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THOMAZ WOOD JR.

CAPITALISMO SELVAGEM 2:
Crônicas da Vida Corporativa e do Trabalho

1ª edição

São Paulo

Edição do Autor

2014
Copyright © 2014 Thomaz Wood Jr.
Todos os direitos reservados

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por qualquer meio ou
forma sem a prévia autorização do autor.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610./98 pelo
artigo 184 do Código Penal.

Preparação e foto da capa: Thomaz Wood Jr.


Revisão: Paula Thompson

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wood Jr., Thomaz.


Capitalismo selvagem 2: crônicas da vida corporativa e do trabalho /
Thomaz Wood Jr. - - 1. Ed. - - São Paulo: Ed. do Autor , 2014.
164p.

ISBN 978-85-914912-1-6

1. Administração de empresas 2. Capitalismo 3. Comportamento


organizacional 4. Cultura organizacional 5. Liderança 6. Mudança
organizacional 7. Organizações – Administração 8. Trabalho I. Título.

14-03858 CDD 658

Índices para catálogo sistemático:


1. Gestão de organizações 658
2. Organizações : Gestão 658

Edição do autor
Fone 55 11 38 46 06 01
Email thomaz.wood@fgv.br

3
Para Ana e Daniel, que ajudarão a construir um mundo melhor...

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SUMÁRIO

Apresentação 07

Parte 1 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A SOCIEDADE


Compra-me ou devoro-te! 10
A praga do espelho 13
Influência 2.0 16
Anjo caído 19

Parte 2 – O CAPITALISMO SELVAGEM E AS EMPRESAS


História reescrita 23
Duas décadas de gestão prêt-à-porter 26
Novos tempos, velhas neuroses 31
A doença do management 34
O caos nosso de cada dia 37
Terra de gigantes 40
Grandes demais para quebrar 43
Criatividade sitiada 46
A arte de vender calorias 49
Campeões... de reclamações 52
Arrastão nos escritórios 57
O tempo não para 60
Os lobinhos de Wall Street 63
Gênios e idiotas 66
O mito do gerente ocupado 69
Equilibristas bêbados 72

Parte 3 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A ACADEMIA


Nova era da ciência 76
O caminho das pedras 79
Pseudoacademia 82
A ciência no pântano 85
A arte de turvar ideias 88
Festa agridoce 91
Inferno na torre de marfim 94
Mal-estar na academia 97
Slow science 100
Universidades virtuais 103
A crise do giz 106
A favor da sociedade 109
Procuram-se professores 112

5
Parte 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Talentos escassos 116
Analfabetismo funcional 119
No mato sem cachorro 122
Virtudes perdidas 125
MBA ou não MBA: eis a questão 128
Educação corporativa em xeque 131
Pecados capitais da educação corporativa 134

Parte 5 – ESCAPANDO DO CAPITALISMO SELVAGEM


Nova onda? 139
O frugal Mr. Money Mustache 142
Vivendo em 1986 145
Sonhando acordado 148
Aprender pela arte 151
A arte do tempo 154
A arte do pensamento negativo 157

Indicações de leitura 160


Sobre o autor 164

6
APRESENTAÇÃO

Capitalismo Selvagem 2, o livro, segue a concepção e o tom de seu antecessor, lançado em

2013. Capitalismo selvagem é um termo originalmente aplicado a uma fase histórica do

desenvolvimento do sistema, na época da revolução industrial. Nesse período, as

condições de trabalho eram subumanas: as jornadas eram longas, o ambiente, insalubre e

os chefes (ou capatazes) tratavam os trabalhadores como verdadeiros escravos.

Desde o século XVIII, muita coisa mudou: o movimento sindicalista cresceu e

consolidou-se, a legislação trabalhista avançou e o desenvolvimento do mercado de

trabalho impôs limites às empresas. Entretanto, não se pode dizer que o sistema tenha

sido domesticado. Primeiro, porque a “selvageria” original ainda persiste em muitas

partes do mundo, especialmente nos países de industrialização tardia, e também em

diversas regiões dos países em desenvolvimento. Segundo, porque um novo tipo de

“selvageria” surgiu, mais sofisticado, porém tão desumanizador quanto o original. Essa

nova selvageria manifesta-se pela colonização da vida pessoal por valores empresariais e

pelas práticas de controle social e cultural nas empresas.

Este livro traz reflexões sobre essa realidade. Seu conteúdo foi gerado pela observação

direta, pelo contato com as experiências, muitas vezes traumáticas, de colegas, clientes e

alunos. Utilizaram-se, também, generosas doses de reflexões críticas, proporcionadas por

pesquisadores e jornalistas que se dedicaram a desvendar o lado B do mundo

corporativo contemporâneo.

7
A obra está organizada em cinco partes: a primeira parte apresenta uma leitura mais

ampla, tratando da invasão da sociedade pelo capitalismo selvagem; a segunda parte

aborda os contornos e as manifestações do capitalismo selvagem nas empresas; a terceira

discute a situação da academia, assolada por pressões de produtividade científica; a

quarta parte focaliza a questão da formação profissional, especialmente a de gestores; e a

quinta parte trata de tentativas de fuga dos cidadãos, se não do sistema, ao menos de

suas manifestações mais insanas.

Boa leitura!

São Paulo, maio de 2014.

8
PARTE 1 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A SOCIEDADE

9
Compra-me ou devoro-te!
Mais um dia, mais um shopping center: no Brasil, como em outros países em
desenvolvimento, a onda consumista continua em alta, porém sinais de
ressaca pontuam o horizonte.

Em 2013, o colega Willian Vieira publicou, aqui em Brasiliana, o registro etnográfico de


suas perambulações pelo novíssimo Shopping JK. Nosso destemido Malinowski
mergulhou nas entranhas do novo templo paulistano do consumo, fez contato com seus
habitantes e registrou em prosa os exóticos comportamentos e rituais que observou.
Sobreviveu à submersão aparentemente sem sequelas. O texto de CartaCapital, como é
hábito, contrapõe-se à cobertura caipira da mídia local. Vieira conta com a admiração
deste escriba, cuja taxa de permanência em centros comerciais limita-se a sete minutos
por ano, tempo necessário para deixar o carro no estacionamento de um estabelecimento
local, cruzar a passos largos os corredores e ganhar a rua, rumo a um consultório
odontológico vizinho.

Os grandes centros comerciais surgiram há quase 100 anos, nos Estados Unidos.
Multiplicaram-se após a Segunda Guerra Mundial, por lá e alhures, acompanhando a
expansão dos subúrbios. Desde o princípio, a ideia foi criar um ambiente fechado,
destinado a estabelecer certo nível de controle sobre o comportamento das vítimas: os
consumidores.

Depois de décadas de expansão, nos Estados Unidos, muitos centros comerciais vêm
perecendo, vítimas da crise econômica e do comércio eletrônico. No Brasil, os centros
comerciais já se contam às centenas, e o número continua crescendo. Enquanto o
mundo começa a sentir os efeitos da era do consumismo, os países em desenvolvimento
continuam emulando os países desenvolvidos, clonando seus vícios com algumas

10
décadas de atraso. Hoje, significativamente, os maiores centros comerciais do mundo
estão em países em desenvolvimento, tais como China, Filipinas, Malásia, Tailândia,
Turquia e Indonésia.

Alguns urbanistas veem os centros comerciais com desconfiança. Os gigantes são


frequentemente acusados de provocar a decadência de centros urbanos e de gerar
impactos negativos sobre o trânsito. Por esses e outros motivos, alguns países
desenvolvidos estabeleceram restrições à construção de grandes centros comerciais.

Sociólogos e antropólogos também costumam torcer o nariz para esses caixotes


urbanos, tomados de horror por seus ambientes artificiais e sanitizados. Alguns os
classificam como “não lugares”, espaços sem história ou identidade, aos quais multidões
afluem sem que os indivíduos estabeleçam contato ou relação entre si, movidos
unicamente pelo objetivo de consumir, sejam roupas, filmes, livros, refeições ou
“experiências”.

True Storie, filme de 1986, dirigido e estrelado por David Byrne, apresenta uma divertida
colagem de personagens e histórias passadas na cidade fictícia de Virgil, no Texas. O
centro comercial da cidade é o ponto de encontro dos personagens, referência central de
suas existências. Poderia estar em qualquer lugar da Terra, ou aqui e agora.

Consumo e consumismo têm sido objeto de interesse de cientistas sociais há tempos:


sociólogos e antropólogos dedicam-lhes prosa e verso. Em geral, incomoda-os que o
marketing (e a cultura do consumo) tenha um papel tão central em nossa sociedade.
Agasta-lhes constatar que o mundo hoje iguala desenvolvimento a consumo. Irrita-os o
mantra que afirma que, quanto mais desenvolvida for uma sociedade, mais seus cidadãos
consomem. De fato, para a velha e para a nova classe média, sucesso significa acumular
bugigangas eletroeletrônicas, panos com marcas e acessórios com grifes, significa
comprar uma casa e lotá-la com peças de utilidade incerta e de gosto duvidoso.

11
Reza uma jocosa definição que a cultura do consumo é um amálgama de valores e
comportamentos que se sustenta em três pilares: a mídia, o automóvel e o cartão de
crédito. A mídia, especialmente a TV, diz às hordas o que comprar e onde encontrar; o
automóvel transporta-as até as fontes; e o cartão de crédito viabiliza a transação, mesmo
que o cidadão não tenha fundos.

No entanto, testemunhamos, nas últimas décadas, sinais de uma embriaguez que


antecipa uma ressaca de grandes proporções: degradação ambiental, esgotamento de
recursos naturais, invasão da esfera privada pelo mundo do trabalho, fragmentação do
núcleo familiar, corrosão dos valores etc. A locomotiva do consumo, que nos trouxe até
aqui, ameaça sair dos trilhos e vitimar seus frenéticos passageiros. Os pilotos usam
alguma criatividade, unida a respeitáveis verbas de propaganda, para reformar e
embelezar a máquina. Diz-se que o consumo agora deve ser responsável, verde e
consciente. Mais agora é menos, porém mais caro. Mas... serão os passageiros sensíveis
ao discurso? Será a reforma suficiente para evitar desastres? Descobriremos nos
próximos anos, ou não...

12
A praga do espelho
Estudos científicos sugerem que estamos vivendo uma verdadeira epidemia
do narcisismo.

As manifestações de 2013 no Brasil trouxeram à tona frustrações e insatisfações. Elas


também revelaram comportamentos narcisistas entre as hordas mais jovens que
tomaram as ruas, armadas com smartphones, ávidas por registrar seus 15 segundos de fama
nas mídias sociais. O fenômeno faz eco à constatação de diversos estudos científicos, de
que vivemos sob o império de Narciso.

Bill Davidow, escrevendo para o website da revista norte-americana The Atlantic, em


março de 2013, compilou estudos e declarações de especialistas que tentam aferir a
magnitude da epidemia. Jean M. Twenge e W. Keith Campbell, autores do livro The
Narcissism Epidemic, mencionam uma pesquisa com 37 mil estudantes universitários a
qual revela que os traços de personalidade narcisista cresceram tanto quanto a obesidade
nas últimas décadas. Shawn Bergman, um professor de psicologia, também constatou em
pesquisas que o nível de narcisismo entre os jovens contemporâneos é mais alto do que
nas gerações anteriores.

Pesquisadores da Universidade de Western Illinois, mencionados pelo jornal inglês The


Guardian, em artigo também de março de 2013, estudaram comportamentos associados
ao narcisismo (como a vaidade, o sentimento de superioridade, o exibicionismo, o senso
de merecer respeito e a tendência de manipular e tirar vantagens dos outros) em 294
estudantes. O estudo revelou correlações positivas entre tais traços e os modos de uso
do Facebook.

13
Um trabalho de autoria de Jacqueline Z. Bergman, James W. Westerman e Joseph P.
Daly constatou que os estudantes universitários norte-americanos, especialmente aqueles
que cursam administração de empresas, apresentam níveis de narcisismo próximos
daqueles de estrelas de cinema e de músicos populares. Um estudo mais recente,
também liderado por Bergman, identificou uma relação entre narcisismo e materialismo,
e que, quanto maior o materialismo, menor a ética ambiental.

Os jovens estão se tornando cada vez mais narcisistas, e as mídias sociais provêm uma
plataforma para suas exibições. Elas se transformaram em vitrinas constrangedoras para
manifestações narcisistas e comportamentos infantis. E os narcisistas parecem estar
criando um padrão de comportamento para os demais.

No centro da epidemia, a fotografia parece ter sido reinventada. Antes, uma foto podia
ter a banalidade simpática de uma cena familiar, tocando por seu significado pessoal, ou
a aura de um registro artístico, emocionando pelo objeto registrado ou por sua
composição. O fotógrafo era o agente invisível, a equilibrar, com maior ou menor
talento, sua imaginação e suas intenções com o mundo de movimentos, luzes e sombras
à sua frente. Este escriba só tomou contato com a aparência física dos mestres Henri
Cartier-Bresson e Robert Capa anos depois de começar a admirar suas imagens. Na era
das mídias sociais, a fotografia parece ter se transformado em qualquer composição que
inclua o fotógrafo: eu e meu gato, eu e meu risoto, eu no Taiti, eu na maratona... eu na
Paulista!

Naturalmente, não se pode culpar exclusivamente as mídias sociais e os smartphones pela


praga do espelho. A tecnologia garante o meio e induz a mensagem, mas a epidemia
deve-se também a questões relacionadas à educação e ao ambiente sociocultural. A
permissividade dos pais e a satisfação imediata dos mais insípidos desejos das crianças a
alimentam. Simultaneamente, o pseudouniverso das celebridades faz o narcisismo
parecer normal, transformando-o em modelo de conduta.

14
Quais as consequências? Autoconfiança e um grau “administrado” de narcisismo podem
contribuir para aumentar nossa iniciativa e nossa autonomia, ajudando a superar as
frustrações do dia a dia. Entretanto, além de certo ponto, o narcisismo pode tornar-se
nocivo. Conforme observou o pesquisador Roy Lubit há mais de 10 anos, indivíduos
que sofrem de “narcisismo destrutivo” dão importância excessiva a si mesmos, são
arrogantes e orientam-se exageradamente para a conquista de poder e riqueza. Muitas
empresas cultivam e cultuam tais tipos, porém elas podem pagar um preço alto por isso.
Narcisistas podem ser caprichosos, egoístas, instáveis, tóxicos e chatos, muito chatos.

15
Influência 2.0
A onipresença das redes sociais, a ansiedade por status e o culto da
celebridade estão levando à criação de índices de influência.

O fenômeno foi detectado acima da linha do Equador. Em abril de 2012, a revista Wired
publicou matéria a respeito. No final de novembro, um texto no website da Harvard
Business Review fez-lhe eco e, em seguida, uma colunista do Financial Times orientou sua
ironia britânica ao assunto. O cento da polêmica é o índice Klout, criação de Joe
Fernandez, um empreendedor de São Francisco, a mesma cidade na qual Alfred
Hitchcock filmou Vertigo. A cria gerou polêmica, e alguma vertigem, porque o tal índice
foi desenvolvido para medir o grau de influência de qualquer indivíduo (eu, tu, ele, nós,
vós e eles) nas redes sociais, ou pseudossociais.

O índice Klout, como outros similares, é calculado a partir de uma base de variáveis que
inclui o número de seguidores no Twitter, a frequência de atualizações, o número de
recomendações, o índice Klout de amigos e seguidores etc. A escala varia de 1 a 100: 1
equivale a um atestado de inexistência digital; valores próximos de 20 indicam a
insignificância social do indivíduo; valores próximos de 100 são atribuídos aos luminares
do nosso tempo, como a celebridade pop Justin Bieber.

Para ter um índice Klout decente, é necessário frequentar as redes sociais, dedicando
tempo e energia a indicar os mais incríveis restaurantes japoneses no Facebook e a
inserir aforismos filosóficos, em até 140 caracteres, no Twitter. Entretanto, isso não
basta: é preciso também que as pérolas, em fatos e fotos, viagem pelas redes sociais e
sejam reproduzidas por outros usuários.

16
Agora, reportam os cronistas do Norte, o fenômeno chega às empresas. De fato, no
mundo corporativo, o fetiche da influência não é novo. Há duas décadas, em um estudo
científico, pesquisadores fizeram ao corpo gerencial de uma empresa três singelas
perguntas: primeiro, quem é o seu líder? Segundo, em quem você confia? E, terceiro,
quem você procura, quando tem um problema? Da compilação das respostas surgiram,
respectivamente, o organograma da empresa, sua rede de confiança e sua rede de
expertise. Significativamente, os diagramas gerados eram diferentes. Alguns gestores, de
alta patente, apareceram solitários nas redes de confiança e de expertise. Outros, apesar
da baixa patente, mostraram-se influentes.

De lá para cá, multiplicaram-se os cursos e livros de autoajuda corporativa, tentando


treinar candidatos a Maquiavel na arte de fazer amigos e influenciar pessoas. Hoje, reza o
credo, explícito ou implícito, nas empresas: não basta ser honesto, inteligente e
trabalhador; o que importa é ter influência, ou parecer ter influência.

A novidade, agora, é a onipresença das redes sociais, inclusive nas empresas. Com a base
montada, era questão de tempo até que um empreendedor californiano, anabolizado por
um investidor, criasse um obscuro algoritmo matemático e inventasse um índice de
influência.

Gestores de recursos humanos, sempre ávidos por novidades de baixa densidade,


começam a adotar os índices de influência para definir contratações, promoções e
demissões: “Prezado, todos aqui o respeitamos e reconhecemos sua contribuição, mas
seu índice de influência caiu 20% no ano passado e não poderemos mais mantê-lo em
nossos quadros”. Se a moda pegar, logo surgirão assessores especializados, capazes de
alavancar o índice Klout de qualquer um disposto a pagar pelo serviço. E pode ser um
negócio lucrativo, porque um patamar duramente conquistado pode despencar se o
personagem tirar duas semanas de férias, distante das redes sociais.

Empresas mencionadas pela Wired estão também utilizando o índice Klout de clientes
para decidir a quem devem dar maior atenção. Talvez, em um futuro próximo, tenhamos

17
celebridades Klout sendo convidadas a furar filas, ganhando descontos especiais em
hotéis e restaurantes, e obtendo upgrades instantâneos em viagens aéreas.

Com a novidade, vieram as críticas. A ideia de ter a vida profissional ou pessoal afetada
por algoritmos obscuros criados por pós-adolescentes recém-egressos de Stanford pode
ser detestável. Lucy Kellaway, do Financial Times, afirma que não faz sentido sintetizar em
um número algo tão subjetivo quanto o grau de influência. Simplista, o índice Klout
iguala celebridades pop a chefes de Estado.

Joe Fernandez, o criador, declarou à Wired que vê o índice Klout como uma forma de
dar mais poder às pessoas comuns, de democratizar a influência. Parece ter boas
intenções. No entanto, em um mundo obcecado com a aparência e o status, os índices de
influência podem também constituir mais um componente para alimentar a estratificação
social, a ansiedade e o comportamento de manada, características já marcantes, e
irritantes, do nosso tempo.

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Anjo caído
O caso recente, envolvendo acusações de doping contra o superciclista Lance
Armstrong, traz lições e alertas para o mundo corporativo.

Quando a notícia foi divulgada há alguns anos, ganhou manchetes em todo o mundo: a
Agência Norte-americana Antidoping (USADA) baniu o superatleta Lance Armstrong,
para o resto da vida, dos esportes olímpicos, e ainda cancelou todos os seus prêmios da
Volta da França, embora haja dúvidas sobre se tais medidas estão sob a alçada da
agência.

A decisão veio depois de muitos anos de suspeita e ao final de dois anos de investigação.
Baseou-se em declarações de testemunhas que faziam parte do ciclo mais próximo de
colegas do ciclista. O fato é chocante e polêmico. Alguns observadores declararam que,
apesar do processo e das evidências, nunca se saberá se Armstrong é ou não culpado da
utilização de drogas para a melhoria de seu desempenho nas competições, especialmente
na superprova do país de Asterix.

A Volta da França é considerada um dos mais exigentes testes de resistência humana.


São cerca de 3.500 quilômetros, distribuídos por todo o território francês, percorridos
durante três semanas, a uma velocidade média de 40 quilômetros por hora. Analistas
comparam a prova a correr 20 maratonas em 20 dias. Armstrong venceu a corrida sete
vezes e foi considerado o melhor ciclista do mundo. Talvez por isso, pairava sobre ele
uma perene suspeita de uso de drogas proibidas. Ele foi também um dos atletas mais
examinados da história do esporte. Sempre que vencia ou terminava uma corrida entre
os primeiros, era-lhe solicitada uma amostra de urina. Consta que nunca se provou algo
categórico contra ele.

