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O consumo na vida digital


IURI YUDI FURUKITA BAPTISTA*

Resumo
O modelo de consumo não possui as mesmas características sempre: suas
relações, motivações, formatos, espaços, interesses e atividades são
construções sociais que se modificam atreladas ao cenário econômico,
político e tecnológico. O presente trabalho repassa o surgimento da
sociedade do consumidor para então conjecturar sobre as propriedades
distintivas do consumo na vida digital. O que se defende ao final é que o
consumidor já não se restringe ao papel de consumir.
Palavras-chave: Sociedade; Comportamento; Cibercultura.

Abstract
The consumption model has not always the same aspects: its relationships,
drivers, shapes, places, interests and activities are social constructions that
change linked to the economic, political and technological background. This
paper reviews the emergence of the consumer society and then inquiries
about the distinctive properties of consumption in digital life. What is
contend by the end of this paper is that consumers are no longer restricted to
the role of consumer.
Key words: Society; Behavior; Cyberculture.

*
IURI YUDI FURUKITA BAPTISTA é Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
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Introdução comunicação digital inaugura suas


reflexões. Publicado em 1995 por um
Por ter estudado dois anos na Suíça e
ser fascinado por tabelas de horários de dos fundadores do Media Lab do
trens europeus, Nicholas Negroponte Massachusetts Institute of Technology
está estava desde criança familiarizado (MIT), A vida digital de Nicholas
com a geografia e a localização das Negroponte é um tratado pioneiro sobre
cidades europeias. Assim, quando os primórdios da informática, da
participava de reuniões de uma ponta a internet e da distinção entre bits e
outra dos Estados Unidos da América átomos. Embora pareça uma questão
para discutir as políticas econômicas do menor – a origem distante daquelas
mercado da informática, ele sabia bem garrafas d’água -, esse episódio não foi
de onde vinham as garrafas de água escolhido como de frente batalha sem
Evian servidas aos funcionários do razão, uma vez que problematiza a
governo e representantes da indústria. distinção entre átomos e bits.

Evian, na França, está a mais de Negroponte aponta que inicialmente lhe


oitocentos quilômetros do oceano incomodava o fato de se darem tanto
Atlântico. Ou seja, para chegar ali, trabalho para trazer água – afinal, é
aquelas pesadas garrafas de vidro apenas água – de uma pequena cidade
tinham atravessado quase um terço europeia para uma reunião que
da Europa, cruzado o Atlântico e, ironicamente tratava do fortalecimento e
no caso da reunião na Califórnia, proteção do mercado estadunidense. Em
percorrido ainda uma distância um segundo momento, Negroponte
terrestre adicional de cerca de 5 mil torna a história da água Evian
quilômetros. (NEGROPONTE, significativa por exemplificar que algo
1999, p.09)
estava “mudando rapidamente”: “O
É com essa ponderação que uma das comércio mundial tradicionalmente
pedras basilares dos estudos da consistiu da troca de átomos feita dessa
forma. Quando passamos pela distribuição”, eles formulam aquilo que
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alfândega, declaramos nossos átomos, e batizam de “Lei da diferenciação de
não nossos bits.” (NEGROPONTE, consumidor”2.
