Você está na página 1de 6

TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021

2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

1) Disserte sobre os conceitos de discriminação direta e discriminação indireta


correlacionando-os com as acepções tradicional e sociológica do princípio da
Igualdade. Nesse âmbito, analise, especificamente qual o papel que as cotas para
pessoas negras, pessoas com deficiência e pessoas hipossuficientes do XXVII
Concurso Público para a DP RJ desempenha.

2) “Eu achei que tinha sofrido algumas violências. Só que eu descobri que eu sofri o combo
violência obstétrica, porque o meu parto foi tudo que a Dra. Denise [Souza Leite] narrou para
gente do que é a violência obstétrica. Então eu vou narrar mais ou menos o que aconteceu.
Eu fui mãe aos 15 anos, engravidei aos 14. E a minha gravidez, meu parto foi preparado pela
minha mãe e minhas tias, porque elas passaram minha gravidez inteira falando assim: “no dia
não grita, não chora, você tem que ficar quietinha porque senão eles vão te maltratar”. Então
eu já passei a gravidez com esse pensamento, já não posso gritar, ao chegar lá, não posso
sofrer.
E aí eu passei mal no domingo de Carnaval (...). Chegando lá, 22h, foi feito o toque, e eu já
estava com 3 cm de dilatação. Ali já começou meu sofrimento porque eu achei que minha mãe
fosse ficar comigo e ela não pôde ficar. E eu só tinha 15 anos, e eu fiquei sozinha. Aí fui
encaminhada para a sala de pré-parto e ali começou todo o processo. A questão da violência,
que eu acho maior mesmo, é que nada é informado. Ali você é só um corpo e vai passando
por todo o processo e eles determinam pra você sem nada ser explicado. E aí tira roupa, bota
a roupa do hospital (...) e eu tive que falar 2 vezes que não precisava, que já estava raspada.
E aí começou o processo da lavagem. Aí perguntou a última vez que eu comi e eu disse que
apenas no almoço, que não tinha comido nada além disso porque estava enjoada naquele dia.
Aí ela disse que tinha que fazer a lavagem, e foi feita 2 vezes porque ela não acreditava que
não tinha nada dentro de mim, por aí.
Assim que eu cheguei no hospital eu já fui colocada no tal do sorinho, e ali a noite inteira (...),
eu adormeci. Eu tava muito cansada e adormeci. E quando eu acordei, eu acordei com o
médico já me dando o toque, e eu levei um susto porque tinham mais de 6 ou 7 homens
envolta da minha cama, e devia ter uma menina, uma médica, eu ganhei meu filho num
hospital maternidade e tinham mais de 6 homens parados, todos olhando a minha vagina, e
ele dando o toque. “Olha, já está com não sei quanto de dilatação”. Cara, eles não me
acordaram, vocês têm noção? Eles viram que eu tava cochilando e não me acordaram, já
foram fazendo o procedimento. E aí ele falou: “´é, não vai estourar” e pegou tipo uma espécie
de agulha de tricô, um troço gigante, e começou enfiando. E todo esse procedimento sem
dizer uma palavra pra mim, nada.
E aí o auge da minha violência foi quando eu fui pra sala de parto e o médico disse: “olha,
quando você sentir dor, faz força” e eu fiz. Gente, eu sinto que não tinha necessidade da
episiotomia porque tava saindo, eu não tava sentindo uma dor sufocante e aí ele me cortou e
fez um corte em L, eu lembro perfeitamente em forma de L. E ali começou o meu sofrimento
porque ele nasceu muito rápido. Meu filho era gigante, 51cm, 3,8kg. E aí ele começou a me
costurar. E pra mim foi pior que o parto. Ele começou a me costurar, eu sentia cada ponto,
dizia que tava doendo muito e ele aplicava uma injeção que eu não sei se era anestesia ou não,
porque não pegava aquilo de jeito nenhum e eu adormeci depois que ele acabou. E quando
eu acordei, (...) em relação ao pós-operatório e assim, pra mim foi horrível, porque eu tive que
tomar banho sozinha, as enfermeiras não me ajudavam, eu desmaiei no chuveiro e quando
desmaiei as outras mães me colocaram numa cadeira. Eu fiquei muito tempo embaixo do
chuveiro em cima de uma cadeira e sangrando desesperadamente, muito mole e sonolenta e
aí veio uma enfermeira me ajudar a tirar e aí soube que eu tinha desmaiado, e aí por conta