19
Armstrong nasceu em 1971, no Texas. Na juventude, foi exímio nadador e participou de
provas de triatlo. Com 16 anos, começou a vencer corridas de bicicleta. Seu coração e
seu corpo pareciam ter sido esculpidos para o ciclismo. Em 1993, tornou-se o mais
jovem atleta a vencer uma etapa da Volta da França. Em 1996, recebeu um diagnóstico
de câncer nos testículos, com um prognóstico sombrio. A doença havia atingido os
pulmões e o cérebro. Surpreendentemente, Armstrong venceu a doença, voltou a
competir e ganhou edições consecutivas da Volta da França, de 1999 a 2005. O ciclista
também criou uma fundação, que leva seu nome e apoia pesquisas sobre o câncer. Virou
herói do esporte e transformou-se em fonte de inspiração para milhares de doentes.

Depois de superar o câncer, passou a afirmar que a doença havia lhe ensinado lições
importantes, tais como a relevância da estratégia e do trabalho em equipe para vencer os
desafios. Aprendeu a combinar sua impressionante condição física com uma espantosa
disciplina de treinamento e uma enorme atenção ao planejamento das corridas, fator
essencial para vencer provas de longa duração. O ciclista era descrito frequentemente
como um atleta obsessivo, atento permanentemente à alimentação e focado nos avanços
tecnológicos. Sintomaticamente, nunca se afastava de suas bicicletas. Diante das
acusações, Armstrong se disse vítima de uma caça às bruxas. Pode-se concordar com ele,
mas isso não é o mesmo que afirmar que bruxas não existam, principalmente no doentio
mundo do esporte profissional.

Superatletas são personagens icônicos do nosso tempo. Eles são consumidos como
exemplos de esforço, superação e realização. Empresas brigam para ter a imagem
daqueles mais bem-sucedidos associada aos seus produtos. No mundo empresarial,
superatletas constituem também fonte de inspiração, supostamente capazes de catalisar
as energias dos exércitos corporativos. Em mercados abertos e turbulentos, marcados
pela competição sem fronteiras, superatletas mostram que é preciso, e possível, superar
barreiras e ultrapassar os próprios limites.

Muitas empresas têm a busca frenética pela capacidade competitiva como traço cultural,
característica essencial de seu DNA corporativo. Frequentemente, são organizações

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financeiras, ou organizações controladas e gerenciadas por profissionais formados no
mercado financeiro. Como os superatletas que as inspiram ou representam, muitas delas
são empresas bem-sucedidas e reconhecidas. Entretanto, não lhes faltam detratores.
Concorrentes as criticam por adotarem condutas desleais. Fornecedores reclamam do
tratamento rude e das práticas agressivas. Funcionários e ex-funcionários denunciam
condições de trabalho subumanas, com pressões exageradas por resultados e exigência
de disponibilidade 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana).

Essas empresas vivem no limite e levam seus funcionários ao limite da dedicação, da


exaustão e da ética. Elas parecem gostar de correr riscos. Como muitos superatletas, vez
por outra ultrapassam os limites. Resta saber se, caso sejam pegas e caiam em desgraça,
estarão preparadas para devolver os troféus e seguir a sina do degredo.

21
PARTE 2 – O CAPITALISMO SELVAGEM E AS EMPRESAS

22
História reescrita
O 50º aniversário da crise dos mísseis de Cuba, em 2012, foi marcado por
uma revisão da história oficial. O caso traz lições sobre a natureza do poder
nas grandes e pequenas esferas.

A crise teve início em 16 de outubro de 1962. O presidente norte-americano John F.


Kennedy foi informado da instalação de mísseis nucleares soviéticos na ilha do jovem
comandante Fidel Castro. O golpe representava uma ameaça séria aos Estados Unidos e
poderia provocar uma guerra atômica. Os norte-americanos denunciaram e ameaçaram.
Kennedy, líder da democracia ocidental contra a barbárie comunista, manteve-se firme e
forte. Em 28 de outubro, a crise chegou ao fim, com a concordância soviética em
remover seus mísseis e levá-los de volta para casa, atrás da Cortina de Ferro. O mundo
pôde respirar tranquilo novamente.

Essa é a história oficial, contada pelos norte-americanos e presente na memória coletiva.


Entretanto, Benjamin Schwarz, editor literário da revista The Atlantic, sugere, na primeira
edição de 2013 da revista, que se trata de mera ficção. Qualquer semelhança com fatos
reais pode ser apenas coincidência, já que a narrativa foi produto de manipulação.
Vamos aos fatos. Antes, porém, vejamos as fontes.

Desde 1997, revela Schwarz, pesquisadores têm acesso às gravações das reuniões que
Kennedy realizou durante a crise com seus principais assessores. Entre esses
pesquisadores, encontra-se Sheldon M. Stern, que foi historiador da biblioteca John F.
Kennedy por quase um quarto de século. Stern analisou vasta documentação e concluiu
que Kennedy e seu grupo tiveram parte considerável da responsabilidade pela
deflagração da crise. Eles iludiram a opinião pública sobre o balanço nuclear entre as
superpotências e esconderam suas ações para derrubar o governo cubano.

23
Na verdade, na corrida nuclear, os norte-americanos estiveram sempre à frente. O
poderio soviético era uma fração do estadunidense. Insensível à superioridade já
conquistada, Kennedy comandou a maior expansão militar ocorrida em tempos de paz.
Esse esforço incluiu a instalação de mísseis em regiões próximas à União Soviética: uma
provocação.

Tudo levava a crer que Washington preparava-se para dar o primeiro golpe em um
ataque nuclear. Sob essa ótica, endossada por historiadores, o envio de mísseis a Cuba
pode ser visto como uma resposta que visava estabelecer equilíbrio e dissuadir o inimigo,
e não um ato de agressão.

Além disso, a instalação dos mísseis não alterava de maneira substantiva o equilíbrio
nuclear: os soviéticos já possuíam mísseis instalados em outras bases e em submarinos.
Esse arsenal poderia atingir os Estados Unidos em tão pouco tempo quanto os mísseis
instalados em Cuba. Kennedy e seus assessores, atestam os analistas, conheciam a
realidade. No entanto, com apoio da mídia e da TV, mantiveram a plateia nacional
aterrorizada.

De seu lado, Nikita Khrushchev, o primeiro-ministro soviético, procurava proteger seus


aliados tropicais, vítimas de sabotagem, tentativas de assassinato e ataques patrocinados
pelos norte-americanos. A instalação dos mísseis, do ponto de vista das relações
internacionais, foi um ato legítimo. Por outro lado, o bloqueio naval da Ilha, ordenado
por Kennedy, foi ilegal.

Ao exigir publicamente um recuo soviético e impor o bloqueio a Cuba, o governo norte-


americano precipitou uma das crises mais perigosas da história. A solução deu-se por
meio de uma discreta negociação, que resultou na remoção dos mísseis soviéticos de
Cuba e dos mísseis norte-americanos da Turquia.

O acordo foi mantido secreto, para proteger a imagem de Kennedy e sustentar a


reputação norte-americana. Em suma, a crise deflagrada por Kennedy só foi resolvida

24
pela sensata proposta de seu antípoda Khrushchev. O norte-americano, entretanto, foi
responsável o suficiente para refrear seus assessores mais belicosos, reverter o quadro e
evitar o fim do mundo.

A história, reza a máxima, é escrita pelos vencedores. Aos perdedores, sobram as notas
de rodapé. Aos historiadores, resta a tarefa de pôr os pingos nos is, anos mais tarde. O
saudável zelo do revisionismo histórico costuma focar grandes momentos e
acontecimentos. O mundo corporativo não costuma merecer tal atenção, exceto quando
provoca calamidades ou catástrofes. Entretanto, também nele está presente a
maquiavélica arte de contar lorotas e enganar incautos.

Abra o prezado leitor as páginas de uma revista de negócios e boa chance haverá de
deparar-se com ficção de qualidade duvidosa, manifestações grosseiras de culto à
celebridade e meias verdades, esculpidas por relações públicas. A criação de heróis, mitos
e narrativas épicas está presente em fusões e aquisições, na introdução de novos
produtos e nos mais prosaicos eventos do dia a dia corporativo. Como se sabe, nas
grandes e pequenas esferas do poder, não há business sem show business.

25
Duas décadas de gestão prêt-à-porter
Apesar do vasto conhecimento acumulado em administração de empresas,
muitos executivos continuam preferindo as modas gerenciais.

A administração de empresas, como profissão, é centenária. Seu corpo de


conhecimentos avançou consideravelmente desde a década de 1950: do marketing às
finanças corporativas, da gestão de pessoas à logística, da estratégia à gestão da
informação. Hoje, para qualquer questão empresarial relevante, é possível encontrar
artigos, livros e manuais de boa qualidade, baseados em pesquisas e estudos conduzidos
com rigor científico. Isso não significa que haja receitas fáceis para todos os problemas
que afligem as empresas, mas que existe conhecimento suficiente para enriquecer as
perspectivas de análise e facilitar a escolha de rotas e a tomada de decisão.

A partir do final dos anos 1970, entretanto, um novo fenômeno veio povoar o mundo
da administração, uma onda que chegou aos trópicos nos anos 1990. A abertura de
mercado, as reformas econômicas e as privatizações criaram o ambiente para sucessivas
modas gerenciais.

O processo é cíclico. Ideias, originais ou reembaladas, podem brotar de vários terrenos:


da academia, das consultorias ou até mesmo das empresas. A maioria fenece na primeira
infância, por não ser capaz de despertar interesse ou entusiasmo. Porém, algumas dessas
ideias sobrevivem e passam a ser vistas como soluções para problemas concretos ou
imaginados. Então, um jornalista, pesquisador ou executivo atento e perspicaz escreve
um livro, que misteriosamente ganha destaque em uma revista de negócios. Acendem-se
os holofotes e chega a fama. O promotor da ideia ganha notoriedade e é transformado
em guru. As consultorias, sempre atentas, desenvolvem metodologias e prometem
implantar a nova maravilha da administração em sete passos certeiros. As empresas,

26
entusiasmadas, adotam a novidade em uníssono. A mídia reflete e catalisa a onda,
publicando histórias de sucesso, reais ou fictícias. Dentro das empresas, os novidadeiros
são promovidos. As escolas incorporam o “novo paradigma” em seu currículo e o
espalham por meio de seus cursos de educação corporativa.

Em determinado momento, o edifício começa a mostrar fissuras. A poção mágica, afinal,


não é tão milagrosa como diziam. Alguns executivos começam a falar em efeitos
colaterais danosos. A mídia se desinteressa e os consultores veem sua vaca leiteira
definhar. Felizmente, logo surge outra novidade, desponta um novo guru e aparece um
novo pacote de consultoria. Um novo ciclo toma o lugar do anterior, até que chegue sua
vez de deixar o palco, para que outro, e outro, e outro, tome sucessivamente a ribalta.

O que fica disso tudo? A mídia de negócios vende revistas e espaço publicitário, as
editoras comercializam livros, os consultores empurram seus pacotes e os gurus
enriquecem. Dentro das empresas, os padrinhos das novas ideias são promovidos e seus
asseclas ganham força. No entanto, para as organizações, depois que baixa a neblina,
pouco resta.

E assim foi por duas décadas. Entre nós, não foram poucas as ondas e marolas. Quem
não se lembra da qualidade total, da reengenharia, do planejamento estratégico, da gestão
por objetivos, da organização matricial, da gestão do conhecimento, das melhores
práticas, da cultura organizacional e das competências centrais? A lista é longa. Todas
essas modas gerenciais tiveram seu momento. Conheceram a ascensão, a maturidade e o
declínio. Todas tiveram gurus e livros seminais. Todas prometeram mundos e fundos.
Elas garantiam respostas para os desafios da globalização, para as ameaças dos
concorrentes, para a competitividade, para a lucratividade e para a felicidade. Quase
todas terminaram esquecidas.

O que explica a repetição desses ciclos? Primeiro, o fato de os executivos desejarem ser
vistos como homens de ação, sempre preocupados em mostrar que estão adotando as
mais novas técnicas de gestão. Segundo, os agentes envolvidos – gerentes, consultores,

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professores e autores – faturarem com as ondas e, portanto, trabalharem para promovê-
las. Terceiro, as organizações não aprenderem. Elas evitam refletir sobre seus erros e
gostam de celebrar façanhas inexistentes. Quarto, a fascinação dos gerentes tropicais
com artefatos ianques: se vem do Norte, deve ser bom. Será?

Felizmente, muitos executivos não respondem mais com entusiasmo às panaceias


gerenciais. Melhor para eles e para as empresas. Infelizmente, a postura anti-intelectual
ainda os afasta da busca de conhecimento consistente em gestão empresarial. Nos
trópicos, o que separa a boa teoria da prática é, em grande parte, a inépcia e o
amadorismo dos gestores. Talvez um dia se convençam definitivamente de que o
management não pode ser pop, de que experts não devem ser celebridades e de que a gestão
não pode ser prêt-à-porter.

28
10 panaceias gerenciais

Qualidade total

Escolha o seu guru, leia os seus livros e torne-se um evangélico da causa. Todos na
empresa devem ser responsáveis: nada é mais importante do que a qualidade! Ignore
coisas supérfluas como a inovação, a produtividade e a lucratividade. Tudo vai dar certo!
Ou não...

Reengenharia

Esqueça o organograma e apague as áreas funcionais. Comece com uma folha em


branco. Reorganize toda a organização em torno de processos. Defina atividades,
indicadores e responsáveis. A chance de a empresa sobreviver é pequena, mas existe.

Organização matricial

Quebre as barreiras dos departamentos e crie times que cruzem as áreas funcionais em
tornos de projetos e produtos. Mas prepare-se para a guerra por recursos e para o caos
criado pelo novo modelo.

Competências centrais

Descubra quais são as competências que sua empresa domina e que a diferenciam dos
concorrentes. Se não conseguir, escreva qualquer uma que esteja na moda. Mas, se
conseguir, esqueça-as rapidamente, porque o sucesso de hoje pode ser o fracasso de
amanhã.

Sistemas empresariais

Faça como todas as grandes empresas: abandone seus sistemas legados, desenvolvidos
para as suas necessidades, e adote um sistema padronizado. Prepare-se para um projeto
que ultrapassará o prazo de entrega, estourará o orçamento, entregará resultados pífios e
tornará sua empresa dependente de um fornecedor caprichoso e caro.

Cultura organizacional

Brinque de antropólogo do século XIX. Descubra (ou invente) os valores fundamentais


da sua empresa, faça uma cartilha e convença todos os empregados a segui-la. Se não
conseguir, não fique frustrado, porque quase ninguém consegue.

29
Pipelines de liderança

Siga o conselho do seu gerente de recursos humanos: divida seus colaboradores em


níveis de liderança e diga o que cada nível deve fazer. Mas... não é essa exatamente a base
do modelo burocrático que foi declarado morto nos anos 1980?

Inovação frugal

Siga o exemplo dos indianos: construa e comercialize produtos que custem uma fração
do preço usual. Sua empresa poderá atingir milhões de novos consumidores. Mas
prepare-se para recalls e processos judiciais. A economia, como se sabe, é frequentemente
a base da porcaria.

Seis-sigma

Ponha todos os funcionários para brincar de lutadores de caratê. Se deu certo na GE,
tem que dar certo na sua empresa. Mas prepare-se para conviver com hordas de faixas-
pretas arrogantes, reuniões intermináveis, muita estatística e poucos resultados.

Empreendedorismo

Contrate um consultor, junte seus funcionários e motive-os a serem


intraempreendedores. Depois, prepare-se para o tumulto que eles causarão. Alguns
deixarão a empresa para abrir negócios próprios, mas não se preocupe, porque depois de
um ano eles pedirão para voltar.

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Novos tempos, velhas neuroses
O tempo passa, o mundo gira, mas as organizações continuam sofrendo com
as mesmas patologias que as assolaram no século passado.

A vida em sociedade, com suas pressões, seus desequilíbrios e suas injustiças, gera e
alimenta muitas neuroses. Haja psicólogos e psicanalistas! Organizações, especialmente
as grandes, reproduzem e ampliam tais neuroses. E, após décadas de privatizações,
fusões, aquisições e reestruturações, elas estão mais turbulentas, confusas e neuróticas do
que nunca. Haja consultores!

Publicado na década de 1980, o livro The Neurotic Organization, assinado por Manfred F.
R. Kets de Vries e Danny Miller, continua atual. Kets de Vries tem uma eclética
formação em economia e psicanálise, e é professor de liderança e mudança
organizacional no Insead, na França. Miller é pesquisador e professor titular de uma
cadeira de empreendedorismo da HEC, no Canadá. A obra traz uma instigante tipologia,
com cinco tipos neuróticos de organização.

O primeiro tipo é a organização paranoica. Hipersensível e em estado permanente de


alerta, ela suspeita e desconfia de tudo e de todos à sua volta. É fria e procura ser
totalmente racional em suas relações. Seus gestores gastam um tempo precioso
desenvolvendo teorias conspiratórias, nas quais a empresa surge sempre como vítima de
grandes maquinações, perseguida por interesses escusos, que desejam destruí-la. A
patologia chega a ser cultivada por alguns executivos, que parecem crer que somente a
condição de perene atenção é capaz de manter a organização preparada para a
competição.

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O segundo tipo é a organização compulsiva. Ela é perfeccionista e preocupa-se com
detalhes triviais; é dogmática e obsessiva. Apega-se exageradamente a procedimentos e
quer controlar tudo que supostamente a afeta. Esse tipo de organização é
frequentemente cindido em duas populações distintas: uma que trabalha e outra que
controla. Os que trabalham veem os que controlam como parasitas, que existem apenas
para dificultar seu labor. Os que controlam veem os que trabalham como agentes do
caos; vivem imersos na criação e perpetuação de regras bizantinas, a perseguir o mundo
da perfeição burocrática.

O terceiro tipo é a organização depressiva. Seu corpo gerencial é marcado por


sentimentos de culpa e de inadequação. Faltam-lhe perspectivas, interesse e motivação.
Seus gestores sentem-se sempre à mercê dos acontecimentos, incapazes de pensar
claramente para tentar novos caminhos e novas alternativas. Tais organizações
comumente sobrevivem sob as asas do Estado ou sob sistemas de proteção de mercado.
Seus executivos sabem de sua fragilidade, mas são incapazes de mudar o curso das
coisas.

O quarto tipo é a organização esquizofrênica. Ela se mostra distante e apática. Seus


executivos não revelam interesse pelo presente ou pelo futuro. Isolam-se, criando um
vácuo de liderança, que leva seus liderados a formarem feudos e se digladiarem, gerando
estratégias e ações inconsistentes. Organizações esquizofrênicas são indiferentes a
críticas e elogios. Faltam-lhes entusiasmo e energia. Vivem em permanente estado de
confusão e agressividade.

O quinto tipo é a organização dramática. Seu corpo gerencial caracteriza-se pela atenção
exagerada a si mesmo, pelo narcisismo e pela expressão excessiva de emoções. Falta-lhe
a capacidade de focalização e de concentração. Seus executivos parecem viver para tentar
impressionar as “pessoas certas”. Organizações dramáticas gostam de arquitetar
“grandes jogadas” e correr riscos, comumente fonte dos sonhos (ou delírios) de
executivos que gostam de seguir sua intuição e seus desejos.

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Organizações neuróticas frequentemente induzem seus funcionários a aceitar e praticar
seus vícios. Com o tempo, elas desenvolvem normas implícitas e sistemas formais de
incentivo que condicionam seus quadros a se conformarem ao estilo dominante.
Organizações neuróticas nutrem líderes neuróticos. Líderes neuróticos, por sua vez,
fomentam atitudes e comportamentos consistentes com suas características. Fecha-se,
assim, um ciclo vicioso, que tende a se perpetuar.

Kets de Vries e Miller argumentam que conhecer o tipo neurótico dominante em uma
organização ajuda a definir processos de intervenção mais substantivos, indo além das
soluções simplórias frequentemente receitadas por gurus e consultores. Entretanto,
mudanças dificilmente vêm de dentro. Ao contrário de indivíduos que podem buscar,
com autonomia, a própria cura, organizações raramente conseguem se corrigir. Elas
mudam em consequência de crises e grandes rupturas externas, capazes de abalar suas
estruturas e mover seus quadros executivos além de suas zonas de conforto. Para os
descontentes, resta a porta de saída, sempre serventia da casa, e buscar uma nova casa, e
talvez uma nova neurose.

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A doença do management
Sociólogo francês argumenta que os modernos modelos de gestão
empresarial constituem uma patologia social, capaz de atrair e seduzir suas
vítimas.

