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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO


DO RIO GRANDE DO SUL

JAQUELINE MACHADO PIZUTTI

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PSICANÁLISE

Ijuí (RS)
2012
1

JAQUELINE MACHADO PIZUTTI

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PSICANÁLISE

Monografia apresentada ao curso de Psicologia,


Departamento de Humanidades e Educação (DHE), da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (Unijuí), como requisito parcial para
obtenção do grau de Psicólogo.

Orientadora: Mestre Normandia Cristian Giles Castilho

Ijuí (RS)
2012
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AGRADECIMENTOS

A Deus, em primeiro lugar, por acreditar que tudo acontece muito perfeito.

Aos meus pais, que me possibilitaram ser uma neurótica obsessiva,


podendo assim escrever esta monografia. À minha mãe, que me incentivou
a não desistir nunca.

Ao meu esposo e meus filhos, que foram compreensíveis nos momentos em


que tive de me ausentar deste mundo para poder escrever. Que mesmo sem
entender das teorias, escutavam as minhas leituras e muitas foram as vezes
que disseram: – “Não entendemos nada, mas tá ficando bom”. Em nenhum
momento desacreditaram em mim.

Aos demais familiares que, sentindo minha ausência, compreenderam o


meu propósito.

À minha orientadora, Cristian Giles, que apostou que eu seria capaz de


escrever mesmo sem “a letra e a escrita”.

Aos professores, que somaram para os meus conhecimentos.

À minha querida amiga Gladis, a qual já não está mais entre nós, mas que
antes mesmo de me interessar pela Psicologia, disse que eu seria uma
psicóloga.

À minha amiga Carmen, que muito me ajudou em minhas redações.


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“Está bastante claro que o pai não castra a mãe de uma


coisa que ela não tem. Para que fique postulado que ela não o
tem, é preciso que isso de que se trata já esteja projetado no
plano simbólico como símbolo. Mas há de fato uma privação,
uma vez que toda privação real exige a simbolização. Assim, é,
no plano da privação da mãe que, num dado momento da
evolução do Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de aceitar,
de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de dar valor de
significação a essa privação do qual a mãe revela-se o objeto.
Essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou
recusa. Esse ponto é essencial. Vocês o encontrarão em todas as
encruzilhadas, a cada vez que sua experiência os levar a um
certo ponto que agora tentamos definir como nodal do Édipo.
Vamos chamá-lo ponto nodal, já que isso acaba de me
ocorrer. Não me atenho essencialmente a esse termo, o que
quero dizer é que ele não coincide, logo disso, com o momento
cuja chave buscamos, que é o declínio do Édipo, seu resultado,
seu fruto no sujeito, ou seja, a identificação do filho com o pai.
Mas há o momento anterior, no qual o pai entra em função como
privador da mãe, isso é, perfila-se por trás da relação da mãe
como o objeto do seu desejo, como aquele que castra, coisa que
digo apenas entre aspas, pois o que é castrado, no caso, não é o
sujeito, e sim a mãe.
Esse ponto não é muito novo. A novidade, precisamente,
é apontá-lo, é voltar o olhar de vocês para esse ponto, na medida
em que ele não permite compreender o que vem antes, sobre o
qual já dispomos de alguns esclarecimentos, é o que virá depois.
Não duvidem disso já que é algo que vocês poderão
controlar e confirmar toda vez que tiverem a oportunidade de
vê-lo. A experiência prova que, na medida em que a criança não
ultrapassa esse ponto nodal, isso é, não aceita a privação do fato
efetuada na mãe pelo pai”. (LACAN [1957-1958], 1999, p.
191).
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RESUMO

O presente trabalho monográfico visa a apresentar a constituição do sujeito da Psicanálise,


tendo como referencial teórico os estudos de Freud e Lacan. O trabalho, em um primeiro
momento, trata da estruturação do sujeito a partir de um desejo antecipado dos pais, que
mapeiam o bebê, nomeando o seu corpo e instalando nesse sujeito os significantes, ou seja, o
Outro. Analisa-se, também, o estádio do espelho como constituição do Eu. Num segundo
momento trabalha-se o complexo de Édipo e a castração na trama familiar. A inscrição do
Nome-do-Pai (simbólico) permite a fundação do sujeito, assim como da sua neurose e
perversão, na sua ausência de inscrição se constitui a psicose.

Palavras-chave: Sujeito. Pulsão. Inconsciente. Desejo. Demanda. Castração.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6

1 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DA PSICANÁLISE: SUA ESTRUTURA,


METÁFORA DO ESPELHO, CASTRAÇÃO E A INSCRIÇÃO DO
NOME-DO-PAI ........................................................................................................................ 7

2 O COMPLEXO DE ÉDIPO ............................................................................................... 20

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 26

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 29


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INTRODUÇÃO

A questão “como se constitui o sujeito?” se colocou desde cedo no curso de Psicologia


e orientou a acadêmica a cursar o caminho desta pesquisa. Para responder a tal questão o
presente estudo se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica, organizada em dois capítulos.

O primeiro capítulo trabalha a trajetória pela qual o sujeito passa para se subjetivar.
Inicia com os cuidados que a mãe tem com o filho nos primeiros momentos da vida e as
consequências que podem advir dessa relação narcísica da mãe com a constituição do seu
filho. O sujeito de que trata a Psicanálise é o sujeito da linguagem, sendo que tanto Freud
quanto Lacan fundamentam que o sujeito só pode ser atravessado pela linguagem. Ele é um
ser social que se subjetiva por meio de outro da mesma espécie que lhe transmita
significantes.

A trajetória traçada por Freud e Lacan relaciona-se à subjetivação, demonstrando a


complexa fundação do sujeito, e como isso acontece na castração que antecede o complexo de
Édipo.

O segundo capítulo trabalha o complexo de Édipo e a castração, temas que são


apropriados por Freud e Lacan. Outros autores, como Dör (1990), Jerusalinski (1999) e
Volnovich (1991) também são citados para explicar a constituição do sujeito da Psicanálise,
cujos estudos detêm o seu foco na Psicanálise. Em conjunto procuram explicar a via da
neurose que, segundo Freud, é a via “normal”. Terminamos com um breve resumo das
estruturas organizadas a partir do atravessamento ou não do Édipo, ou seja, da inscrição ou
não do Nome do Pai: neurose, perversão e psicose.

Os objetivos propostos neste trabalho é tentar entender este sujeito que a Psicanálise
nos coloca a defrontar todos os dias no trabalho clínico.
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1 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DA PSICANÁLISE: SUA ESTRUTURA,


METÁFORA DO ESPELHO, CASTRAÇÃO E A INSCRIÇÃO DO NOME-DO-PAI

As questões que norteiam o presente estudo sobre o sujeito da Psicanálise surgiram a


partir da leitura do texto “Acerca da inscrição da estrutura,” de Coriat (1997). A necessidade
de conhecer o processo de constituição do sujeito com o qual os psicólogos e psicanalistas se
deparam por meio da escuta na transferência é o que alimenta esta investigação.

Parte-se da ideia de que o conceito de sujeito e do inconsciente seja a “pedra angular


da Psicanálise”, sem a qual não se pode avançar na compreensão da estrutura do sujeito.
Ressalta-se que sujeito é um conceito criado por Lacan a partir dos pressupostos de Freud, os
quais permanecem como infraestrutura na teoria lacaniana. É importante, então, a partir de
Freud e Lacan, conceber o processo de constituição do sujeito.

Em seus estudos clínicos com as histéricas, Freud constatou que existia uma realidade
muito particular, e que esta realidade se expressava por meio dos sintomas que apareciam no
corpo de suas pacientes. Essa realidade, que ele denominou fantasias, instigou o rumo de suas
investigações. Assim, por meio da “associação livre” da fala das pacientes, foi descobrindo
que as fantasias eram construídas por experiências vividas na infância, e que diziam da
verdade do sujeito. A escuta dessas verdades que as pacientes relatavam sem saber levou
Freud a postular a existência do inconsciente.

Outra tese importante na obra freudiana, precisamente na Interpretação dos Sonhos


(1900) e nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), é a significativa
contribuição para se pensar a constituição do sujeito. Neste momento descortina-se um
conhecimento que até então não tomava a atenção dos adultos – a sexualidade. Ao pensar a
sexualidade e sua importância, Freud concebe que a vida adulta se funde com o que foi vivido
outrora, na primeira infância. A sexualidade, para o autor, liga-se ao infantil, entendido como
o motor de nosso psiquismo.