1
TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021
2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

deste corte, meu filho nasceu em fevereiro, estava um calor infernal na Baixada Fluminense,
todos os meus pontos inflamaram, muitos arrebentaram e os 15 primeiros dias do meu filho
eu fiquei tomando banho de assento. Eu não conseguia andar, não conseguia sentar, (...). E o
que aconteceu foi absurdo. Foi uma coisa muito...”
(TAVARES et al, Histórias De Violência Obstétrica Na Baixada Fluminense: “Para mudar o
mundo, é preciso mudar a forma de nascer”, no prelo)
A partir do relato acima, traga o conceito de violência obstétrica, situe-o no
Direito Internacional dos Direitos Humanos, relacione-o com o direito à saúde sexual
e reprodutiva da mulher. Na sequência, aponte, fundamentadamente, ao menos,
uma medida de natureza judicial e uma medida de natureza extrajudicial que você
adotará quando estiver empossada/o como defensor/a pública/o.

3) Jorge, funcionário da Ricardo Eletro, furtou 1 aparelho celular daquela loja e o


revendeu. Chegou-se à autoria do crime no bojo de inquérito policial, a denúncia foi
oferecida imputando-lhe o crime de furto qualificado pelo abuso de confiança e
regularmente recebida em 28.02.2018. Jorge ostenta apenas a anotação desse fato
na sua FAC. Ele tem 36 anos, é casado, tem um filho de 06 anos, sua esposa ficou
desempregada durante a pandemia e ainda cuida do pai de 72 anos, que se recupera
de fratura no fêmur, em sua casa. Trabalha há 04 anos com carteira assinada em
empresa de venda de materiais de construção, percebendo ganhos médios no
montante de R$ 1.800,00. No dia 05.07.2021, você, Defensor Público participa da AIJ.
À luz do artigo 9º, da CADH, produza a argumentação jurídica sobre a possibilidade
de ANPP no curso deste processo. Discorra se há meios de compatibilizar o controle
de constitucionalidade emitido pelas Cortes internas brasileiras com o controle de
convencionalidade?

4) Considerando os padrões interamericanos dos direitos humanos das pessoas


moradoras de favela, explique em que consiste a noção de segurança cidadã e a de
violência seletiva, e qual sua relação com o tema da justiça transicional, assim como
em que medida dialogam com a ADPF 635 (ou ADPF pela vida nas favelas).

5) “Com a prática “Defesa das garantias pré-processuais dos detidos em flagrante no âmbito da
Delegacia de Polícia”, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS) foi a
vencedora da 17ª edição do Prêmio Innovare, na categoria Defensoria Pública. (...) A prática
foi inscrita pelos defensores públicos Alessandra Quines Cruz, Felipe Kirchner, Igor Menini da
Silva e Sabrina Hofmeister Nassif, e consiste na disponibilização de uma equipe de defensores

2
TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021
2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

para atendimento, em regime de plantão, dos presos em flagrante em três delegacias de


Porto Alegre. Atuando com dedicação exclusiva e presencialmente, os profissionais visam a
preservar as garantias pré-processuais dos detidos. Os defensores acompanham todo o
processo, observando os autos de prisão em flagrante, as entrevistas reservadas com os
detidos, interlocução com familiares e autoridades policiais, e identificando prisões
desnecessárias e abusivas.” (Disponível em: https://www.defensoria.rs.def.br/equipe-do-
plantao-criminal-da-defensoria-publica-vence-o-17-premio-innovare Acesso aos 06.07.2021)

