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Capítulo 4, Versículo 3, in Sobrevivendo no Inferno, Cosa Nostra, 1998
mais uma. De fato, há, obviamente, um jargão próprio usado entre criminosos
(a “gíria de bandido”, como alguns gostam de pontuar), mas o intercâmbio
entre variantes linguísticas é constante, assim como os deslocamentos de
significado, quer sincrônica, quer diacronicamente, e o uso estético de dialetos
distintos não é exclusividade do rap. A
Ao lado das gírias, também há uma série de palavras realmente
oriundas do mundo do crime e da violência, como nomes e marcas de armas
(PT, Taurus, Rossi, etc.) e artigos do código penal, como é o caso da canção
Artigo 157 (2002), que se refere à prática do roubo. Também não podemos nos
esquecer dos palavrões, declamados em alto e bom som, causa, segundo
conta-se em conversas informais, da rejeição do Racionais em rádios
comerciais e programas de televisão dedicados à "família brasileira".
Por fim, muitas músicas do Racionais trazem justamente o crime como
tema central ou transversal; na obra do grupo encontramos canções que
traçam a trajetória de ladrões, traficantes, viciados, homicidas, detentos e ex-
detentos, muitas narradas na primeira pessoa, onde o eu lírico descreve suas
próprias agruras e aventuras.
Ao lado das características das canções que acabamos de descrever,
ainda há a vestimenta característica dos adeptos ou simpatizantes da cultura
Hip Hop, do qual o rap é parte integrante, os semblantes quase sempre graves
de seus integrantes, o cenário de quase todas as músicas, a saber, as ruas,
favelas, becos, vielas e demais espaços da periferia. Tudo isso forma um
arcabouço muito próximo dos estereótipos associados a crimes violentos. Ao
mesmo tempo, segundo as estatísticas declamadas pelo próprio Racionais na
música Capítulo 4, Versículo 32, os quatro integrantes, todos negros, também
são o estereótipo que representa as maiores vítimas de violência policial e
dizem buscar A fórmula mágica da paz (1998).
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"60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência
policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em
São Paulo".
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1 por amor, 2 por dinheiro, in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
Temos a impressão de que os fãs do Racionais extrapolam o público
comum de rap, além de aparentarem ser uma unanimidade entre os adeptos
do Hip Hop. Vale ressaltar que no que se refere às posses de Hip Hop, embora
o rap seja parte integrante do movimento4 (FELIX, 2005, pp. 98- 100), nem
sempre está no centro das questões.
É inegável que o Racionais MC's exerce um papel de liderança inegável
entre muitos grupos das periferias, seja no meio do Hip Hop, seja em outros
grupos organizados. Dada a complexidade de suas letras e a postura que os
membros do grupo assumem, a amplitude da influência que Mano Brown, Ice
Blue, Edy Rock e KL Jay exercem vai de detentos a estudantes, de evangélicos
a membros do movimento negro, de movimentos sociais, passando por jovens
oriundos das elites com posicionamento político consciente e definido ou que
apreciam manifestações culturais e artísticas consideradas "exóticas" por
estarem fora do mainstream. É pouco provável, portanto, que todos os
admiradores do Racionais o sejam pelos mesmos motivos.
Freud, em seu livro Psicologia das massas e análise do eu (s/d) nos
lembra que as massas são formadas em torno de um líder com quem os
indivíduos do grupo estabelecem laços libidinais pautados em outros motivos
em uma visão idealizada desse líder. Salztrager (2011) em um estudo
comparativo entre La Boétie e Freud nos lembra que as relações entre a massa
e seu líder vão além da sugestão e da manipulação; antes, os liderados
escolhem amar, obedecer e concordar com seu líder de modo voluntário e
"relativamente" consciente.
Freud (s/d) inicia o texto apresentando as ideias do psicólogo Le Bon,
Psychologie des foules (s/d) sobre psicologia das massas para logo em
seguida contestá-las. O psicanalista concorda com Le Bon, por exemplo, a
respeito do comportamento impetuoso das massas, onde "sentimentos
subjetivos se transformam em atos com maior facilidade" (SALZTRAGER,
2011), mas, enquanto o psicólogo francês acredita no poder de sugestão e de
manipulação por parte dos líderes, Freud vai em outra direção. Para ele,
embora concorde haver nas relações entre a massa e seus líderes sugestão e
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Na visita que Felix fez à sede de uma posse no Itaim Paulista, destacou que as ações ali
desenvolvidas estavam muito mais voltadas para aspectos políticos e mesmo ideológicos do que para a
cultura do rap. Destaque para o fato de que a referida posse, ao organizar um evento, convidou bandas
de rock da região e nenhum grupo de rap, por não saber da existência deles.