Freud ([1915] 2006, p. 177-178), ao trabalhar a noção de inconsciente, apresenta


também a noção do aparelho psíquico. Afirma que:

[...] um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais se
interpõe uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é
inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura, não
terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi “reprimido”, devendo
permanecer inconsciente. Se, porém, passar por esse teste, entrará na segunda fase e,
subsequentemente, pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs.
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Assim, o aparelho psíquico em Freud é constituído a partir de sistemas com


características e lógicas diferenciadas, mas ao mesmo tempo articuladas. O inconsciente em
Freud é um sistema com conteúdos recalcados, os quais são recusados pelo pré-consciente-
consciente ao sofrer a ação do recalque. As representações psíquicas não suportadas pelo Ego
(consciente) são recalcadas, passando então ao Id (inconsciente) e pelo crivo do superego
(regulador moral). Para o autor, a personalidade é resultante da dinâmica dessas três instâncias
psíquicas.

Compõem-se, assim, as grandes teses que organizam e constituem o sujeito: a noção


de inconsciente; a sexualidade como organizadora da vida psíquica, ou seja, a constituição de
um corpo pulsional; e uma estrutura de linguagem.

A construção psíquica é um processo pelo qual o bebê humano precisa passar para que
venha a se constituir enquanto sujeito. Freud ([1905], 2006) explica que o infans, ao nascer,
por sua dependência, precisa do outro para lhe dar um lugar de existência e, para isso, é
necessária a linguagem.

A criança nasce como uma espécie de folha em branco, e para que nela se inscreva
algo, é preciso que outro igual, da mesma espécie, o faça por meio de significantes1. Esses
significantes é que marcam o nascente. Ao retirar o seio, a mãe constrói a falta do objeto. O
infans vai assim se subjetivando à medida do que experiencia ao ser atravessado pelos
significantes da mãe. Tendo um corpo biologicamente normal, vai estar propenso à
subjetivação por meio das marcas deixadas pelo “Outro”2. Essa falta inaugura o nascente pela
marca que a mãe imprime em seu corpo.

Para que se estruture um sujeito, a falta é necessária, pois o ato da provocação gera
nesta criança a pulsão como representante do biológico, a qual só pode ser aliviada por meio
do outro (objeto). É esse outro que pela repetição vai inscrever no filho o traço de memória.
Desta forma, a mãe amamenta seu filho aplacando sua fome (mal-estar) e ao retirar o seio
(satisfação) desperta no bebê uma tensão no sentido de desejar que esse outro (mãe) deseje
suprir o que sempre vai faltar. A marca que fica pelo objeto faltante é o que desenha no

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Parte-se do pressuposto de que a vida psíquica de um ser humano é inaugurada por um significante. Este é
fundado pelo mapeamento pulsional, que, ao ser empenhado no corpo do nascente, contorna a falta e faz a
função da apresentação do objeto. A mãe ao manusear, amamentar, suprir as necessidades do infans é que vai
deixar marcas.
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Grande Outro – expressão usada por Lacan para denominar a pessoa que virá a significar manifestações da
criança, inscrevendo no seu corpo marcas que ficam na sua memória.
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inconsciente o objeto do desejo. 3 A pulsão, assim, é a propulsora do desejo. Constitutiva-


mente, o significante causador da falta vai estar sempre num lugar de objeto faltante no
imaginário do bebê, enquanto o real do vazio lhe causa o desejo.

No início existe um Outro, a mãe, e o desejo desta de suprir o bebê das suas
necessidades de sobrevivência. É no suprir que o infans constrói a demanda. A demanda é um
pedido recíproco tanto do filho à mãe quanto da mãe ao filho. A demanda é apresentada assim
como um atrelamento, pois o nascente projeta todos os seus desejos na mãe e pretende que ela
os realize. Para Lacan (1999, p. 96) o desejo é:

[...] uma defasagem essencial em relação a tudo o que é, pura e simplesmente, da


ordem da direção imaginária da necessidade – necessidade que a demanda introduz
numa ordem outra, a ordem simbólica, com tudo o que ela pode introduzir aqui de
perturbações.

Para o autor, a demanda desperta o desejo de que o filho seja aquilo que supõe a mãe
desejar. Nessa unicidade regida pelo desejo ela permite que o filho, em um primeiro
momento, esteja atrelado a ela como um só corpo. Nesse laço libidinal entre mãe e bebê são
inauguradas as zonas erógenas do filho, definidas no manuseio das partes do seu corpo pela
mãe. Por intermédio do toque e da fala que a mãe dirige a esse que chora, respondendo ao
filho, ela supõe saber a razão do seu choro. Possuidora desse saber, a mãe investe no corpo
carne, mapeando uma zona erógena no corpo do filho e o amarrando a significantes. Ou seja,
a mãe, como Outro de linguagem, vai significando um corpo e, ao mesmo tempo, o
nomeando, dando um lugar a este pequeno ser no discurso.

A mãe amamenta o filho, suprindo sua fome e ao mesmo tempo instalando nele o
prazer. Isso significa pôr em movimento seus orifícios pulsionais, ou seja, provocar a
erotização do corpo numa antecipação de que aí se trata de um sujeito. Ela oportuniza ao bebê
o início da constituição psíquica. Essa constituição só é possível quando o infans passa a
investir em outro objeto que não só o seio materno, elegendo uma parte de seu corpo ou

3
“Aqui encontramos uma coisa que se pode chamar de necessidade, mas que desde logo chamo de desejo,
porque não existe estado originário nem estado de necessidade pura. Desde a origem, a necessidade tem sua
motivação no plano do desejo, isso é, de alguma coisa que se destina, no homem, a ter uma certa relação com
o significante. Aí está a travessia pela intenção desejante do que se coloca para o sujeito como a cadeia
significante – quer a cadeia significante já tenha imposto suas exigências na subjetividade dele, quer, bem na
origem, ele só a encontre sob a forma disto: de ela estar desde logo constituída na mãe, de ela lhe impor, na
mãe, sua exigência e sua barreira. [...] depara inicialmente com a cadeia significante sob a forma do Outro, e
ela desemboca nessa barreira sob a forma da mensagem”. (LACAN, [1957-1958], 1999, p. 227).
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qualquer outra coisa que lhe proporcione prazer. Esta fase é denominada por Freud ([1905],
2006), como autoerótica.

No chuchar4 o dedo, o ato de exercer a sucção confirma que aboca foi mapeada pela
mãe como a primeira “zona erógena” (FREUD [1905], 2006, p. 172), a partir da qual passou a
alimentar o filho e por meio da qual a criança desencadeia o processo da sexualidade. O
chupar não só sacia sua fome, mas também lhe proporciona prazer. Ao sugar o seio ou
qualquer outro objeto que o nascente elege como fonte de satisfação, o ato vai lhe provocar o
desejo de repetição. Essa fase, que também se denomina “canibalesca”, é a primeira na
organização sexual infantil, e consiste em renunciar o “objeto alheio em troca de um objeto
situado no próprio corpo” (FREUD [1905], 2006, p. 187). Esse ato provoca o prazer pela
repetição, esvaziando a pulsão, e ao mesmo tempo oportuniza ao bebê o início da constituição
psíquica.

A pulsão é sempre relacional porque a excitação corporal, que provoca mal-estar, só


pode ser aliviada através do “outro”, que é capaz de nomear a fonte, direcionar a força
pulsional em direção ao objeto. Neste sentido, a estruturação psíquica de um bebê só se dá a
partir de um determinado momento, ao ser inscrito pelo desejo da mãe, pela linguagem.
Assim a mãe oferece a essa criança a oportunidade de existir, ou seja, de ser sujeito.

Neste sentido, a sexualidade infantil pode explicar a origem de certos fenômenos


importantes que dependem da vida sexual. Freud ([1905], 2006) considera a infância de cada
um como uma espécie de época pré-histórica que, no entanto, não constitui um período
estanque, pois está propenso a ter vazamentos como ocorre com a pulsão. Pode-se entender
que esse vazamento, de certa forma, faz parte do processo da constituição do sujeito.