A partir dos padrões internacionais de direitos humanos, especialmente


estabelecidos no caso Ruano Torres vs. El Salvador, analise a atuação da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro, no seguinte caso concreto:
Arnaldo, que teve diversas passagens criminais, está preso desde o flagrante
por crime de tentativa de furto de um rádio de carro, em concurso de agentes (mas
nenhum deles teria sido preso). O vidro foi quebrado. Foi levado à audiência de
custódia para verificar se foi submetido à tortura e se cabia alguma medida cautelar
alternativa à prisão. Foi convertida a prisão em flagrante em preventiva.
Antes da AIJ começar, você, Defensor/a Público/a, se entrevista com o preso.
Ele relata que estava saindo com uma profissional do sexo, com blusa de botão e
sapatos novos e que o carro em questão estava abandonado, e já tinha sido
depredado por algumas pessoas que nitidamente faziam uso abusivo de álcool e
outras drogas. Arnaldo explica que a polícia o abordou e verificou que ele estava em
gozo de livramento condicional. E lhe exigiu dinheiro para não o prender. Ele não
sucumbiu à pressão, porque confiava na justiça, especialmente, porque o local era
público (bairro da Lapa) e dotado de várias câmeras de vigilância pública. O Delegado
de Polícia lavrou o flagrante apenas com o relato dos policiais e não requisitou as
alegadas filmagens.
Na AIJ os policiais militares sustentam a descrição dos fatos da denúncia. MP
sustenta a condenação. A versão do preso, em interrogatório, pareceu descolada da
prova produzida pela acusação. Todas as tentativas de localizar a profissional do sexo
são em vão. Não obstante saber-se que o COR (Centro de Operações da Prefeitura
do Rio), a cada 10 dias, inutiliza as filmagens, você requer seja expedido ofício ao COR
para que venha a informação aos autos, sustentando que ali estaria a única prova que
poderia corroborar as alegações defensivas. É indeferido sob o argumento de sua
inutilidade. Alegações finais oferecidas, a sentença é condenatória.

3
TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021
2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

Pergunta-se: quais os contornos da Investigação Criminal Defensiva e de que


modo ela poderia ter modificado o rumo dessa sentença condenatória?

6) Tendo em conta a ADPF 779, que discute a (i)legítima defesa da honra em casos de
feminicídio, discuta sobre os efeitos da liminar proferida no que tange aos limites
éticos para a defesa pública e o papel institucional da Defensoria Pública na
promoção de direitos humanos.

7) Você, defensor/a pública/o em atuação na Vara de Família de Itaperuna, atende a ré


para contestar uma ação de inversão de guarda proposta pelo pai das suas duas
filhas. A ação foi proposta após sua defendida ter assumido sua lesbianidade e,
dentre os argumentos expendidos, está especificamente a péssima influência que a
orientação sexual da genitora pode produzir nas duas filhas. Como você refutaria
esse argumento? Articule os padrões interamericanos estabelecidos pela Corte no
caso Atala Riffo e na Opinião Consultiva n. 24, assim como indique, ao menos 02
práticas, que devem ser adotadas pelo Estado Brasileiro para proteger os direitos das
pessoas em situação de vulnerabilidade em razão da orientação sexual.

PEÇA 1:
Você, defensor/a pública/o, atuando em regime de plantão na Cidade da Polícia, na
comarca da capital, toma conhecimento da prisão em flagrante de uma mulher pelo
crime do artigo 124, do CP. Assim que ela descobriu a gestação, por ser indesejada,
utilizou o medicamento citotec e passou muito mal. Foi levada ao hospital, onde foi
atendida por um médico que realizou o procedimento de curetagem. Esse mesmo
médico chamou a polícia militar que a levou presa. O delegado de polícia estipulou fiança
que foi paga pelas enfermeiras daquele mesmo hospital, que se cotizaram para levantar
o dinheiro.
Elabore o recurso simples, rápido e efetivo (CADH, 25) para discutir os direitos dessa
pessoa em situação de vulnerabilidade em razão do gênero, manejando o controle de
convencionalidade nos fundamentos da peça, assim como as discussões que tem sido
aventadas na ADPF 442.