1999, p.10)
Primeiramente, Morsen e Downs negam
O que se detalhará nos próximos itens é o pensamento corrente de que os
que a escolha de uma água francesa para negócios privados sejam os vilões do
reuniões nos Estados Unidos da problema por usarem “técnicas
América faz parte de uma cultura do publicitárias inteligentes e nefastas para
consumo dominante na civilização manipular os desejos dos consumidores,
ocidental, em que comprar já não é de forma que compram produtos e
apenas suprir necessidades primárias serviços privado que eles não precisam
(como beber água), mas um ato ou querem realmente”3 (MONSEN e
individualização social e individual. E, DOWNS, 1971, p.64). Essa visão,
se consumir é uma atividade social, o segundo os autores, além de supor o
que esse trabalho pergunta é: como as consumidor uma massa inerte, vítima
dicotomias átomo/bits e virtual/atual das estratégias publicitárias, obscurece
podem resignificar as relações de um fator ainda mais fundamental e
consumo? profundo no comportamento social:
Sobre esse último assunto, o presente Nós sustentamos, em lugar, que o
trabalho deu preferência a estudos de comportamento do consumidor é
quase 20 anos atrás pelo mesmo fato de motivado pelo desejo de emulação
terem sido os primeiros a versarem e diferenciação, e que os
consumidores querem criar
sobre esse tema. Ainda que antigos, são
distinções visíveis entre grandes
conceitos referenciais e indispensáveis grupos ou classes sociais, e, dentre
àqueles que pretendem estudar o esses grupos, ainda mais sutis
presente. A partir deles, busca-se por distinções de individualidade. A
fim conjecturar como pode se estruturar maneira mais eficiente de
um novo modelo social de consumo. estabelecer essas distinções é por
Mas, em se tratando de algo em rápida e meio de seus estilos de consumo.4
constante evolução, é evidente que (ibid., p.64)
ainda não se pode ansiar por Assim, seria possível enxergar duas
formulações infalíveis e categóricas. funções para o consumo: a satisfação
O consumo massivo direta de necessidades e a demonstração
O ponto de partida na história das 2
Do original: “Law of Consumer
análises do consumo é um célebre artigo Differentiation” (MONSEN e DOWNS, 1971,
publicado em 1971 por o economista p.65)
3
Joseph Monsen e o cientista político Do original: “[…] clever and nefarious
Anthony Downs intitulado Bens advertising techniques to manipulate the desires
públicos e status privado1. No texto, of consumers so that they buy private goods and
services they do not really need or want.”
eles buscam as razões pelas quais os 4
Do original: “We contend, rather, that
estadunidenses preferiam cada vez mais consumer behavior is motive by the desire for
os produtos e serviços oferecidos por emulation and differentiation, and that
empresas privadas em detrimento dos consumers want to create visible distinctions
oferecidos pelo governo. Com objetivo between large social groups or classes, and,
within such groups, more subtle distinctions of
de propor contramedidas a essa “má individuality. The most effective way to
establish such distinctions is through their styles
1
Do original: Public good and private status. of consumption.”
de status social. Ambos os papéis trinta anos, hoje conhecidos como o
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existem desde sempre nas sociedades, período “fordista”, são marcados pela
em maior ou menor grau de evidência, e produção em massa de bens de consumo
são, antes de qualquer coisa, parte da duráveis que atendiam às necessidades
natureza humana. A Lei de surgidas com o processo de urbanização
diferenciação do consumidor postula, e industrialização. Tanto o trabalho
portanto, que todos os humanos inclusos quanto os produtos se tornam
em uma sociedade possuem a tendência padronizados, massivos e concretos.
de utilizar símbolos visíveis de
Para atender aos novos moradores da
diferenciação econômica e individual.
cidade e suas crescentes rendas
De volta ao contexto dos bens e advindas da consolidação dos direitos
serviços públicos e privados, Monsen e trabalhistas, os eletrodomésticos,
Downs afirmam que não se trata de uma automóveis e serviços de infraestrutura
manipulação da publicidade, mas que a urbana (como saneamento básico, linhas
publicidade é signo da capacidade do elétricas e telefônicas) eram produzidos
setor privado em atender a segunda em série. Os produtores não se
função social do consumo por criar diferenciavam pelo produto, pelo
produtos com personalidade, com status atendimento ou pela marca, mas por sua
e carga simbólica. Para que as estatais capacidade de aprimorar o processo
reconquistassem a competitividade com produtivo. É nesse contexto que Henry
o setor privado, os autores defendiam Ford – e sua política de vendas
uma alteração no modelo de produção “disponível em qualquer cor, contanto
dos bens públicos, pois eram que seja preto” – se torna a figura
notadamente massivos, indistintos e padrão de seu tempo.
impessoais.
Por demandarem capitais enormes, as
Mais de trinta anos depois, os estudos indústrias dos bens de consumo
sobre as condições sociais do consumo duráveis eram monopólios ou
colocam Bens públicos e status oligopólios. Além da baixa
privado como um marco de uma concorrência, as necessidades das
fundamental alteração no modelo pessoas eram óbvias: produtos robustos,
econômico entre as décadas de 1960 e essenciais, confiáveis, com funções
1970. Wolfgang Streeck explica que primárias e acessíveis ao trabalhador
nessa época houve uma ruptura com o assalariado. Nesses termos, vender é
progresso e crescimento econômico do bem menos problemático que produzir:
pós-guerra, assinalando a transição “de “tudo o que precisavam fazer era
uma economia de atendimento das fabricar um produto padrão e, em
necessidades para outra, de atendimento seguida, distribuí-lo para uma clientela
dos desejos; de um mercado centrado no respeitosa, feliz por ser atendida sempre
vendedor para um mercado centrado no que encaixada no cronograma de
comprador.” (STREECK, 2013, p.61) produção da empresa” (STREECK,
2013, p.61).
