que no momento decisivo
faria com que os peepsies não tivessem a alegria de ver funcionando o almejado aparelho.
Depois deste depoimento, deram-lhe algum alimento e o reconduziram à cela. Wiir-
Nee, que já o considerava quase um colega, assegurou-lhe que iria começar o mais rápido
possível a construção do aparelho antigravitacional e que contava com sua assistência
técnica. É claro que Chellich prometeu estar à sua disposição.
Neste meio tempo, Mullon passara horas amargas. Sabia que Chellich seria
interrogado, mas imaginava que o assunto fosse outro.
— Não — explicou Chellich, muito fatigado — não queriam saber nada a respeito
de Aurigel. E também não lhes disse que viemos de Fera Cinzenta. Em compensação, tive
que lhes descrever com todos os detalhes como funciona um campo antigravitacional,
para que possam neutralizar o envoltório de proteção energética que Sheldrake ligou em
volta da Fair Lady.
Mullon, aterrorizado, arregalou os olhos:
— E você entregou estes segredos nas mãos deles?
— Naturalmente, eles têm métodos especiais para conseguir qualquer depoimento.
Mullon estava perplexo. Caminhou de costas até a parede.
— Mas, desculpe... Seria naturalmente exigir demais de você, suportar os métodos
de tortura do serviço secreto, sem abrir a boca.
Chellich, apesar de estar com o corpo todo dolorido, deu aquele sorriso irônico de
sempre:
— Não se preocupe, abri muito a boca, mas os peepsies vão ter uma alegria muito
curta. Não conseguirão nada de positivo com o que lhes ensinei.
Mullon estava encantado com o que ouvia. E, no exato momento em que iria fazer
uma pergunta, a porta da cela se abriu. Um guarda uniformizado entrou e disse:
— Espero que tenhamos uma viagem bem divertida.
Chellich estava com a cabeça tão abalada pelos choques, que no momento não deu
com o significado da frase. Olhou indeciso e, só depois de alguns instantes, foi que
percebeu do que se tratava:
— O senhor... o senhor... pertence aos “guerrilheiros”?
Sua surpresa foi tal, que não se lembrou de que não tinha mais o translador. Mas o
aparelho do peepsie “guerrilheiro” traduziu sua pergunta.
— Exatamente — foi a resposta. — E quero ajudá-lo a sair daqui.
Chellich compreendeu logo a situação:
— Ótimo, mas não sei bem qual é o melhor modo de você nos ajudar. Para onde
poderemos ir e o que acontecerá com nossos companheiros?
— Serei o responsável, nas próximas duas horas, pela vigilância deste setor de
detenção. Será o tempo suficiente para libertar seus companheiros. Podemos nos
esconder no subsolo da torre, até que escureça. Depois, alguns dos nossos virão nos
buscar.
— Nós? — perguntou Chellich admirado. — Você quer fugir conosco?
— Naturalmente, tenho de fugir com vocês. Haverão de pensar que eu sou o único
culpado pela sua fuga e deixarão os outros em paz.
Chellich concordou.
— Está certo, nós vamos. Todos os nossos estão presos neste setor?
— Sim, estão nas celas aqui neste corredor.
Mullon ainda sentia-se perplexo, de pé, encostado na parede. Estava como uma
pessoa que não consegue compreender a sorte que chega inesperada. Chellich o pegou
pela mão.
Ali fora, no corredor, em rápida conversa com o “guerrilheiro” obteve outras
informações.
Recuperarem as armas que os guardas lhes tiraram, era, conforme a opinião dele,
quase que impossível. O serviço secreto as havia guardado num cofre-forte, onde tinham
acesso apenas Gii-Yeep e uns dois privilegiados.
O peepsie Luun-Syr julgava, no entanto, que podia arranjar para eles quatro ou
cinco pistolas ultra-som, o que parecia para Chellich mais do que esperava.
O corredor, comprido e muito alto, estava silencioso e mal iluminado. As portas dos
cubículos estavam todas de um lado só; no outro, a parede era contínua e sem recuos.
A porta do cubículo mais próximo foi aberta por meio de uma vareta, da qual Luun-
Syr dizia possuir um poder mágico, capaz de abrir as mais complicadas fechaduras.
Chellich concluiu daí tratar-se de um dispositivo produtor de impulsos eletrônicos,
impulsos estes na medida exata das fechaduras das celas.
Quando a porta girou sobre os gonzos, viu-se lá dentro, sentados no chão, um na
frente do outro, O’Bannon e Milligan, praticando um jogo diferente, que consistia em
formar com o braço direito, em movimentos rapidíssimos, certas figuras que o parceiro
tinha que adivinhar antes que seu colega acabasse com o movimento.
