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Sorvete é na Sorveteria Ouro Gelado, a melhor refrescância, os melhores sabores, o melhor

atendimento que o seu bairro poderia ter! Situada na rua Guilherme Schimidt, no antigo bairro da
Vila Tibério, a tradição e seu acolhimento encontram morada na sorveteria Ouro Gelado, o sorvete
feito com açúcar e vendido com bom humor, e que ainda reserva um olhar para o moderno e o
contemporâneo da cidade. Nos últimos vinte anos, quem cresceu no bairro, ou apenas frequentou as
ruas da vizinhança do Botafogo de Ribeirão Preto, entre o campus da USP (Universidade de São
Paulo) e o centro da urbe interiorana, certamente conhece a sorveteria.
Trajeto do ônibus do Hospital das Clínicas para a Catedral metropolitana, a sorveteria nasceu no
meio da quadra, quase no ponto médio da maior distância que vai da 2 de julho à Visconde de
Taunay. Porque caminhar pelos bairros também é conhecer a história da pátria, passando pela
inconfundível Machado de Assis. Hoje, no entanto, Ouro Gelado deixou a garagem simples e
rebocada, de cimento à vista, e ocupa a esquina alta e ladrilhada com a Constituição. Afinal, a
história se repete como mania, sempre às voltas com a carta magna da república.
Adentrei a sorveteria na tarde do último domingo, um dia de horizonte vermelho, de fumaça e
cheiro de queimado no ar. O calor dificultava a respiração, a respiração era difícil também pela
fumaça, o ar seco era áspero pela terra, que estava seca porque são muitos os dias sem chuva, ora, o
calor então era intenso e isso dificultava a respiração, por sua vez, complicada pela fumaça das
queimadas, aí com a secura do vento e da terra, no calor… enfim, era uma tarde horrorosa.
Há quinze anos, o potinho de plástico com direito a três sabores valia R$ 2. Eu saía da oficina de
meu pai para a casa de minha avó, na mesma Guilherme Schimidt, ou da casa de minha avó para a
oficina de meu pai em busca de R$ 2 para um potinho de sorvete. Às vezes, dava para conseguir R$
2 na ida e R$ 2 na volta. Depois o sobrepeso era um fator genético, claro. Com R$ 2 hoje eu não
compraria nem a colherzinha de plástico para uma única bola de sorvete. Do aparecimento do novo
corona vírus para cá, o potinho de três sabores saltou de R$ 4,5 para R$ 6,5, haja malabarismo para
um chicago-boy-de-posto-de-gasolina explicar, mas se há quem acredite em dragões, há quem
acredite.
Quando ainda se tinha alguma preocupação com meio ambiente e as populações indígenas no país,
em frente a Ouro Gelado não havia recorde de invasões de garimpeiros, quer dizer, ali havia
somente um terreno baldio para a prática de bocha. Senhores de idade se reuniam religiosamente
não na catedral da cidade, tampouco na paróquia da vila. Velhinhos boludos se aglomeravam lá para
atirar pelotas umas contra as outras. Inventaram o zapzap, acabou o bocha, e na esquia da
Constituição, o que era lazer agora é concreto e aço. Tudo é muito literal.
Pensei em pedir os sabores ameixa, flocos e baunilha. Antes, não havia baunilha, ou creme, como
agora está estampado nas opções na lousa. Creme de baunilha. Em letrinhas presas numa grade, ia
“azul”, era o nome do sabor de baunilha. Não sei porque anos atrás não se dizia creme de baunilha,
preferia-se o “azul”. Eu gostava do azul, oras, ainda hoje me parece muito mais suculento degustar
o azul do que a baunilha. Até hoje não sei o que é baunilha, mas azul eu sei. Ameixa eu acho que
meu pai gostava tanto que eu acabava pedindo por causa dele, para tomar com ele. Chocolate, tsc
sempre chocolate. Não tem mais azul, então, não, resolvi pedir sabores novos.
Abacaxi, Morango, mamão; a gente envelhece e não toma mais sorvete, basicamente prefere salada
de frutas. Não. Milho verde e limão vegano, a gente envelhece e daqui a pouco está comendo pizza
de maça e sorvete de brócolis. Não.