Jerusalinsky (2009, p. 9) refere que:

A constituição do sujeito exige a inscrição de diferentes momentos lógicos que não


estão garantidos pela passagem do tempo, por uma simples cronologia. No entanto,
continua sendo necessária uma diacronia para que se precipitem os efeitos de
inscrição que constituirão o sujeito psíquico. É preciso o transcurso de um tempo
para que as inscrições que nele se precipitaram possam ser por ele postas à prova por
meio de uma experiência que o implique subjetivamente.

4
Chuchar: “(sugar com deleite), ao qual o pediatra húngaro Lindner (1879) dedicou um excelente estudo”;
expressão usada por Freud ([1901-1905], 2006, p. 169) para explicar o chupar que a criança exerce na mais
tenra idade.
11

Segundo a autora, existe um tempo para que o infans possa construir-se por meio do
outro e assim vir a fazer parte da história familiar. Esse tempo, tanto para a mãe quanto para o
bebê, é contínuo e circundante, e antecedido pelo tempo do desejo. A mãe nomeia o filho,
antes mesmo de este nascer, a partir de seu desejo. Esse desejo que a move é quase mágico. A
mãe, ao mesmo tempo em que se apresenta ao bebê como o objeto de seu desejo, vai
investindo e estruturando-o através de seus cuidados, permitindo-lhe bem-estar e
sobrevivência. Para a dimensão psíquica ser constituída, é necessário, portanto, que na relação
mãe e filho se inscreva algo como falta. Entre a presença e a ausência a mãe abrirá um
intervalo no qual a falta se coloca, tanto do lado da criança quanto da mãe.

É, então, pela demanda de amor, ou seja, pela falta, que a mãe, aplacando o mal-estar
sentido pelo nascente pela fome, registra neste uma marca. A partir dessa ocorre o registro de
imagens mnêmicas, associadas umas às outras, que vão formar os traços mnêmicos, os traços
de memória (Erinnerzeichen).

Percebe-se que o ser humano precisa do Outro para se constituir como sujeito:

Diante dos estímulos endógenos do bebê é preciso um Outro encarnado que atribua
intenção de comunicação ao seu grito e, por meio de uma interpretação, produza
uma ação específica capaz de satisfazê-lo. Se há interpretação é porque já há
linguagem ali. Mas é evidente que a linguagem não se inscreve por si. Não basta
colocar um bebê na frente do rádio ou da televisão. Para que o gozo do bebê se
atrele ao Outro, como instância da linguagem, é preciso um endereçamento, é
preciso um Outro que, ao tomar o bebê desde um desejo não anônimo e a partir do
saber simbólico que a linguagem lhe permitiu constituir, opere corte e costura do
funcionamento corporal do bebê, levando em conta o que o afeta e fazendo borda a
seu gozo. Se isto atrela o bebê ao campo do Outro, para que ele possa chegar a
situar-se na condição de falante, e não como um mero repetidor ecolálico do que lhe
é dito, será preciso que esse desejo não anônimo opere no laço mãe-bebê enquanto
um enigma diante do qual, para a mãe, o bebê se situa como sujeito que
supostamente deteria um saber. (JERUSALINSKY, 2009, p. 68).

Para a autora, por meio da fala a mãe vai marcar o corpo do nascente, e essas marcas
deixadas pelo outro vão imprimir os significantes, unindo linguagem e corpo. Como
consequência, despertará o desejo no nascente. É o desejo que o outro demanda ao bebê que
permite a este passar de carne e osso a um sujeito.

Elia (2004, p. 39) explica que:

[...] o sujeito só pode se constituir em um ser que, pertencente à espécie humana,


tem a vicissitude obrigatória e não eventual de entrar em uma ordem social a partir
da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos [...]. Sem isso ele não só não se
tornará humano [...] como tampouco se manterá vivo: sem a ordem familiar e social,
o ser da espécie humana morrerá.
12

Esse sujeito de que trata a Psicanálise só pode ser pertencente à espécie humana. Não
basta, no entanto, ter um corpo carne para ser sujeito; é preciso que esteja aos cuidados de
outro da mesma espécie e inserido em uma organização familiar e social. Depende,
necessariamente, da significação do Outro, e é esse outro que apresenta o mundo ao nascente.
“A essa condição Freud deu o nome de desamparo fundamental (Hilflosigkeit) do ser humano
[...]” (ELIA, 2004, p. 39). O bebê humano nasce carente de todos os cuidados, e para que
venha a se subjetivar, precisa de alguém que o suporte tanto física quanto psiquicamente,
através de inscrições de certas operações.

As operações psíquicas são consideradas mecanismo pelo qual a pulsão determina


descarga da excitação. Jerusalinsky (2009, p. 57) refere que:

Trata-se de um aparelho psíquico guiado pelo princípio de inércia, ou homeostase,


no qual o objetivo é manter-se livre de estímulos, por meio de uma fuga ou, quando
estes são inevitáveis, tal como ocorre com os estímulos endógenos, por meio da
descarga da energia que eles acarretam. Uma das principais características desse
aparelho é a memória, ou seja, a capacidade de ser permanentemente modificado
por ocorrências únicas e, ao mesmo tempo, manter a receptividade a novas
percepções. Para dar conta dessa questão Freud concebe, nesse aparelho, neurônios
diferenciados: os Fi como permanentemente permeáveis à excitação que a percepção
produz no aparelho, mas incapazes de reter o registro da memória; e os Psique
fazem oposição ou barreiras de contato à excitação e que ficam permanentemente
alterados após sua passagem, permitindo assim uma possibilidade de representar a
memória.

O sistema psíquico grava como significantes certas experiências vividas, num


processo de formação da memória. Como explica Jerusalinsky (2009, p. 57):

Nesse aparelho psíquico alguns estímulos são passíveis de se tornarem inscrições de


memória que se alinhavam umas às outras, formando vias de facilitação – que
correspondem ao percurso percorrido, ao rastro deixado pela passagem da energia
psíquica produzida nesse aparelho a partir de uma experiência anterior, levando a
facilitar a circulação da energia nesse aparelho por uma determinada via já traçada.
A memória liga-se, desse modo, à tendência, à repetição, levando a percorrer um
caminho psíquico já sulcado. Tem-se, assim, um aparelho psíquico que, por um lado
permanece aberto a novas inscrições e, por outro, funciona por uma tendência à
repetição.

Assim, o que é vivido pela mãe e pelo filho opera registros simbólicos, marcas
deixadas pelo significante no corpo do filho, as quais:

[...] no sistema de signos de percepção vai ficando inscrito somente o que chegou a
ser diferenciado em função do valor que adquire para o organismo. As marcas se
estabelecem uma a uma, segundo o aparelho perceptivo que as registre. (CORIAT,
1997, p. 282).
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Coriat (1997, p. 281), que trabalha também a questão da estruturação da criança, faz
uma leitura que concorda com Jerusalinsky (2009). Para a autora, o que o bebê recebe pela
percepção é o que vai marcá-lo, pois esse é “carente de todo o traço”.

[...] o outro que se encarrega do infans é decisivo no que ficará marcado, já que dele
depende a apresentação do objeto [...] a libidinação do objeto começa do lado do
adulto, na própria escolha dos objetos a oferecer desde os significantes inconscientes
daquele que estiver exercendo, o que Winnicott chama função materna. (CORIAT,
1997, p. 283).

É a partir da linguagem, da forma como a mãe fala, que o nascente põe em cena não a
palavra em si, mas o significado que ele dá a esta ao vivenciar prazer ou desprazer. A mãe
marca o filho simbolicamente pelo tom da sua voz ao perguntar e responder, ao supor a
necessidade do filho. Assim como na valsa um primeiro passo dá o ritmo da dança ao
bailarino, a mãe ao doar seu peito ao nascente que chora ensaia o desejo de suprir a falta do
filho. No vai e vem da falta e da satisfação, a repetição marca os buracos que a mãe inaugura
no corpo da criança. Esta, por sua vez, convoca a mãe a preenchê-los. Esses buracos são as
portas que vão marcar o simbólico, e que permitem ao ser “bruto” demarcar as bordas do
objeto de gozo5.