Foi certamente uma brincadeira inventada por O’Bannon para dar a impressão aos
peepsies de que eles não estavam preocupados com a prisão.
— Podem terminar tranqüilamente esta brincadeira — disse Chellich, sorrindo.
O’Bannon deu um salto.
— Chellich...! Mullon...! Está tudo em ordem?
— Se você continuar gritando assim, tudo estará perdido. Este bom amigo aqui,
Luun-Syr, quer nos ajudar a fugir. Isto tem que ser feito em silêncio e com muita cautela.
Portanto, ajam de acordo. Venham agora, vamos buscar os outros.
Chellich teve que usar ainda de palavras enérgicas, enquanto liberava os demais,
pois a alegria destes era maior que a prudência. E cada par de prisioneiros libertados era
mais uma explosão incontida de alegria, sempre acompanhada de gritos de emoção.
Luun-Syr teve sempre o cuidado de fechar novamente as portas, para que a fuga não
fosse percebida logo. Depois se dirigiu à sala da guarda, onde providenciou as armas
ultra-som.
Chellich aproveitou para dar umas instruções aos seus.
— Luun-Syr acha que nos devemos esconder no subsolo, até ficar escuro. Então os
“guerrilheiros” virão nos apanhar. Penso, porém, que esta manobra não é interessante,
pois assim que souberem de nossa fuga, vão esquadrinhar todos os edifícios, inclusive os
subsolos. E, contra o aparato todo do serviço secreto, nossas chances serão diminutas.
“Mas há um lugar, onde, certamente, ninguém vai nos procurar. São os aposentos
que servem de residência para o próprio Iij-Juur-Eelie. É claro que lá estão muitos
guardas, mas se chegarmos antes que descubram nossa fuga, temos a possibilidade de
dominar os guardas e talvez, mesmo, consigamos botar as mãos em Sua Excelência.”
Alguns acharam o plano excelente, outros julgaram-no demasiadamente ousado.
Entre os últimos estava O’Bannon que disse:
— Por que não partimos já e procuramos chegar até à Fair Lady? Se conseguirmos
chegar até nossa nave, ninguém poderá nos fazer mal.
Chellich deixou que todos falassem.
— Ótimo! E como vocês querem chegar até lá? Os peepsies cercaram todo o
aeroporto e principalmente a nave. Tiraram-nos tudo. Não temos nem um sinalizador para
nos comunicar com a Fair Lady. Não, meu caro, esta idéia é inviável.
O’Bannon compreendeu. Concluiu-se que se devia seguir o plano de Chellich.
Neste ínterim chegou Luun-Syr, sobraçando seis pistolas ultra-som. Chellich as
distribuiu entre seu pessoal e expôs seu plano ao peepsie “guerrilheiro”. A reação de
Luun-Syr foi idêntica à de O’Bannon. Primeiro achou extremamente ousado, mas logo se
convenceu de que não havia opção melhor.
— Bem — disse Chellich satisfeito — podemos então arregaçar as mangas. Qual é o
melhor caminho para a torre central?
Luun-Syr apontou para o corredor.
— Ali na frente, chegamos ao hall dos elevadores. Podemos tomar um elevador e ir
até uma das pontes. Se encontrarmos uma de pouco movimento, dentro de meia hora
estaremos na torre central.
Chellich estava de acordo. Virou-se para os seus e disse:
— Temos seis pistolas, o que nos será suficiente se tivermos bastante juízo e um
pouco de sorte.
7

Depois de prestar informações a Wee-Nii, Fij-Gul voltou para sua gente. Esperava
encontrar seus dois técnicos de novo junto da barreira invisível, ou ao menos ver um sinal
qualquer deles. Mas não aconteceu nada disto.
Muito confuso e cada vez mais nervoso, Fij-Gul ficou montando guarda com seu
pelotão, em redor do envoltório energético, sendo rendido após cinco horas de espera
inútil.
Durante este tempo, lhe surgiu uma nova idéia. Assim que houve o revezamento da
guarda, foi novamente para o arquivo. Mandou que um ordenança lhe trouxesse os dois
transladores que continham a língua usada em Weelie-Wee e a dos habitantes de Aurigel.
Agora que estava na frente dos aparelhos, veio-lhe a impressão de que, o que
pretendia, era muito difícil e mesmo que tivesse sucesso, não teria certeza de que com
isso sua suspeita se confirmaria.
Mas veio-lhe outra idéia. Sabia que Feeh-Leh-Dii significava a mesma coisa que
“bela senhora”.
