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Tomei a primeira dose da vacina hoje contra a Covid-19.

A vacina era a do tipo que estavam dando


lá no posto de saúde. Fiz o agendamento na semana passada. Esperava ser vacinado o mais rápido
possível, no primeiro dia em que estavam destinadas as doses para a minha faixa etária. O mais
rápido possível talvez tivesse sido em janeiro, fevereiro, ou março. Uma, duas, três, cem mil,
quatrocentas mil pessoas antes de mim, infectadas, poderiam ter sido vacinadas e possivelmente não
estariam agora mortas. Enquanto esperava chamarem meu nome, uma, duas, três, cem mil,
quatrocentas mil, quantas pessoas estavam sendo chamadas na minha frente e não podem mais se
levantar e receber uma vacina.
Inicialmente o sistema de cadastro dizia que meus dados, meu cadastro de pessoa física e minha
data de nascimento não correspondiam a informações existentes. Foi um inicialmente que levou
quase 1h. Os minutos corriam, eu continuava inserindo meus dados e a informação era a mesma:
“as informações fornecidas não correspondem a dados existentes”. Sim, eu sei, eu dizia diante do
notebook, eu morri, eu morri inúmeras vezes nestes meses, nestes anos, nem sei mais perceber a
passagem do tempo, mas eu ainda consigo ir até o posto de saúde. O sistema pedia que eu avisasse
não ser eu um robô, pedia que eu clicasse em semáforos, em chaminés. Robô eu devo ser um pouco,
costurado, remendado, meio duro, meio automático, meio frio, com parafusos frouxos – não
consigo evitar as metáforas ruins. “As informações fornecidas não correspondem a dados
existentes”, tá, eu sei, continue fingindo que eu não existo, tudo bem, apenas me deixe tomar uma
vacina e andar por aí sem tanto medo.
Não fui eu quem conseguiu fazer o cadastro para “minha própria” vacina. Sintomático, não é? Eu
não consigo sequer agendar minha vacinação. O travamento do sistema me fez esperar mais uma
semana para enfim ser vacinado contra a Covid-19. Não consegui ir logo nos primeiros dias. Nesse
intervalo, me peguei cantarolando Last soldier e, não, por favor, nunca quis, não me sinto, não
quero ser soldado de nada. Por que fui invadido por essa canção?

My numbers up
My time has come

Oras, chegou a minha vez de ser vacinado.

Sounds like they're playing my song


On the altar
My picture
Will be there while im gone

Não deve ser bem a minha música, já que o sistema tem dificuldades para me reconhecer. Mas se
minha foto estará aí, veja, no altar, para quando eu tiver partido, será que eu estarei morto em
breve? Já estou morto, eu dizia, é verdade.

There's no time for laughing


There is no time to cry
Soon I will be leaving
Look me in the eye

Não sei mesmo quando conseguirei rir novamente. Se estou cansado até de chorar, talvez seja de
fato passado o tempo também para isso. Mas para onde vou? E eu sei, eu sei que não serei olhado
nos olhos.

No matter what's in front of me


It's your face that I'll see
Não, tudo o que eu quero é esquecer, é deixar para trás. Não, por favor, não aguento mais, não quero
continuar parado naquela esquina vendo seu rosto sorrindo e, em seguida, virando-se para mim,
desviando o passo de meu encontro.

The worlds gathered steam


And caught up with me
And my decisions been made
Some other place
By someone I don't know
And they don't know me

E que mundos sinistros com suas brutalidades nos arrastaram até aqui. Então é isso, não tenho mais
escolha, não está em minhas mãos, minhas decisões foram tomadas por quem não conheço, por
quem também não me conhece. Não tem o que eu possa fazer.

Cheguei ao posto de saúde hoje, levei meus documento de identidade com meu cadastro de pessoa
física e o agendamento impresso, ali estava meu número de protocolo. Solicitaram um comprovante
de residência e eu não sabia, eu não o tinha em mãos, não havia informação sobre isso no processo.
Me questionaram se eu não conseguiria pelo celular um comprovante. Enquanto eu buscava uma
conta de energia elétrica nas mãos e entre os dedos: mais de trinta anos, my decisions been made/
some other place/ by someone I don't know, todas as vacinas tomadas no mesmo posto de saúde,
and they don't know me.

O atendimento pediu que eu fosse para os bancos laterais aguardar, eu seria chamado, que eu
deixasse o comprovante, não seria necessário. Depois de um instante de alívio, sentado no banco de
concreto, um concreto gélido como metal, eu me sentia um robô sobre outro robô. Um, dois, três
nomes foram chamados para a sala de vacinação. Cem mil, quatrocentos mil. Veio um prontuário
para que eu assinasse a ciência da respectiva vacina que o posto iria me aplicar. My name up/ my
time has come.

Entrei na sala de vacinas esperando uma transformação, um golpe do destino, uma grande sorte,
olhos nos olhos, mas foi tudo muito protocolar, rápido, seco, automático. The worlds gathered
steam/ and caught up with me. Sem se dirigir a mim, a enfermeira disse: agulha na ampola, seringa
cheia. Que look me in the eye que nada, a agulha foi para o meu braço e a enfermeira completou:
seringa vazia, tenha um bom dia, tchau, tchau. There's no time for laughing/ There is no time to cry,
sem fogos de artifício, sem confetes, sem trilha sonora, sem coreografia, apenas o mesmo silêncio
de instantes atrás, somente o mesmo silêncio de meses, de anos, agora também um deserto povoado
de milhares e milhares de mortos.

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