Em O cidadão como consumidor,
artigo originalmente publicado na New Gilles Lipovetsky, em A felicidade
Left Review e republicado em português paradoxal [2006], aponta também uma
pela Revista Piauí, Streeck explica que relação íntima entre o surgimento da
entre 1945 e 1975, os países ocidentais sociedade de consumo e o
desenvolvidos viveram um período de desenvolvimento das máquinas de
prosperidade sem precedentes. Esses produção seriada e da infraestrutura de
comunicação e transporte necessária Como os processos de urbanização e
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para a distribuição em escala nacional industrialização se estabilizaram, eles
de produtos. Os efeitos na formatação deixaram de oferecer renovação
do consumo são claros: “Na França, a constante de clientes para a indústria de
participação das despesas da produtos massivos. Em geral robustos e
alimentação em domicílio passa, no essencialmente pragmáticos, os
orçamento das famílias, de 49,9%, em produtos não seriam trocados enquanto
1950, a 20,5% em 1980; entre 1959 e estivessem funcionando, uma vez que as
1973, o consumo dos bens duráveis necessidades das pessoas se mantinham
progride 10,3% ao ano em volume.” satisfeitas. O carro preto e indistinto
(LIPOVETSKY, 2007, p.32) trafegava, a geladeira maciça e
barulhenta continuava a refrigerar e os
Streeck afirma que em 1971, quando da serviços básicos continuavam
publicação de Monsen e Downs, já essencialmente básicos: somente as
haviam sinais claros de que esse compras de reposição não sustentariam
“mundo idílico” do pós-guerra estava a economia industrial.
declinando. Os primeiros sinais teriam
sido as grandes greves da década de O consumo personalizado
1960, “mas não foi apenas o mercado de
trabalho que se tornou um gargalo para Foi buscando descobrir o que poderia
o avanço da acumulação capitalista. tornar os produtos e serviços públicos
Fatos semelhantes ocorreram nos mais atraentes que Joseph Monsen e
mercados de produtos – e, de fato, as Anthony Downs ganham consciência da
mudanças nos dois estavam solução encontrada pelos processos
relacionadas” (STREECK, 2013, p.61): produtivos para a crise de saturação dos
o mercado consumidor estava saturado. mercados consumidores. “No rastro de
Lipovetsky também coloca 1970 e Bens Veblen, os sociólogos críticos dos anos
públicos e status privado como o 1960-70 esforçaram-se em responder a
marco entre os ciclos econômicos do essas interrogações desconstruindo a
consumo. Embora os mantras dos ideologia das necessidades, sendo o
industriais sejam especialização, consumo interpretado como uma lógica
padronização, repetitividade e aumento de diferenciação social.”
de produção, as características que se (LIPOVETSKY, 2007, p.38)
exacerbariam na próxima fase já
existiam na anterior: Contudo, Streeck e Lipovetsky
consideram as explicações de Monsen e
Embora de natureza essencialmente Downs insuficientes para explicar o que
fordista, a ordem econômica aconteceu a partir da década de 1970.
ordena-se já parcialmente segundo Ambos são enfáticos ao afirmar que a
os princípios da sedução, do vontade de diferenciação social não é a
efêmero, da diferenciação dos única motivação para o consumo na
mercados: ao marketing de massa nova estrutura econômica. O alemão irá
típico da fase I sucedem estratégias
versar sobre o atendimento dos desejos
de segmentação centradas na idade
e nos fatores socioculturais. É um e o francês criará o conceito de
intermediário e híbrido, consumo emocional, ambos apontando
combinando lógica fordista e um deslocamento do consumo por
lógica-moda, que se instala. necessidade para o consumo por
(LIPOVETSKY, 2007, p.34) satisfação pessoal.
Se a fase anterior é marcada pela pela procura. (LIPOVETSKY,
2007, p.77) 48
urbanização e industrialização, agora se
observa um movimento de inclusão das
Na Alemanha, a Volkswagen não
mulheres no mercado de trabalho (junto
produzia dois carros exatamente iguais
com todas as mudanças socioculturais
no mesmo dia durante a década de 1980
que isso ocasionou) e a ampliação dos
(STREECK, 2013, p.62). Na França, a
mercados nacionais para internacionais.