Pronunciou então a palavra “bela senhora” e ficou esperando até que o translador,
em que estava registrada a língua de Aurigel, desse a tradução com pronúncia exata. E
ficou escutando atento aos sons. O nome da nave estrangeira soou realmente como se
fosse tirado da língua de Weelie-Wee e não da linguagem do povo de Aurigel. Era isto
que o estava preocupando e sobre esta dúvida cruel, queria ter certeza.
Regulou o translador de Aurigel de tal modo que o alto-falante auxiliar ficasse bem
em frente ao microfone do aparelho de Weelie-Wee. Desta maneira, economizava o
trabalho de ter ele mesmo de pronunciar as palavras estrangeiras.
Em seguida repetiu:
— Bela senhora.
Esperou que o translador de Weelie-Wee “desse” a última palavra.
Se a expressão Feeh-Leh-Dii viesse mesmo da língua de Weelie-Wee, então o
aparelho de Weelie-Wee daria a palavra como “bela senhora”; caso Fij-Gul estivesse
enganado, o aparelho não diria nada.
Fij-Gul esperava ansioso, retendo a respiração.
Depois veio o ruído do translador de Weelie-Wee, traduzindo o que seu microfone
tinha registrado do alto-falante auxiliar do aparelho de Aurigel:
— Bela senhora.
Fij-Gul continuou sentado, de olhos arregalados para o aparelho, apavorado, embora
não esperasse outra coisa.
Obrigou-se a recapitular toda sua argumentação e não descobriu nenhuma falha. Se
os estrangeiros de Aurigel tivessem dado à sua nave um nome oriundo da língua Weelie-
Wee, então era muito e muito mesmo possível que eles mesmos não tinham nada com
Aurigel, mas vinham simplesmente de Weelie-Wee.
E aí estava um fato novo que tinha de ser comunicado a Sua Excelência, o mais
depressa possível.
***
Eles o haviam enganado redondamente. Falaram muito do poderio de sua força
espacial e dos altos padrões de sua técnica, só para assustá-lo e para desviar sua atenção
para este mundo imaginário de Aurigel, a fim de que esquecessem Weelie-Wee.
Antes, dominaram de alguma maneira Sey-Wuun, conquistaram ou destruíram-lhe a
nave e chegaram até aqui para concluir sua obra e tentar deixar em paz os miseráveis oito
mil colonos primitivos.
Sua Excelência, Iij-Juur-Eelie, não teve a menor dúvida de que Fij-Gul tinha toda
razão. Ao se despedir de Sua Excelência, teve Fij-Gul a imensa satisfação de ouvir dos
lábios reais que, em prazo bem curto, seria promovido a coronel.
Logo após a retirada de Fij-Gul, Sua Excelência comunicou a Gii-Yeep que desejava
imediatamente ver os prisioneiros em seu gabinete de trabalho. Que viessem todos os
estrangeiros.
Já estava se deliciando com a visão daqueles dez homens abatidos, vencidos, e
ouvindo de suas próprias bocas o relato da verdadeira origem de Weelie-Wee e recebendo
no rosto a acusação de terem pretendido tapear quem os tratara com tanta gentileza.
Haveria de zombar deles... Tinha intenção de expô-los ao escárnio do povo em praça
pública. Haveria de...
Ouviu-se então a voz de Gii-Yeep, desesperada e histérica, gritando como um louco:
— Os prisioneiros fugiram, Excelência.
***
— Com os diabos! Já que não sabe fazer outra coisa, então rebente o quadro de
comando com um tiro!
Walsh obedeceu. Puxou a pistola e atirou no quadro dos interruptores. A força
fantástica do tiro ultra-som rebentou em pedaços a chapa de metal e reduziu a pó os
botões e cabos que ali existiam. A cabina do elevador subiu e ficou parada no último
andar e ninguém mais poderia usá-la, antes de consertar toda a fiação. Foram ao todo
cinco elevadores que subiram até o último andar, para tirar ao inimigo a possibilidade de
fuga. Se os elevadores não estivessem funcionando, teriam que descer pela escada, aliás
uma única escada, que chegava até o último andar. Três homens armados bloqueariam
facilmente esta escada.
Até o presente momento, tudo estava correndo normalmente. No caminho, se
encontraram ao todo com quinze peepsies, que tiveram naturalmente de abater e amarrar,
para que não dissessem a ninguém o que tinham visto. Nenhum dos quinze, vendo as
pistolas de ultra-som, de construção afunilada, pensou em resistir.
A passagem da torre lateral para a torre central não foi percebida por ninguém e
agora, que estavam no setor residencial do próprio Iij-Juur-Eelie, o perigo de serem
descobertos era ainda menor.
Luun-Syr lhes disse que estavam agora no centésimo qüinquagésimo andar. Tendo a
torre cento e cinqüenta e seis andares, estavam próximos do objetivo.