A criança goza da posição em que a mãe a coloca e passa a demandar. A demanda do


nascente é por atenção e por cuidados, supondo a satisfação e o bem-estar: esta trajetória pela
qual passa a criança é uma problemática necessária, pois é constituinte. Uma vez
internalizada, vai marcar toda a vida no desejo e na busca de um objeto que vai tampar o
buraco da angústia que a mãe, pela falta, desenhou. A criança, para se dar como completa, vai
buscar novo objeto para substituir aquele primeiro.

Com seu saber, a mãe investe e inscreve no corpo carne deste ser bruto, fazendo
mapeamento por meio de seus significantes. O significante descortina ao infans a satisfação
de poder gozar. A estruturação psíquica de um bebê só se dá a partir do momento em que é
inscrito pelo desejo da mãe na linguagem. A mãe oferece a essa criança a oportunidade de
existir, possibilitando-lhe ser sujeito.

Este outro (mãe), pelos seus cuidados e providências, vai permitir ao filho metaforizar
sua realidade, fundando pelo seu discurso, o “Outro” simbólico no nascente. Este é
emergencial no que tange à realidade psíquica no processo constitutivo, processo que só se
configura a partir da libidinação por parte do adulto, que costura a borda do objeto.
5
Gozo é uma possibilidade de satisfação.
14

Essa borda, marcada pela mãe ou por quem faça a sua função, é que constrói o sujeito
em suas representações, do que é vivido por ele na relação com a mãe e com o meio. Na
Interpretação dos Sonhos Freud ([1900], 2006) elucida a existência de algo que é vivido e
recalcado, e que se pode compreender a partir desse processo do inconsciente, de que as
formações desse é que eram responsáveis nas significações do sujeito em constituição.

Lacan (1999, p. 195) afirma que “[...] não há sujeito se não houver um significante que
o funde”. É pela via da simbolização que ele explica a subjetivação do sujeito. O autor,
tomando o exemplo de Freud sobre o jogo da criança do carretel, afirma: “É na medida em
que existem as primeiras simbolizações, constituídas pelo par significante do Fort-Da, que o
primeiro sujeito é a mãe”. Nesse sentido, é o que a princípio acomete a criança na sua
realidade, mas isso não significa que ela não possa transformar e no poder brincar ao atirar o
carretel possa significar a falta. Esse momento de assujeitamento em que ainda está na
dependência da mãe se transforma. Ao se dar conta de que onde reinava o prazer agora se
encontra a falta, é por essa articulação movida pelo desejo do Outro que vai buscar algo para
voltar a sentir prazer. O ato de puxar o carretel pode ser ativo e, com essa intenção (demanda),
ao ser atravessada por significantes, vai poder se deslocar do objeto materno.

Para Coriat (1997), é nessa experiência que o infans vai construir as diferenças entre o
“eu” e o “outro” a partir dos significantes já marcados em seu corpo. O infans encontra outra
forma de sentir prazer, é o momento em que a criança pode ressignificar, trocar o objeto e,
finalmente, “para se constituir no ato da palavra, são necessários pelo menos dois
significantes para poder combiná-los, deslizar, e remetê-lo um ao outro (função metonímica)”
(VOLNOVICH, 1991, p. 28).

De tal modo, “sem dúvida alguma, o jogo do fort-da, descrito por Freud, dá a
ilustração mais explícita da realização da metáfora do Nome-do-Pai6 no processo de acesso ao
simbólico na criança, ou seja, o controle simbólico do objeto perdido” (DÖR, 1990, p. 89).

Quando a criança tem o objeto representado pela linguagem, ela pode substituir o
objeto. E neste vai e vem do “Fort-Da (Do, Aa) o brincar da criança com o carretel”, segundo
Freud ([1920], 2006), em Mais Além do Princípio do Prazer, ela passa a trabalhar essa
estrutura em uma busca que lhe permite sair da passividade, reconhecer a ausência ao
distanciar-se do objeto e elaborar a falta pela significação internalizada imaginariamente do
real.

6
Termo usado por Lacan para designar o terceiro.
15

O movimento de lançar o objeto e o trazer para perto de si vai marcar a criança fora do
corpo da mãe, por isso:

O importante não é que a criança diga as palavras FortIDa, o que, na sua língua
materna, é LongeIAqui – ela as pronuncia aliás de maneira aproximativa. É que há
aí, desde a origem, uma primeira manifestação da linguagem. Nessa oposição
fonemática, a criança transcende, introduz num plano simbólico o fenômeno da
presença e da ausência. Torna-se mestre da coisa, na medida em que, justamente,
destrói. (LACAN, 1994, p. 200).

Neste sentido, para Lacan, não é a palavra que a criança balbucia que importa e sim o
que simboliza o espaço da falta. Um sentimento outrora desprazeroso pode ser transformado
em algo prazeroso no sentir da criança.

De fato, a criança transformou a situação, posto que de agora em diante é ela que
abandona sua mãe simbolicamente. A inversão simbólica operada é a justificativa
mais evidente da atualização de um processo de controle: a criança fez-se mestre da
ausência graças a uma identificação. Era a mãe que a repelia ausentar-se; agora é ela
que repele a mãe ao arremessar o carretel. Daí a jubilação intensa da criança ao
descobrir seu controle da ausência do objeto perdido(a mãe). (DÖR, 1990, p. 89).

Dör (1990) reconhece que a criança elabora a falta com o brincar do vai e vem, do
estar e não estar, mas pode retornar, passando a ativo desejante. Já reconhece que a mãe é o
outro que não ele. “Ocorre que nesta criança o Outro operou uma separação que o distanciou
de seu corpo real [...]. Neste corte, seu corpo passou a residir como imagem
(JERUSALINSKY, 1999, p. 27). Assim, as marcas que este ser total, a “mãe”, imprime no
filho cedem lugar a outro na relação. Esse outro “é quem assegura na criança a função
simbólica da palavra. Sem substituição do desejo da mãe pela palavra do pai (metáfora
paterna)” (VOLNOVICH, 1991, p. 35), a criança não entra no simbólico nem na cultura. O
que lhe possibilita entrar é a castração. A marca que permite ao filho sair de uma posição
narcísica e se reconhecer como ser faltante.

Retornando ao sujeito e ao Outro, estes termos não pertencem a Freud, eles expressam
concepções de Lacan. São as teorias de Lacan que explicam a constituição do sujeito da
Psicanálise, o qual é atravessado por um significante no campo da linguagem.

Ao analisar as concepções lacanianas, Elia (2004, p. 36) refere que,

Para a Psicanálise, sobretudo a partir da reelaboração que Lacan empreendeu dos


textos freudianos, o sujeito só pode ser concebido a partir do campo da linguagem.
Embora Freud não se refira explicitamente a isso, todas as suas elaborações teóricas
16

sobre o inconsciente, nome que delimita o campo primordial da experiência


psicanalítica do sujeito, o estruturam como sistema quer de representações
(Vorstellungen), de traços de memória (Erinnerzeichen), de signos de percepção
(Wahrnehmungszeichen), que se organizam em condensação e deslocamento. Ora,
uma teoria como essa exige, metodologicamente, a referência a uma ordem
simbólica, a um sistema de articulação de elementos materiais simbólicos, ou seja, à
linguagem.

Para Elia (2004), Lacan reelabora a questão da constituição do Eu (inconsciente) em


Freud e enfatiza que o eu é o sujeito da linguagem. E é por esta linguagem que pode ser
representado mediante as representações nos traços de memória, de signos de percepção.
Estes se organizam não na linguagem como função e sim como estrutura. Segundo Dör (1989,
p. 35), “a metáfora e a metonímia nos conduzem, igualmente, à ideia fundamental de Lacan
da supremacia do significante e a suas consequências com relação às formações do
inconsciente”. É nesse sentido que a linguagem adentra no corpo para significar algo no
inconsciente ao ponto de supor ao recém-nascido entrar na metáfora e, a partir disso,
simbolizar. Assim, a fala da mãe, cuja marca é deixada por ela, é primordial na vida psíquica
do sujeito, uma vez que constrói o desejo por meio da linguagem.

Lacan (1994, p. 89) explica que sem o “imaginário, o simbólico e o real” não é
possível compreender a teoria freudiana. Na sua concepção, o simbólico é linguagem.

Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal


como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito
[...] é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em
outros termos, no mundo da palavra. (LACAN, 1994, p. 97).