O Capital, último filme do diretor Costa-Gavras, baseado em romance homônimo do


francês Stéphane Osmont, retrata as peripécias de um alto executivo de um grande
banco europeu, às voltas com golpes e negociatas. Não é a primeira vez que o diretor de
filmes icônicos sobre sistemas políticos, como Z (1969) e Estado de Sítio (1972), se
debruça sobre o mundo corporativo. Em O Corte (1995), o diretor grego retratou a vida
de um executivo desempregado que, em busca de uma nova colocação, decide matar
seus concorrentes. Sua longa filmografia é marcada pela capacidade de identificar e
chamar a atenção para questões políticas e sociais sensíveis, produzindo thrillers de
narrativa bem ritmada.

Veio também da França, igualmente a denunciar doenças da sociedade contemporânea,


o sociólogo Vincent de Gaulejac. O professor de sociologia da Universidade Paris 7, que
esteve no Brasil em 2013, vem pesquisando como as mudanças na organização do
trabalho submetem os indivíduos a contradições e dilemas morais. Os novos modelos de
gestão, disseminados em todo o mundo pelas empresas de consultoria, trouxeram o
antigo conflito entre capital e trabalho para o nível psicológico do indivíduo. Os menos
capazes de lidar com o contexto são estigmatizados e afastados. Os sintomas são
conhecidos: desgaste psíquico, estresse, depressão e até suicídio.

Seu argumento central, desenvolvido no livro Gestão como Doença Social (Editora Ideias e
Letras), é que a disseminação das práticas do management constitui fator de
instrumentalização e alienação dos profissionais, ao colocá-los diante de paradoxos

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insolúveis. Os paradoxos estão no centro do modelo: espera-se autonomia, porém
dentro de limites restritos; fomenta-se a criatividade, porém dentro de um sistema super-
racional; espera-se total comprometimento com a organização, porém a possibilidade de
demissão está sempre presente.

Os novos modelos de gestão fazem crer que somos capazes de atingir desempenhos
superiores, conquistar metas e nos realizarmos. Somos capturados pela ilusão narcisista
de grandes conquistas. O sistema faz com que percamos o verdadeiro sentido do
trabalho e nos orientemos cegamente para o atendimento de metas fixadas pela
organização. Reagimos adoecendo e procurando a ajuda de médicos, psicólogos e coaches.
Acreditamos que o problema nos diz respeito individualmente, não coletivamente.

Gaulejac vê o management como uma ideologia e uma tecnologia de poder, que


instrumentaliza e mercantiliza o ser humano. E é difícil de combater, porque se mostra
relativamente discreto, neutro e pragmático. Na superfície, o management é constituído
por conhecimentos, modelos e técnicas de gestão, abrangendo a contabilidade, o
marketing, a gestão de recursos humanos e as demais disciplinas da administração. Abaixo
da linha d’água, entretanto, o management serve a manipular as subjetividades humanas,
para adequar o indivíduo a um novo padrão de comportamento. Sob a ideologia do
management, cada profissional deve tornar-se um agente da cultura corporativa, capaz de
encarnar a alma da empresa, de agir segundo os interesses do dono: com iniciativa,
autonomia, criatividade e responsabilidade.

O management oferece a possibilidade, ou ilusão, de conquista de poder e de transformar


empresas e sociedade. Promete a satisfação dos desejos individuais. A felicidade vem,
supostamente, do sucesso e da capacidade de empreender. O indivíduo deve alcançar
sempre mais, buscando incessantemente a miragem da excelência. Cada profissional
deve superar seus pares e a si mesmo, continuamente. Busca-se a utopia da qualidade,
que, segundo Gaulejac, remete a um mundo perfeito, livre de contradições e de
conflitos. Em troca, o moderno Sísifo é supostamente recompensado por um efêmero
sentimento de autorrealização, até que a pedra role morro abaixo e ele tenha que retomar

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a tarefa. O novo padrão busca o controle do corpo, da mente e da alma. Avançou por
todas as latitudes nas últimas décadas, e segue a passos firmes. Em breve, estará em mais
uma empresa, organização estatal ou ONG perto de você!

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O caos nosso de cada dia
Empresas locais, de todos os portes, parecem viver imersas em um estado
crônico de confusão.

Converse o prezado leitor com um executivo de uma empresa local, de qualquer porte, e
dele ouvirá histórias de horror. Todas as organizações parecem viver em constante
estado de confusão. Jornadas intermináveis de trabalho, telefones celulares que não
param de cuspir emergências, e-mails que não cessam de disparar urgências, chefes
atordoados e liderados em pânico: a lista é longa e tenebrosa. Todos parecem viver à
beira de um ataque de nervos.

O que provoca tal estado das coisas? O suspeito usual é velho conhecido. Nove entre
dez executivos, perguntados a respeito, provavelmente culparão a globalização, a
volatilidade econômica e a instabilidade dos mercados. Há alguma verdade nessa
resposta. De fato, quanto mais conectado for um sistema, mais sensível um componente
será em relação à ação de outro componente. Uma borboleta batendo as asas na
Amazônia pode provocar um tufão no Texas.

No entanto, mesmo que se aceite a vilania da mão invisível do mercado, há de se levar


em conta que parte considerável do caos vem das próprias empresas. Cinco fatores,
isoladamente ou combinados, contribuem para o caos nosso de cada dia.

O primeiro fator é a confusão estratégica. Se estratégia significa aonde ir e como chegar


lá, então, provavelmente, o conceito está ausente da maioria das organizações. Muitas
empresas multiplicam iniciativas, projetos e ações, perdendo tempo e recursos em
atividades que não as levarão a lugar algum. Tempo, recursos e energia jogados fora.

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O segundo fator é a confusão estrutural. Um modelo de organização bem pensado
provê foco para o trabalho, indica o que cada um deve fazer e os limites de sua ação. Os
melhores modelos equilibram clareza e flexibilidade, permitindo extrair o melhor de cada
profissional, ao mesmo tempo que garante espaço para a criatividade. Muitas empresas
ignoram as boas práticas e trabalham com estruturas mal desenhadas, provocando
alocação inadequada de recursos e gerando conflitos. Com isso, gasta-se mais tempo
definindo o que deve ser feito e quem deve fazer do que realizando.

O terceiro fator é a confusão na gestão. As consultorias, aliadas à fantasiosa mídia de


negócios, vêm há tempos criando e disseminando soluções mágicas para todos os males
organizacionais. Muitas empresas adotaram as soluções sem ter os problemas. Então,
para justificarem os vultosos investimentos realizados, desenvolveram as respectivas
patologias. Com isso, tornam-se verdadeiros hospícios, nos quais os executivos passam
parte considerável de seu tempo em intermináveis comitês, reuniões e atividades que não
agregam valor.

O quarto fator é a confusão cultural. Nas últimas décadas, empresas de todos os setores
passaram por inúmeros processos transformacionais: fusões, aquisições e outras
mudanças radicais. Hoje, muitas empresas constituem aglomerados de tribos com
histórias, identidades e culturas distintas, trabalhando sob uma mesma bandeira. Ocorre
que elas mantêm seus valores, comportamentos e formas de tomar decisões e conduzir
negócios. O resultado é uma nau em estado permanente de motim, o capitão e seus
asseclas sempre atarantados, procurando manter a aparência de normalidade sob uma
realidade convulsionada.

O quinto fator é a presença dos agentes do caos (não confundir com agentes da Kaos,
da antiga série de TV, embora haja semelhanças). Os agentes do caos são executivos que
sofrem de confusão mental crônica. Eles (e elas) poderiam ter uma vida produtiva e feliz
longe dos centros decisórios empresariais. Porém, por razões desconhecidas,
conseguiram penetrar nas pirâmides corporativas e delas fizeram seu lar. Foram

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promovidos por motivos misteriosos, vindo a ocupar cargos nos quais têm grande poder
de influência. E fazem de seus cargos a plataforma para espalhar a confusão.

Os agentes do caos marcam e desmarcam reuniões, às quais sempre chegam com atraso
e das quais sempre saem mais cedo; sua mente flana por outras galáxias; eles estabelecem
prioridades, esquecendo-as em seguida; mobilizam equipes para realizar projetos de
utilidade duvidosa e resultados embaraçosos; esquecem compromissos e ignoram
cronogramas. O melhor amigo do agente do caos é seu telefone celular,
permanentemente em ação, sua principal ferramenta para disseminar a desordem.

O tempo, sabemos, é inexorável. No entanto, o ritmo do trabalho é socialmente


construído. Certos executivos o modelam ao gosto de sua paranoia, convulsivo e
frenético, em esforço patológico para manter as hordas sob seu controle. Para ajudá-los,
criam exércitos de agentes do caos. Eles confundem frenesi com produtividade,
atividade insana com trabalho eficiente. Em muitas organizações, o caos não vem do
ambiente. É fruto direto da incompetência gerencial.

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Terra de gigantes
Desenvolvida com arquitetura aberta, cultura alternativa e ímpetos libertários,
a internet se parece cada vez mais com o “mundo real”, com grandes
criaturas a dominar meios e mensagens.

No despertar de 2013, a Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos declarou


que a empresa Google não havia violado leis antitruste ou adotado práticas contra a livre
competição. A declaração surpreendeu e frustrou diversos observadores, que esperavam
ver condenada a forma como a empresa mostra os resultados de busca. Edward Wyatt,
escrevendo para o jornal The New York Times, observou que a decisão permite à Google
fortalecer sua posição na internet, além de evitar uma custosa batalha legal. Para vencer,
a empresa investiu mais de 13 milhões de dólares em lobby e mobilizou um exército de
advogados, executivos e engenheiros.

As investigações fizeram eco àquelas enfrentadas pela Microsoft nos anos 1990.
Conforme cresceram e expandiram seus negócios, as empresas foram capazes de
mobilizar recursos, adquirir ou aniquilar competidores. Ambas foram acusadas, por
rivais e por agentes reguladores, de explorar de maneira injusta sua posição dominante
no mercado.

A internet tem raízes em desenvolvimentos de tecnologia e comunicação que ocorreram


nos anos 1960, especialmente a Advanced Research Projects Agency Network
(ARPANET). A explosão da rede mundial ocorreu a partir dos anos 1990, com um
crescimento vertiginoso do tráfego e do número de usuários. Embora em sua origem
houvesse interesses militares, a rede cresceu com base em uma arquitetura
descentralizada e aberta, e marcada por uma cultura alternativa e libertária.

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Nos últimos anos, no entanto, o crescimento de grandes corporações com atividades
baseadas na rede, ou parcialmente relacionadas à rede, parece estar tornando o mundo
virtual cada vez mais parecido com o mundo real. Bruce Sterling, um escritor norte-
americano de ficção científica, observador do cenário virtual, argumenta que a internet é,
cada vez mais, algo conformado ou fortemente influenciado por cinco “pilares”: Apple,
Google, Facebook, Amazon e Microsoft.

Esses cinco gigantes têm histórias extraordinárias. A Apple, cria do idolatrado Steve
Jobs, renasceu das cinzas para tornar-se uma empresa colossal, invejada por sua
capacidade de inovar e de moldar o mercado. A Google, a partir de uma singela
ferramenta de busca, transformou-se em uma líder incontestável da propaganda on-line.
O Facebook atropelou seus rivais e superou, em 2012, um bilhão de zumbis (ou
usuários). A Amazon passou de livraria virtual a um gigante da logística, gerenciando um
portfolio abrangente de produtos. A Microsoft, de Bill Gates e Paul Allen, hoje
gerenciada por Steve Ballmer, continua sendo o maior fabricante mundial de software,
porém se reinventou, investindo em videogames e outros produtos.

A revista britânica The Economist, parceira de CartaCapital, em matéria publicada em


dezembro de 2012, alertou para três problemas relacionados à presença de gigantes na
internet: o primeiro é a tendência de o vencedor dominar todos os mercados; o segundo
é a tendência dos gigantes de “aprisionarem” seus clientes em suas respectivas
plataformas; e o terceiro é o hábito dessas megacorporações de adquirir e incorporar
empresas menores, antes que elas se tornem ameaças à sua posição.

Conforme argumentou Alexis C. Madrigal, no website da revista The Atlantic, se você for a
Nokia, a Hewllet-Packard ou um fabricante japonês de produtos eletrônicos, esses cinco
gigantes “roubam todo o seu oxigênio”. E podemos completar: se você for um simples
mortal, um mero consumidor, esses cinco gigantes o submeterão a um conhecido
processo que envolve sedução, conquista, extração de valor e aprisionamento, quando
você se tornará refém de seus modelos de negócio e plataformas. No mundo que essas

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empresas estão criando, a tecnologia funciona bem dentro de seus domínios, mas cruzar
as fronteiras pode ser um pesadelo.

Que fazer? Os reguladores norte-americanos e europeus parecem acreditar que podem,


pelo discurso ou por pressão, convencer os gigantes a adotar códigos civilizados de
conduta competitiva. Será? Críticos mais duros apontam a necessidade de cisão dos
gigantes. Segundo tal raciocínio, conforme exemplificado por The Economist, a Apple e a
Google seriam forçadas a escolher um tipo de negócio: fornecimento de conteúdo
digital, produção de hardware ou distribuição de informações. Nada de controlar as três
minas de ouro.

O impacto de um movimento desse tipo seria notável, mas seria benéfico para o
consumidor? Ou seria mais sensato aguardar que o “sistema” opere sua mágica, que os
gigantes trombem entre si, ou tombem por sua própria arrogância, e outros lhes tomem
o lugar? O fato é que, como indica o antigo provérbio, em briga de elefantes, quem mais
sofre é a grama.

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Grandes demais para quebrar
A expansão dos negócios é usualmente vista como fruto de boa gestão. No
entanto, além de certo limite, o porte pode ser nocivo para as próprias
empresas e para a sociedade.

A expressão “grande demais para quebrar” foi popularizada na crise financeira do final
da década passada. Expressa a premissa de que algumas organizações, especialmente
instituições financeiras, são tão grandes e têm tantas ramificações que sua falência teria
um custo intolerável para a sociedade. Portanto, na iminência de uma crise séria, seria do
interesse da própria sociedade que o governo as protegesse. A tese é polêmica, e sua
aceitação poderia levar algumas organizações a tentarem tirar vantagens da eventual
proteção. Alan Greenspan, ex-Federal Reserve, chegou a declarar que, se uma
organização é grande demais para quebrar, ela é simplesmente grande demais, e deveria
ser dividida em organizações menores.

A busca do gigantismo parece ser mantra para as grandes corporações. Quanto maior,
melhor. Será? Em edição veiculada no dia 3 de novembro de 2012, a revista britânica The
Economist, lança dúvidas sobre a premissa. O texto sugere que, assim como os arranha-
céus vão batendo recordes de altura, as empresas vão batendo recordes de porte. No
entanto, na construção civil como no mundo corporativo, o limite pode estar bem
abaixo do céu. Como bem sabem os engenheiros, após certo limite, o projeto e a
construção tornam-se muito complexos, o que, na prática, limita a altura racionalmente
indicada. A construção de prédios ultra-altos em países periféricos deve-se mais ao ego
de governantes e empresários do que à racionalidade econômica.

O mesmo raciocínio pode ser válido para empresas. A busca de economias de escala
justifica o crescimento, seja orgânico ou por meio de fusões e aquisições. À medida que

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uma empresa cresce, os custos de desenvolvimento de produtos, de implantação de
sistemas e de manutenção de estruturas centrais de controle são diluídos. Com isso, a
empresa ganha músculos, torna-se mais produtiva e, supostamente, competitiva.

Porém, como no caso dos prédios, há limites para o gigantismo. Primeiro, há restrições
impostas de fora para dentro. Empresas grandes demais podem adotar práticas
comerciais contrárias aos interesses da sociedade. Além disso, seguindo o argumento de
Greenspan, seu porte pode situá-las além do risco tolerável, no caso de uma falência.
Segundo, há restrições originadas na própria empresa. Gerenciar uma organização de 25
mil funcionários é diferente de gerenciar uma empresa de 50 mil funcionários, que é
diferente de gerenciar um gigante com 100 mil funcionários. Muda a estrutura, mudam
os sistemas, muda o estilo de gestão e mudam as competências necessárias. Empresas
que passam por processos de fusão sentem na pele o drama. Além de acordarem ao lado
do inimigo, são obrigadas a se reinventar, e tudo isso sob a pressão de realizar as
economias de escala esperadas do processo. O resultado pode ser catastrófico.

Naturalmente, tais limites variam de setor para setor. O Brasil, cuja ecologia empresarial
é enormemente heterogênea, tem setores povoados por centenas de pequenas empresas,
pouco competitivas, sem escala suficiente para orientar recursos para a inovação e a
melhoria da competitividade. Entretanto, alguns setores já apresentam frágeis gigantes,
enfrentando consideráveis dificuldades para manter seus múltiplos negócios sob controle
e operando de modo ineficiente. De fato, o mundo corporativo está cheio de histórias de
terror, de empresas bem geridas que se transformaram, após o crescimento, em palcos
de lutas fratricidas, viram sua produtividade despencar e perderam clientes.

Então, por que os processos de expansão continuam nas agendas das corporações?
Primeiro, porque crescer é um valor essencial do capitalismo e permeia a cultura e os
sistemas das organizações. Nos rituais estratégicos e orçamentários, poucos executivos
teriam a audácia de propor uma redução de metas para o exercício seguinte. Para a frente
e para o alto é que se anda! Segundo, porque, conforme comentado anteriormente,
crescer pode gerar economias de escala e aumentar a competitividade. No Brasil, forjar

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“campeões nacionais”, capazes de competir no cenário internacional, tornou-se objetivo
de Estado. Terceiro, porque empresários são frequentemente seres impulsivos e capazes
de tomar decisões pouco racionais para satisfazer seu inflado ego. Quarto, porque o
gigantismo torna a empresa supostamente imprescindível (grande demais para quebrar),
o que pode transformar a sociedade em sua refém. Crescer além de certo porte pode ser
um ótimo negócio para empresários e executivos (por algum tempo), mas pode ser um
mau negócio para a sociedade.

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Criatividade sitiada
Festejada por artistas, empresários e até governos, a criatividade sofre sob o
jugo de chefes despreparados, lutando para sobreviver em ambientes
agressivos e caóticos.

Criatividade é um termo da moda. Migrou do mundo das artes, seu tradicional reduto,
para o mundo corporativo. Sabidinhos inventaram as indústrias criativas, as classes
criativas e até a economia criativa. Governos pelo mundo, acima e abaixo do Equador,
gostaram e gastaram.

Antigamente, o termo usado era indústria cultural, cunhado pelos sabichões de


Frankfurt, nos anos 1940. E não era boa coisa, não. Adorno e Horkheimer
consideravam a cultura popular uma fábrica para produção de bens padronizados,
destinados a gerar prazeres fáceis e domesticar as massas. Pode-se imaginar o que
pensariam sobre as mais salientes indústrias criativas dos nossos tempos, organizadas em
torno da moda, da propaganda e dos videogames.

O fato é que a criatividade vem ganhando palco, plateia e subvenções federais. E


conquistou também a atenção do mundo corporativo. Afinal, ela está no centro dos
processos de concepção de inovações, é capaz de parir novos produtos, originar novos
negócios e gerar vultosos lucros para as empresas.

Estudiosos do tema associam a criatividade ao estado de “fluxo”, uma condição de total


imersão na atividade criativa, caracterizada por uma postura de entrega, pela
automotivação e por um estado de perda da autoconsciência. Neurocientistas vêm
realizando investigações com instrumentistas de jazz e de outras formas musicais nas
quais a improvisação é dominante. Suas pesquisas indicam que, durante períodos de

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improvisação criativa, há mudanças significativas na atividade cerebral. Em certas
condições, ações espontâneas ocorrem sem a interferência de atividades de supervisão e
controle. No cérebro, como nas empresas, a criatividade não parece conviver bem com
capatazes.

Os estudos realizados indicam que a criatividade é uma condição mental específica, na


qual a atividade cerebral se reconfigura. Tal condição permite que a experiência interior e
subjetiva do artista dê origem ao estado de fluxo, que, por sua vez, origina uma atividade
ou um resultado criativo, algo novo, original, único.

Teresa Amabile, uma professora da Harvard Business School, vem investigando há


décadas temas como criatividade individual, produtividade e inovação. Seus estudos
focam as características dos profissionais criativos e as condições ambientais necessárias
para que a criatividade se desenvolva. Organizações com estruturas hierarquizadas,
culturas organizacionais coercitivas, chefes centralizadores e ambientes nos quais os
profissionais lutam entre si minam o trabalho criativo. Até aqui, nenhuma novidade! A
dificuldade é entender por que tantas empresas insistem em extrair criatividade e
inovações de funcionários sufocados por modelos organizacionais rígidos e por chefes
obcecados pelo controle.

Curiosamente, mesmo empresas que supostamente vivem da criatividade a tratam aos


socos e pontapés. Uma pesquisa realizada por Alexandre Romeiro, da FGV-EAESP,
orientado por este escriba, revelou a dura realidade dos trabalhadores criativos. O autor
entrevistou profissionais de agências de publicidade, um caso exemplar de criatividade a
serviço das forças do mercado. As declarações colhidas ajudam a explicar o jogo de
pressões que impelem a criatividade e, paradoxalmente, a restringem.