Renault declarava produzir em 1984
Assim como a produção dos bens de
cerca de 200 mil veículos diferentes, se
consumo duráveis se concentrava
fossem levadas em conta todas as
nacionalmente em algumas empresas, a
opções disponíveis (LIPOVETSKY,
produção agora se internacionalizava,
2007, p.79). O modelo produtivo
buscando países com mão de obra e
uniforme cede lugar à lógica da
matérias-primas mais abundantes. “As
diversificação, pois se percebe que
vendas mundiais das quinhentas
quanto mais atenção se dava ao
primeiras delas [empresas
atendimento, à marca e as
multinacionais] triplicaram entre 1990 e
especificidades do público, mais os
2001, enquanto o PIB mundial
consumidores estavam dispostos a
aumentava 50%.” (LIPOVETSKY,
comprar e pagar mais caro.
2007, p.77)
Depois que a tecnologia tornou a Essa nova lógica está amparada no já
produção serial, a microeletrônica gera mencionado deslocamento do consumo
um novo salto na capacidade produtiva, por necessidade para o consumo por
aumentando a flexibilidade das satisfação. Streeck explica que os anos
máquinas, diminuindo a mão de obra 1970 e 1980 foram também anos de
necessária e produzindo bens com mais enfraquecimento do papel da família e
detalhamento, menor durabilidade e da religião na vida dos indivíduos,
maior possibilidade de personalização. oferecendo um “vácuo social” na
De forma geral, diz Streeck, a formação de identidade e na ocupação
estagnação econômica foi afastada pelo da existência. O mercado prontamente
capitalismo com o aumento da preenche esse vácuo com o consumo,
variedade de produtos, com a formação uma nova forma do indivíduo “definir
de mercados de nicho em grande escala seu lugar no mundo”, “um ato de auto
e a submissão dos produtores às identificação e autoapresentação”
vontades dos consumidores. (STREECK, 2013, p.63).

Segmentação dos mercados, Isso é, em geral, considerado um


diferenciação extrema dos produtos aumento de liberdade, pois
e dos serviços, política de diferentemente das comunidades
qualidade, aceleração do ritmo de tradicionais, as coletividades formadas
lançamento dos produtos novos, pelo consumo são formadas por
preeminência do marketing, umas vínculos fracos, momentâneos, não
tantas novas estratégias que, excludentes, sem localização. “Assim, a
chocando-se de frente com o modo socialização pelo consumo é
fordista de organização da
monológica e não dialógica, voluntária
produção, favoreceram a
emergência de novos modelos de e não obrigatória, individual e não
consumo. [...] A virada que se coletiva.” (ibid., p.63) Nesse ponto,
produziu é considerável: de um Streeck e Lipovetsky se distanciam: o
mercado comandado pela oferta, primeiro considera a sensação de
passou-se a um mercado dominado liberdade um engano às amarras
consumistas e o segundo acredita trata- “Imitando a criança, o neoconsumidor
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se, sim, de mais possibilidades não faz mais que dar uma nova feição
individuais. ao Homo ludens eterno.” (ibid., p.72)
Para Gilles Lipovetsky, o consumo Por ter se tornado um importante
quebra com os padrões de sociabilidade provedor de alegrias, se não mesmo de
tradicionais e, embora admitidamente felicidade, o consumo precisa ser
vazio e superficial, confere às pessoas renovado constantemente. A indústria,
uma maior capacidade de criar sua então, entra em um frenesi para suprir a
identidade. O consumo enquanto necessidade do novo e do perecível:
autoafirmação se torna “Uma marca como a Zara renova seus
desinstitucionalizado, subjetivo, modelos a cada duas semana,
individual, emocional: produzindo cerca de 12 mil designs por
ano, diferenciados segundo os países.”
Diferentemente do consumo à moda (LIPOVETSKY, 2007, p.87)
antiga, que tornava visível a
identidade econômica e social das Embora sejam de extrema importância,
pessoas, os atos de compra em não se prolongará aqui as reflexões
nossas sociedades traduzem antes sobre as consequências e os
de tudo diferenças de idade, gostos
julgamentos valorativos dessas
particulares, a identidade cultural e
singular dos atores, ainda que
percepções a cerca da configuração
através dos produtos mais social do consumo. Pois, abordá-las
banalizados. (LIPOVETSKY, 2007, seria um desvio à questão que este
p.44) trabalho propõe: que rumo o consumo
deve seguir na vida digital?