contágio de ideias dentro grupo, acredita que os indivíduos se permitem ser
sugestionados, e não que isso se dê por conta de algum tipo de
vulnerabilidade, ou por um talento ou dom especial do líder:
Não há dúvida de que existe algo em nós que, quando nos
damos conta de sinais de emoção em alguém mais, tende a
fazer-nos cair na mesma emoção; contudo, quão amiúde não
nos opomos com sucesso a isso, resistimos à emoção e
reagimos de maneira inteiramente contrária? (FREUD, s/d)
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O uso de nomes em inglês é bem usual entre os rappers da chamada velha escola do Rap; o
uso de nomes de matriz africana ou tirados da cultura brasileira passou a ser mais comum entre os
rappers da chamada nova escola. A diferença entre velha e nova escola marca apenas os pioneiros do
movimento Hip Hop no Brasil, enquanto a nova escola refere-se a todos que não participaram do início
do Hip Hop Brasil. (FELIX,2005)
Já a primeira parte de Negro Drama, entoada por Edy Rock, com versos
igualmente bem elaborados, é um passeio entre situações generalizantes,
vividas por muitos negros pobres das periferias, e constatações sobre a
trajetória do próprio eu lírico, que nesse caso, como em muitas canções dos
Racionais, se confunde com o próprio autor-intérprete. Edy Rock oscila entre a
primeira e a terceira pessoa, e parece alternar igualmente seus interlocutores,
ora parecendo dirigir-se aos seus "trutas de batalha", seus pares da periferia,
ora falando claramente com a classe social dominante, acusada de ser a
responsável histórica pela situação na qual se encontram os negros e índios
pobres do Brasil:
Você deve tá pensando,
O que você tem a ver com isso,
Desde o início,
Por ouro e prata,
Eu sou irmão,
Dos meus trutas de batalha,
Eu era a carne,
Agora sou a própria navalha,
Tim..tim..
Um brinde pra mim,
Sou exemplo, de vitórias,
Trajetos e glórias. (2002)
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2012. Inédita em disco. Disponível em < http://letras.mus.br/emicida/dedo-na-ferida/>.
Acesso em: 2013-08-11
(…) algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do
mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se
encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em
relação a sua própria civilização − e não apenas por não terem
em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos
termos corespondentes ao conceito de civilização, mas
também por se encontrarem tomadas por uma agressividade
primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um
impulso de destruição. (2009, p. 155)
Em sociedades como a nossa, esse impulso de destruição pode estar
embalado em ideias distorcidas, como mérito pessoal, talento e com o apoio de
instituições como o poder judiciário e a polícia. A falta de saneamento básico e
moradia ("esgoto a céu aberto e parede madeirite"8;"falta água/ já é rotina/ não
tem prazo pra voltar/ já fazem cinco dias"9), o abandono da educação pública
("problema com escola eu tenho mil,mil fita" 10) e o desprezo nas áre11as de
saúde e educação ("Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo/Pra molecada
frequentar, nenhum incentivo/O investimento no lazer é muito escasso/O centro
comunitário é um fracasso"), entre outras coisas, são fatores que levam à
barbárie − com incentivos do governo.
Para conter a barbárie, Adorno acredita que a violência, pode ser
invocada: "(…)creio que, na luta contra a barbárie ou em sua eliminação existe
um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro,
se partíssemos de um conceito formal de humanidade" (2009;p. 158). Sendo a
barbárie uma "regressão à violência física, primitiva, sem que haja uma
vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade", a violência que
surge como resposta à violência, por assim dizer "oficial", consentida e mantida
direta ou indiretamente pelo próprio estado, pela sociedade de consumo, talvez
faça parte do referido "momento de revolta" que antecede justamente a
contenção da barbárie, posto que "a violência pode ser um sintoma da
barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo" (ADORNO, 2009, p. 159). O
desprezo e abandono a que as periferias são entregues, nos parece muito mais
8
Negro Drama, 2002. , in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
9
Homem na estrada, in Raio X do Brasil, Cosa Nostra, 1993.
10
Negro Drama, 2002. , in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
11
Fim de semana no parque, in Rio X do BrasilI, Cosa Nostra, 1993.
um regresso à violência primitiva, portanto uma atitude bárbara, do que a
"adaptação às leis" a que Cores e Valores se refere.
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Carlos Marighella, 2012, inédita em disco. Disponível em: <http://letras.mus.br/racionais-
mcs/marighella/>. Acesso em: 2013-8-11.
jovens da periferia que também desejam, por alguma via ser exemplo de
"vitórias, trajetos e glórias", como canta Edy Rock em Negro Drama.
Em uma sociedade que a despeito da imagem que constrói sobre si
mesma mudou muito pouco desde 1988, ano da formação dos Racionais MC's,
especialmente no que tange à violência, abuso de poder, abandono das
periferias e racismo, por exemplo, não há, em um horizonte próximo, motivos
para supor que os Racionais mudem radicalmente sua temática − embora
possam, tavez, radicalizar ainda mais a abordagem de seus temas.
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