Romeiro aprofundou a trilha de pesquisa aberta por Amabile, observando três fatores
que condicionam a criatividade: a natureza coletiva do trabalho, a pressão do tempo e a
tensão entre a inovação e a aceitação. O trabalho coletivo geralmente estimula a
interação criativa. No entanto, quando há competição excessiva entre pares e grandes

47
egos entram em conflito, então a criatividade sofre. A pressão do tempo, um recurso
sempre escasso, estabelece desafios e impele o trabalho criativo. Porém, o desafio perene
de fazer mais com menos, as múltiplas tarefas simultâneas e o permanente estado de
caos das empresas aumentam a transpiração e restringem a imaginação. A criatividade
viceja quando há espaço para o autor experimentar e trilhar novos caminhos e inovar,
criar algo inédito. Entretanto, esbarra frequentemente no conservadorismo, na
inapetência para o novo, em chefes conservadores e em clientes temerosos de ferir os
padrões e contrariar os bons costumes.

Nas agências de propaganda e, provavelmente, em outros setores, a criatividade vive na


corda bamba. Romeiro constatou a precarização da experiência criativa, pela organização
(ou falta de organização) do trabalho. Os vilões são a competição predatória entre
profissionais e entre equipes, o peso da burocracia, a má gestão do tempo e a ação
destemperada de capatazes. Ser criativo, mesmo em uma época que supostamente
celebra a inovação, continua sendo uma atividade incerta, arriscada e frequentemente
frustrante.

48
A arte de vender calorias
A obesidade avança e transforma-se em mal onipresente. Livro recente
desvenda os ardis dos fabricantes de alimentos na luta pela participação no
estômago de seus consumidores.

A questão da obesidade ganhou grande atenção nos últimos anos. Michael Bloomberg, o
reverenciado prefeito de Nova Iorque, tentou banir a venda de bebidas com açúcar em
grandes embalagens. A decisão gerou polêmica, mas não foi fortuita: a obesidade
transformou-se em um problema crônico de saúde, afetando milhões de pessoas,
sobrecarregando os sistemas de saúde e gerando impactos negativos sobre a
produtividade e a qualidade de vida. Bloomberg baseou-se em pesquisas que indicam
serem os refrigerantes os principais vetores de açúcar na dieta norte-americana.

No final de 2012, a revista britânica The Economist publicou um extensa matéria especial a
respeito da questão da obesidade, veiculada pouco depois em CartaCapital. Charlotte
Howard, autora do texto, argumenta que a origem do problema está nas rápidas
mudanças ocorridas em poucas décadas: o trabalho migrou para os escritórios, o
transporte foi motorizado e a oferta de alimentos processados aumentou. Resultado: as
pessoas estão engordando como nunca, e ficando doentes. O que começou como um
problema de países desenvolvidos chegou rapidamente aos países em desenvolvimento,
inclusive o Brasil, que é hoje um dos campeões da engorda.

A questão é ampla e complexa, e não admite soluções simples. Envolve legisladores,


especialistas em saúde pública, pesquisadores da área médica e, naturalmente, o direito
individual de escolha dos cidadãos. Entretanto, parte importante da equação relaciona-se
ao comportamento dos fabricantes de alimentos. Michael Moss, um repórter ganhador
do prêmio Pulitzer, pesquisou durante quatro anos a indústria de alimentos. Nesse

49
período, conversou com mais de 300 pessoas: ex-empregados da indústria, cientistas,
profissionais de marketing e presidentes de empresas. O produto da investigação resultou
no livro Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us (Randon House). A conclusão do
autor é que houve um esforço consciente em laboratórios de pesquisa, nas reuniões de
marketing e nos corredores dos supermercados para viciar os consumidores em alimentos
convenientes e baratos.

O livro, que teve um extrato publicado pelo The New York Times Magazine, em 20 de
fevereiro de 2013, está cheio de histórias saborosas. Moss conta como, no final da
década de 1990, um grupo bem-intencionado de altos executivos de grandes empresas
tentou abrir os olhos de seus pares para a necessidade de produzir alimentos mais
saudáveis e evitar, com isso, o destino da vilificada indústria do tabaco. A iniciativa,
entretanto, esbarrou na ganância do grupo. Um dos participantes apontou: “Nós não
vamos estragar as joias da empresa só porque uns caras de jaleco branco estão
preocupados com a obesidade”. Muito sensível!

Moss conta também os grandes feitos de Howard Moskowitz, um gênio da matemática


da psicologia, que voltou sua competência científica para a nobre tarefa de otimizar
pizzas, sopas, molhos para salada e picles. O sábio desenvolveu competências capazes de,
por meio de experimentos e tratamento de dados, definir a mais perfeita versão de cada
produto, aquela capaz de maximizar o prazer do consumidor, tornar o produto viciante e
encher os bolsos do fabricante. A preocupação com os efeitos sobre a saúde,
naturalmente, não entra nos cálculos.

O autor narra, ainda, como os fabricantes de lanches rápidos souberam explorar a


tendência infantil para o consumo de guloseimas, cheias de açúcar e vazias de nutrientes.
Estratégia escolhida (e premiada): bombardear a audiência de desenhos animados com
propagandas que carregavam mensagem de forte apelo: “Todos os dias, você tem que
fazer o que (os adultos) mandam, mas a hora do lanche é toda sua!”. Em outras palavras,
esqueça coisas chatas como saladas e comida saudável. Coma junk food. Ela foi feita para
você.

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O conhecimento do comportamento do consumidor evoluiu; os bancos de dados e as
ferramentas estatísticas sofisticaram-se. No entanto, o princípio norteador de toda ação é
simples. O que estudantes aprendem nas escolas de administração e marketing, e a
“cultura” que encontram estabelecida nas empresas, parte de um postulado implacável:
descubram o que o consumidor quer comprar e vendam em grandes volumes; se os
clientes querem açúcar ou sal, preparem produtos com esses ingredientes, em grandes
quantidades; se ingredientes caros puderem ser substituídos por ingredientes baratos,
disfarçados por embalagens atraentes, ótimo; e não se esqueçam de contratar as
melhores agências de propaganda e promover os produtos, especialmente para as
crianças, que constituem o público de hoje e de amanhã. Amém!

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Campeões... de reclamações
Algumas divagações exploratórias sobre os resultados dos rankings de
reclamação do Banco Central e do Procon.

Consta que apenas 10% do volume dos icebergs situa-se acima da superfície. Pois esse
pode ser também o caso dos rankings de reclamações, compilados por órgãos de controle
e de proteção ao consumidor. A maior parte dos problemas fica submersa, longe das
estatísticas, porém prejudica consumidores e também as empresas, penalizadas por sua
própria ineficiência. Depois dessa pequena analogia, os fatos. Em seguida, algumas
divagações sobre as razões para o estado das coisas.

O Banco Central divulgou, na segunda semana de julho de 2013, o ranking de


reclamações referente ao mês anterior: o Santander liderou a pouco gloriosa lista, com
um índice de 2,41 denúncias por 100 mil clientes, contra 1,47 do Itaú, segundo colocado.
Completando o “pódio”, vieram o Banco do Brasil (1,24), a Caixa Econômica Federal
(0,95) e o Banrisul (0,78).

Chama a atenção que dois grandes bancos privados, supostamente mais ágeis, modernos
e atentos ao mercado e aos clientes, tenham superado os mamutes estatais. As
reclamações mais frequentes referem-se a débitos não autorizados em conta, prestação
de serviço irregular na conta salário e cobrança irregular de serviços não contratados. Os
“líderes”, conforme informou o Portal InfoMoney, retribuíram a divulgação com as
declarações de praxe: estão comprometidos com o cliente, tratarão todos os casos e
prometem melhorar. Blá, blá, blá...

O ranking do Banco Central repete parcialmente os resultados de 2012 do Procon


paulistano. No ranking específico para a área financeira, o Itaú liderou o número absoluto

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de reclamações, seguido pelo Bradesco, pelo BV, pelo Santander e pelo Banco do Brasil.
No ranking geral, os bancos parecem estar conseguindo a façanha de destronar as
empresas de telefonia, alvo do ódio popular por muitos anos. Não há quem não tenha
parentes, colegas ou amigos com histórias de horror sobre problemas de atendimento
bancário. Os absurdos são tantos que dariam matéria para várias comédias pastelão, se
não fossem estressantes e, vez por outra, dramáticos.

Fica a questão: o que provoca tal situação? Os dois campeões do ranking do Banco
Central são instituições respeitáveis, embora não livres de polêmicas. O Itaú é um caso
notável de sucesso empresarial brasileiro, tem reputação sólida e orquestrou uma
trajetória consistente de expansão nas últimas décadas. O Santander é uma das maiores
instituições financeiras do mundo e um exemplo de conduta estratégica, tendo ampliado
sua presença global desde os anos 1990. Enfrentou tropeços no Brasil, mas tem no País
uma de suas principais bases de negócios.

A primeira razão para o número de reclamações é simplesmente a gigantesca base de


clientes. Atendendo milhões de indivíduos, espera-se que algumas operações gerem
problemas. No entanto, como observado acima, é preciso considerar que as reclamações
representam o topo de um iceberg de disfunções. Para cada registro no Banco Central ou
no Procon, pode haver dezenas ou centenas de problemas que não foram identificados
ou registrados.

Além disso, Itaú e Santander, como muitas outras empresas de grande porte, passaram,
nos últimos anos, por processos substantivos de mudança. O Itaú uniu-se ao Unibanco.
O Santander adquiriu o ABN-Real. A integração de organizações desse porte não é
trivial. Além dos aspectos óbvios, tais como marca, identidade visual e sistemas, é
preciso reconstruir a arquitetura organizacional, rever estratégias, práticas gerenciais e
processos de tomada de decisão. Juntar equipes diferentes, frequentemente antigos
competidores, é tarefa hercúlea, marcada por conflitos. Enquanto o topo sofre com a
“dança das cadeiras”, a média gerência vive um clima de indefinição e apreensão, e a
base da pirâmide reza pelo melhor e prepara-se para o pior. Há conhecimento e

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tecnologia gerencial de sobra para lidar com processos de integração pós-aquisição.
Inexplicavelmente, muitos desses processos continuam a ser conduzidos a partir de
abordagens reducionistas e simplórias, gerando crises e problemas previsíveis.

Para complicar, tais mudanças ocorreram em um cenário de transformação institucional,


com pressão para redução dos juros na economia. Com isso, os bancos locais passaram a
sofrer pressões para reduzir sua ineficiência e aumentar sua produtividade. Até aí,
nenhuma novidade: um quadro similar àquele experimentado por outras indústrias nas
décadas passadas. E a receita é conhecida: racionalizar estruturas, redesenhar processos e
aumentar a produtividade do trabalho. No “chão de fábrica” – as agências –, o processo
é mais objetivo e comparativamente mais simples. No meio da pirâmide, a resistência é
maior e a adaptação é mais árdua. Sofrem os funcionários, sofrem os clientes.

Agora, junte-se a esses desafios o tradicional sistema imunológico tupiniquim, sempre


apto a ignorar ou rejeitar conhecimentos de gestão e, em seu lugar, abraçar as mais
descabidas modas gerenciais. E, para apimentar o indigesto prato, adicionem-se a falta de
quadros qualificados e a incompetência crônica dos nossos quadros gerenciais. E não
nos esqueçamos da “laborfobia”: a aversão pura e simples ao trabalho real,
frequentemente substituído por reuniões sem propósito, projetos estapafúrdios e
discussões infindáveis.

Obviamente, não se espera que organizações com dezenas de milhares de funcionários,


operando em mercados de massa, sejam celeiros de gênios. Não é o caso. Entretanto,
seria saudável contar com contingentes mais bem preparados de executivos, que
soubessem aonde querem chegar e o que significa conduzir empresas de grande porte.
Infelizmente, hordas de intuitivos arrogantes, apagadores de incêndio e burocratas
autistas parecem dar o tom da gestão em muitas empresas locais, muito além dos jardins
dos campeões de reclamações. É muito amadorismo!

No entanto, a melhor explicação para os resultados dos rankings talvez venha da “teoria
dos jogos”, menina dos olhos de alguns economistas, psicólogos comportamentais e

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cientistas políticos. A atividade financeira repousa em um cipoal de regras e práticas,
nem sempre racionais, justas e claras. Os agentes – dos diretores dos bancos aos seus
gerentes de agência – movem-se e tomam decisões nesse cipoal, de acordo com seus
interesses.

De fato, eles podem estar participando de dois “jogos” simultâneos. O primeiro é o jogo
oficial, com regras fixadas pelos órgãos controladores, desdobradas internamente e
auditadas. O segundo é o jogo da busca dos lucros, claro nos objetivos, porém nem
sempre nos meios. Nesse jogo, há uma conivência tácita entre os agentes. Os agentes
planejadores receiam, de modo consciente ou inconsciente, determinar regras muito
rígidas, correndo o risco de, ao tentar reduzir as reclamações dos clientes, restringir o
“espírito capitalista selvagem” de seus agentes comerciais na busca de resultados e, dessa
forma, perder espaço para a concorrência e reduzir seus lucros. Os agentes comerciais,
por sua vez, continuam a tentar bater suas metas, agindo em zonas cinzentas,
equilibrando oportunidades e riscos. Todos buscam realizar seus objetivos, considerando
as regras e punições vigentes. Consequência: erros acontecem. Assim, as reclamações
não são mais do que o resultado previsível de um sistema criado para gerar problemas...
até certo nível.

Como resolver? Acreditar que a boa vontade e o discurso voluntarioso das empresas
mudará a ordem das coisas é utópico. Agindo sob a égide da racionalidade econômica,
ainda que frequentemente limitada e incompetente, as empresas apenas procurarão
reduzir o prejuízo aos consumidores até o ponto que isso não possa afetar
negativamente seus próprios resultados ou não possa ser compensado com esforços de
propaganda e marketing. A solução só pode ser externa: tornar as penas mais duras ou
aumentar seu impacto simbólico.

Hoje, o Banco Central e o Procon fazem divulgações burocráticas de seus registros,


disponibilizando tabelas superficialmente comentadas. O processo gera notícias vazias,
que recebem respostas vazias das áreas de relações públicas das instituições envolvidas.
Divulgar os índices é necessário, mas não é suficiente. Por trás da frieza das estatísticas,

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existem centenas de indivíduos que foram prejudicados. Não se trata de transformar
dramas humanos em espetáculo, mas de mostrar o sentido real do impacto da
incompetência das grandes burocracias sobre seus clientes.

Os automóveis não se tornaram mais seguros devido à boa consciência social e à


generosidade das montadoras, mas devido ao efeito de denúncias e campanhas públicas
de sensibilização, que relacionaram ações supostamente racionais dos fabricantes com
acidentes trágicos e mortes. A regulamentação e as práticas que se seguiram beneficiaram
consumidores e as próprias montadoras.

Talvez seja o momento de tentar estratégia similar em outros setores da economia.


Obviamente, acidentes com carroças assassinas têm mais impacto e são mais
“fotogênicos” que cobranças indevidas em cartões de crédito. A dificuldade é tornar
mais tangíveis e dignos de ultraje os prejuízos causados por produtos financeiros. Um
bom desafio para gênios publicitários de boa índole, se pudermos encontrar um
punhado deles.

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Arrastão nos escritórios
A busca da produtividade e o avanço da tecnologia poderão gerar mudanças
de grande impacto nas empresas e em ocupações do setor de serviços.

Todos os anos, no primeiro semestre, é aberta a temporada de anúncios de lucros


bilionários: um após outro, os grandes bancos em operação no Brasil anunciam seus
números. Uma queda aqui e outra ali, mas as cifras continuam astronômicas. Vender
dinheiro continua sendo um excelente negócio. Foi assim com automóveis, remédios, e
até com pontes e viadutos. Indústrias passam por ciclos: do surgimento ao crescimento,
e deste à maturidade. Então, em dado momento, o antigo oceano azul fica infestado de
tubarões, a competição aumenta e as margens mínguam. A resposta das empresas é
perseguir ganhos de produtividade (fazer cada vez mais com menos) e inovar (em
produtos, processos e negócios). Naturalmente, há expedientes “extraoficiais” para
manter os ganhos. Entretanto, estes estão cada vez mais sujeitos à presença nas colunas
policiais.

A busca por maior produtividade, mantra empresarial, pode ser um processo doloroso,
principalmente para os elos mais frágeis da cadeia produtiva. Sintomaticamente, não
faltam reações de resistência. Na base da hierarquia, as massas semiorganizadas
contrapõem como podem os cortes e enxugamentos. No meio da pirâmide, a oposição
passiva ajuda a preservar pequenas vantagens e a adiar mudanças. Resistir é fútil, alertam
os oráculos. Mais cedo ou mais tarde, cargos e empregos desaparecerão. E, se for mais
tarde, talvez levem junto as empresas que os mantiveram. O planeta está cheio de
regiões outrora exuberantes, hoje decadentes, para mostrar e demonstrar a crueza do
fenômeno.

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A edição de 18 de janeiro de 2014 da revista britânica The Economist tratou do tema. A
ilustração da capa mostrava dois tornados devastando fileiras de mesas e barnabés em
um escritório. Segundo os ingleses, o movimento que vimos testemunhando nos últimos
30 anos é análogo ao choque provocado pela revolução industrial. Para muitas profissões
e profissionais, tudo que era sólido agora se desmancha no ar. E muito mais está por vir.
Se o prezado leitor tem uma ocupação que pode ser decomposta em tarefas e
padronizada, boas chances há de que seja substituído por um robô japonês ou um
software alemão. O movimento atingiu as indústrias nos anos 1980 e 1990, e já chegou ao
setor de serviços, grande empregador de mão de obra.

Segundo a revista britânica, até agora os empregos mais vulneráveis foram aqueles que
envolviam tarefas repetitivas, de rotina. No entanto, o avanço nas tecnologias de
informação e comunicação está possibilitando o surgimento de computadores e sistemas
capazes de realizar tarefas complexas melhor que seres humanos. Um estudo da
Universidade de Oxford indica que quase metade dos trabalhos atuais poderá ser
automatizada nos próximos 20 anos.

As mudanças geram diferentes desafios para distintos atores. Para os indivíduos,


aumentam os riscos de desemprego e de obsolescência profissional. Para as empresas,
crescem a competição e a pressão para aumentar a produtividade. Para os governos,
aumenta a instabilidade no mercado de trabalho e coloca-se em risco a harmonia social.

A revolução industrial inglesa do século XIX, assim como a industrialização brasileira no


século XX, gerou benefícios materiais em longo prazo, porém provocou mudanças
traumáticas em curto prazo. A presente onda poderá gerar efeito similar: concentração
de renda, desigualdade, tensões sociais e instabilidade política. Os ganhos de longo prazo
são incertos.

O caso da indústria fotográfica, citado por The Economist, é exemplar. A Kodak, pioneira
e líder de mercado durante décadas, chegou a empregar 145 mil funcionários. Eram
operários, técnicos, vendedores e administradores. Além disso, alimentava uma malha

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gigantesca de lojas de prestação de serviços de revelação e acabamento. Apesar de seu
porte e recursos, sucumbiu à transição da tecnologia analógica para a digital. O
Instagram, um dos websites mais populares de fotografia da atualidade, foi vendido por
um bilhão de dólares ao Facebook há um ano. Contava, então, com 30 milhões de
clientes e empregava apenas 13 pessoas. Caso extremo? Talvez! Entretanto, a indústria
musical oferece exemplos similares e a indústria editorial vem seguindo caminho
parecido. Outras, a seu tempo, enfrentarão as mesmas rupturas. Preparemo-nos para as
ventanias.

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O tempo não para
O Brasil está envelhecendo. Pesquisa recente mostra o despreparo das
empresas para lidar com quadros profissionais mais maduros.

O processo é conhecido. Os custos crescem, os competidores avançam e os acionistas


querem resultados. Saída: renovar os quadros. Leia-se: livrar-se dos funcionários mais
velhos e caros, e contratar jovens efebos, com muita vontade e pequeno salário. Dito e
feito. Então, o trabalho emperra, os clientes reclamam, mas a planilha de custos fala mais
alto. E assim tem sido: a cada crise, interna ou externa, as empresas rejuvenescem seus
quadros. Alguns observadores batizaram o processo de “juniorização”.

Uma empresa juniorizada salta aos olhos. Antes, o escritório, silencioso e solene, era
dominado por calvícies e cabelos brancos. Seis meses depois, o nível de ruído aumentou
e uma horda juvenil se estabeleceu. Foram-se as regras e procedimentos, substituídos
por um frenesi frequentemente confundido com agilidade e produtividade. Porém, o
mais importante é que a folha de pagamento foi reduzida. Inferno na Terra, paz no
olimpo corporativo.