E essa formação de identidade ocorre
pela dimensão hedonística do consumo, O consumo hiperpersonalizado
por sua capacidade de oferecer Ao que tudo indica, o campo das
satisfação pessoal e sensível. O que
comunicações é costumeiramente
ilustraria esse novo papel é a relevância
pioneiro na implantação de novos
do lazer na vida ocidental
modelos de consumo. Assim, muitas
contemporânea: somente o turismo foi
das propriedades que hoje já existem
responsável por mais de 11% do PIB
nas áreas da informação e comunicação
mundial em 2007. Até porque “a parte
serão logo ampliadas a outros setores
do tempo não trabalhado representa, nos
econômicos. Lipovetsky, por exemplo,
países mais desenvolvidos, entre 82% e
mostra que em 1950 a segmentação da
89% da duração total do tempo desperto
publicidade, da imprensa e do
de um indivíduo.” (ibid., p.16)
entretenimento já estava claramente
No que Lipovetsky chama de consolidada:
hiperconsumo, o ato de comprar se Por assim dizer, a comunicação
torna uma atividade lúdica para todas as estava ‘adiantada’ em relação à
classes e gêneros. O consumir produção, ainda dominada pelas
transforma-se em uma espécie de jogo, grandes séries de itens
em que a relevância não está na função padronizados, e em relação à
e utilidade dos produtos, mas na sua grande distribuição (supermercado,
capacidade de oferecer prazer, romper o hipermercado), empenhada em
tédio cotidiano, colocar objetivos de mecanismos de racionalização
vida e proporcionar experiências extraídos do mundo da indústria de
massa. (2007, p.81)
estéticas, sensitivas e afetivas.
E é justamente essa questão mais somente aquilo que você procura e
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evidente a se notar no consumo digital: gosta, mas também aquilo que tiver
a perpetuação e multiplicação das maior probabilidade de precisar e gostar
alternativas para os consumidores. A também. Fernanda Bruno (2008, p.13)
lógica de segmentar as linhas de mostra que a maioria das redes sociais
produtos segue em direção à literal possuem instrumentos daquilo que se
individualização do consumo. Nas chama mineração de dados, uma técnica
palavras de Negroponte: estatística de processamento de dados
que encontra padrões e modelos
O resultado não é apenas um maior
automaticamente.
número de companhias bem-
sucedidas, mas também uma gama Negroponte dá exemplos que hoje,
maior de alternativas para o quase vinte anos depois, naturalmente
consumidor e um setor comercial parecem ingênuos: lojas de bebidas que
cada vez mais ágil, capaz de rápidas
indicam o Chardonnay preferido de seus
mudanças e de um veloz
crescimento. (NEGROPONTE,
convidados para o jantar de amanhã;
1999, p.51) carros que avisam quando é preciso
trocar os pneus ou um computador que
Isso modifica também o conceito de indique “uma matéria sobre um novo
varejo, onde tradicionalmente é dada ao restaurante, pois ele fica na cidade para
consumidor uma seleção de produtos onde você vai viajar daqui a dez dias e,
previamente selecionados pelas lojas, no passado, você parece já ter
mercados, magazines. Assim como os concordado com as opiniões do autor da
conteúdos da internet, a lógica se matéria.” (NEGROPONTE, 1999,
desloca do “empurrar” para o “puxar”, p.159)
libertando os consumidores desses
filtros que limitam não somente os Porém, ele já estava ciente: “A
segmentos de extrema capilaridade, verdadeira personalização é tarefa
como também libertam das relações de nossa” (ibid., p.158). E essa
representação e exclusividade nas personalização é permitida pela
prateleiras, araras e vitrines. maleabilidade do mundo digital, pois
“ele pode crescer e modificar-se de uma
E mais do que uma grande diversidade forma mais contínua e orgânica do que
de produtos disponíveis no mercado, a os antigos sistemas analógicos” (ibid.,
vida digital possibilita que os p.47). O que estaria por trás dessa
produtores e os prestadores de serviço capacidade é o “upgrade” ou a
monitorem e atendem às suas “atualização”, que permite
necessidades específicas. Negroponte diferenciações quase que fundamentais
aponta para as relações extremamente em um mesmo produto base.
personalizadas entre secretárias e
patrões, corretores de imóveis e seus A atualização deve ser entendida sob a
clientes, computadores e usuários: “O luz de sua dicotomia com a virtualidade,
que todos eles têm em comum é essa diferenciação tratada por Pierre Lévy
capacidade de construir um modelo de em O que é virtual?, também de 1995.