A questão era saber se Sua Excelência estava de fato em seus aposentos. Tinham
bloqueado os elevadores no centésimo qüinquagésimo andar e deixaram ali, para vigiar a
passagem pela escada, Walsh, Everdon e Milligan. Os três homens tomaram posição nos
últimos degraus da escada, que levava para o andar imediatamente inferior, e estavam
resolvidos a impedir a passagem de quem quer que fosse. Mais dois homens — Farnway
e McLeigh, foram designados para elementos de ligação, caso fosse necessário levar
qualquer aviso aos homens da escada. Mas no momento achavam-se caminhando com
Chellich, em direção ao último andar.
O corredor central do centésimo qüinquagésimo primeiro andar estava vazio, com
exceção de um guarda descuidado, encostado na parede, ao lado da escada. Não viu os
homens, que se esgueiravam escada acima, e só se mexeu quando Chellich atirou para
dentro do corredor uma moeda que tinha no bolso.
O guarda, admirado, correu atrás da moeda. Mais do que depressa, Chellich e
Mullon se aproximaram dele e, antes que pegasse a moeda, foi dominado pelos dois.
O peepsie foi amarrado, amordaçado e colocado ao pé da escada. Não havia perigo
algum de que alguém o encontrasse.
No outro andar, a cena se repetiu. Uma moeda serpenteando pelo corredor fez com
que o sentinela abandonasse seu posto, para procurar o motivo do barulho. Foi
novamente dominado, sem o menor ruído e Chellich e Mullon amarraram-no e
amordaçaram-no, deixando-o ao lado da escada.
No andar 153, foi a mesma coisa. O terceiro sentinela teve a sorte dos outros.
Chellich alimentava a esperança de chegar assim, sem maiores dificuldades até o último
andar da torre. Mas ao penetrarem na escada para o 154, escutaram gritos vindos do
andar inferior.
Descobriu-se que os elevadores estavam bem travados. E já que os prisioneiros
haviam desaparecido, não seria difícil calcular quem era o autor da façanha e onde se
devia procurar os fugitivos.
Chellich percebeu que lá em cima surgiu um grupo de sentinelas e não dava mais
tempo para se esconder ou pegá-los de surpresa. Um avançou destemidamente e Chellich
atirou rápido. Sem um gemido, o peepsie rolou no chão.
— Vamos subir — gritou Chellich — vocês sabem agora do que se trata.
Nos andares de baixo, os gritos aumentavam. No barulho da correria e dos gritos,
percebeu-se a voz de Milligan:
— Não deixem que eles desçam. Neste ínterim, Chellich galgou a escada.
Viu, no fundo do corredor, um grupo de sentinelas. Deviam ser três ou quatro.
Jogou-se no chão e começou a atirar de baixo para cima. Um disparo quase o atingiu,
mas, depois, sua arma falou mais alto. Os guardas caíram inconscientes.
Nos andares de baixo, não se ouvia mais nenhum ruído. Uma só vez se escutou a
voz grave de Milligan:
— Vamos assustar esta gente. Não deixem o “velho” escapar.
Chellich estava sorrindo, quando, num último esforço, venceu o trecho final da
escada. Julgava que o último andar, onde estavam os aposentos de Sua Excelência, seria o
mais difícil. Mas, inexplicavelmente, não encontrou resistência alguma ao penetrar, com
os seus, no ninho do ditador. No último degrau, agacharam-se de novo e examinaram
todo o longo corredor, em cuja extremidade localizava-se o gabinete particular do ditador.
Notaram que o corredor estava vazio e a porta do gabinete meio aberta. Atrás da
porta, estavam ajoelhados dois sentinelas, de armas em punho. Chellich apoiou
cuidadosamente o cano da pistola na borda do degrau e caprichou na pontaria.
Exatamente no momento em que o peepsie percebeu a presença dele, o tiro foi
desfechado...
Os guardas, que apareceram depois, recuaram para os fundos, usando a porta como
cobertura.
Chellich estava contente. Os pobres-diabos não entendiam nada de tática de defesa.
Estavam crentes que iriam pegar Chellich, quando ele se levantasse para avançar pelo
corredor e entrar no gabinete de trabalho de Sua Excelência. Mas, é claro que Chellich
não iria fazer isto sem cobertura.
Estava acompanhado por sete terranos e, cada um deles, com duas armas nas mãos.
O corredor tinha largura suficiente para se protegerem. Acobertado, Chellich avançou até
a porta.