Renovar sistematicamente os quadros é um princípio de gestão importante para as


empresas. Profissionais mais jovens trazem novas ideias, colocam em xeque processos
anacrônicos e ajudam a evitar que a empresa envelheça e perca o contato com as
mudanças que ocorrem em seu ambiente de negócios. A renovação, realizada na medida
certa, traz efeitos positivos.

A juniorização, por sua vez, quando realizada com o propósito de reduzir custos,
compromete a qualidade da gestão e põe em risco o futuro das empresas. Vista como

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panaceia, acaba evitando que a empresa trate de questões mais substantivas, relacionadas
ao seu modelo de negócios e às suas práticas de gestão.

Além disso, a juniorização segue na contramão da demografia. O Brasil está


envelhecendo. Nas próximas décadas, as empresas terão que lidar com quadros
profissionais cada vez mais maduros. Uma pesquisa recente, realizada pela consultoria
PwC e pela FGV-EAESP, instituição à qual este escriba está ligado, procurou avaliar
como o mundo corporativo está se preparando para o fenômeno. Foram ouvidas mais
de 100 empresas, representando diversos segmentos da economia. Algumas conclusões
são preocupantes.

Em primeiro lugar, menos de 40% das organizações pesquisadas reconhecem que


quadros mais maduros podem constituir uma alternativa para a escassez de talentos,
problema que hoje afeta centenas de empresas brasileiras, freando seus planos de
crescimento. Consequentemente, não há, na maioria das empresas, mecanismos para
atrair e manter tais quadros.

Em segundo lugar, as empresas reconhecem que profissionais mais maduros possuem


competências valiosas, relacionadas à capacidade de realizar diagnósticos e resolver
problemas, além de apresentar maior equilíbrio emocional. Paradoxalmente, elas não
contam com modelos de gestão de carreira que facilitem os processos pelos quais tais
características poderiam ser mais bem exploradas. Além disso, as práticas que permitem
aos mais velhos transferir experiência aos mais jovens são pouco desenvolvidas.

Em terceiro lugar, há poucas iniciativas para garantir melhor qualidade de vida e para ter
quadros mais saudáveis no futuro. Há também poucas ações para acomodar o perfil e as
necessidades dos profissionais que se encontram próximos da aposentadoria.

Em suma, a maioria das empresas parece não ter ainda tomado consciência de que a
evolução da pirâmide demográfica e as mudanças no mercado de trabalho demandarão

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alterações em suas práticas de gestão de carreiras. No centro da questão, situa-se uma
dificuldade para reconhecer o valor de quadros mais maduros e para administrá-los.

Psicólogos têm desenvolvido escalas para observar e medir a capacidade de indivíduos


de realizar raciocínios ponderados e maduros. Tais escalas consideram, entre outros
fatores, o desejo de procurar oportunidades para resolver conflitos, a disponibilidade
para buscar soluções de compromisso, o reconhecimento dos limites do conhecimento
pessoal e o reconhecimento de que podem existir diferentes perspectivas para resolver
um problema.

Estudos realizados pelo psicólogo social canadense Igor Grossmann, da Universidade de


Waterloo, com norte-americanos, comprovam que indivíduos mais velhos obtêm, em
tais escalas, escores mais altos. A sabedoria vem mesmo com a idade. Entretanto, a
cultura na qual os indivíduos estão imersos também interfere, acelerando ou,
eventualmente, retardando o processo de amadurecimento.

Organizações que apostam na juniorização, com o propósito de reduzir custos, e


ignoram a evolução do nosso perfil demográfico, estão agindo contra seus próprios
interesses. Além de desperdiçar competências e características que vêm com a
maturidade, podem estar inadvertidamente estimulando uma cultura que inibe o
amadurecimento.

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Os lobinhos de Wall Street
Um filme de Woody Allen, outro de Martin Scorsese, o mundo das finanças e
a vida como ela é.

Em 2013, dois ícones do cinema apontaram suas lentes para o extravagante mundo das
finanças. Woody Allen escreveu e dirigiu Blue Jasmine, narrando a história de Jeanette
"Jasmine" Francis (Cate Blanchett), esposa de um milionário que é preso por fraudes
financeiras. Martin Scorsese dirigiu e coproduziu O Lobo de Wall Street, baseado nas
memórias de Jordan Belford, um corretor que acumulou fortuna com negócios
fraudulentos, até ser encarcerado.

O filme de Allen foi comparado à peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams,
por similaridades relacionadas aos personagens e à história. O vaporoso mundo das
finanças constitui a origem da riqueza e da tragédia de Jasmine. No filme de Scorsese,
Jordan Belford (Leonardo DiCaprio) encarna os excessos e a flexibilidade moral
frequentemente associados ao mundo das finanças. Personagens, estilo e enredo
remetem a Goodfellas (1990), retrato primoroso da ascensão e queda de uma família
mafiosa, e Cassino (1995), registro singular da intersecção entre negócios e crimes em Las
Vegas.

Obviamente, há muito mais do que personagens extravagantes e estripulias fraudulentas


nos templos do dinheiro. Kevin Roose, autor de Young Money: Inside the Hidden World of
Wall Street’s Post-Crash Recruits (Grand Central Publishing), lançado em fevereiro de 2014,
pesquisou os lobinhos que habitam os porões do sistema. Roose acompanhou, por três
anos, jovens recrutas de renomadas instituições financeiras.

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Seus personagens vieram das melhores universidades, cheios de energia, com alguns
ideais e com muita vontade de enriquecer. Entretanto, viram seu entusiasmo ser
arrefecido por pilhas de relatórios enfadonhos, jornadas intermináveis e chefes
intolerantes. O autor informa que os salários ainda são respeitáveis, porém não houve
entrevista na qual os jovens profissionais não tivessem reclamado do declínio de sua
qualidade de vida e confessado problemas relacionados à saúde física e mental.

Roose concluiu que três fatores explicam por que Wall Street (leia-se: partes
consideráveis do mundo das finanças) é um lugar insalubre. O primeiro fator relaciona-
se às longas horas de trabalho. Muitos profissionais de outras ocupações trabalham duro.
A diferença no mercado financeiro são a turbulência e a instabilidade. Pedidos urgentes
podem vir a qualquer momento do dia ou da noite, e o atendimento tem que ser perfeito
e imediato. A consequência é que os jovens profissionais vivem em estado permanente
de alerta e ansiedade.

O segundo fator é o vil metal. Indústrias vivem ciclos. Informática, telefonia móvel e
consultoria tiveram seus bons momentos, atraindo recrutas com boas perspectivas de
carreira e com bons salários. Mas nada dura para sempre. O mercado financeiro também
teve anos felizes. Hoje, é um mundo em transição. Ainda há bons empregos e bons
salários, mas os controles aumentaram, as margens de lucro tendem a cair e a
possibilidade de demissão projeta uma sombra permanente sobre os mais jovens.

O terceiro fator refere-se ao senso de propósito. Segundo Roose, jovens profissionais


têm objetivos que transcendem o acúmulo de riqueza. Alguns são iludidos por conversas
sobre “negócios socialmente responsáveis” e “investimentos verdes”. Porém,
rapidamente, o discurso da moda cede espaço ao pragmatismo: no mundo das finanças,
alguém perde para alguém ganhar. E o objetivo é estar do lado dos ganhadores.
Naturalmente, há sempre um contingente de jovens “espertos”, capazes de conviver sem
problemas de consciência com tal lógica.

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O quadro não é diferente nos trópicos. Também aqui muitos universitários almejam o
enriquecimento rápido e o status de pertencer a uma grande instituição financeira. No
entanto, colegas professores coletam com frequência relatos sinistros de alunos e ex-
alunos lutando contra úlceras e depressões. Trocam amigos e família por trabalho.
Hipotecam a saúde por prêmios e bônus, esperando que o corpo possa ser resgatado
mais tarde. A satisfação, ou orgulho, de trabalhar para uma grande instituição financeira
está cedendo lugar à indiferença, ou ao embaraço, de estar ligado a um templo do
dinheiro. E o contracheque cada vez mais magro não parece mais ser suficiente para
adoçar a consciência.

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Gênios e idiotas
Executivo celebridade relata em obra autobiográfica sua convivência de quase
cinco décadas com figuras de proa da indústria automobilística.

Bob Lutz nunca chegou ao topo de uma grande montadora de automóveis. Entretanto,
por meio século, foi executivo importante nessa indústria que marcou o século XX e,
menos glamourosa e mais criticada, continua marcando o século XXI. Lutz nasceu na
Suíça, fez MBA em Berkeley, foi piloto de caça dos Marines e vendeu aspiradores de pó
para sustentar a família. Iniciou sua carreira na General Motors. Passou pela Opel,
BMW, Ford e Chrysler, e retornou à General Motors, nem sempre fazendo amigos. Seu
hobby é colecionar carros clássicos, aviões de caça e motocicletas. Coisa de menino!

Seu último livro – Icons and Idiots: Straight Talk on Leadership (Portfolio) – é um relato
autobiográfico de sua convivência com personagens marcantes da indústria
automobilística. O autor conviveu com seus pares no olimpo corporativo em tempos de
bonança e crise. Liderou processos importantes de desenvolvimento de novas linhas de
produto e chegou perto de ser nomeado número um, mas foi preterido.

Em entrevista concedida à revista Esquire, Lutz resume seu ponto de vista: qualquer
indivíduo criativo e empreendedor comete erros. Brilhantismo e idiotismo não são
sempre fáceis de separar. Então, é aconselhável estar sempre alerta e prestar muita
atenção na reação da plateia.

Seus personagens, que dão título aos capítulos, compõem uma galeria curiosa de
maníacos prodigiosos, manipuladores sem clemência, celebridades inseguras e tiranos
destemperados. Um de seus chefes na General Motors é descrito como racista,
homofóbico e estúpido, porém claro nas decisões e objetivo na comunicação. Que bom!

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Outro chefe, com alto posto de comando na mesma empresa, tinha como maior
qualidade a total incapacidade de atrapalhar seus liderados. Em suma: era uma nulidade.
Tipos similares foram encontrados nas passagens pelas empresas concorrentes. Um
executivo da Ford era tão obsessivo com a redução de custos que conteve investimentos
para reduzir problemas em uma linha de produtos, apostando que aqueles só surgiriam
depois do final da garantia, deixando, assim, o abacaxi para o consumidor. Esperto!

Também não faltam ao livro fofocas, registros de vícios e esquisitices de figurões, como
um presidente da Ford que mantinha um álbum com fotos de figuras ilustres sob o título
“pessoas importantes que me conheceram” (humilde!) e um alto executivo da General
Motors na Europa que era constantemente resgatado ébrio de seu bar preferido em
Frankfurt e levado para casa. Provavelmente bebia para tornar os outros mais
interessantes!

Lutz, como é praxe no mundo corporativo, venera realizadores, mesmo aqueles de


caráter duvidoso. Um chefão da BMW, maquiavélico e sempre disposto a se apropriar
das ideias de seus subordinados, tem seus pecados delatados, porém é também elogiado
por ter transformado a empresa alemã em uma marca global. Burocratas e tecnocratas,
amantes de métodos e planilhas, por outro lado, parecem ganhar apenas o
reconhecimento contrariado do autor. Se não pode ser medido, não existe: é o lema da
tribo. Bobagem, para Lutz, que parece preferir a intuição. Ainda assim, ele reconhece a
importância de acompanhar metas e orçamentos.

Lições aprendidas? Primeiro: pessoas são complicadas. Nenhuma novidade! Segundo:


pessoas trabalhando em cargos importantes em grandes empresas são ainda mais
complicadas. Sem dúvida! Terceiro, se você tem que lidar com pessoas complicadas e
poderosas, ignore as esquisitices e tente ver o lado bom. Boa sorte! Quarto, se você é a
pessoa complicada, cuidado para não se comprometer, mostrando suas esquisitices na
hora errada ou para a plateia errada. De novo, boa sorte!

67
O leitor de Icons and Idiots quiçá conclua ao final do livro que o estado sofrível das
gigantes empresas norte-americanas no final dos anos 2000 não foi obra somente da
concorrência internacional ou da situação econômica adversa. Foi, principalmente, fruto
da ação incompetente de seus próprios gestores. Os grandes líderes corporativos
também têm pés de barro. Mais assustador, talvez, seja constatar que muitas empresas
atuais, ao Norte e ao Sul, sofrem com tipos similares. E nem sempre os idiotas de
plantão têm as qualidades daqueles descritos por Lutz.

68
O mito do gerente ocupado
Quatro décadas de estudos científicos demonstram: de muita agitação e
pouco trabalho efetivo é feito o dia a dia do executivo.

Tome-se a agenda de um executivo (ou executiva) do alto escalão e será fácil constatar a
frenética sucessão de reuniões, encontros, compromissos e viagens. As maratonas diárias
começam cedo e terminam tarde. Frequentemente, até mesmo as “pontas” do dia são
amarradas com cafés da manhã e jantares de negócios. A vida social, a família e a saúde
sofrem. A pressão constante por resultados e a rotina estressante vitimam corações e
mentes.

Observe-se o quadro no meio da pirâmide e constatar-se-á retrato semelhante: metas a


cumprir, incêndios a apagar e longas jornadas de trabalho. O caos do topo reflete-se e
amplifica-se no meio e também na base da pirâmide. Repete-se também o refrão de
explicações: competição acirrada, instabilidade no mercado e pressões por resultados.

Mas o que tanto ocupa a agenda executiva? Haverá tanto trabalho a ser feito? Quatro
décadas de pesquisas sobre a natureza do trabalho executivo sugerem que essa incrível
agitação pode ser resultado de uma mistura de incapacidade, indisciplina e faz de conta.

Em 1975, Henry Mintzberg, publicou na Harvard Business Review um texto seminal sobre
o trabalho executivo. O conhecido pesquisador conseguiu separar mitos (o que os
executivos aparentam fazer) e fatos (a realidade de trabalho do dia a dia). Primeiro, os
executivos são vistos como planejadores disciplinados, mas a pesquisa mostrou que eles
frequentemente evitam a reflexão e privilegiam a ação. Segundo, os executivos são
percebidos como seres distantes das maçantes rotinas da empresa, mas a investigação
revelou que, ao contrário, eles dedicam parte considerável de seu tempo a alimentar a

69
burocracia corporativa. Segundo, os executivos são vistos como tomadores racionais de
decisão, mas a pesquisa demonstrou que muitas decisões são tomadas em encontros
informais, sem o apoio de informações confiáveis e de análises estruturadas.

Nos anos 1980 e 1990, novas investigações, conduzidas por diferentes pesquisadores,
exploraram a dimensão cerimonial da ação dos executivos. Por serem vistos como
homens (e mulheres) de ação, eles (e elas) tendem a agir antes e justificar depois.
Frequentemente identificam problemas, ameaças e oportunidades a posteriori, para
justificar medidas já definidas ou ações já realizadas. Além disso, dedicam parte
considerável de seu tempo a alimentar cerimônias que reforçam e consolidam sua
posição e suas decisões.

No início dos anos 2000, os pesquisadores Heike Bruch e Sumantra Ghoshal revelaram,
em um artigo de grande repercussão, os resultados de 10 anos de pesquisa com
executivos de grandes empresas. Seguiram o espírito e o tom dos trabalhos anteriores.
De executivos, afirmavam os autores, o que mais se escuta é que o tempo é o seu
recurso mais escasso. Cada minuto é investido em questões importantes, estratégicas. Na
prática, o que se vê é diferente: eles (e elas) correm de reunião em reunião, verificam seus
e-mails compulsivamente e não se separam de seu smartphone.

A pesquisa de Bruch e Ghoshal revelou que 90% dos executivos gastam parte
considerável de seu tempo em atividades improdutivas. Os autores dividiram os
executivos observados em quatro grupos: os procrastinadores, os desengajados, os
distraídos e, finalmente, os objetivos (os 10% que são de fato efetivos). Os
procrastinadores cumprem suas rotinas, frequentando reuniões e elaborando relatórios,
porém são inseguros e raramente tomam iniciativas. Os desengajados têm foco, mas não
têm energia. Preferem negar os problemas a tomar as medidas necessárias para resolvê-
los. Os distraídos são bem-intencionados, porém confundem movimentação frenética
com ação focada e construtiva. Sobram os executivos objetivos, com senso de propósito
e energia para aproveitar oportunidades e vencer dificuldades.

70
Somem-se os três primeiros grupos e teremos uma massa difícil de ser vencida pelos
10% que restaram. Os resultados podem ser assustadores, porém não devem
surpreender. Quem observar com olhar atento e crítico o ambiente de trabalho de
qualquer organização provavelmente se deparará com muita agitação e pouco trabalho.
O dia de trabalho começa cedo e termina tarde, mas pouco trabalho realmente útil, bem-
direcionado e produtivo é realizado. A conta da incompetência é alta e amplamente
socializada.

71
Equilibristas bêbados
Executivos precisam atuar em diversas frentes e balancear diferentes
demandas, porém alguns desempenham seu papel como se estivessem
embriagados.

Girar pratos constitui um tradicional ato circense, no qual um malabarista mantém um


grande número de pratos girando sobre varetas. Frequentemente, o ato é combinado
com acrobacias e sequências humorísticas. Consta que o recorde mundial pertence a
David Spathaky (nome artístico: The Great Davido), que girou 108 pratos
simultaneamente. O notável fato foi registrado pela TV em Bangkok, em 1996.

Girar pratos é também uma conhecida metáfora para o trabalho gerencial. Muitos
executivos, quando perguntados sobre sua rotina, respondem com a frase “continuo
tentando manter os pratos no ar”. A expressão, aplicada ao mundo corporativo, tem
vários significados. Primeiro, traduz o lado performático da atividade executiva:
gerenciar é manter a plateia atenta e alegre. Segundo, chama a atenção para a necessidade
de dar conta de diferentes frentes de trabalho: o preço do sucesso é a eterna vigilância.
Terceiro, lembra que há sempre o risco de ocorrer um desastre: a qualquer momento,
um prato pode escapar da vareta e espatifar-se no chão.

Collin Price, diretor do escritório de consultoria McKinsey & Company em Londres, fez
eco ao senso comum: publicou artigo na revista da empresa (McKinsey Quarterly),
sugerindo que liderança tornou-se, de fato, a arte de girar pratos. O consultor refere-se
aos paradoxos que caracterizam a vida nas organizações e à necessidade dos executivos
de buscarem posições de equilíbrio, nem sempre triviais.

72
Sua principal premissa é que a forma racional para buscar melhores resultados nas
organizações, focando questões financeiras e operacionais, e trabalhando com metas,
pode não ser a maneira mais efetiva. Não deixa de parecer irônico, dado que sua
empresa construiu um impressionante portfólio de clientes vendendo justamente esse
tipo de abordagem. Price parece ter descoberto que, embora gostemos de ver as
empresas como manifestações da racionalidade, a realidade frequentemente nos mostra
que ações e decisões corporativas são comumente marcadas pela imprevisibilidade e pela
excentricidade do comportamento humano.

A sugestão de Price é abraçar a condição paradoxal da vida corporativa e buscar


situações de equilíbrio. Assim como os malabaristas tentam manter seus pratos no ar, os
executivos devem tentar direcionar esforços para incentivar os comportamentos que
alinham as organizações com as suas maiores prioridades.

O consultor identifica grandes paradoxos que marcam a vida corporativa. Dois deles
merecem destaque. O primeiro paradoxo envolve mudança e estabilidade. Toda empresa
que deseja sobreviver precisa manter-se no passo de mudança de seu ambiente.
Frequentemente, isso implica realizar alterações na estratégia, reformar estruturas,
renovar quadros e acelerar o desenvolvimento e lançamento de produtos. No entanto, o
excesso de mudanças causa estresse e gera resistência. De fato, muitas empresas vêm
sofrendo com instabilidades desnecessárias e autoimpingidas. Sofrem os clientes, os
funcionários e os acionistas. Mais sensato é procurar o equilíbrio entre mudança e
estabilidade, respeitando os limites das pessoas e dos processos.

O segundo paradoxo envolve controle e autonomia. Toda organização necessita de


normas e processos para operar. Algumas empresas, entretanto, por incapacidade
gerencial, operam em um vácuo de regras. Tornam-se erráticas e caóticas, tomando
decisões ao sabor do momento. Por outro lado, o excesso de controle condena os
funcionários à condição de meros executores, inibindo a criatividade e a capacidade de
iniciativa. Como as bandas de jazz, as empresas precisam de regras básicas para operar,
de modo que cada profissional possa, no momento correto, improvisar e criar.

73
A mensagem de Price tem méritos. De fato, para enfrentar os desafios do dia a dia, os
executivos devem aceitar a natureza paradoxal da vida nas empresas e reconhecer que
sua atividade é permeada por contradições. Infelizmente, muitos executivos parecem agir
como equilibristas bêbados. Sobra-lhes desinibição e falta-lhes consciência. Se
trabalhassem “sóbrios”, talvez fossem capazes de reconhecer a real natureza de sua
tarefa e manter todos os pratos no ar.