você.” (NEGROPONTE, 1999, p.149) “No uso corrente, a palavra virtual é
empregada com frequência para
É o que já se vê na publicidade online. significar a pura e simples ausência de
Extremamente segmentada, ela existência, a ‘realidade’ supondo uma
monitora suas ações na internet para efetuação material, uma presença
criar um perfil seu e mostrar não tangível.” (LÉVY, 1999, p.15) Mas o
virtual está longe de ser irreal ou Assim, o virtual é o desatualizado, algo
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inexistente, e, embora seja o que ainda não foi conformado, um
contraponto do atual, também não é modelo que permite alterações criativas
defasado. de atualização. Isso porque o virtual, em
geral, não está presente. É disso que
A palavra virtual vem do latim surge o senso comum de que o virtual é
medieval virtualis, derivado por sua inapreensível, inexistente, irreal. Uma
vez de virtus, força, potência. Na
empresa virtual, por exemplo, “não
filosofia escolástica, é virtual o que
existe em potência e não em ato. O
pode mais ser situada precisamente.
virtual tende a atualizar-se, sem ter Seus elementos são nômades, dispersos,
passado no entanto à concretização e a pertinência de sua posição
efetiva ou formal. A árvore está geográfica decresceu muito.” (LÉVY,
virtualmente presente na semente. 1999, p.19)
Em termos rigorosamente
filosóficos, o virtual não se opõem A virtualidade, assim como a
ao real mas ao atual: virtualidade e digitalidade, traz diversas possibilidades
atualidade são apenas duas às relações de consumo, sendo que a
maneiras de ser diferentes. (LÉVY, primeira delas advém da concepção de
1999, p.15) virtual como potência. Quando se
compra uma música, um texto ou um
Cabe salientar também a diferença que vídeo digital, o que se compra é um
Gilles Deleuze faz de possível e virtual. produto em potência, um código
O possível é o oposto ao real, sua numérico que precisará ser atualizado
constituição é idêntica à realidade, por um aparato que exiba, toque ou
porém é inexistente. Já a virtualidade reproduza esse conteúdo digital.
não se sobrepõe ao real, não se trata de
algo já constituído, como é o possível. Nesse sentido, o processo produtivo que
“O virtual é como o complexo havia se deslocado para países
problemático, o nó de tendências ou de periféricos se torna ubíquo: as máquinas
forças que acompanha uma situação, um produtivas são os computadores, os
acontecimento, um objeto ou uma celulares, os tablets, os tocadores de
entidade qualquer, e que chama um áudio. Atualmente, com a exponencial
processo de resolução: a atualização.” acessibilidade das impressoras em três
(LÉVY, 1999, p.16) dimensões, isso já não serve apenas
para produtos culturais. Pequenos
A atualização, por sua vez, é objetos digitais já podem ser comprados
necessariamente uma criação, uma pela internet e, devido ao seu caráter
invenção, algo inédito. Se o virtual é a virtual, modificados, personalizados,
pergunta, a atualização é a resposta. A singularizados em uma atualização
resposta não abre espaço para impressa em plástico.
possibilidades, é justamente a
Nisso, Lévy responde à preocupação de
consolidação de qualidades. Como
que os processos virtuais substituam a
explica Negroponte, um fax não torna
mobilidade física: “Provavelmente não,
um texto virtual, enquanto um editor de
pois até agora os dois crescimentos
texto o faz. Isso porque o fax transforma
sempre foram paralelos. As pessoas que
o texto em uma imagem, cujos dados –
mais telefonam são também as que mais
embora possam ser problematizados
encontram outras pessoas em carne e
enquanto imagem – não podem ser
osso.” (LÉVY, 1999, p.23) Negroponte
problematizados enquanto texto.