Sob os raios energéticos do ultra-som, as duas folhas da porta se reduziram a um pó
escuro. O amplo salão estava aberto para Chellich, que ainda viu os últimos guardas fiéis
ao ditador se refugiando atrás da mesa e das poltronas. Só não viu Iij-Juur-Eelie.
Continuou avançando. Quando chegou ao umbral da porta, ou da ex-porta,
protegido pelos dois lados, os guardas saíram de seu abrigo, lançaram as armas no chão e
esticaram os braços horizontalmente para frente.
Chellich ordenou que passassem diante dele e incumbiu O’Bannon de revistá-los
melhor, deixando ali dois homens para ajudá-lo. Com os outros, começou a examinar o
grande salão.
***
Atrás de um grande móvel, semelhante a uma escrivaninha, encontraram Iij-Juur-
Eelie, tremendo feito vara verde. Não teve a idéia de apanhar uma arma e se defender,
como seus devotados sentinelas.
Chellich apanhou o translador de Luun-Syr e mandou que ele se levantasse. Iij-Juur-
Eelie obedeceu sem pestanejar. Chellich o fez sentar-se numa poltrona e pediu que
Mullon o ficasse vigiando. Depois enviou Farnway e McLeigh lá para baixo para que
avisassem a Milligan que podia subir até o último andar.
Milligan e seus dois ajudantes estavam no último degrau da escada do 155 o andar,
contendo os peepsies que tentavam subir, tornando-lhes bem claro que qualquer erro que
cometessem seria uma séria ameaça à vida de Sua Excelência. Somente quando, com este
argumento, voltou a calma na escada, foi que Chellich iniciou o diálogo com Sua
Excelência.
— Não lhe exigimos muita coisa — explicou com muita calma. — Nada mais do
que livre retirada, seu acompanhamento e a garantia de que nossos amigos, os
“guerrilheiros”, não serão importunados.
Iij-Juur-Eelie dava a impressão de estar voltando de um grande sonho. De repente,
sem que ninguém pudesse prever, seus olhos recuperaram o brilho antigo e, num assomo
de ira, gritou:
— Isto não lhes vai adiantar de nada, senhores loucos! Invadiremos Weelie-Wee e
acabaremos com a raça de vocês.
Chellich não deixou perceber seu espanto e perguntou com a calma de sempre:
— Como é que o senhor sabe que somos de Weelie-Wee?
— Nós o descobrimos — disse Sua Excelência, espumando de raiva, por ter sido
enganado. — Os senhores poderiam ter escolhido para a sua espaçonave um nome mais
inteligente.
“Realmente”, pensava Chellich, “nisso ele tem razão. Bancamos otários. Fizemos
tanto sacrifício para estudar a língua francesa e batizamos a nave de Fair Lady.”
— Isto não tem nenhuma importância e não muda em nada a situação. Desejamos
deixar Heeninniy sem nos aborrecermos mais e o senhor vai nos acompanhar, para que os
nossos amigos não sejam perseguidos. Se sua raça, um dia, empreender qualquer ação
hostil contra Weelie-Wee, que nós chamamos de Fera Cinzenta, isto significará a sua
morte.
Iij-Juur-Eelie abaixou a cabeça. Sua raiva desaparecera como por encanto,
transformada em resignação.
— Não me resta outra opção — disse em voz baixa. — Submeto-me às suas
exigências.
— É a melhor coisa que o senhor pode fazer. Mas não queremos perder tempo.
Quem é que precisa ser informado de suas resoluções, para que não haja mais incidentes
desagradáveis?
— Gii-Yeep — disse Iij-Juur-Eelie. — Utilize aquele aparelho ali em cima. Ele o
porá em contato direto com Gii-Yeep.
O aparelho não era muito diferente dos telefones da Terra. Ao invés do disco seletor
numerado, tinha uma série de botões. Chellich tirou o fone do gancho e logo ouviu a voz
chiada de Gii-Yeep. Chellich aproximou o translador bem rente do fone, para que pudesse
traduzir as palavras.
— Os prisioneiros devem estar se dirigindo para seus aposentos, Excelência,
cuidado! Peço-lhe encarecidamente que...
Chellich o interrompeu:
— Quem fala aqui é Chellich. Iij-Juur-Eelie já está em nosso poder. Tenho que lhe
dizer umas coisas, preste atenção!
Seguiu-se uma pausa do outro lado. O choque provocado pela revelação de Chellich
devia ter sido tremendo. Demorou bastante até que reapareceu a voz de Gii-Yeep.
— Estou ouvindo.
— Iij-Juur-Eelie nos garantiu retirada livre e sua presença ao nosso lado. Exijo que
o senhor nos coloque à disposição uma escolta que nos leve com segurança e rapidez para
o aeroporto. A vida de Iij-Juur-Eelie será nossa garantia contra qualquer tipo de agressão
ou manobras duvidosas. O senhor me entendeu bem?