74
PARTE 3 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A ACADEMIA

75
Nova era da ciência
Artigo publicado pela revista Nature defende a aceleração da cooperação
internacional na pesquisa científica.

Certa vez, um colega estrangeiro solicitou a este escriba participação em uma


investigação sobre padrões de cooperação internacional na ciência. Objetivo: entender
por que acadêmicos latino-americanos buscam cooperar com norte-americanos e
europeus, mais do que com seus próprios vizinhos, na atividade de desenvolvimento e
publicação de trabalhos científicos.

Não faltam hipóteses. Europa e América do Norte ainda concentram parte considerável
da produção científica mundial. Os mais renomados institutos de pesquisa, as principais
universidades e as revistas de maior impacto encontram-se em países dessas regiões. O
clube prima pela meritocracia, porém é frequentemente acusado de elitista. Ali e acolá, a
porosidade vem aumentando. O centro vem atraindo contingentes crescentes de
asiáticos e eslavos.

Enquanto isso, a periferia tropical mantém um sistema caro e ineficiente de pesquisa,


com algumas ilhas de excelência, cercadas por mares estagnados pela indolência e pelo
corporativismo. Sua insularidade é garantida por um sistema de autoavaliação que
assegura pequenas benesses mediante reduzidos esforços.

Matéria veiculada pela revista Nature, no final de maio, trata do mesmo tema da
cooperação internacional em pesquisa. Jonathan Adams, o autor, argumenta que a
atividade de pesquisa, essencial para sustentar o avanço econômico e a qualidade de vida,
progrediu em três eras: a individual, a institucional e a nacional. Agora, segundo o
especialista, estamos iniciando a quarta era, caracterizada pela colaboração internacional

76
entre grupos de elite. Nesta nova era, as instituições de pesquisa que não estabelecerem
parcerias internacionais podem tornar-se irrelevantes.

Adams conduziu uma pesquisa que incluiu cerca de 25 milhões de artigos científicos,
publicados de 1981 a 2012. Foram analisados seis países desenvolvidos – Estados
Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Holanda e Suíça – e cinco países em
desenvolvimento – China, Índia, Coreia do Sul, Brasil e Polônia. Nos países
desenvolvidos, a produção científica total cresceu, enquanto a parte exclusivamente
doméstica dessa produção se manteve estável. Portanto, o crescimento foi consequência
de parcerias internacionais.

Nos países emergentes, ao contrário, o rápido crescimento registrado deveu-se


essencialmente ao aumento de trabalhos gerados internamente. Em 1981, esses países
publicavam menos do que 15 mil artigos científicos. Hoje, publicam mais do que 300
mil, porém aproximadamente três quartos da produção científica da China, do Brasil, da
Índia e da Coreia do Sul ainda são de origem doméstica.

Adams também constatou que o impacto dos trabalhos assinados por autores de mais de
um país supera aquele dos trabalhos exclusivamente domésticos. Além disso, essa
diferença parece aumentar ao longo do tempo. O impacto, ou fator de impacto, indica
quanto o trabalho de um pesquisador é citado por outros pesquisadores, ou seja, revela a
importância do trabalho no campo de conhecimento. O autor chama a atenção para o
caso inglês. No reino de Elizabeth II, as instituições de pesquisa que apresentam maiores
taxas de trabalhos colaborativos internacionais atingem maior impacto e concentram
parte substantiva das verbas para pesquisa.

O fenômeno pode repetir-se globalmente, com a criação de duas classes de instituições


de pesquisa: um grupo de elite que produz ciência em um sistema de colaboração
internacional e um grupo periférico, que produz ciência com foco doméstico. A
segregação viria somar-se a outra, já existente, entre grandes instituições de pesquisa, que

77
atraem os melhores talentos e os maiores recursos, e instituições periféricas, menos
capazes de aglutinar esses preciosos recursos.

Atentas às mudanças e tendências, muitas instituições em todo o mundo vêm


incentivando a construção de redes internacionais de cooperação. O caminho é árduo:
compatibilizar interesses, agendas e egos exige doses maciças de tolerância e paciência.
Adams cita como exemplo de mobilidade e cosmopolitismo científico a Holanda, que,
segundo ele, atinge patamares invejáveis de excelência, apesar de recursos financeiros
limitados. Miremos os Países Baixos!

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O caminho das pedras
Para enfrentar a dura prova de publicar nos principais periódicos científicos
internacionais, muitos pesquisadores brasileiros estão recorrendo a assessorias
cada vez mais sofisticadas.

Foi uma criança prodígio. Dissecava drosófilas aos seis anos de idade e resolvia equações
aos oito. A família exibia seus dotes para os vizinhos, e o avô vaticinava: vai ser cientista.
Destino marcado, carreira definida. Um quarto de década depois, realizou a profecia do
avô. Graduou-se com pompa e doutorou-se com circunstância. Conquistou um posto
em um templo do saber e colocou seu cérebro a serviço da ciência. Agora, só falta
aprender a escrever. Surpreendente? Nem tanto.

Hoje, não basta descobrir a cura do câncer ou a fórmula para a estabilização da


economia mundial. É preciso definir o nível de análise, utilizar o referencial teórico
adequado e empregar a metodologia correta. Louis Pasteur, Adam Smith e Sigmund
Freud teriam seus trabalhos rejeitados nas principais revistas científicas de nosso tempo.
Os avaliadores denunciariam a falta de rigor estatístico, as amostras insuficientes e o
conteúdo opiniático dos trabalhos.

Nos últimos anos, aumentou consideravelmente a pressão sobre os pesquisadores


brasileiros para que elevem seus índices de publicação. Gostemos ou não, a ciência está
hoje organizada como uma grande linha de produção, na qual os operários ganham por
metro de artigo publicado. Ocorre que a língua oficial da ciência é o inglês e os principais
periódicos do mundo são anglófonos, realidade que costuma irritar os anglófobos.
Então, precisamos aprender a escrever (e pensar) na língua do Bardo.

79
Em um número publicado em abril de 2011, a revista Pesquisa Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) trouxe matéria sobre o tema. O jornalista
Fabrício Marques retratou o desafio enfrentando pelos cientistas e sua consequência: a
proliferação de serviços especializados em redação científica.

De fato, serviços de tradução e edição existem há bastante tempo. No exterior, algumas


revistas científicas contam com apoio de editores profissionais, para aperfeiçoar os
textos publicados. Editoras como a Nature Publishing Group, que publica a revista
Nature, e a Elsevier oferecem serviços de edição e treinamento para quem quiser pagar
por eles. Entretanto, a onda atual vai além: envolve orientação para definir o objetivo do
artigo, os argumentos centrais e o encadeamento lógico de ideias. Inclui também dicas
sobre como valorizar o próprio artigo e como se apresentar aos editores: um verdadeiro
trabalho de marketing pessoal. As principais universidades públicas paulistas, responsáveis
por parte considerável da produção científica brasileira, entraram na onda, criando áreas
internas de apoio aos pesquisadores e contratando serviços de assessoria.

Para os brasileiros, uma das principais dificuldades pode ter origem em nossa estrutura
de pensamento. No artigo clássico “Cultural Thought Patterns in Intercultural
Education”, de 1966, o linguista Robert B. Kaplan descreve como indivíduos de
diferentes culturas estruturam seus textos. O trabalho foi baseado em sua experiência
com estudantes internacionais. O autor constatou que, enquanto estudantes anglo-saxões
aplicavam um estilo objetivo, indo direto ao ponto, os asiáticos aproximavam-se em
círculos e os russos seguiam uma trajetória titubeante, com ideias mal relacionadas. Não
há registro de estudantes brasileiros na amostra de Kaplan, mas eles poderiam ser
incluídos em um grupo de comportamento similar ao dos russos.

Kaplan foi criticado por simplificar a realidade e por fazer generalizações impróprias.
Ainda assim, suas conclusões continuam sendo uma explicação convincente para a
dificuldade que muitos de nós, latinos, enfrentamos para organizar as ideias e produzir
textos no estilo econômico e direto que se tornou dominante na ciência. Se acreditarmos
em Kaplan, então a tarefa das novas assessorias de preparação de artigos científicos

80
merece todo o respeito: vencer certos estados de confusão mental é, de fato, uma tarefa
hercúlea.

Ou, talvez, os cientistas possam fazer como as empresas de software ou alguns escritórios
norte-americanos de contabilidade, que terceirizam seus serviços na Índia. Exagero?
Hoje, sim; amanhã, quem sabe? O fato é que muitos cientistas brasileiros, como seus
colegas de outras partes do mundo, estão usando cada vez mais apoio especializado para
escrever seus trabalhos e poder encaminhá-los para o duro funil das melhores revistas
científicas do planeta.

Usar os recursos disponíveis para aprender o jogo da ciência global é legítimo.


Entretanto, a embalagem sozinha não garante o sucesso. É preciso ter uma ideia original,
usar a metodologia correta, gerar resultados relevantes e trazer uma contribuição
científica significativa. Afinal, nada substitui o conteúdo.

81
Pseudoacademia
A popularização dos periódicos científicos de acesso livre, fenômeno
importante da democratização do conhecimento, caminha junto com a
proliferação de “periódicos predadores”.

Os indícios são preocupantes: não há semana em que não cheguem à caixa postal deste
escriba duas ou três notícias de novos congressos científicos, mais uns tantos convites
para publicar artigos nos mais recentes periódicos acadêmicos. Os eventos espalham-se
por todos os continentes: de Glasgow a Bangkok, de Macau a Orlando... Las Vegas
parece ser um destino preferencial. Não faltam menções explícitas ao turismo. As novas
publicações, por sua vez, têm nomes pomposos e sonoros, misturando termos
ressonantes: interdisciplinary, cross-cultural, international, advances. Nada de nomes simples,
como Science, Econometrica ou Journal of Finance. Os editores parecem gostar de nomes
longos e sonoros, em inglês, obviamente.

Alguns diretórios internacionais já listam quase 20 mil revistas científicas. É preciso


mais? O que está acontecendo? Estaremos vivendo em uma nova era das luzes, com a
explosão do saber científico em todo o planeta, ansiando por ver a luz do dia, rompendo
as barreiras impostas pelas revistas e pelos congressos mais tradicionais, abrindo novos
espaços para anunciar as boas novas? O fim do câncer e da celulite? A descoberta da
energia renovável e barata? A reversão do aquecimento global e a mitigação da tensão
pré-menstrual?

Vamos aos antecedentes: muitas revistas científicas internacionais de sólida tradição e


consolidada reputação são publicadas por editoras privadas, que cobram pequenas
fortunas pelo acesso ao seu conteúdo, fazendo do negócio editorial uma grande e
lucrativa indústria. Outras são publicadas por sociedades científicas. Porém, estas têm

82
despesas e usam as receitas de assinaturas para custeá-las. Afinal, não há almoço gratuito!
Com a internet e a índole libertária de alguns cientistas, surgiram os periódicos abertos,
supostamente mais democráticos. A maioria deles ainda não tem a tradição dos irmãos
mais velhos, porém é vista com crescente simpatia pela comunidade científica. Até aqui,
tudo bem!

Entretanto, o fenômeno parece ter gerado uma sombra nefasta. É o mundo da


pseudoacademia, como explicou Gina Kolata, uma jornalista científica do The New York
Times, em texto veiculado em abril de 2013. Segundo a autora, o número de publicações
e encontros científicos explodiu nos últimos anos, à medida que emergia um novo
modelo de negócios, baseado no pagamento pela publicação, feito pelos autores, em
substituição ao pagamento pelo acesso, feito por leitores e assinantes. O sinal de alarme
veio com o surgimento de revistas científicas dispostas a publicar (quase) qualquer texto,
desde que o autor pague a taxa requerida. Curiosamente, muitos dos novos periódicos e
das novas conferências têm nomes similares àqueles de revistas e eventos já tradicionais!
As consequências podem ser sinistras, pois pode ficar ainda mais difícil distinguir
pesquisa séria de pesquisa frágil.

Jeffrey Beall, um especialista ouvido por Kolata, estima que existam hoje mais de quatro
mil “periódicos predadores” sendo publicados, representando, no mínimo, um quarto do
número de periódicos de acesso livre. Ele mesmo sintetiza o modelo dos predadores:
baixas barreiras de entrada, pouco trabalho e dinheiro fácil. Em suma, um ótimo
negócio, que está dando origem a pequenos impérios editoriais. Um desses grupos,
citados por Kolata, publica 250 revistas científicas e cobra dos autores 2.700 dólares por
artigo.

E a operação é relativamente simples. Cria-se um título que pareça acadêmico,


convidam-se alguns incautos para o conselho científico – uma posição de honra em
revistas sérias – e segue-se a caça de autores, frequentemente por e-mail. Como nos casos
de spams, alguns desavisados acabam mordendo a isca e enviando um artigo. Então, o
texto é rapidamente aprovado e a cobrança, feita. Negócio fechado!

83
Naturalmente, nem todos são inocentes. O modelo de negócio dos predadores conta
com a ingenuidade ou a ambição do “cliente”, que busca, com a publicação de seu texto,
embelezar seu currículo, fortalecer sua reputação e alavancar sua carreira acadêmica. O
fenômeno traz uma alerta para os trópicos, onde a comunidade científica foi seduzida há
tempos pela ideia de fazer crescer quantitativamente sua lista de publicações.

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A ciência no pântano
Um artifício criativo orquestrado por editores de revistas científicas brasileiras
expõe mais uma faceta obscura da academia.

O website da revista Nature veiculou, no dia 27 de agosto de 2013, matéria sobre a


descoberta de um “esquema” criado por revistas científicas brasileiras para inflar
artificialmente seus fatores de impacto, uma medida universal de relevância. As
consequências para as próprias revistas e para os pesquisadores que nelas publicaram
artigos foram dramáticas. A Thomson Reuters, organização que calcula e divulga o fator
de impacto de revistas científicas, suspendeu os periódicos de seus rankings. A CAPES,
nossa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, anulou a
contagem da produção de 2010 a 2012 das revistas para efeito da avaliação trienal de
programas de pós-graduação, prejudicando dezenas de pesquisadores. Os fatos
ocorridos expõem o estado das coisas no mundo da ciência.

No imaginário popular, a ciência é mistério e descoberta. Os cientistas são admirados


pela dedicação ao bem comum, como se fossem um tipo especial de ser humano:
inteligentes e altruístas, sempre prontos a colocar a ciência e a verdade acima de seus
interesses pessoais. Visão romântica? É quase certo. Na prática, a ciência está se
tornando uma máquina cara e ineficiente, comumente monitorada por uma burocracia
autista. E os cientistas estão se transformando em operários de uma linha de montagem
autocentrada, frequentemente insensível às necessidades da sociedade.

A regra da profissão é simples: se você trabalha na Ambev, a cada ano tem que empurrar
alguns litros de álcool a mais goela abaixo dos consumidores de sua zona de atuação; se
você é um cientista, a cada ano tem que empurrar mais artigos científicos goela abaixo
dos editores e avaliadores das revistas acadêmicas de seu campo de estudos. Conforme

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publica artigos, o operário da ciência acumula pontos, que conferem prestígio, aceleram
a carreira e facilitam o acesso a recursos.

Ocorre que o espaço nas boas revistas científicas é muito disputado, e a maioria dos
artigos é rejeitada. Que fazer? A própria comunidade acadêmica encontrou uma
resposta, multiplicando o número de revistas. Tal medida é positiva, porque abre espaço
para a disseminação do conhecimento. Entretanto, o processo para uma revista científica
tornar-se importante é árduo. É preciso atrair bons autores e trabalhos relevantes. A
evolução é medida pelo fator de impacto, que indica quantos artigos, em uma longa lista
de periódicos científicos, citaram artigos de uma determinada revista.

O pequeno escândalo surgiu porque editores de quatro revistas científicas brasileiras da


área médica utilizaram um esquema que gerou um aumento rápido em seus respectivos
fatores de impacto. Em 2011, elas publicaram artigos citando textos umas das outras. A
peraltice não passou despercebida aos analistas da Thomson Reuters, ciosos da
reputação de seu ranking. O fenômeno não é exclusivamente local. Diversas revistas
científicas internacionais induzem autores interessados a citar artigos publicados por elas
mesmas. Todos os anos, dezenas de periódicos são suspensos pela Thomson Reuters
por usarem artifícios para inflar seus fatores de impacto.

O triste evento é mais uma peça podre a emergir do pântano no qual a ciência está se
transformando. Nas últimas décadas, o Brasil multiplicou seu número de cientistas. Há,
entre eles, grandes cérebros, estrelas ascendentes e uma legião de abnegados, porém
muitos não honram o título. São pequenos burocratas, acomodados à lerdeza dos campi
universitários. Vivem de verbas públicas. Realizam pesquisas de utilidade duvidosa para
delas extrair máxima vantagem.

O culto ao fator de impacto, uma métrica útil, porém descabidamente valorizada, gera
distorções. Algumas instituições de ensino adotam como prática contratar pesquisadores
para “envernizar” seus indicadores e conseguir melhores avaliações. No debate que se
seguiu à divulgação do esquema, o alvo oscilou entre os editores responsáveis pelas

86
revistas e o “sistema”, considerado injusto e vicioso. Terá sido o esquema uma solução
criativa para enfrentar um sistema anacrônico? O tempo talvez traga a resposta. O
pântano pode ser extenso e profundo. Novas surpresas poderão emergir a qualquer
momento.

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A arte de turvar ideias
Pesquisador inglês, incomodado com o jargão científico, investiga em livro as
razões do hermetismo acadêmico nas ciências sociais.

A administração de empresas é uma profissão. É também uma ciência social aplicada, na


qual pesquisadores se debruçam sobre os mais variados fenômenos. Finanças, marketing,
recursos humanos, gestão de operações: cada área abrange centenas de temas que são
continuamente observados e analisados por exércitos de pós-doutores, doutores e quase
doutores. Tudo em prol da ciência e da prática administrativa... teoricamente.

A massa de conhecimento gerado é impressionante. Os 30 periódicos científicos mais


importantes do mundo publicam, cada um, de 50 a 60 artigos por ano. E, além dessa
seleta lista, há dezenas de outras revistas acadêmicas, congressos e teses, produzindo
conhecimentos muito além da imaginação de qualquer gerente de agência bancária.
Entretanto, como ocorreu em outros campos científicos, a superespecialização no
campo de administração tornou parte dos artigos e trabalhos desenvolvidos inacessível à
maioria dos mortais.

A Academy of Management Review é um dos periódicos acadêmicos de maior tradição e


prestígio na área de administração. No principal ranking de publicações científicas, esse
periódico norte-americano é o primeiro nas categorias de gestão e de negócios. Um
rápido exame dos artigos publicados dá um bom retrato da praga do jargão científico.
Na edição de outubro de 2013, por exemplo, podemos encontrar títulos tais como: “The
Social Negotiation of Group Prototype Ambiguity in Dynamic Organizational Contexts”
e “Shatering the Myth of Separate Worlds: Negotiating Nonwork Identities at Work”.

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Se cruzarmos o Atlântico, a situação é semelhante. A edição de novembro de 2013 do
periódico Organization Studies, um dos mais respeitados da Europa, traz pérolas como:
“Rogue Resistance: Sidestepping Isomorphic Pressures in a Patchy Institutional Field” e
“Can Sociological Paradigms Still Inform Organizational Analysis? A Paradigm Model
for Post-Paradigm Times”. Simples!

Michael Billig, um professor de ciências sociais da Universidade Loughborough, no


Reino Unido, realizou uma longa reflexão sobre as causas do hermetismo nas ciências
sociais. No livro Learn to Write Badly: How to Succeed in the Social Sciences (Cambridge
University Press), o autor descreve sua frustrante experiência com leituras acadêmicas.
Ao iniciar o doutorado, Billig sentia-se incapaz diante dos textos científicos. Sua
estratégia de sobrevivência consistia em “traduzir” o que lia em termos mais simples.
Vez por outra, finalizada a “tradução”, ficava perplexo. Teria sido uma falha sua ou
aqueles autores estavam apenas escrevendo trivialidades com uma linguagem rebuscada?

Ao longo da carreira acadêmica, Billig desenvolveu uma visão ácida acerca dos textos
acadêmicos e sua prosa pomposa, frequentemente pobre de ideias. Segundo ele, nas
últimas décadas, aumentou consideravelmente a pressão para produção de artigos
científicos. Cada campo foi se tornando mais e mais fragmentado: a academia tornou-se
uma gigantesca colcha de retalhos, habitada por pequenos círculos de pesquisadores,
produzindo apressadamente.

Dentro dessas pequenas tribos, pesquisadores determinam seus temas de investigação


pensando em assuntos que agradem seus pares e que facilitem futuras publicações, não
com base no que pode ser do interesse das organizações ou da sociedade. Além disso,
acadêmicos competem por recursos, por cargos e por atenção. Por isso, agem como
pequenas agências de publicidade, vendendo produtos para seus pares e para editores de
revistas científicas.