Segundo o autor, é a relação do sujeito com o mundo da linguagem que permite a este
entrar no simbólico. O nascimento do sujeito é a mais pura relação do nada. Dito de outro
modo, nada está ali a não ser um amontoado de células em um pedaço de carne. A palavra e o
desejo mediados pelo outro é que fundam o sujeito. O suposto sujeito para Lacan é aquele que
ainda não foi marcado pelos significantes e que, ao ser tocado pelo discurso do outro, desperta
a pulsão. Ao libidinar o corpo, a mãe permite ao recém-nascido se colocar numa posição
objetal. A mãe e o bebê entram numa relação narcísica em que um está para o outro no desejo
de completude, cujo desejo move o filho às primeiras operações ou sistemas psíquicos.

O desejo é, no sujeito humano, realizado no outro, pelo outro – no outro, como


vocês dizem. Está aí o segundo tempo, o tempo especular, o momento em que o
sujeito integrou a forma do eu. Mas só pôde integrá-la após um primeiro jogo de
báscula em que trocou justamente o seu eu por esse desejo que vê no outro. Desde
então, o desejo do outro, que é o desejo do homem, entra na mediatização da
17

linguagem. É no outro, pelo outro, que o desejo é nomeado. Entra na relação


simbólica do eu e do tu, numa relação de reconhecimento recíproco e de
transcendência, na ordem de uma lei já inteiramente pronta para incluir a história de
cada indivíduo. (LACAN, 1994, p. 206).

No entendimento do autor, na dialética do corpo ao ser atravessado pela linguagem,


funda-se o sujeito no desejo. Assim, a trama constitui-se numa relação especular, e essa
relação é constitutiva na formação do inconsciente, a “metáfora do espelho”. É a partir da
problemática do real, do simbólico e do imaginário que se vai esclarecer como a teoria do
estádio do espelho subjetiva. O “processo da sua maturação fisiológica permite ao sujeito,
num dado momento da sua história, integrar efetivamente suas funções motoras, e aceder a
um domínio real do seu corpo” (LACAN [1949], 1998, p. 96). Para o autor, é necessário que a
palavra, a linguagem, ultrapasse o campo do real e inscreva no corpo carne desse suposto
sujeito os significantes que venham nomeá-lo como sujeito, por meio do que ele vive e
internaliza como um traço na memória. E é pelo sulco, fenda ou rastro de memória que, pela
repetição, vai se significando o sujeito.

Para Lacan ([1949], 1998) existem dois momentos na constituição do sujeito no


estádio do espelho. O primeiro momento é o de alienação recíproca quando o bebê é uno com
a mãe. O segundo momento é o de separação, quando é necessário que o mesmo bebê se veja
separado do corpo da mãe e se movimente para outra coisa, elegendo outro objeto de
satisfação. Nesse processo é necessário que o filho se desloque do corpo da mãe e passe a se
reconhecer a partir do espelho, “imagem especular”. Essa passagem é precedida de uma fase
pré-especular em que a mãe empresta ao filho a sua imagem que aparece refletida no espelho.

O estádio do espelho é o encontro do sujeito com aquilo que é propriamente uma


realidade e, ao mesmo tempo, não o é, ou seja, com uma imagem virtual, que
desempenha um papel decisivo numa certa cristalização do sujeito à qual dou o
nome de sua Urbild. Coloco isso em paralelo com a relação que se produz entre a
criança e a mãe [...]. A criança conquista aí o ponto de apoio dessa coisa no limite da
realidade, que se apresenta para ela de maneira perceptiva, mas que, por outro lado,
podemos chamar de uma imagem, no sentido de que a imagem tem a propriedade de
ser um sinal cativante que se isola na realidade, que atrai e captura uma certa libido
do sujeito, um certo instinto graças ao qual, com efeito, um certo número de
diferenças, de pontos psicanalíticos no mundo, permite ao ser vivo ir organizando
mais ou menos suas condutas. (LACAN [1949], 1998, p. 233).

Lacan situa um tempo para que a criança reconheça sua própria imagem. Isso é
possível mediante o olhar que o outro devolve ao bebê, na relação simbiótica do desejo fálico.
Ao investir neste desejo de que ele esteja ali refletido como outro – “metáfora do espelho” é
18

que a mãe vai permitir ao filho se reconhecer como um sujeito outro que não ela. Esse
reconhecimento só será possível se:

A operação de reconhecimento que suporta (sustenta) a identificação resulta possível


porque o adulto que a executa constitui-se, por sua vez, em relação a um terceiro que
o assujeitou às estruturas de uma língua partícula (e às de uma formação histórico-
social particular). O adulto só mediatiza o reconhecimento que, em última instância,
emana de uma rede de relações simbólicas que atribui tanto os lugares do
“reconhecimento” quanto o daquele que veicula a operação. Essa rede [...] chama-se
Outro. O reconhecimento sempre emana do Outro, o outro apenas suporta uma
função – a função do espelho. O Outro é quem detém “eficácia simbólica”; ele, de
certa forma, adjudica ao outro, seu representante, o poder necessário para efetuar o
reconhecimento. (LACAN [1949], 1998, p. 88).

Esse Outro que remete a significantes é decisivo pelas marcas que deixa no corpo do
infans. E são as significações que este dá a essas marcas que possibilitarão o processo de
constituição do sujeito psíquico. Ao se sentir como “Eu” no espelho percebe-se como um
outro diferente da mãe, embora ainda dependa da sustentação desta mãe, que o suporta no
corpo, nas palavras e nos gestos.

Ao explicar o estádio do espelho, Lacan (apud DÖR, 1990, p. 78) situa

o prenúncio do complexo de Édipo ao nível de um limiar específico do processo de


maturação da criança, testemunha de um momento particular de sua vida psíquica.
Este momento é contemporâneo ao estádio do espelho, onde se esboça para a
criança um certo tipo de especificação tendo por pano de fundo uma relação de
alienação específica com a mãe.

Dör (1990, p. 122) utiliza o termo fases para explicar o Estádio do Espelho:

O estádio do espelho constitui esta fase inaugural da evolução psíquica na qual a


criança subtrai-se ao registro capturante da relação dual com a mãe. O esboço da
subjetividade, que se dá através da conquista da identidade originária permite à
criança dar início à sua promoção subjetiva, rumo ao acesso ao simbólico pelo qual
colocará um fim à relação especular com a mãe. Ora, é precisamente por este acesso
ao simbólico que se organiza uma recaída do sujeito no imaginário, culminando no
advento do Eu (Moi).

Segundo o entendimento de Dör (1990), o estádio do espelho se dá quando a criança


sai da relação dual com a mãe e inicia a captação da sua imagem, embora ainda sustentada
pelo Outro do espelho. O reconhecimento desse Outro (a mãe) é que permite ao sujeito existir.

Nas palavras de Lacan ([1949] 1998, p. 100),


19

[...] o estádio do espelho é um drama cujo alcance interno se precipita da


insuficiência para a antecipação, e que para o sujeito preso na ilusão da identificação
espacial, urde os fantasmas que se sucedem desde uma imagem esfacelada do corpo
que chamaremos de ortopédica de sua totalidade [...].

Esse processo ortopédico pode ser entendido como a costura que a mãe faz das partes
do corpo do filho para dar-lhe o sentido de totalidade. E “a marca põe em ato a inscrição do
traço unário” (COSTA, 2003, p. 54). Este traço, num primeiro tempo da experiência “[...]
testemunha em favor de uma confusão primeira entre si e o outro, confusão amplamente
confirmada pela relação estereotipada que a criança tem com seus semelhantes [...]” (DÖR,
1990, p. 79).

A captação da imagem em forma humana domina, segundo Lacan (1948),

[...] a captação pela imago da forma humana [...] que, entre seis meses e dois anos
meio, domina toda a dialética do comportamento da criança em presença de um
semelhante. Durante todo esse período, registraremos as reações emocionais e os
testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz ter sido
batida, a que vê a outra cair, chora. (apud DÖR, 1990, p.79).

Assim, Lacan (1948) explica que o Estádio do Espelho

[...] ordena-se essencialmente a partir de uma experiência de identificação


fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem de seu próprio
corpo. A identificação primordial da criança com esta imagem irá promover a
estruturação do “Eu”, terminando com essa vivência psíquica singular que Lacan
designa como fantasma do corpo esfacelado. (apud DÖR,1990, p.79).