também afirma que os emails não
reduziram a quantidade de papeis visibilidade entre o consumo e a
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impressos em uma firma, ao contrário, a demanda. Tanto os compradores
incrementaram. Afinal, a digitalidade conhecerão todos os produtos e serviços
torna mais fácil atualizar o virtual. disponíveis, quanto os vendedores serão
capazes de personalizar, ajustar e
A virtualidade, porém, não é
dedicar-se às evoluções e variedades
inteiramente nova. Ao tratar da obra de
dos consumidores. Isso tudo em tempo
arte na era da reprodutibilidade técnica,
real, nível específico e amplitude
Walter Benjamin estava justamente
global. O que se assistirá é a uma
falando da possibilidade de
sinergia entre os polos dessa relação:
virtualização das obras de arte. Embora
a áurea, o prestígio e o valor mercantil Os produtos e serviços mais
de um quadro sejam atualizados por sua valorizados no novo mercado são
existência marcadamente material e interativos, o que significa, em
única, a imagem que está na tela é termos econômicos, que a produção
essencialmente virtual. Seu valor de valor agregado se desloca para o
lado do ‘consumidor’, ou melhor,
simbólico, sua natureza interpretativa e
que convém substituir a noção de
sua importância histórica são consumo pela de coprodução de
desterritorializados, nômades e mercadorias ou de serviços
dispersos. interativos. (LÉVY, 1999, p.63)
Enquanto portador de uma imagem Por isso, tal qual a virtualização do
a interpretar, de uma tradição a texto borra a linha divisória entre
prosseguir ou a contradizer,
escritor e leitor, a virtualização torna os
enquanto acontecimento na história
cultural, um quadro é um objeto produtores e os consumidores mais
virtual do qual o original, as cópias, intrincados, embaralhados e
gravuras, fotos, reproduções, interdependentes.
digitalizações, colocações em rede
Considerações
interativa são outras tantas
atualizações. Cada efeito mental ou Diante das tecnologias digitais, as
cultural produzido por uma dessas compras por necessidade parecem cada
atualizações é, por sua vez, uma vez mais opacas, automáticas e
atualização do quadro. (LÉVY, espremidas no orçamento familiar. Se o
1999, p.60)
consumo após a década de 1970 passa a
Em relação ao mercado no ciberespaço, se fundamentar no atendimento aos
Lévy considera se tratar menos da desejos e emoções, o consumo na vida
emergência de uma nova onda de digital parece se tornar ainda mais
consumo e mais de um novo modelo de irracional, efêmero e impulsivo: basta
relacionamento entre os atores um único clique para que o produto
econômicos. Para ele, os papéis dos virtual mostrado na tela se atualize no
consumidores e produtores serão dia seguinte em sua caixa de correios ou
alterados pela eliminação de em alguns segundos na memória rígida
intermediários, passando a lidar de seu computador.
diretamente um com o outro. Dessa
Segundo a E-bit (INFO, 2013), o e-
forma, o que se espera é uma maior
commerce cresce no Brasil a taxas
transparência e objetividade nas
superiores a 20%, tornando a etapa de
relações de consumo.
distribuição dos produtos ainda mais
A proximidade entre o produtor e o relevante, capilar e personalizada. O
consumidor trará principalmente a transporte acessível incentiva também o
aumento da fragmentação das consumo, uma segunda fuga à
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produções e a eliminação de estagnação econômica, em que se
intermediários, gerando um promove o consumo não pela
aprofundamento da internacionalização necessidade, nem pelo desejo, mas pelo
do comércio. Se o modelo passado foi simples fato de ser uma “oportunidade
marcado pelo deslocamento da mão de imperdível”, um favor irrecusável dos
obra para outros países, agora, a vendedores.
globalização avança para o setor Ainda na instância das vendas, os
terciário, como consultorias e call grandes centros de varejo se
centers. digitalizaram e ganharam ainda mais
Hoje, um internauta brasileiro consegue escala de negócios. Agora não só a
comprar produtos chineses diretamente produção é nacionalizada, mas o
nas lojas de fábrica e receber em casa atendimento também o é. Um mesmo
um produto unitário. Trata-se de um local, um sítio digital, é designado a
modelo de negociação inédito: é ao atender todo o território nacional. Com
mesmo tempo massivo, global e a escala de negócios, se ganha uma
individual. Mas também é verdade que maior cartela de produtos, redução de
faz ressurgir um pouco da lógica do custos, eliminação de intermediários e,
consumo pós-guerra, em que esperar um de forma inédita, a desterritorialização
mês era encarado com normalidade, do centro de compras. Já não é mais
pois o consumidor está satisfeito com a necessário ir à cidade grande ou
oportunidade de comprar diretamente atravessar o bairro para comprar algo
dos produtos a preços irrisórios. específico: basta clicar.