Leite ninho trufado, passas ao rum e beijinho. Olha só, aí sim, vi vantagem. Leite ninho, nunca
soube o que é o “ninho” do leite. Leio ninho e o associo às aves, porém, aves não tem relação com
laticínios. Em seu ninho tem leite? Só se forem mamíferos. Ah, sim, em ninho há leite para os
nasciturnos, é o leite do ninho. Não deixa de ter para um gosto de infância a Ouro Gelado. Mas
sempre ouvi leiteninho como se fosse um leite-zinho, leite-inho, quem sabe fosse um leite muito
íntimo, um leite muito querido. Como se não bastasse, é trufado. Também não sei exatamente o que
se quer dizer com o termo, talvez venha de trufas. Se trufas são uma delícia: um leite-inho de trufas
só pode ser muito maravilhoso.
Passas ao rum. Meu eu de quinze anos atrás jamais pediria qualquer coisa com passas. Passas
jamais; passas, tu, outra hora, diria meu eu jovemzinho. Hoje, ih, já vão os panetones nas prateleiras
dos supermercados tem muito, já estou a base de panetones no café da manhã em pleno setembro.
Eu, hoje, não tenho qualquer plasticidade de humor: adoro passas; tudo passas, só não passas, tu,
melancolia; passas ao rum, este país me obriga a beber até quando quero sorvete; é óbvio que será
passas ao rum.
Beijinho, ah, que saudades, beijar. Gosto de usar máscaras, me são um conforto, não pretendo
abandoná-las, mas faz falta uns beijinhos. Entrei na fila, a sorveteria Ouro Gelado respeita os
protocolos sanitários da pandemia de COVID-19, está ali sobre o balcão o frasco de álcool em gel.
Ah, sim, há também o aviso das máscaras e da necessidade de manter distanciamento. Caminhei,
dei passagem, criando distância para a entrada da cliente seguinte, que vinha logo atrás. Fiz o meu
pedido: leite ninho trufado, passas ao rum e beijinho.
A moça à minha direita, a próxima cliente da sorveteria, debaixo de sua máscara, ao ouvir o último
sabor, “beijinho”, fez o barulho com os lábios, como se ela desse dois beijinhos. No restante do
mundo, no universo lá fora, planetas, luas, galáxias e demais estrelas, cada ínfima partícula
subatômica, não sei, não posso afirmar, agora naquele instante dentro da sorveteria Ouro Gelado, o
tempo parou.
Dei por mim, tinha feito o gesto das baquetas de uma bateria, emitindo o som “tu-run-tis”.
Pensei, beijinhos, beijos, ela mandou beijinhos para mim?! Para mim!? Será que a moça quer me
dar beijinhos? Estou de máscara, ela nem me viu. E amanhã, será que ela ainda vai querer? Ela nem
me viu dançar pelas madrugadas. E depois de amanhã? E semana que vem? Ela não sabe em quem
eu votei, aliás, que ótimo, por enquanto o voto continua secreto. E daqui quatro meses, será a moça
ainda vai querer me beijar? Em três, quatro anos, será que a moça terá desejado me dar beijinhos? O
que será nos tornaremos um para o outro depois de anos: intimidade demais, ou falta de respeito?
A atendente ficou ruborizada enquanto buscava pelos sabores de meu potinho de sorvete. Não
contive o comentário, eu parecia aquele mesmo jovenzinho cabeludo e seu humor transbordante de
tantos anos antes: ih, olha lá, ela ficou com vergonha! A próxima cliente e eu sorrimos atrás de
nossas máscaras.
Como uma instituição brasileira funcionando há cerca de duas décadas, perto ou precisamente –
esta sim – nos limites da Constituição, a sorveteria Ouro Gelado, tendo como vista o lazer da
terceira idade, ou o cinza das fumaças e a secura dos edifícios, por meio de sua atendente,
questionou-me: “você vai querer cobertura, moço?”. Não, eu lhe disse. “A cobertura de beijinhos
então vai ficar por conta dela”, a atendente apontava a próxima cliente ao meu lado. Se o calor já
era asfixiante, naqueles segundos não houve pausa ali nem em qualquer cantinho do universo, e o
sabor do tempo no interior da sorveteria foi de climão. Eu comecei a rir, procurando
desesperadamente uma maneira de não estar ali, de não ter ouvido e nem visto nada daquilo. Ctrl+z,
ctrl+z. Nada, “agora quem está vermelho, quem está roxo é você!”, às gargalhadas, mirava-me a tal
cliente dos beijinhos. Eu? Eu, bom, eu paguei os R$ 6,5, dei dois boa tarde varrendo com os olhos o
piso da sorveteria antes de sumir, mas não sem ouvir em retribuição um “boa tarde, beijinhos”,
seguido de dois estalidos vindos da mesma máscara da mesma e insistente cliente. Onde este país
vai parar assim?

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