O primeiro momento da fase do espelho evidencia o assujeitamento da criança ao


registro do imaginário. O segundo momento constitui uma etapa decisiva no processo
identificatório. Neste, a criança é levada a descobrir que o outro do espelho não é um outro
real, mas uma imagem e não mais procura apoderar-se dela. Assim, “no geral, seu
comportamento indica que ela sabe, de agora em diante, distinguir a imagem do outro da
realidade do outro” (DÖR, 1990, p. 80). O terceiro momento dialetiza os dois anteriores. A
criança já está segura de que o reflexo do espelho é uma imagem, e que é dela. “A imagem do
corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito, que através dela realiza assim sua
identificação primordial” (DÖR, 1990, p. 80).

O Estádio do Espelho é, portanto, o processo de subjetivação do sujeito. Ou seja, a


conquista da sua identidade e prelúdio do complexo de Édipo.
20

2 O COMPLEXO DE ÉDIPO

— que tu tens os olhos abertos à luz, mas não enxergas


teus males, e quem és, o lugar onde estás, e quem é
aquela com quem vives. Sabes tu, por acaso, de quem és
filho? Sabes que és o maior inimigo dos teus, não só dos
que já se encontram no Hades, como dos que ainda
vivem na terra? Um dia virá, em que serás expulso desta
cidade pelas maldições maternas e paternas. Vês agora
tudo claramente; mas em breve cairá sobre ti a noite
eterna. (SÓFOCLES, 496-406 aC).

Freud se utiliza do mito grego para trabalhar os conceitos do complexo de Édipo e a


castração. A tragédia que envolve filho, mãe, pai está escrita por Sófocles (496-406 a.C.),
dramaturgo grego que se utilizado mito para provocar uma reflexão sobre a culpa, a qual ao
ser impressa no ser humano instala o cumprimento das normas e leis.

O mito narra que o filho (Édipo) mata seu pai (Laio) e toma a mãe (Jocasta) como
esposa. Ao descobrir que esta é sua mãe, ele fura os olhos como uma punição pela culpa. A
mãe, ao descobrir a verdade, se suicida. Mesmo ao desposar a mãe sem saber, ele se culpa e
vai ao isolamento. Assim, na teoria de Freud, a problemática edipiana está escrita como um
destino.

Freud vale-se deste mito para explicar como a lei do incesto se instala e que é
necessária a constituição psíquica. O complexo de Édipo é um dos pilares da Psicanálise, do
qual nenhuma criança escapa ao se constituir como sujeito. O Édipo é a explicação que Freud
usa para elucidar a sexualidade e para explicar como se funda o sujeito.

Para Freud, a ideia central do Édipo é o sentimento de ambivalência, amor e ódio, que
permeia a relação mãe, filho, pai. Esta relação edipiana expressa a ameaça da castração e a
problemática fálica. O complexo de Édipo nada mais é do que a referência à ameaça de
castração, que desorganiza a relação entre mãe e filho de poder gozar de um prazer único e
completo. Esta relação é de desejo incestuoso pela mãe. Em contrapartida, há a rivalidade
com o pai, pois este é quem barra o desejo, que é constitutivo e determinante para a vida
psíquica “normal”.

O primeiro momento do Édipo se dá com a saída do estádio do espelho, que é uma


fase identificatória em que a criança já é um suposto sujeito, mas que:
21

nem por isso deixa de estar numa relação de indistinção quase fusional com a mãe.
Esta relação fusional é suscitada pela posição particular que a criança mantém junto
a mãe, buscando identificar-se com o que supõe ser o objeto de seu desejo. Esta
identificação, pela qual o desejo da criança se faz desejo do desejo da mãe, é
amplamente facilitada, e até induzida pela relação de imediação da criança com a
mãe, a começar pelos primeiros cuidados e a satisfação das necessidades. Em outras
palavras, a proximidade dessas trocas coloca a criança em situação de se fazer objeto
do que é suposto faltar à mãe. Este objeto suscetível de preencher a falta do outro é,
exatamente, o falo. A criança depara-se, assim, com a problemática fálica em sua
relação com a mãe, ao querer constituir-se ela mesma como falo materno. (DÖR,
1990, p. 81).

Para o autor, o primeiro momento é aquele em que a relação entre mãe e filho se
encontra numa indistinção quase fusional. O filho está no lugar de falo materno, o objeto que
permite à mãe ser possuidora do falo. É necessário ao filho se colocar nesse lugar de ser o
objeto faltante da mãe. Assim “o desejo da criança permanece radicalmente assujeitado ao
desejo da mãe” (DÖR, 1990, p. 81). Ela está para o bebê no lugar de onipotência, agora é
completa.

O pai aparece neste momento da relação, de “forma velada”. Ele está ali, presente, mas
é como se não estivesse para a criança, ele só existe pelo discurso da mãe, quando a mãe fala
ao filho que existe um outro, assim o pai se torna simbólico, “lei do símbolo” (LACAN, 1999,
p. 200), mesmo quando não está, ele existe.Não é o pai real que se inscreve como Nome-do-
Pai, e sim a função que este exerce no imaginário do filho. “O pai acha-se numa posição
metafórica, na medida e unicamente na medida em que a mãe faz dele aquele que sanciona,
por sua presença, a existência como tal do lugar da lei” (LACAN, 1999, p. 202).

O que garante ao pai simbólico aparecer é a problemática fálica na qual o bebê se


questiona quanto ao falo. Essa situação lhe tira a certeza de ser a única coisa que a mãe
deseja. Isso só é possível pela “identificação com o objeto fálico que alude à mediação da
castração, convoca-a melhor ainda no terreno de uma oscilação dialética entre ser ou não ser o
falo” (DÖR, 1990, p. 81). É dessa forma que se dá o primeiro momento do complexo de
Édipo. Já o segundo momento do Édipo acontece pela privação:

A mediação paterna irá desempenhar um papel preponderante na configuração da


relação mãe-criança-falo, intervindo sob a forma de privação: [...] Aliás, a intrusão
da presença paterna é vivida pela criança sob a forma de identificação e de
estruturação [...]. Dito de outra forma, a intrusão paterna na relação mãe-criança-falo
se manifesta em registros aparentemente distintos: a interdição, a frustração e a
privação. A coisa complica-se ainda mais quando se revela que a ação conjugada do
pai, simultaneamente interditor, frustrador, privador, tende a catalisar sua função
fundamental de pai castrador. (DÖR,1990, p. 82-83).
22

Nesse segundo tempo do Édipo entra na relação mãe-filho um terceiro que enlaça a lei
da interdição – o pai. Assim, o filho internaliza essa lei e a toma como privadora da mãe, já
não podendo mais satisfazer-se pela via do seu corpo. A criança, então, entra na ordem
simbólica do “Nome-do-Pai”. Com esse deslocamento, que se dá a partir da castração, a mãe
transfere seu olhar do filho para o pai e convoca esse filho a imaginar que o falo da mãe passa
a ser o pai. Esse castrador, que interdita o filho e o priva do prazer, é o pai imaginário. Com
isso, “o sujeito posicionou-se de certa maneira, num momento de sua infância, quanto ao
papel desempenhado pelo pai no fato de a mãe não ter o falo” (LACAN, 1999, p. 191). Ao
castrar a mãe e privá-la da criança pela interdição do incesto, instaura a lei, e o pai se afirma
como privador do desejo da mãe e do filho. Nesse momento, a criança passa ao

terceiro momento, que é exatamente o tempo de “declínio do complexo de Édipo”,


põe termo à rivalidade fálica em torno da mãe, na qual a criança instalou-se e
instalou também, imaginariamente, o pai. A partir do momento em que o pai é
investido do atributo fálico, é preciso, como esclarece Lacan, “que ele dê provas
disso”, pois “é na medida em que intervém, no terceiro tempo, como aquele que tem
o falo, e não aquele que o é, que pode se produzir algo que reinstaura a instância do
falo como objeto desejado pela mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai
pode privá-la. (DÖR, 1990, p. 88).

Para o autor, no terceiro tempo do Édipo, o pai pode dar à mãe o que ela deseja, ele é
potente, possuidor do falo. Já não importa para a criança ser o falo, mas sim ter o falo ou não
tê-lo, o que passa a ser simbólico, pois já circula na cadeia significante como objeto fálico.
Assim se dá a identificação, que é a estruturação do “ideal do eu”, marcando a saída do
complexo de Édipo. E isso só acontece pelo “valor estruturante desta simbolização” (DÖR,
1990, p. 88) que a criança dá na determinação do lugar ao objeto do desejo da mãe.