Com esse exemplo, também fica Por sua vez, a lógica do perecível ganha
evidente que os modelos de consumo com a virtualidade uma facilidade de
não são excludentes, mas cumulativos. atualização que encurta ainda mais o
Não são raras as empresas que processo de obsolescência dos produtos.
continuam a oferecer produtos com a É preciso baixar os novos programas,
imagem de robustos, econômicos, comprar assessórios, atualizar o sistema
duráveis, baratos, racionais e básicos. O e, ao fim de um ano, começar tudo
que se conclui é que as lógicas de novamente porque lançaram um novo
consumo anteriores não deixaram de modelo. A moda se intensifica tanto que
existir, apenas deixaram de caracterizar quase desaparece em meio aos
a época. Em geral, não se compra lançamentos constantes e desenfreados.
lâmpadas, sacos para lixo ou papel A flexibilidade e a personalização
sulfite por emoção, divertimento, concedidas aos processos produtivos
distinção social ou reforço de pela microeletrônica atinge outro
identidade. É um consumo meramente patamar na vida digital. Os serviços que
imperativo e indiferente. eram tipicamente artesanais, agora são
Porém, em fenômenos como a compra feitos individualmente por processos
coletiva, o outlet, as companhias low massivos. De casamentos coletivos à
cost, os albergues boutique, observa-se revelação de fotos. Os móveis são
que consumir ainda se parece com um modulares, os eletrônicos programáveis,
jogo, quase um bingo, em que é preciso os carros repletos de opcionais, os
estar atento para aproveitar as programas de TV são pay-per-view e até
“oportunidades”. Isso de alguma o fast-food, comida feita em série por
maneira é um incentivo extra ao essência, pode ser feita “do seu jeito”.
Mais do que isso, a produção é feita e divulgadas pelos próprios
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também em casa, no trabalho, no carro e consumidores.
na rua. Isso porque o virtual não é o
oposto ao real, mas um potencial de
atualização. Os contatos realizados nas Referências
redes sociais demonstram que, sim, BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de
reforçam amizades, potencializam sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO et
encontros e até multiplicam as al. Teoria da Cultura de massa. São Paulo:
Paz e Terra, p. 221-254, 2000.
entrevistas de emprego. O mundo
digital comporta-se como uma matriz, BRUNO, Fernanda. Monitoramento,
classificação e controle nos dispositivos de
seus números são moldes atualizáveis
vigilância digital. Porto Alegre: Revista
em diversas instâncias da vida, não Famecos, nº 36, agosto de 2008.
apenas para os produtos culturais ou
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede.
pequenos objetos de plástico feitos por São Paulo: Paz e Terra, 1999.
impressoras 3D.
__________. A Galáxia da Internet: reflexões
É com essa percepção de que o sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio
consumidor é capaz de materializar seus de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2003.
próprios produtos que aparece, enfim, o LÉVY, Pierre. O que o digital? São Paulo:
rumo que caracteriza o consumo na vida Editora 34, 1999.
contemporânea. O digital e o virtual LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade
possibilitam ao consumidor superar o paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
papel de dominante da relação, pois ele hiperconsumo. São Paulo: Companhia das
acaba por invadir todas as instâncias Letras, 2007.
mercadológicas e se torna financiador, ___________. O império do efêmero: a moda
produtor, distribuidor, avaliador e e seu destino nas sociedades modernas. São
divulgador de produtos de massa. Não Paulo: Companhia das Letras, 2009.
necessariamente tudo ao mesmo tempo, INFO. E-commerce brasileiro deve crescer
mas em instâncias e combinações 24% neste ano, diz e-bit. Disponível em:
http://info.abril.com.br/noticias/mercado/e-
distintas conforme a ocasião.
commerce-brasileiro-deve-crescer-24-neste-ano-
Lembrando que o setor da comunicação diz-e-bit-20032013-35.shl. Acesso em
costuma predizer os rumos de todos os 31.07.2015.
outros bens de consumo, não é de se MONSEN, Joseph; DOWNS, Anthony. Public
espantar que a divisão entre produtores good and private status. Washington DC:
National Affairs, n.23, pp.64-76, 1971
e consumidores esteja tão ameaçada
quanto as fronteiras entre os emissores e NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São
receptores. Os produtos, culturais ou Paulo: Companhia das Letras, 1999.
não, se tornam obras abertas, STREECK, Wolfgang. O cidadão como
financiadas por crowdsourcing, consumidor. Rio de Janeiro: Revista Piauí,
desenhadas/programadas por n.79, pp.60-65, 2013.
colaboração anônima, materializadas
domesticamente, distribuídas por Recebido em 2015-07-31
iniciativas pessoais e, por fim, avaliadas Publicado em 2016-03-13

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