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My numbers up
My time has come
Não deve ser bem a minha música, já que o sistema tem dificuldades para me reconhecer. Mas se
minha foto estará aí, veja, no altar, para quando eu tiver partido, será que eu estarei morto em
breve? Já estou morto, eu dizia, é verdade.
Não sei mesmo quando conseguirei rir novamente. Se estou cansado até de chorar, talvez seja de
fato passado o tempo também para isso. Mas para onde vou? E eu sei, eu sei que não serei olhado
nos olhos.
E que mundos sinistros com suas brutalidades nos arrastaram até aqui. Então é isso, não tenho mais
escolha, não está em minhas mãos, minhas decisões foram tomadas por quem não conheço, por
quem também não me conhece. Não tem o que eu possa fazer.
Cheguei ao posto de saúde hoje, levei meus documento de identidade com meu cadastro de pessoa
física e o agendamento impresso, ali estava meu número de protocolo. Solicitaram um comprovante
de residência e eu não sabia, eu não o tinha em mãos, não havia informação sobre isso no processo.
Me questionaram se eu não conseguiria pelo celular um comprovante. Enquanto eu buscava uma
conta de energia elétrica nas mãos e entre os dedos: mais de trinta anos, my decisions been made/
some other place/ by someone I don't know, todas as vacinas tomadas no mesmo posto de saúde,
and they don't know me.
O atendimento pediu que eu fosse para os bancos laterais aguardar, eu seria chamado, que eu
deixasse o comprovante, não seria necessário. Depois de um instante de alívio, sentado no banco de
concreto, um concreto gélido como metal, eu me sentia um robô sobre outro robô. Um, dois, três
nomes foram chamados para a sala de vacinação. Cem mil, quatrocentos mil. Veio um prontuário
para que eu assinasse a ciência da respectiva vacina que o posto iria me aplicar. My name up/ my
time has come.
Entrei na sala de vacinas esperando uma transformação, um golpe do destino, uma grande sorte,
olhos nos olhos, mas foi tudo muito protocolar, rápido, seco, automático. The worlds gathered
steam/ and caught up with me. Sem se dirigir a mim, a enfermeira disse: agulha na ampola, seringa
cheia. Que look me in the eye que nada, a agulha foi para o meu braço e a enfermeira completou:
seringa vazia, tenha um bom dia, tchau, tchau. There's no time for laughing/ There is no time to cry,
sem fogos de artifício, sem confetes, sem trilha sonora, sem coreografia, apenas o mesmo silêncio
de instantes atrás, somente o mesmo silêncio de meses, de anos, agora também um deserto povoado
de milhares e milhares de mortos.