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Mulher de mentira

Amélia era uma tonta machista, mas era, ao menos, de verdade.

Aqui na quebrada cresceu e frutificou mulher bonitona, daquelas que, quando

somos garotos, brilham no escuro do nosso quarto. Mesmo após o tempo desmanchar os

meninos e revelar homens sonolentos, vibram os eternos adolescentes apaixonados por

Ananda, a mulher de todos os sonhos.

Uma dessas de quem costumamos dizer "bonitona, parece mais nova". Hoje em

dia todo mundo parece ou quer parecer ter menos idade e alguns chegam ao ponto de

parecer não ter idade alguma, esticando a pele e enrugando o espírito.

O Victor, um amigo imaginário que existiu de verdade, era o mais apaixonado

por Ananda, que linda, desejável, indiferente. Farta em sua beleza raríssima e distante,

como são as felicidades planejadas.

Nos tempos de escola Ananda vivia como se precisasse muito mais de batom,

espelho e escova do que de amizades. O Victor planejou, diversas vezes, mirabolâncias

infalíveis para conquistá-la. Nunca fez nada, nesse sentido, que prestasse. Nenhum

esforço do meu amigo foi recompensado, nem as canções que compôs, nem os cigarros

fumados, nem as notas altas, as notas vermelhas, toxicomanias, cabuladas de aula,

pichações pelos muros, advertências e suspensões, prêmios, nada deslocou Ananda um

milímetro de seu pedestal. O espelho a devorava feito esfinge, a indiferença a guiava

cegamente, a menina era um totem no meio da sala de aula, uma estátua no pátio, na

hora do intervalo.

O pior de tudo é que nem antipática Ananda era. Displicente, indiferente,

autossuficiente, mas quando solicitada sempre respondia com um sorriso tão amplo e

radiante que nos mantinha ainda mais cativos, prontos para enfrentarmos dragões, caso
solicitados. Ananda passou a vida sem solicitar nada, nem atenção, nem dinheiro, nem

cola, nem sexo, ai de nós.

O tempo correu, levando a vida pra outros lugares e interesses, fomos trabalhar,

estudar ainda mais, encontrar gente fora do quintal que era o nosso bairro, que logo

virou, para nós, um bairro-dormitório. Ananda sumiu. Passamos, os que ficamos, a nos

ver raramente e aos esbarrões, pelas calçadas da avenida principal, um saindo do

açougue, o outro voltando da farmácia, esse correndo pra academia, aquela indo buscar,

esbaforida, os filhos no colégio. Ou então cruzamos um a vida do outro em nossos

carros filmados e carrancudos, sem tempo ou vontade para nostalgias.

Um dia desses vi Ananda na piscina do clube campestre aqui do bairro. Temos

um clube campestre no bairro! É de uma associação de comerciários, feito quando a

região não era muito mais do que um aglomerado de chácaras e algumas casas pingadas,

entre ipês amarelos, pés de ameixa e mamoneiros. Muitos de nós, quando adolescentes,

pulávamos o muro para desfrutarmos da água cheia de cloro e fluidos corporais de toda

espécie, como é costume entre as piscinas.

Ananda, entre banhos de sol, mergulhava, fazia beiços e peitos, posava para

fotógrafos imaginários que não existiam mesmo, cada movimento parecendo

coreografado, ensaiado.

O corpo parecia esculpido por algum cirurgião, pois não creio que a natureza

goste tanto assim de geometria: a profusão de esferas, curvas e a imponência da simetria

perturbavam, cravavam em cada homem ali presente a euforia que precede a angústia.

Mas, em nome da verdade, havia também alguma celulite da cintura pra baixo e estrias,

muitas, no seio direito. Contudo, em nome da mesma verdade, devo dizer que, ainda

que fossem muitas, as estrias não comprometiam sequer o seio esquerdo, quanto mais a
obra completa que desfilava envolta em um biquíni vermelho, futuras micoses em

potencial e centenas de olhos salivantes.

Uma semana depois encontrei o Victor, por acaso, na padaria. Nos sentamos

para trocar novidades. A minha era que Ananda continuava valendo a pena, que eu vira

praticamente seu corpo todo, por inteiro, cultivado a plástica, cosméticos, academia e,

possivelmente, muitas horas sem amor, preguiça, leitura e outros suplementos essenciais

para uma vida balanceada e feliz. Mas Victor tinha novidade ainda maior, apesar de não

parecer nada feliz.

− Saí com Ananda umas duas semanas atrás.

Euforia e inveja duelaram por alguns instantes dentro de mim, sem que houvesse

vencedor. Victor e Ananda, até que enfim! Ananda e Victor, por que ele e não eu?

Ananda, uma deusa! Victor, um decadente ou um rei?

Victor, sem mistério algum, exibiu os trapos de sua antiga paixão sem a menor

vontade de remendá-los. Foi sucinto, sem dramas adicionais:

− Nos encontramos aqui mesmo na padaria. Simpática, aceitou cerveja aqui

mesmo, sem frescura. No meio da conversa disse que morou no Rio, sem vergonha

falou que fazia programa entre os cariocas. Doeu, cara, mas pensei rápido e com fúria:

finalmente desfrutar daquilo tudo. Divorciado, velho, sozinho, troco ilusão por prazer

sem remorso. Ela disse que não fazia mais programa, mas que aceitava sair pra dançar,

relembrar os bons tempos. Bons tempos? Bons tempos, quando ainda havia futuro.

Saímos, dançamos, beijamos, fomos do asfalto ao hotel. Ela passeando nua pelo quarto

é o que de mais belo eu já vi, cara, juro. Ela amando é a coisa mais triste que pode

haver. Ananda nasceu pra ser contemplada, não sabe doar-se. Tudo frio, cronometrado,

medido, distante. Ser tocada era motivo de angústia para ela. Seus beijos não acolhiam:

empurravam. Os braços se mexiam não para me tocar com desejo, mas para buscar o
melhor ângulo da luz, do espelho. Ananda toda entregue a si, travando uma batalha

comigo. Eu, o que era, seu amante? Não, seu público e seu estorvo, insistindo em dueto

sabendo que ela sempre será sempre a solista.

A certa altura pedi que se afastasse, calçasse os sapatos, desfilasse para mim. Ela

sorriu, vaidosa e grata. Enquanto se deliciava diante do espelho, enfim plena, muitas

coisas se desfaziam sobre a cama.

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