A simbolização é estruturante tanto para a menina quanto para o menino, pois em um


primeiro momento ambos têm um mesmo objeto de amor – a mãe. “O menino, que renuncia
a ser o falo materno, engaja-se na dialética do ter, identificando-se com o pai que
supostamente tem o falo” (DÖR, 1990, p. 88). O complexo de Édipo na menina se dá à
medida que ela se vê diferente do menino e considera-se castrada. Esta etapa se desenvolve
bem mais simples na menina porque esta não precisa fazer a identificação nem ser titulada
como viril. Ela encontra, assim, uma identificação possível na mãe, pois como ela, a mãe é
castrada, e reconhece que não tem o falo, mas sabe onde buscá-lo, vai à direção de quem o
tem (o pai) (DÖR, 1990, p. 88).
23

A identificação que pode ser feita com a instância paterna realiza-se aqui, portanto,
nesses três tempos.
Em primeiro lugar, a instância paterna se introduz de uma forma velada, ou que
ainda não apetece. Isso não impede que o pai exista na realidade mundana, ou seja,
no mundo, em virtude de nesse reinar a lei do símbolo. Por causa disso, a questão do
falo já está colocada em algum lugar da mãe, onde a criança tem de situá-la.
Em segundo lugar, o pai se afirma em sua presença privadora, como aquele que é o
suporte da lei, e isso já não é feito de maneira velada, porém de um modo mediado
pela mãe, que é quem o instaura como aquele que lhe faz a lei.
Em terceiro lugar, o pai se revela como aquele que tem. É a saída do complexo de
Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita
nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa
identificação chama-se ideal do eu. Ela vem inscrever-se no triângulo simbólico no
pólo em que está o filho, na medida em que é no pólo materno que começa a se
constituir tudo o que depois será realidade, ao passo que é no nível do pai que
começa a se constituir tudo o que depois será o supereu. (LACAN, 1999, p. 200).

É assim, segundo Lacan (1999), que se constitui a metáfora paterna. Esta se inicia para
os dois sexos, tanto para a menina como para o menino, desde o início do recalque originário7
até a constituição no complexo de Édipo. O complexo de Édipo é, então, um processo
normativo, que instaura a lei paterna, que é construtora do supereu, mas, ao mesmo tempo, é
também patogênico. Ao ter a lei instaurada, a criança passa a uma condição de sujeito do
desejo, mas também da neurose.

Na estruturação subjetiva, mais precisamente no complexo de Édipo, a entrada da


criança na neurose se dá ao aceitar a castração, quando concorda em se beneficiar com a
retirada da relação com a mãe, tendo a satisfação como benefício. Ao não se encontrar mais
alienada ao desejo da mãe passa a ter o direito de ser herdeiro de um registro simbólico como
sujeito do seu próprio desejo. Durante toda sua obra, Freud ressalta que para o menino este
processo não envolve somente ter que renunciar ao amor da mãe, mas também ter que se
haver com a ameaça de perder o pênis, que significa o símbolo fálico, representante da falta
da mãe, e onde se encontra o seu desejo. Aceita a interdição do incesto e reconhece que quem
tem o falo é o pai. Aceita a castração e renuncia o prazer com a mãe, mas somente pela
promessa internalizada de que poderá ir de encontro a algo que substitua este primeiro, por

7
Recalque originário – “um mecanismo originário, primordial – quer vocês o entendam como etapa histórica ou
como subjacência, fundamento –, sobre o qual alguma coisa diferente teve de se desenvolver. Ele seria uma
espécie de base, de profundeza psíquica, ou, entendido no sentido lógico, um ponto de partida obrigatório da
reflexão. Em resposta a incitação pulsional, haveria sempre, no sujeito humano – é evidente que não poderia
tratar-se de outra coisa, mas esse ponto não é lá muito definido –, uma tendência para a satisfação alucinatória
do desejo. Essa seria uma possibilidade virtual e como que constitutiva da posição do sujeito perante o mundo.
[...] uma experiência primitiva, baseada num modelo do arco reflexo. Antes mesmo de corresponder a uma
incitação interna do sujeito, que desencadeia o ciclo instintivo, o movimento, mesmo descoordenado, do
apetite e, em seguida, a busca e a orientação na realidade – a necessidade satisfaz-se através dos traços
mnêmicos daquilo que já respondeu ao desejo. A satisfação tende, assim, a se reproduzir, pura e simplesmente,
no plano alucinatório”. (LACAN, 1999, p. 223).
24

isso este prazer é uma busca nunca totalmente satisfeita. Já a neurose é herdeira da promessa:
“[...] que lhe seja permitido ter um pênis para mais tarde. Aí está o que é efetivamente
realizado pela fase de declínio do Édipo” (LACAN, 1999, p. 212).

A via da neurose não é a única possibilidade que o sujeito humano tem de existir. Para
Freud ([1905], 2006), pode-se produzir um desfecho diferente do que a neurose no percurso
do desenvolvimento das psiconeuroses:

[...] Não é só que os próprios neuróticos constituam uma classe muito numerosa, há
também que levar em conta que séries descendentes e ininterruptas ligam a neurose,
em todas as suas configurações, à saúde; por isso Moebius pôde dizer, com boas
justificativas, que todos somos um pouco histéricos. Assim, a extraordinária difusão
das perversões força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões é uma
particularidade rara, mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por
normal. (FREUD [1905], 2006, p. 162).

Com relação à perversão, Freud ([1905], 2006) afirma que o pai castra, mas o perverso
desmente esta castração. Embora ela exista, ele não a considera, toma-a como lei, negando-a.
Não se vendo castrado, supõe-se não faltante, e o falo lhe é acessível. A mãe do perverso
também não é vista como castrada, ela é fálica. Esta estrutura em que o perverso se encontra
coloca-o numa divisão do eu “Clivagem”, em que há duas realidades contrapostas no
inconsciente: a que lhe remete à castração e a negação da mesma. Pode-se dizer, então, que a
estrutura perversa tem o registro do falo, só que, como o neurótico perde o direito de gozo
pela culpa, o perverso tem outro registro.

A este respeito, Quinet (2000, p. 27) afirma:

Freud mostra essa divisão a partir do perverso, o qual está diante da descoberta da
castração no Outro sexo, da constatação de que a mãe não tem pênis, se divide. Por
um lado, o sujeito dá crédito, por outro, nega, desmente: “não, ela tem, ela tem sim,
eis aqui o pênis da mãe, transformado num fetiche”. Ora, na verdade, a questão da
castração é da ordem do insuportável para todo mundo e, “esboço da psicanálise”,
Freud generaliza a divisão do sujeito. Diante da castração não há como não negá-la:
o perverso desmente, o neurótico recalca e o psicótico rejeita completamente
(foraclui). Mas a questão da verdade da castração retorna ao sujeito: o neurótico
recalca e sintomatiza, o perverso desmente e fetichiza e o psicótico foraclui e alucina
e/ou delira. Spaltung,que significa divisão, clivagem, fenda, esquize é a própria
característica do sujeito do inconsciente, pois sua definição inclui a castração. Ela
coloca por terra todo e qualquer ideal de harmonia em que o sujeito seja inteiro (ou
seja, inteiro) em alguma situação.

Com relação à psicose pode-se dizer que algo no curso normal da constituição
psíquica não acontece, ocorrendo uma problemática. Assim, ao se problematizarem os tempos
25

do Édipo, quando a mãe não desvia o olhar do seu bebê, e assim não permite o corte, a criança
entra na psicose. Esta se dá pela falta de inscrição no simbólico. Com a metáfora do
Complexo de Édipo, Freud explica como se dá esse processo de subjetivação e faz entender
que a não inscrição da Lei Paterna, o Nome-do-Pai, priva o filho do campo do simbólico.
Ficando este colado à mãe, não constrói sua própria imagem. É como se, ao não construir sua
imagem, seu corpo ficasse sem bordas.