Novamente, silêncio do outro lado. Chellich ficou de ouvido colado no fone e,
quando Gii-Yeep começou a falar, percebeu então que estava tudo perdido. Todos os
esforços tinham sido inúteis...
— Não posso aceitar como válida a resolução de Sua Excelência — disse em tom
ríspido. — Ela foi tomada sob coação e não tem nenhum valor legal. Não lhe vou colocar
à disposição nenhuma escolta e vou tomar todas as providências para que vocês não
escapem às penas previstas na lei.
Chellich teve que fazer grande esforço para não perder a calma.
— Meça as conseqüências de seus atos. A vida de Iij-Juur-Eelie está dependendo de
nós. Não temos pretensão de fazer mal ou matar o seu Rei-Presidente, mas se o senhor
não nos deixar em paz...
— Seria lamentável que isto acontecesse, mas não podemos fazer nada contra os
erros que o senhor venha a cometer. Não se esqueça de que não vivemos num regime de
absolutismo. O Conselho de Ministros não me perdoaria, se, para poupar a vida de um
único cidadão, eu deixasse vocês fugirem. Faço-lhe uma contraproposta. Libertem Sua
Excelência, renunciem a qualquer tipo de resistência e se entreguem. Quando estiverem
perante a corte marcial, esta ação será considerada, a fim de diminuir o peso da sentença.
Chellich deu uma gargalhada amarga.
— Muito obrigado pela sugestão! É claro que o senhor sabe que não podemos
aceitar uma loucura desta.
— Estou disposto a ter paciência com os senhores. No correr das próximas horas, de
nossa parte, não partirá nenhuma iniciativa contra os senhores. Daqui a uma hora, vou lhe
telefonar de novo, dando-lhe a decisão final.
***
Tudo perdido! Fizeram uma jogada muito alta e iriam perder. Colocaram no prato da
balança toda a sua determinação e capacidade criativa, mas o fiel estava pendendo para o
outro lado. O contrapeso de uma raça de três bilhões de habitantes tinha decidido.
A poucos metros de sua meta final, seus planos iriam malograr definitivamente, e
agora, sua condição e a dos habitantes de Fera Cinzenta ficaria pior que antes.
Chellich olhava para o “homem” idoso, acovardado, de pele bem amorenada,
encafuado na poltrona, que apesar de seus dois metros e sessenta, parecia pequeno e
desprotegido. Iij-Juur-Eelie, que governava Peep como um tirano, teria de saber que, para
seus súditos, sua vida não valia mais do que a liberação de dez inimigos do país.
Mullon, O’Bannon e os demais tripulantes da Fair Lady aceitaram com calma a
resolução de Gii-Yeep. Não desconheciam a gravidade da situação, sabiam o que podiam
ter pela frente. Ainda não tinham tomado nenhuma resolução, mas Chellich sabia que,
quando chegasse a hora, haveriam de escolher o único caminho digno: defenderem-se até
o fim, caso lhes dessem como segunda opção apenas a rendição incondicional.
Quando percebeu o que estava cismando Chellich se assustou.
Deviam agir imediatamente. Não podiam ficar sentados, esperando que os peepsies
atacassem. Tinham de ocupar os pontos mais estratégicos deste andar e afastar deles tudo
que os pudesse prejudicar.
Certamente os peepsies, neste meio tempo, já teriam consertado os elevadores.
Encarregou dois homens de controlar permanentemente a cabina do elevador e de
destruírem os cabos de aço da tração, assim que os elevadores tentassem subir.
Só então é que teve tempo de apreciar a luxuosa instalação do gabinete de trabalho
de Iij-Juur-Eelie. Era uma infinidade de aparelhos. Tele e videofone, vasta rede telefônica
e coisas semelhantes. Chellich experimentou uma por uma. Mas alguém fora mais rápido
que ele e já havia cortado toda a ligação para fora. A única a funcionar era a de Gii-Yeep,
mas mesmo nesta, ninguém atendia.
Isto era, naturalmente, obra do próprio Gii-Yeep. Chellich começou a ter uma certa
admiração por este homem. Pois, não apenas se estava colocando muito acima do
desenfreado culto pessoal de “Sua Excelência” (culto este que escravizava toda a política
desde que Iij-Juur-Eelie assumira o poder), mas, principalmente, estava demonstrando um
raro senso de prudência e circunspecção. Certamente estaria receoso de que Iij-Juur-Eelie
tivesse pedido auxílio de outras regiões do planeta.
Entrementes, O’Bannon tinha distribuído o pessoal pelos pontos vitais do andar.
