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Quem inventou os aplicativos ou as redes sociais, as avaliações que fazemos ao ver fotos ou realizar

e pedir algum tipo de serviço, me perdoe, não inventou nada. Quando distribuo estrelinhas, ou
curtidas mundo afora, percebo que não faço nada além do que sempre fiz, calado, quieto, a minha
vida toda. Todos nós. Mas nem sempre para todas as coisas. Com o tempo, tenho percebido que me
importo com poucas coisas na vida, mas uma delas revela minha profunda, crua e verdadeira face: o
rancor. Ainda assim, não é qualquer rancor, não me lembro se no inverno durante a quinta série
alguém deixou de me oferecer um lanchinho. Se semana passada alguém deixou de me
cumprimentar no corredor e amanhã vier cheio de sorrisos, não vou achar ruim, pelo contrário.
Agora, se eu te emprestei um livro e você ainda não me devolveu, aff, tenha certeza de que, quieto,
calado, eu te desejo todo o mal do mundo.

Não tenho uma biblioteca vasta, meu rancor diante dos livros que empresto e não retornam não é
por apego material. Não tenho apego sequer a mim mesmo, zelo ou cuidado, me visto mal… cuido
mais ou menos da alimentação e tento fazer exercícios físicos somente para não assistir às horas.
Nada disso se aplica aos meus livros, se eu tenho um livro é porque calculei muito bem meu surrado
dinheirinho para adiquirir aquele amontoado de folhas organizadas por milhares de letrinhas. Se eu
comprei um livro não é para mostrar pra ninguém, os meus livros são para mim, para quando eu os
quiser ler, são minha companhia. Eles estão na estante, sobre a mesa, num canto qualquer esperando
para serem lidos, ou já foram, estão ali porque me marcaram de alguma forma. Eles me compõem
mais do que minha imagem no espelho, mais do que minha barriguinha e meus joelhos virados para
dentro. Quando eu os empresto, fico sozinho, o tempo vai passando e me sinto abandonado por
aquelas histórias, por aqueles autores. Então, numa tentativa desesperada e solitária, desejo aos que
me levaram e ainda não me devolveram meus livros, além de todo o mal do mundo, que se tornem
um pouco as histórias que me surrupiaram.

É muita maldade, no entanto, assim que soube que um amigo economista está de partida para a
Inglaterra, imaginei, com ironia, obviamente, que vá nO Último Voo do Flamingo! Que
Moçambique revide anos de colonização portuguesa e inicie uma guerra pós-libertação agora nesta
que foi a principal potência imperialista! Por ter me levado aquele livro, meu amigo só merece
encontrar o abismo de uma terra em explosão! Mas, ao mesmo tempo, já me invadiu o remorso, sou
contra as guerras e as explosões. O cenário devastado descrito no romance de Mia Couto é dolorido.
Desejei, por fim, que meu amigo economista encontre a beleza de personagens como Suplício. Que
faça boa viagem, e um dia me devolva o meu livro.

Com Luigi Pirandello a coisa é um pouco diferente. Cada vez que encontro minha amiga
antropóloga, que se apossou de Um, Nenhum, Cem Mil, anseio, em puro delírio de ressentimento,
que seu nariz fique torto! Já faz tanto tempo, e tanto a encontro, rotineiramente, que, às vezes,
embriagado por meus sentimentos nefastos, vejo o nariz de minha amiga já bastante, muito torto!
Chego a sorrir em silêncio, quero apontá-la nas ruas, pelos corredores, ali, estão vendo, aquela
moça, aquela Moscarda, vejam como o nariz dela pende para a direita, que horror! Não é sem
alguma satisfação que noto isso, claro, mas logo percebo que estou preso em minha própria
imaginação. O nariz dela segue perfeitinho.

Enquanto escrevo, reparo na minha estante aqui, lá está a caixa vazia de Grande Sertão: Veredas.
Não me conformo, como fui burro, já tinha me prometido nunca mais emprestar um livro.
Emprestei logo João Guimarães Rosa. Nunca que eu poderia suspeitar de minha professora de yoga,
nunca que imaginaria que ela fosse me afanar. Não, não foi durante as aulas, como se em meio à
meditação, em meio ao entoar do Om, ali, saldando o sol, sorrateiramente, ela fosse lá nas mochilas
para apanhar nossos, o meu livro. Não. Foi ela quem primeiro me emprestou dois impressos, e após
ler os dois volumes de poesia que ela me deu, rapidamente os li e devolvi. Já acomedito pela
moléstia durante tantos anos, não queria que fosse minha professora que começasse a me desejar
todo o mal do mundo, que ela desejasse que eu me tornasse um pouco as poesias daqueles livros.
Confiante de que o apreço pelos livros era recíproco, emprestei meu Grande Sertão e, violà, cá
estou eu lamentando. Que ela se revire de arrependimento ao longo da vida feito Riobaldo! Que o
Diabo lhe persiga e Deus lhe esqueça! Que ela sinta constantemente o perigo da vida! Ai, tudo bem:
menos, Hugo… que pelo menos ela encontre e salve seu Diadorim.

Melanie Klein acertou em partes, as pessoas pelo mundo são bastante norteadas pela inveja, claro,
mas eu avancei as camadas, o que me domina não é ciúmes, é a voracidade mesmo quem dita meus
pensamentos quando não recebo de volta os meus livros. Gratidão, que mané gratidão, que abracem
árvores, que saldem o sol, que fundem ONG’s, eu só quero meus livros de volta. Obrigado, de nada,
passar bem!

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