No primeiro e no segundo tempo do espelho instaura-se a psicose. O filho fica colado


ao desejo da mãe. Os cuidados da mãe se fazem em excesso, não permitindo ao filho
demandar, desejar, e assim o processo de subjetivação não se completa. O psicótico não sai da
relação objetal que se estabelece no início da vida com a mãe, permanece para sempre
alienado ao seu desejo, atrelado ao desejo do Outro. A criança fica presa no olhar do espelho,
não por se reconhecer nele, mas por ficar dentro dele, grudado à imagem da mãe. Por
conseguinte, não consegue construir sua própria imagem corporal. Ao não se reconhecer,
também não reconhece o outro como semelhante, vê o outro como persecutório. Assim, não
se instaura a Lei Paterna, o significante Nome-do-Pai fica “foracluido”, e a possibilidade de
entrar na neurose não se viabiliza, por isso é uma estrutura que fracassa, pois o psicótico não
foi organizado no Édipo.

Neste sentido, a estruturação do sujeito, seja ela neurótica, perversa ou psicótica, é


uma estruturação de defesa. Explica-se que: para que o sujeito não pereça diante da demanda
do Outro é necessário que ele tenha uma significação para se defender em sua subjetividade, a
castração ou não, mas cada estrutura se dá pela via da defesa. Para poder entender toda a
fundação do sujeito, “dito homem social”, 8 inscrito pela linguagem e dotado de uma
subjetivação, tem-se que levar em conta que o homem é fundado tanto pelo desejo como
estruturado pela sua proibição.

8
Dito meu referente à Homem social escrito pela cultura.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se deparar com questões que foram surgindo ao longo do curso de Psicologia em


relação ao estudo da Psicanálise, aproveitou-se a oportunidade deste estudo monográfico para
tentar dar conta de algumas questões, em especial de como se funda o sujeito e de como se dá
o processo de subjetivação. A esse respeito chegou-se às considerações elencadas a seguir.

Tanto Freud quanto Lacan demonstraram por meio de suas obras literárias que o
sujeito se constitui e não nasce pronto. Freud afirma que o sujeito referido pela Psicanálise é
fundado na linguagem por já existir na história e no desejo dos pais de ter um filho. Lacan, ao
tomar a teoria de Freud, avança na noção de sujeito, e afirma que ele depende de um Outro
para a sua constituição, o qual é essencialmente discursivo.

O sujeito, ao ser inserido no discurso dos pais já está na linguagem, pois estes são os
que perpassam e transmitem a seus filhos os significantes de suas histórias familiares e que
vão fundar o sujeito.

O bebê humano nasce carente de tudo, e seus pais vão lhe permitir iniciar a via da
subjetivação mediante cuidados com sua sobrevivência. Este processo será possível,
simultaneamente, pelo manuseio das partes do corpo desse filho e pela fala que a mãe lhe
dirige. A mãe, ao tocar e ao falar com o filho, vai mapeando esse corpo ao mesmo tempo em
que vai dando nome às suas angústias: – “Meu bebê está com fome” e lhe dá o peito; – “Ele
está com frio”, e o troca. Ao supor o que o filho deseja vai fazendo com que este se reconheça
com frio ou com fome, mas ao mesmo tempo supõe aí um sujeito, que demanda e, portanto,
em falta. É nessa sequência de acontecimentos na relação mãe e filho que vão se inscrevendo
as primeiras marcas que irão determinar os significantes que representam o sujeito.

A esse total desamparo em que o nascente se encontra, Lacan chama de alienação,


enquanto que para Freud é a relação narcísica do filho com a mãe, indispensável para que o
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infans inicie sua subjetivação. A falta da mãe no momento em que ela se afasta para qualquer
outra atividade provoca no infans a angústia do vazio. Esta falta permite a ele desejar que ela
volte a supri-lo novamente. Assim, sucessivamente, pela repetição, vai fazer com que a
criança signifique esta falta e possa, em um segundo momento, ressignificá-la, elegendo outro
objeto para substituir este primeiro. É esta busca no vai e vem do Fort-Da de Freud, esta
separação em que o desejo faz função, que permitem ao infans buscar outra coisa que não a
mãe para sua satisfação.

Lacan toma a teoria freudiana e repensa a constituição do Eu, substituindo-o por noção
de sujeito. Sua formulação ou teorização se dá em torno desse sujeito. O autor enfoca que a
mãe supõe um sujeito pela linguagem deixando marcas, traços de memória que ficam no
inconsciente e que vão marcar o sujeito por toda a vida.

É no falar ao filho que a mãe o enlaça no simbólico. Ao permitir que um outro seja
detentor de seu desejo, este desejo que move a mãe castra o filho e a priva de continuar na
relação incestuosa. A mãe outorga ao filho uma posição de outro que sabe, ele se dá por conta
em um determinado momento que não é o falo da mãe, um outro possui o falo – o pai. É em
torno de toda esta dialética que giram as teorias lacaniana e freudiana, as quais fundamentam
o surgimento do sujeito nos seus aspectos normativo e patogênico.

Esse barramento se dá quando o terceiro interdita a relação, castrando a mãe e o filho.


Assim, a lei da mãe é submetida à lei do pai que, segundo Lacan, é o significante do Nome-
do-Pai que substitui o significante do desejo da mãe, metáfora paterna. São necessários os três
tempos do Édipo para explicar a inscrição ou não do Nome-do-Pai, o qual está descrito no
decorrer do segundo capítulo deste estudo.

Assim, este significante da castração da mãe e do filho por não terem o falo é o que
indica que o possuidor do falo é o pai. E o que permite o sujeito se inscrever ou não na
neurose é a problemática fálica, “[...], o pai intervém como real e potente” (LACAN, 1999, p.
201). Sendo assim, esta afirmação do pai potente que proíbe o filho ao desejo da mãe é
formador do supereu e o regulador da moral, da lei. A inscrição da neurose se dá no terceiro
tempo do Édipo. Quando Freud trata do declínio do Édipo, a menina aceita ser castrada e não
briga pela virilidade, mas dirige-se a quem tem o falo, ou seja, o pai. O menino precisa que a
promessa do pai se cumpra, ele não aparece mais velado, e sim mediado pela mãe como lei. O
filho, então, se identifica com o pai, e essa identificação chama-se ideal do eu. Dependerá da
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passagem pelo Édipo para se constituir a neurose e perversão. A não inscrição do Nome do
Pai, portanto, da castração edipiana, produz a psicose. Estas estruturas tanto para Freud como
para Lacan são psiconeuroses de defesa na relação com a demanda imaginária do Outro.

Sendo o sujeito da Psicanálise o foco desta pesquisa, não poderia deixar de ressaltar
que as vias dessa subjetivação que o sujeito encontra para se defender do amor narcísico do
ser primordial – a mãe –, se dão por meio da inscrição da metáfora paterna. Se esta via da
neurose como defesa não se efetiva, a problemática nos três tempos do Édipo desliza para a
perversão ou para a psicose.

Para concluir gostaríamos de colocar que o desejo de compreender este sujeito da


Psicanálise mostrou que mesmo os caminhos de cada sujeito sendo diferentes, a subjetivação
se dá pela via dos significantes e que cada sujeito se subjetiva conforme o que vive e
internaliza em suas experiências.

A complexidade desta temática mostra que como o sujeito tem sua singularidade pelo
que internalizou de sua vivência, o ato da escrita também é singular. Por isso é que desde o
início este estudo foi muito difícil, escrever do sujeito é falar de nós mesmos e nos dar por
conta de certas limitações, dificuldades e até mesmo de momentos de impossibilidade. Assim,
as barreiras da escrita nos levaram a verificar que o ato de escrever diz muito da conquista
deste trabalho. Poder concluir, portanto, é um ato de coragem, determinação e superação.

O desejo de continuar a escrever é o que nos move neste momento, pois ao superar as
barreiras pode-se compreender que é só através da escrita que se pode articular com os
pensadores e elaborar questões advindas no percurso desta monografia.

As inúmeras questões com que se deparou neste estudo reafirmam a necessidade de


continuar estudando a constituição do sujeito na Psicanálise. O percurso desta monografia
necessitaria de um tempo maior, o qual não foi possível em função das normas acadêmicas e
das atribulações pertinentes. O sujeito de que trata a Psicanálise é o que alimenta todo o
trabalho analítico e, por isso, a importância de saber sobre, sem o qual todo trabalho do
psicólogo fica comprometido.
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