A superespecialização e o hermetismo geram impactos negativos também na formação


de futuros gestores. Em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico, Dominique

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Turpin, diretor do IMD, uma renomada escola de administração suíça, comentou que as
instituições de ensino estão se tornando cada vez mais acadêmicas, buscando professores
não por sua capacidade de ensino, mas por sua capacidade de publicar artigos científicos.
Tais profissionais são experts, como exemplifica Turpin, em trilhas sonoras para
supermercados, cores para rótulos de garrafas ou preços na indústria farmacêutica.
Como poderão ensinar gestores que precisam ter visão generalista e dominar assuntos
variados? Onde estará a resposta, meu amigo? Soprando ao vento?

90
Festa agridoce
Uma das mais respeitadas instituições educacionais do País celebrou em 2011
um feito extraordinário. Porém, há mais por fazer do que a comemorar.

Festa da roça no Butantã: a Universidade de São Paulo celebrou, em 2011, o marco de


100 mil dissertações e teses defendidas. O número impressiona. Segundo dados
divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, a maior universidade da América Latina conta
com 22 mil estudantes de pós-graduação, 53% deles mestrandos e 47% deles
doutorandos. O ícone paulista forma 25% dos doutores do Brasil e responde por igual
percentual da pesquisa realizada no País. É um dos carros-chefes para o aumento do
número de mestres e doutores no Brasil, objetivo-fetiche dos burocratas da educação,
sediados no Planalto Central.

Entretanto, nem tudo é festa. Quando se trata de avaliar a USP perante as melhores
instituições internacionais, sua posição é incompatível com sua fama local. Existem,
dentro da instituição, conhecidas ilhas de excelência, porém o quadro geral é
preocupante. No moderno mundo da produção científica, quantidade não se traduz
diretamente em qualidade. Formar muitos mestres e doutores, e publicar muitos artigos,
pode agradar à CAPES (a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, órgão federal que regula e avalia nossos programas de pós-graduação), mas não
garante um lugar ao sol na praia cada vez mais internacionalizada da geração de
conhecimento.

Vozes ilustres da própria universidade reconhecem o inquietante estado das coisas.


Percebe-se que muitos trabalhos científicos são realizados apenas para atender a
burocracia, e que é preciso melhorar a qualidade e, principalmente, o impacto da
pesquisa realizada. Afinal, uma instituição de ensino superior não pode ser um sistema

91
fechado, trabalhando em torno de si mesma. Ela deve ajudar a sociedade a identificar e
solucionar suas questões mais prementes e relevantes.

O problema do baixo impacto da pesquisa não é exclusivo da USP, tampouco novidade.


N’algum momento do passado, pressionadas a melhorar seus índices de formação e de
produção científica, muitas universidades parecem ter emulado os princípios e técnicas
de produção em massa. Enquanto o governo federal e os órgãos de educação apontavam
a necessidade de formar mais mestres e doutores, grupos internos organizavam-se para
aumentar seu espaço na concorrida arena política universitária. Da conjugação de
interesses, veio a implantação gradativa de um modelo do tipo fast-food, de produção e
consumo rápidos. Infelizmente, um sistema que funciona bem para automóveis,
geladeiras e lanches rápidos pode mostrar-se pouco efetivo na área da educação e da
geração de conhecimento.

Hoje, no campo da administração de empresas (ciência aplicada na qual este escriba


atua), a pós-graduação parece funcionar tal qual uma linha de montagem. Há indícios de
que outros campos operem da mesma forma. Nas instituições locais, os doutores iniciam
seus pupilos na arte da produção científica. Eles os pressionam a produzir em série, a
levar suas criações a congressos de magra audiência e veiculá-las em revistas de parca
relevância. O processo tem início com a atração de noviços. Esses jovens compõem uma
fauna variada. Há, entre eles, moços e moças com real aptidão para a pesquisa. Juntam-
se a estes os alpinistas acadêmicos, a perseguir um título que lhes confira mais valor no
mercado. Há também os fugitivos do mundo corporativo, à busca de empregos públicos
que lhes garantam bom sustento e pouco trabalho. Muitos desses candidatos trazem as
deficiências usuais do nosso sistema educacional: faltam-lhes raciocínio lógico e analítico
e, frequentemente, domínio adequado da língua pátria.

Para o sistema, tudo que entrar deve sair. Então, muitos noviços seguirão claudicantes
pela linha de montagem, até que uma banca examine, com repugnância reprimida e
tolerância exacerbada, o produto de sua labuta. Muitas dissertações e teses deixam a
linha de montagem com lacunas teóricas e restrições metodológicas. Poucas servem para

92
desenvolvimento teórico ou aplicação prática. Seu destino é mofar nos depósitos das
universidades locais: as bibliotecas.

Para que serve tal sistema, que ilude e frustra os noviços, e ainda trai a sociedade que o
sustenta? Primeiro, para manter o emprego dos mestres e doutores. Segundo, para
legitimar as instituições de ensino diante aos reguladores brasilienses. Terceiro, para
perpetuar o próprio sistema, concedendo títulos (de duvidoso valor) a futuros mestres e
doutores. Quarto, para dar uma chance aos noviços de aprender alguma coisa que
deveriam ter aprendido antes: ler, escrever e pensar em linha reta. E, finalmente, na
quinta prioridade, para gerar conhecimento útil para o País. Infelizmente, mesmo à custa
de sangue, suor e lágrimas, e do uso de fundos públicos, são poucos os profissionais que
chegam ao final dessa lista.

93
Inferno na torre de marfim
As “modernas” linhas de montagem universitárias, que produzem doutores e
pesquisas científicas, são caras, frequentemente improdutivas e estão se
tornando insalubres.

Certas profissões e ocupações povoam os sonhos dos jovens, sugerindo autorrealização


ou simbolizando status. Porém, após conhecerem o apogeu, parecem seguir para um
inevitável declínio. A engenharia, a advocacia e a medicina já tiveram dias melhores, mas
seguem a trilha da proletarização, perdendo o prestígio e a aura. A economia e a
administração também mostram sinais de decadência, depois de momentos fugazes de
glória. Fenômeno similar parece atingir a ocupação de professor-pesquisador, praticada
por uma pequena elite, incrustada nos andares mais elevados das torres de marfim do
ensino superior. Comecemos pelo sonho. Depois, o feijão.

O professor-pesquisador, profissional que atua em programas de pós-graduação, é um


ser privilegiado. Não é nem será um milionário, mas conta com salário digno e emprego
vitalício. Tem liberdade para trabalhar no que lhe interessa e conta com acesso facilitado
aos recursos de fundos de pesquisa. Viaja regularmente pelo mundo, para discutir suas
descobertas científicas em cidades fascinantes e resorts bucólicos. Dedica-se à nobre
função do magistério, mas durante apenas oito meses por ano. Leciona poucas horas por
semana para pequenas classes povoadas por corações interessados e mentes brilhantes.
Seu horário de trabalho é flexível e seus objetivos e metas são determinados por ele
mesmo. Vive em um campus arborizado e tranquilo, longe da poluição e da agitação. Seus
encontros sociais envolvem conversas inteligentes sobre temas relevantes. Desobrigado
de olhar para o tedioso presente, concentra-se em desvendar o passado e mirar o futuro.
De tempos em tempos, para ampliar seus horizontes, tem direito a um período sabático,
durante o qual, com apoio de uma agência governamental, leva sua família para a Europa

94
ou os Estados Unidos. É reconhecido por seus pares e pela sociedade, que o têm na
mais alta conta, por sua sapiência e dedicação desinteressada ao bem comum. Afinal,
ajuda a edificar os pilares do nosso progresso tecnológico e a formar nossa futura elite
intelectual.

Essa imagem idílica pode ser observada em Harvard, Oxford e Cambridge ou, mais
provável, nas películas de Hollywood que romanceiam a vida nessas universidades. No
entanto, a realidade parece caminhar em outra direção. Em renomadas instituições de
ensino locais, o mato cresce, o ar-condicionado não funciona, as mentes brilhantes
deram lugar a criaturas conformistas e opacas, e a vida acadêmica assemelha-se cada vez
mais ao trabalho em uma linha de montagem fordista, com capatazes, metas e uma
irritante burocracia.

Consequência: cresce o descontentamento com condições de trabalho e com as pressões


por produtividade na torre de marfim. Parte da revolta deve-se à reação usual a
mudanças. No entanto, há também uma preocupação legítima com um sistema caro,
pouco produtivo e que apresenta efeitos colaterais preocupantes, como a multiplicação
de mestres e doutores ineptos e a proliferação de artigos científicos que nunca serão
lidos.

Uma pesquisa publicada por Otacilio Antunes Santana, do Centro de Ciências Biológicas
da Universidade Federal de Pernambuco, explora outra dimensão preocupante da
mesma questão: o efeito das condições de trabalho sobre a saúde dos docentes de pós-
graduação. Seu ponto de partida foi a constatação de aumento de pedidos de licenças
médicas, principalmente aquelas relacionadas a sintomas ou consequências de doenças
cardiovasculares.

Santana analisou dados de 540 professores, de seis faixas etárias, entre 36 e 65 anos de
idade. Suas conclusões fazem eco a um debate emergente na academia brasileira, acerca
da pressão por produção científica e pela formação de mestres e doutores. A pesquisa
comprovou que quanto maiores o número de publicações científicas e o número de

95
orientandos, maior o número de intervenções cardíacas, doenças coronárias e acidentes
vasculares cerebrais. Em suma: trabalhar, nessas condições, faz mal! O quadro é
agravado, segundo Santana, pela falta de dieta equilibrada, de atividades físicas e de
acompanhamento médico regular dos docentes.

Nas mais diversas latitudes e longitudes, o modelo tradicional de universidade está sendo
criticado. Acelerar a linha de montagem e produzir mais mestres, doutores e artigos
científicos é uma resposta simples para o desafio que se coloca, mas parece estar
matando os operários e prejudicando a qualidade da produção. Pode ser mais um marco
da passagem da era da elite bem-pensante para a era da pesquisa burocrática, conduzida
por operários do conhecimento, uma etapa que talvez ainda resulte em ciência, mas, por
enquanto, apenas mascara um sistema caro, improdutivo e insalubre.

96
Mal-estar na academia
Editorial da revista The Lancet toca na sensível questão da desorientação da
pesquisa científica e seu limitado impacto social.

The Lancet é uma das mais tradicionais, conhecidas e respeitadas publicações científicas
da área médica. A revista foi criada pelo cirurgião inglês Thomas Wakley no primeiro
quartil do século XIX. É o The New York Times das revistas acadêmicas: se lá foi
publicado, é porque é verdade e deve ser lido; quase sempre...

Além de publicar os mais relevantes estudos da medicina, a revista não se priva de


assumir posições firmes e provocar polêmicas. Em 2003, um editorial propôs, sem meias
palavras, o banimento do tabaco no Reino Unido. Em 2009, a revista acusou o Papa
Bento XVI de distorcer evidências científicas para promover a doutrina católica sobre a
castidade na prevenção da AIDS. Um ano depois, um artigo da revista elegeu como alvo
o álcool, acusando-o de causar problemas mais graves do que aqueles provocados por
algumas drogas ilícitas.

Agora, um editorial publicado no início de fevereiro de 2013 atrai a atenção do leitor


com o instigante título: “Qual é o propósito da pesquisa médica?”. Em pauta, a
fragilidade do processo de construção de conhecimento na medicina. Pode não ter sido a
intenção do autor, mas as provocações contidas no texto ultrapassam as fronteiras da
pesquisa médica e poderiam ser dirigidas a outros campos científicos.

Segundo o editorialista, a cada ano, são investidos 160 bilhões de dólares em pesquisas
na área médica. Entretanto, suspeita-se de que o benefício social seja, no mínimo,
duvidoso. Em 2009, Ian Chalmers e Paul Glasziou, em um texto publicado na própria
The Lancet, estimaram que 85% das pesquisas realizadas desperdiçam recursos ou são

97
ineficientes. As deficiências abrangem quatro dimensões: a falta de relevância para
médicos e pacientes; a inadequação do escopo e dos métodos; a dificuldade de acesso
aos resultados; e restrições relacionadas à imparcialidade e à significância clínica. Em
outras palavras, apenas 15% das pesquisas são confiáveis e relevantes.

Ainda segundo o editorialista, quando se pergunta qual o propósito da pesquisa médica,


a maioria das pessoas responde sem vacilar: “Avançar o conhecimento para o bem da
sociedade, para melhorar a saúde das pessoas em todo o mundo; ou encontrar melhores
maneiras para tratar e prevenir doenças”. A realidade, entretanto, é bem diferente. O
ambiente acadêmico é um palco onde atuam diferentes grupos de interesse, e as forças e
pressões resultantes nem sempre conduzem aos nobres ideais citados no início do
parágrafo.

O sistema de financiamento à pesquisa costuma adotar procedimentos burocráticos e


enfatiza resultados de curto prazo, nem sempre coerentes com as características da
investigação proposta. A avaliação por pares e especialistas é, repetidas vezes, opaca e
demorada. Empresas farmacêuticas amiúde patrocinam pesquisas, buscando o máximo
retorno para seu investimento. E as próprias instituições de pesquisa, operando com
mentalidade empresarial, pensam cada vez mais em termos de desempenho,
frequentemente utilizando o número de publicações científicas como indicador de
sucesso.

O editorialista encerra seu texto com uma chamada para a ação: chegou a hora de fazer
uma reflexão crítica sobre o estado das coisas e repensar a forma como a pesquisa é
conduzida: primeiro, é preciso que os pesquisadores se lembrem do propósito real da
ciência; segundo, é necessário criar processos participativos que possam definir que
pesquisas são necessárias e que impacto se deve esperar delas; terceiro, as instituições de
pesquisa e universidades devem avaliar pesquisadores com base em resultados de longo
prazo; e quarto, os próprios pesquisadores devem se lembrar de por que escolheram suas
carreiras. Afinal, é deles a responsabilidade de defender um ambiente propício à
pesquisa.

98
A provocação da revista The Lancet não causa surpresa. Trata-se de mais um sinal do mal-
estar resultante do estado das coisas na torre de marfim. Há tempos vêm surgindo, nas
mais diversas áreas e latitudes, críticas e apelos a mudanças. As universidades modernas
nutriram uma elite peculiar de pesquisadores, uma classe sofisticada, apartada do mundo
ao redor e zelosa de seus pequenos privilégios. Onde ocorreu, a tentativa de domesticá-la
pela adoção de uma pletora de práticas de negócios parece ter gerado mais efeitos
colaterais do que resultados positivos.

Reformar o sistema não é tarefa trivial. Sua missão foi desvirtuada, recursos estão sendo
mal utilizados, mentes brilhantes estão sendo desperdiçadas e o impacto social fica
aquém das mais justas expectativas. Nada disso, entretanto, parece ser suficiente para
fazer frente a um modelo que soma pequenas inércias para criar um gigante imune e
entorpecido, deitado em berço esplêndido.

99
Slow science
Na França, pesquisadores abraçam um movimento contra a
“mcdonaldização” da ciência. Enquanto isso, nos trópicos, a slow bureaucracy
tenta implantar a fast science.

O frenesi da globalização e seus descontentes. Consta que tudo começou com o


cozinheiro Carlo Petrini. Na década de 1980, esse italiano participou de uma campanha
contra a abertura de uma loja McDonald’s em Roma. Nasceu pouco depois o
movimento slow food, voltado para a preservação da cozinha regional e tradicional, contra
a mesmice e a pressa do onipresente fast-food. O sucesso cruzou fronteiras e atraiu
seguidores em mais de 150 países. Na esteira, vieram o slow living, o slow travel e o slow
cities. Como guarda-chuva, cunhou-se o termo slow movement.

Um filósofo norueguês – Guttorm Fløistad – conferiu ao movimento poesia e


princípios: “A única coisa que podemos tomar como certeza é que tudo muda. A taxa de
mudança aumenta. Se você quer acompanhar, melhor se apressar. Esta é a mensagem
dos dias atuais. Porém, é útil lembrar a todos que nossas necessidades básicas não
mudam. A necessidade de ser considerado e querido! A necessidade de pertencer. A
necessidade de estar próximo e de ser cuidado, e de um pouco de amor! E isso é
conseguido apenas pela desaceleração das relações humanas. Para ganharmos controle
das mudanças, devemos recuperar a lentidão, a reflexão e a capacidade de estarmos
juntos. Então encontraremos a verdadeira renovação”.

Agora, da terra do resistente Asterix, nos chega uma nova onda do slow movement: a slow
science. Seus arautos condenam a cultura da pressa e do imediatismo que invadiu, nos
últimos anos, as universidades e outras instituições de pesquisa. A fast science, segundo os
rebeldes franceses, busca a quantidade acima da qualidade. Aprisionados pela lógica do

100
“produtivismo” acadêmico, os pesquisadores tornam-se operários de uma linha insana
de montagem. E quem não se mostrar agitado e sobrecarregado, imerso em inúmeros
projetos e atividades, será prontamente cunhado de improdutivo, apático ou preguiçoso.

Os cientistas signatários da slow science entendem que o mundo da ciência sofre de uma
doença grave, vítima de uma ideologia da competição selvagem e da produtividade a
todo preço. A praga cruza os campos científicos e as fronteiras nacionais. O resultado é
o distanciamento crescente dos valores fundamentais da ciência: o rigor, a honestidade, a
humildade diante do conhecimento, a busca paciente da verdade.

A “mcdonaldização” da ciência produz cada vez mais artigos científicos, atingindo


volumes muito além da capacidade de leitura e assimilação dos mais dedicados
especialistas. Muitos trabalhos são publicados, engrossam as estatísticas oficiais e os
currículos de seus autores, porém poucos são lidos e raros são, de fato, utilizados na
construção da ciência.

Os defensores da slow science acreditam que é possível resistir à fast science. Sonham com a
possibilidade de reservar ao menos metade de seu tempo para a atividade de pesquisa; de
livrarem-se, vez por outra, das demandantes atividades de ensino e das tenebrosas
atividades administrativas; de privilegiar a qualidade em detrimento da quantidade de
publicações; e de preservar algum tempo para os amigos, a família, o lazer e o ócio.

A eventual chegada da onda da slow science aos trópicos deve se observada com atenção.
Por aqui, cruzará com a tentativa de fomentar a fast science. Entre nós, o objetivo de
aumentar a produção de conhecimento levou à criação de uma slow bureaucracy, que avalia
e controla o aparato científico. A implantação gradativa da lógica fast, com seus
indicadores e suas métricas, pretende definir rumos, estabelecer metas, ativar as
competências criativas da comunidade científica local e contribuir para a construção do
futuro da augusta nação. Boas intenções!

101
Entretanto, os efeitos colaterais são consideráveis. A lógica fast está condicionando os
cientistas operários a comportamentos peculiares. Sob as ordens de seus capatazes
acadêmicos, ou por iniciativa própria, eles estão reciclando conteúdos para aumentar
suas publicações; incluindo, em seus trabalhos, como autores, colegas que pouco ou
nada contribuíram; e assinando, sem inibição, artigos de seus alunos, aos quais eles
pouco acrescentaram. Tudo em prol da melhoria de seus indicadores de produção.

Enquanto as antigas gerações vão se adaptando, aos trancos e barrancos, ao modo fast,
as novas gerações de pesquisadores já são formadas sob os princípios da nova doutrina.
Aqui, como ao Norte, vão adotando o lema da fast science: publish or perish (publique ou
desapareça). E, se o objetivo é publicar, vale tudo, ou quase tudo. Para onde vão os
cientistas e a ciência? O destino não é conhecido, mas eles estão indo cada vez mais
rápido.

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Universidades virtuais
A educação presencial não anda lá bem das pernas. Serão os modelos virtuais
capazes de responder aos enormes desafios atuais ou apenas reproduzirão e
ampliarão os vícios existentes?

George Bernard Shaw fuzilou: “Desde pequeno tive que interromper minha educação
para ir à escola”. Albert Einstein não ficou atrás: “É um milagre que a curiosidade
sobreviva à educação formal”.

Nossa sociedade celebra a educação, mas não perde oportunidade de criticar as escolas.
E não faltam motivos. O Brasil tem um sistema peculiar. Nossa antiga classe média
frequenta colégios privados e universidades públicas, nas quais entra sem objetivos, que
frequenta sem inibições e de onde sai sem aspirações. Durante quatro ou cinco anos,
convive com mestres de imponentes insígnias e pouco apreço à educação. Nossa nova
classe média frequenta colégios públicos e universidades privadas, nas quais entra com
algumas ambições, que frequenta como pode e de onde sai por sorte. Durante quatro ou
cinco anos, convive com mestres que são verdadeiros operários do ensino, com muitas
contas a pagar e pouco tempo para se dedicar.