4
TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021
2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

PEÇA 2:
Você tem atribuição coletiva em sede de execução penal e, durante uma ação de
monitoramento de um dos locais de privação de liberdade, identifica que se trata de
unidade penitenciária com ala de mulheres e ala de homens. A estrutura física é precária,
com inúmeros pontos de infiltração, pouco arejada e quase sem luz solar. O espaço
destinado ao banho de sol é muito pequeno e é usufruído pelos presos e presas em
regime de rodízio. Considerando que as mulheres são em número inferior ao de homens,
elas têm menos acesso aos espaços coletivos, com o de banho de sol e, segundo relatos
colhidos, passam – por vezes, meses sem acessá-lo. A superlotação é um problema.
Presos dividem a mesma comarca (nome da cama) e alguns dormem em redes
improvisadas, assim como outros dormem no chão. Foi descrito pelos entrevistados, que
alguns homens solicitam serem amarrados nas grades, com lençóis fornecidos por suas
famílias para dormirem em pé, devido à superlotação.
Foram relatadas violências especialmente sofridas por mulheres trans que estavam com
os homens, de acordo com seu nome de registro.
Inexiste espaço para visita íntima.
O acesso à água é limitado, porque o registro só é aberto 2 vezes ao dia. Uma vez pela
manhã e outra às 18horas. As mulheres, em período de menstruação, sofrem mais com o
inacesso à água, assim como recebem uma cota de 03 absorventes por mês. A água
potável tem um sabor ruim, sendo certo que os bebedouros estão em constante
manutenção.
O material de higiene e limpeza é irregularmente fornecido pelo Estado, de modo que as
pessoas presas dependem do que é trazido pelos parentes e visitas.
O boi (buraco no chão onde as pessoas presas fazem suas necessidades) estava
entupido. As pessoas idosas sofriam mais com a posição necessária para evacuar ou
urinar.
Inexiste acessibilidade para cadeirantes.
Não há psiquiatra lotado na unidade, nem psicólogo. Apenas uma assistente social
trabalha em escala, comparecendo duas vezes por semana no local. Inexiste serviço
médico e odontológico regular oferecido institucionalmente pelo estado, o que coloca
em risco o pré-natal das presas em situação de gestação.

5
TREINAMENTO EM DIREITOS HUMANOS - 2021
2ª FASE DO CONCURSO PARA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

As 4 refeições – café da manhã, almoço, lanche e a janta ficam a cargo de empresa privada
que ganhou processo de licitação. A Direção relata não haver problemas coma qualidade
das refeições servidas. Os presos reclamaram do sabor e da repetição dos pratos, com
muita salsicha e macarrão. Inexiste dieta diferenciada de acordo com o quadro médico.
A educação formal é fornecida apenas para uma turma de presos porque só há 01
professora. Não há turma de mulheres.
Diante desses fatos, com base na normativa de direitos humanos e na jurisprudência da
Corte IDH em sede de medidas provisórias ditadas em face do Estado Brasileiro, elabore
a peça relativa à atribuição extrajudicial indicada na questão.

PEÇA 3:
É absolutamente notória a situação de marginalização social e econômica a qual são
submetidas as centenas de indivíduos em situação de rua em todo o Brasil, implicando
sua invisibilidade perante o poder público. A chamada ilegibilidade da população de rua
– isto é, o conhecimento dos sujeitos, sua localização, métricas e padrões - lhes limita de
forma direta o acesso ao registro, monitoramento e fazer estatal.
Considerando este panorama, foi instituída, através do Decreto nº 7053/09, a Política
Nacional para a População em Situação de Rua. Dentre seus objetivos foi estabelecida
uma contagem oficial da população em situação de rua (art. 7º, III) e a produção,
sistematização e disseminação de dados e indicadores sociais, econômicos e culturais
sobre a rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua
(art. 7º, IV).
A última pesquisa, datada de 2008, coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento
Social, envolveu apenas 71 cidades com mais de 300 mil habitantes e as capitais,
apontando 31.922 pessoas nesta situação. Questionado, o IBGE se limitou a dizer que a
infraestrutura técnico-administrativa da instituição é própria à população domiciliada,
não dispondo atualmente de metodologia definida para recenseamento da população de
situação de rua (Doc. 3: Ofício IBGE/PR nº226).
Como defensor/a público/a, tendo em vista os elementos que subsidiam uma atuação
estratégica e a lógica da ultima ratio da judicialização de demandas estruturais, decida o
que fazer e elabore a peça pertinente.

Você também pode gostar