Chellich examinou a distribuição dos homens e achou suficiente. Desta maneira,
poderiam conter o avalanche dos peepsies durante algum tempo.
Algumas horas de luta renhida poderiam fazer com que até um homem duro como
Gii-Yeep se sentisse obrigado a desistir de suas exigências de rendição incondicional.
Depois de morrerem muitos de seu povo, talvez estivesse disposto a rever suas condições
para saída dos estrangeiros.
Quatro quintos da hora já tinham passado. Chellich voltou ao gabinete de trabalho
de Iij-Juur-Eelie, esperando pelo telefonema de Gii-Yeep.
***
— O senhor já resolveu alguma coisa?
— Não há nada para resolver — foi a resposta peremptória de Chellich. — Se o
senhor não estiver disposto a ceder a nossas exigências, terá de vir nos tirar daqui.
Gii-Yeep hesitou um instante.
— Não aceitamos suas exigências. Vamos tirá-los daí.
— Por que razão o senhor é tão intransigente assim? — disse Chellich numa última
jogada. — Por que não quer contribuir para que duas raças vivam em paz, uma ao lado da
outra?
— Duas raças? — disse Gii-Yeep irônico. — O senhor chama de raça a meia dúzia
de aventureiros em Weelie-Wee?
“Portanto, ele também já sabe de tudo”, pensou Chellich.
— Apesar disso — continuou Chellich... Mas notou que Gii-Yeep não estava mais
no aparelho. Entretanto a ligação não foi desfeita e Chellich ouvia um rumor de conversa
agitada.
Alguma coisa não estava dando certo para Gii-Yeep.
Mas o que seria? Talvez estivesse preparando seu plano de ataque.
Chellich aguardava no fone, nervoso e impaciente. Depois de uns cinco minutos
ouviu o barulho do fone e novamente a voz de Gii-Yeep:
— Espere ainda uns instantes e não tome nenhuma iniciativa.
O telefone foi desligado. Chellich parecia atônito, procurando imaginar o que
poderia ter acontecido.
De repente irrompeu no gabinete de trabalho de Iij-Juur-Eelie um grito quase
selvagem, chegando às raias do histerismo. E vinha dos lábios de Milligan:
— Uma nave, uma nave de nossa frota... é a Solar System, minha gente!
Milligan estava à janela, agitando os braços enquanto gritava com todo entusiasmo.
Chellich correu para ele e para a janela, que a uma altura descomunal tinha ampla vista
da cidade e para o aeroporto.
O bojo imponente da nave esférica descia suavemente. Uma nave como nunca fora
vista em Peep. Duzentos metros de diâmetro, um verdadeiro couraçado espacial, possante
e com as armas supermodernas.
Chellich viu que Milligan tinha razão. Por uma série de detalhes, havia reconhecido
um dos grandes cruzadores da frota espacial terrana.
***
Tinham se esquecido de uma coisa: O Capitão Blailey já lhes havia dado a entender
que a Terra tencionava instalar uma base espacial em Peep. Por que motivo e para que
fim, ele não sabia. Sua informação tinha pois fundamento.
O fato de a invasão se dar exatamente no mesmo tempo em que os dez terranos
estavam em grandes apuros em Peep, foi mera coincidência, uma coincidência salvadora
de vidas.
Atrás da Solar System, ainda aterrissaram mais duas grandes naves. Ambas
cruzadores, fortemente armadas.
Chellich e os seus observavam com emoção as manobras de aterrissagem. Emoção
misturada com preocupação, pois a simples aterrissagem das belonaves não queria dizer
que já estavam salvos. Ninguém lá na Solar System ou nas outras duas naves haveria de
saber que eles aqui estavam em grandes dificuldades. E eles, do Palácio Real, não tinham
a menor possibilidade de entrar em contato com os terranos. E quem sabe, Gii-Yeep sabia
disso.
Era necessário um segundo milagre para conseguirem se salvar... e o segundo
milagre veio de fato!
Uma meia hora após a descida das belonaves terranas, houve uma grande explosão
no mecanismo de alta voltagem que o técnico Wiir-Nee estava montando, seguindo os
dados fornecidos por Chellich, para produção de um campo artificial de gravitação.
A explosão teve a violência de uma bomba atômica. Wiir-Nee tinha sua oficina no
setor sul da cidade, nas proximidades do aeroporto. A explosão, ocorrida no momento em
que Wiir-Nee ia mudar o comutador, destruiu duas torres na periferia da cidade e
danificou umas tantas outras.
Nas naves terranas, a impressão era de que se tratava de um ato hostil aos recém-
chegados e cinco naves auxiliares, tipo gazela, saíram dos hangares das belonaves para
ficarem em posições estratégicas, observando o movimento.
A Solar System já havia entrado em contato com a Fair Lady e estava a par dos
acontecimentos. A explosão casual de Wiir-Nee ajudou a apressar os acontecimentos. O
Coronel Sikermann, que dirigia a operação, confessou que tencionava esperar algumas
horas, antes de mandar uma delegação para falar com as autoridades dos peepsies. Viu,
porém, que o quadro não era o que esperava. Duas gazelas aterrissaram no pátio interno
do Palácio Real. Exigiram falar com Sua Excelência.
Gii-Yeep desistiu de qualquer resistência, quando soube que estes novos
estrangeiros eram da mesma raça que os dez da Fair Lady, cercados por ele lá em cima.
E mais: soube também que eles estavam buscando os dez prisioneiros.
***
Jamais um comandante de espaçonave teve recepção tão festiva como o Coronel
Sikermann, quando, saindo de um elevador recém-consertado, entrou no gabinete de
trabalho de Iij-Juur-Eelie para libertar os dez terranos.
Explicou em poucas palavras o sentido de sua missão, isto é, instalar ali uma base
espacial, já que este setor, até aqui de pouca importância, se transformara, de uma hora
para outra, em foco vital na política galáctica.
Após isto, fez questão de ouvir, ali e naquele momento, um relato minucioso da
Operação Fair Lady e do comportamento de seus tripulantes.
Depois que Chellich lhe satisfez este pedido, Sikermann ficou pensativo por alguns
instantes. A seguir, disse sorrindo:
— Uma verdadeira aventura rocambolesca, olhando-se seu conjunto. Desde o início,
a possibilidade de sucesso era muito reduzida. Mas, tenho a impressão de que vocês
fizeram o melhor que podiam.
Chellich e seus companheiros voltaram assim para a Fair Lady. O Coronel
Sikermann se reservara a tarefa de sozinho, e em nome do Império Solar, iniciar as
negociações com o governo de Peep. Ele não estava ainda bem certo de quem era
propriamente o governo em Peep, pois Iij-Juur-Eelie havia renunciado e o Conselho de
Ministros fora dissolvido por Gii-Yeep. Ficou na expectativa de que, dentro em breve,
houvesse uma oposição legal e que assim tivesse terminado para os “guerrilheiros”
aquela fase da clandestinidade.
Para Chellich e sua gente, estas coisas não tinham mais tanta importância. Levaram
dois dias se recuperando do sofrimento e da luta desesperada.
No terceiro dia, levantaram vôo para Fera Cinzenta.
Antes de partir, ouviu da boca do coronel que também Fera Cinzenta passaria a ter a
proteção do Império Solar e que ele mesmo se encarregaria, em tempo hábil, de fazer
com que a nave peepsie, que se achava a caminho do planeta, desistisse para sempre de
suas intenções.
***
Enquanto Sheldrake, Loewy e Krahl desenterravam o sinalizador que haviam
escondido há duas noites, no meio do espaçoporto, para confundir os peepsies com sinais
misteriosos, Chellich fazia os últimos preparativos para a decolagem da Fair Lady.
O’Bannon e Mullon estavam com ele na sala de comando. Pouco depois entrou
Milligan. Experimentando alguns contatos, disse Chellich bem-humorado:
— Como é que vocês se sentem?... como degredados sob a proteção da Força
Espacial Terrana?
Mullon franziu a testa.
— Não me obrigue a relembrar estas coisas. Se soubéssemos de antemão que
passaríamos por doidas aventuras estaríamos ainda felizes na Terra, vivendo como
cidadãos pacíficos e honrados.
O’Bannon o aplaudiu com entusiasmo. Mas Chellich interveio, dando-lhes novas
esperanças:
— Talvez venha agora uma anistia geral que lhes permita voltar para a Terra. Acho
que vocês o merecem agora, com o espírito de luta e abnegação que demonstraram.
Nunca vi rapazes tão corretos e perseverantes, como vocês.
— Obrigado! — respondeu-lhe Mullon, com simplicidade.
Fechou-se a comporta.
A Fair Lady estava pronta para decolar.

***
**
*

Quando os cálculos matemáticos demonstraram


que, dentro de dez meses o planeta Fera Cinzenta e
todo o sistema Mirta ficariam recobertos pela
dimensão temporal dos druufs, aquela área assumiu,
de uma hora para outra, uma importância capital para
Perry Rhodan.
Rhodan planejou penetrar nesta dimensão
diferente, com grande reforço espacial, partindo de
Fera Cinzenta.
Em Os Três Desertores, o próximo volume
sensacional da série, o Império Solar está ameaçado...

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