Agora, dizem os sabidos, a grande novidade é a universidade virtual. Mais uma vez,
profetizam, as novas tecnologias operarão o milagre de transformar água em vinho,
pedra em pão. Será?

A Coursera é um start-up norte-americano criado pelos professores de ciência da


computação Daphne Koller e Andrew Ng, da Universidade de Stanford, matriz maior de
empresas do Vale do Silício. A empresa foi criada com a missão de oferecer,
gratuitamente, por meio da internet, a qualquer indivíduo, a melhor educação do mundo,

103
leia-se, aquela oferecida pelas melhores universidades. Por enquanto, a empresa
sobrevive graças a investidores.

O fato relevante foi o anúncio recente de que mais uma seleta lista de universidades
concordou em fornecer conteúdo para a Coursera disponibilizar na internet. As parceiras
da empresa agora incluem as universidades de Princeton, Duke, Stanford, Pennsylvania,
Michigan, Toronto e Edinburgh, entre outras. Uma delas já declarou que reconhecerá
créditos realizados na Coursera, e outras duas informaram que colocarão mais 3,7
milhões de dólares na empresa, elevando os investimentos a 22 milhões de dólares. No
próximo período letivo, a Coursera pretende oferecer mais de 100 cursos on-line, visando
atingir 100 mil alunos. Não é pouco!

A educação superior tornou-se uma grande questão e, ao mesmo tempo, um grande


negócio, atraindo empreendedores e investidores. A Coursera não está sozinha. Seus
concorrentes incluem o projeto edX, da Universidade de Harvard e do MIT, a Udacity e
a Minerva. No Brasil, há iniciativas similares, tais como o Veduca, da iniciativa privada, e
a Univesp, do governo do Estado de São Paulo.

Pensada como negócio, a educação superior é extremamente ineficiente: é cara, atende


apenas uma pequena parcela da população e desperdiça recursos, à medida que cada
professor (um recurso escasso e caro) cria seu próprio conteúdo e o repete, semestre a
semestre, para pequenas plateias, nem sempre muito interessadas. Segundo Koller, da
Coursera, as aulas tradicionais surgiram há centenas de anos, quando havia apenas uma
cópia do livro, a do professor. Portanto, a única maneira de transmitir o conteúdo era o
professor sentar na frente da classe e ler o livro. Hoje, com o uso das tecnologias de
informação e comunicação, há maneiras mais eficientes de transmitir conteúdo, sugeriu a
empreendedora em entrevista para a revista The Atlantic.

Naturalmente, as investidas da lógica de mercado sobre a educação superior causam


arrepios. Entretanto, iniciativas como as da Coursera não devem ser temidas. Aulas ao
vivo, para grandes plateias, como ocorre com frequência nos ciclos básicos dos cursos

104
superiores, estão se tornando anacrônicas. Alguns professores tentam agir como
animadores de auditório, usando anedotas e recursos performáticos para manter a
atenção das hordas de apedeutas. A vítima é o aprendizado.

Um sistema de estudo dirigido, com apoio de recursos on-line e que respeite o ritmo do
aprendiz pode, eventualmente, ajudar. Afinal, o valor de frequentar uma instituição de
ensino superior não está nas aulas básicas, mas no contato com professores e colegas, na
criação de redes de relacionamento e, principalmente, no trabalho conjunto e na
realização de projetos de interesse comum.

Iniciativas como as da Coursera e de seus pares estão ainda em sua infância. Os


conteúdos são fragmentados, e muitos registros foram feitos simplesmente colocando-se
uma câmera no fundo de uma sala de aula. A estética é pobre, e o material divulgado não
é atraente. Uma grande promessa pode transformar-se em grande decepção. Não terá
sido a primeira vez. Não será a última. Talvez, o que precisamos é de mais Jean Piaget e
menos Bill Gates, mais Paulo Freire e menos Steve Jobs.

105
A crise do giz
Novas tecnologias, novos métodos e a suposta redução da capacidade de
atenção dos alunos colocam em xeque o modelo tradicional de aula
expositiva.

Um quadro do século XIV, pintado por Laurentius de Voltolina, mostra uma aula em
Bolonha. Do lado esquerdo, sentado em um púlpito elevado, vê-se o pomposo
professor. À sua frente e à sua lateral, em fileiras de carteiras fixas, encontram-se pouco
mais de 20 estudantes. Apenas quatro ou cinco deles parecem escutar atentamente o
mestre; alguns miram seus cadernos, outros conversam e dois parecem dormitar.

Séculos depois, a cena das salas de aula não parece ter mudado. O visitante que entrar
hoje, ao acaso, em uma sala de aula, provavelmente se deparará com cena similar. O
mestre talvez seja mais jovial e comunicativo do que aquele do quadro de Voltolina.
Entretanto, à sua frente, estarão os mesmos estudantes entediados. Poucos estarão
atentos à cena, muitos outros estarão mergulhados em seus notebooks e smartphones, e
alguns provavelmente estarão cochilando.

A escola permanece, para muitos, um lugar de enfado e tédio, ou o sacrifício a fazer por
um diploma. O dramaturgo britânico George Bernard Shaw deixou para a posteridade,
entre outras tantas pérolas, o registro de que os únicos momentos nos quais sua
educação foi interrompida foram aqueles nos quais estava na escola. O “educador
futurista” David Thornburg declarou, em uma entrevista para a revista The Atlantic, que,
de todos os lugares de sua infância, a escola era o mais depressivo.

Séculos preservaram a essência da instituição. Décadas recentes de desenvolvimento


pedagógico não lhe alteraram as feições, e os últimos anos de revolução tecnológica

106
parecem ainda não ter surtido efeito. O quadro-negro deu lugar à tela. O computador
substituiu o giz. Agora, a febre são as aulas em vídeos, no YouTube. No entanto, são as
mesmas aulas de sempre, ou versões pioradas.

Nos últimos anos, as aulas expositivas parecem ter se transformado em vilão e alvo
preferencial de críticos. Buscam-se novas dinâmicas e métodos. Será esse realmente o
melhor caminho? Algumas aulas produzem efeito narcótico, mas decretar o fim do
modelo talvez seja prematuro. Richard Gunderman, um professor de medicina da
Universidade de Indiana, escrevendo para a revista The Atlantic, observa que há boas e
más aulas. Gunderman argumenta que a presença física do professor faz diferença: bons
professores são capazes de despertar a imaginação dos pupilos e inspirá-los. Preparar
uma boa aula é uma arte, que requer esforço e muitas horas de prática.

Hoje, a informação está disponível nos mais diversos meios. O objetivo da aula é
contagiar os estudantes: contar uma história, com começo, meio e fim, transmitir o
entusiasmo do mestre pelo assunto e tornar os pupilos seus “cúmplices”. Uma boa aula
não é uma repetição mecânica de teorias e modelos. É um processo interativo, no qual
ator e audiência interagem e, eventualmente, trocam papéis. “O bom professor abre os
olhos dos aprendizes para novas questões, conexões e perspectivas que eles não
consideraram antes, iluminando novas possibilidades para trabalhar e viver”, argumenta
Gunderman.

Em Monsieur Lazhar, filme canadense de 2011, dirigido por Philippe Falardeau, Bashir
Lazhar é um argelino refugiado em Montreal. Ávido por um emprego, ele oferece seus
serviços a uma escola fundamental, escondendo a falta de experiência como professor.
Ansiosos por substituir uma professora que cometera suicídio na escola, traumatizando
seus pupilos, a diretora contrata Bashir. Seus métodos tradicionais incluem ditados,
leituras clássicas francesas, e a reversão do arranjo de mesas e cadeiras ao antiquado
modelo de fileiras paralelas. Entretanto, à medida que a história evolui, a relação com os
estudantes desenvolve-se positivamente e Bashir os ajuda a enfrentar o trauma da perda
de sua antiga professora, enquanto supera suas próprias perdas.

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Ensinar e aprender é um processo relacional que vai além dos métodos e das
tecnologias. Diz essencialmente respeito a relações humanas. Não é entretenimento ou
diversão. Tampouco é sofrimento. Envolve escutar, avaliar, refletir e praticar. Pode ser
penoso, às vezes, mas deve sempre recompensar estudantes e professores. Pode usar
novos métodos e novas tecnologias, mas depende essencialmente da construção de um
palco para a interação coletiva.

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A favor da sociedade
Instituições de ensino e pesquisa deveriam orientar mais explicitamente suas
políticas e ações para a geração de benefícios tangíveis para a sociedade.

No dia 26 de dezembro de 2013, o médico Marco Antonio Zago foi escolhido pelo
governador de São Paulo, a partir de uma lista tríplice, para o cargo de reitor da USP.
Durante sua campanha, Zago declarou à imprensa que “a USP precisa fazer mais. Isso
porque, além de centro produtor de conhecimento e de formação, a USP tem que ser
instrumento de mudança da sociedade”.

A declaração de Zago é significativa. De fato, existe no mundo acadêmico crescente


preocupação com o impacto social, ou seja, em gerar conhecimento e realizar atividades
capazes de trazer melhorias para a sociedade. A ambição é ir além do ensino, das
pesquisas e da publicação de livros e artigos. O objetivo é prover benefícios tangíveis.

O tema do impacto social não é novo. O marco inicial das preocupações atuais é
frequentemente atribuído ao trabalho pioneiro do norte-americano Wannevar Bush. Seu
relatório: “Science: the Endless Frontier”, divulgado em 1945, advogava que a ciência
deveria satisfazer as necessidades da população, e os motores da prosperidade seriam o
conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico. Portanto, quanto mais
recursos fossem aplicados na ciência, maior seria o benefício social.

A partir dos anos 2000, percebeu-se que o avanço do conhecimento não implica,
inexoravelmente, a criação de riqueza, e que bem-estar social é mais do que crescimento
econômico. Isso levou à busca de indicadores de impacto mais sensíveis às demandas
sociais.

109
No entanto, medir o impacto social do conhecimento gerado em universidades e
instituições de pesquisa não é tarefa trivial. Para desvendar o enigma, diversos países
desenvolveram e testaram sistemas para avaliação do impacto social. Um relatório da
Comissão Europeia, de 2010, documenta os casos da Finlândia, da Alemanha e da
Holanda. Os processos de geração, disseminação e apropriação do conhecimento variam
significativamente entre disciplinas. Em cada campo do conhecimento, existem
mecanismos específicos que podem transformar os resultados da pesquisa ou do
processo de geração do conhecimento em impacto social. Por isso, o modelo de
avaliação deve ser multidimensional. Para cada dimensão, deve-se responder a questões
práticas e objetivas.

A primeira dimensão refere-se às atividades de ensino e aprendizado. Estamos formando


profissionais nas especializações corretas e com as competências necessárias para atender
a sociedade? Ou mantemos cursos e conteúdos anacrônicos, defasados dos interesses e
das necessidades do País?

A segunda dimensão relaciona-se à utilização do conhecimento gerado para


desenvolvimento da ciência. As pesquisas que estamos gerando são relevantes, e estão
sendo utilizadas e citadas por outros pesquisadores, levando ao avanço da ciência em
seus diversos campos? Ou produzimos artigos científicos apenas para satisfazer
interesses próprios, melhorar os indicadores da instituição e atender a burocracia estatal
de controle da educação?

A terceira dimensão refere-se à disseminação científica, envolvendo os processos de


difusão do conhecimento além da academia. Estamos divulgando os resultados de
pesquisas para os atores sociais interessados, “traduzindo” e comunicando as
descobertas mais relevantes por meio da mídia geral ou especializada? Ou esperamos
comodamente que nos procurem e decifrem nossos livros e artigos?

A quarta dimensão relaciona-se à geração de inovações, orientadas para o mercado.


Estamos gerando patentes e contribuindo para o crescimento econômico? Ou as

110
pesquisas que realizamos raramente têm aplicação prática e pouco contribuem para os
processos de inovação das empresas?

A quinta dimensão refere-se à influência sobre diretrizes e políticas públicas. Estamos


realizando estudos que avaliam as políticas públicas e contribuem para o seu
aperfeiçoamento? Ou estamos apenas produzindo fragmentos críticos inconsequentes,
cheios de opiniões e pobres em consistência?

Na última década, muitas instituições de ensino e pesquisa orientaram-se para o


chamado “produtivismo” acadêmico, buscando aumentar seu número de artigos
publicados. Na luta para polir os indicadores, sofreu a qualidade, perdeu-se a alma.
Estabelecer, ou recuperar, o norte do impacto social pode ser boa medida para
construção de uma utopia menos instrumental e mais saudável.

111
Procuram-se professores
O mundo precisa de pensadores críticos e bem informados, mas muitos deles
parecem pouco interessados nas questões mundanas da sociedade.

Assim escreveu Nicholas Kristof, jornalista ganhador de dois prêmios Pulitzer, em uma
coluna do The New York Times, publicada em 15 de fevereiro de 2014: “Alguns dos
pensadores mais inteligentes sobre questões domésticas ou do mundo ao redor são
professores universitários, mas a maioria deles simplesmente não tem importância nos
grandes debates de hoje”. O puxão de orelhas veio de longe, mas a distância não reduz a
pertinência, tampouco o efeito.

O colunista explica que a opinião desses especialistas é frequentemente desconsiderada


por ser “acadêmica”, o que, em muitos ambientes, equivale a uma acusação de
irrelevância. O preconceito soma-se à conhecida pergunta: O senhor trabalha ou só dá
aulas? Refletem o baixo prestígio das atividades de pesquisa e ensino na sociedade e o
que Kristof denomina anti-intelectualismo da vida americana. De fato, a ojeriza ou
simples preguiça em relação à vida inteligente é um fenômeno também presente em
muitas outras áreas de planeta. Nos tristes trópicos, graça há tempos um verdadeiro
culto do que é rasteiro, ligeiro, baixo e vulgar. O fenômeno afeta as falas, as letras, as
telas e as paisagens. Está presente nas atitudes e nos comportamentos. Para parte
considerável da população, em todos os extratos econômicos, pensar dói.

Entretanto, observa o colunista do The New York Times, o problema não é que o país
tenha marginalizado seus pensadores, mas que eles marginalizaram a si mesmos,
isolando-se nas torres de marfim das universidades, especializando-se em filigranas e
tornando sua linguagem cada vez menos acessível ao público. O resultado é o

112
isolamento dos pensadores da vida pública, criando um vazio que é frequentemente
preenchido por oportunistas e pseudointelectuais de pena afiada e garganta acelerada.

Kristof argumenta que uma das raízes do problema são os programas de doutorado, que
glorificam o hermetismo e desdenham a audiência e o impacto na sociedade. O sistema
reproduz-se de geração para geração de pesquisadores, que são condicionados pela
orientação para publicações e pelo sistema de promoção e carreira. Durante os anos mais
produtivos de suas vidas, acadêmicos dirigem seu foco e energia ao desenvolvimento de
artigos para revistas científicas ultraespecializadas. Os que “perdem seu tempo” com
livros e com artigos de disseminação, escritos para a “plebe”, são olhados com desdém.
O sistema também cuida de expelir os rebeldes, que não se conformam com a
burocracia acadêmica.

Com isso, multiplicaram-se os periódicos científicos, muitos deles com mais autores do
que leitores. Ao lidar, durante anos, com uma audiência reduzida e especializada, os
pensadores abdicam da possibilidade de comunicar suas ideias a um público maior e
perdem a capacidade de analisar questões mais amplas, de interesse social.

A escolha de temas para pesquisa, em muitas áreas, tem pouca ou nenhuma relação com
o que é relevante para a sociedade. Orienta-se, frequentemente, pelas preferências
pessoais e afinidades do pesquisador, e por suas estratégias de publicação. Pesquisa-se o
que pode ser mais fácil de ver no prelo, e não o que importa para o mundo ao redor.

Do outro lado do Atlântico, a revista britânica The Economist trouxe na coluna


Schumpeter, de 8 de fevereiro de 2014, um texto sob o provocativo título: “Quem não
sabe, ensina”. O autor observa que as escolas de negócios foram capturadas pelo
corporativismo acadêmico e se tornaram bandeiras de conveniência para acadêmicos.
Eles dedicam sua existência à publicação de artigos sem valor real, em periódicos
obscuros, que nunca serão lidos por executivos. Firmes no comando de suas instituições,
ocupam postos relevantes, defendem seus interesses e impedem as mudanças

113
necessárias. Talvez não seja muito diferente em outros campos de conhecimento, mas é
caso paradoxal. Afinal, a administração é uma ciência social aplicada.

Kristof mostra-se triste com a situação, declarando sua admiração pela sabedoria
encontrada nos campi universitários. O jornalista estudou em Harvard e Oxford. Deve-se
lamentar que, com todos os recursos de que dispõem, acesso a informação,
conhecimento e legitimidade, professores não ocupem um espaço maior nos debates
contemporâneos. Todos perdemos.

114
PARTE 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO
PROFISSIONAL

115
Talentos escassos
A dificuldade para encontrar profissionais qualificados e competentes é
questão complexa e mundial. Entretanto, pesquisa recente sugere que parte
do problema pode estar dentro das próprias empresas.

Apagão de talentos: o termo surgiu há alguns anos e ganhou popularidade na mídia e no


mundo corporativo local. No início da década de 2000, o apagão foi de energia e
ameaçou a economia brasileira. Agora, o apagão é de quadros qualificados e
competentes, a ameaçar novamente nosso crescimento. O problema não exige
demonstração: é evidente. Até onde a vista alcança, os serviços públicos são uma lástima,
a gestão privada é caótica e até as organizações sociais sofrem com problemas básicos de
qualificação. Na raiz, nosso descaso e incompetência com a educação, das primeiras
letras à pós-graduação.

Entretanto, o problema vai muito além dos trópicos. Em pesquisa realizada em 2012, a
sétima de uma série sobre o tema, a empresa de consultoria ManpowerGroup mostra
que a escassez de talentos é questão mundial. A pesquisa envolveu mais de 38 mil
entrevistas em 41 países e territórios. Revelou que mais de um terço dos entrevistados
teve dificuldades para encontrar profissionais com o perfil de que precisava.
Paradoxalmente, em muitos países, a dificuldade para preencher vagas convive com altas
taxas de desemprego. Para piorar, a situação não é nova e não há sinais de mudança.

Naturalmente, há diferenças substantivas entre países e entre regiões. Entre os campeões


da dificuldade para preencher vagas, estão o Japão e o Brasil, com sólida margem sobre
os demais. Na ponta oposta, a Irlanda e a Holanda. Nas Américas, faltam principalmente
engenheiros, técnicos e representantes de vendas. As principais razões para o não

116
preenchimento de vagas são a falta de interessados, a falta de competências técnicas
específicas e a falta de experiência.

Os entrevistados das Américas também identificaram as principais lacunas dos


candidatos em termos de atitudes e competências pessoais, as soft skills: motivação e
entusiasmo, postura profissional, habilidades interpessoais, atenção a detalhes,
capacidade de trabalhar em grupo, flexibilidade e adaptabilidade, habilidade de lidar com
a ambiguidade e a complexidade, capacidade de resolver problemas e tomar decisões,
curiosidade intelectual e capacidade de análise crítica. A lista, como se vê, é longa.

Para as empresas, o quadro é preocupante, capaz de prejudicar a produtividade, reduzir a


competitividade e frear projetos de expansão. Elas estão respondendo como podem.
Para atrair, desenvolver e manter seus quadros, muitas empresas estão seduzindo
estagiários e trainees, fazendo parcerias com instituições de ensino, investindo em
universidades corporativas, aumentando salários e tornando seus regimes de trabalho
mais flexíveis.

Em uma pesquisa sobre o mesmo tema, Elza Cuesta Gutierrez, mestranda da Fundação
Getulio Vargas, em São Paulo, orientada pela professora Beatriz Maria Braga, coletou as
percepções de quase 500 executivos paulistanos, a maioria deles atuando em grandes
empresas. Em foco, a dificuldade para preencher cargos de média gerência, um extrato
vital das organizações.

O trabalho confirmou a dificuldade de preenchimento de vagas apontada pela


ManpowerGroup, porém revelou que, para esses profissionais, a principal razão não é a
falta de interessados ou de qualificações técnicas (que incluem a formação e experiência
de trabalho), mas a falta de competências próximas àquelas identificadas como soft skills
na pesquisa da consultoria.

Os executivos pesquisados também identificaram, como parte do problema, o fato de as


empresas não definirem claramente as competências desejadas nos profissionais que

117
pretendem contratar e de não oferecerem programas adequados para desenvolver tais
competências. Significativamente, os executivos apontam soluções que convergem para
o aperfeiçoamento das práticas de gestão de recursos humanos.

A questão da escassez de talentos não tem solução trivial. Existe uma lacuna
considerável entre o que o ensino superior oferece e o que o mercado de trabalho
demanda. Muitos educadores, tomados por nobres ideais e armados com sofisticada
retórica, frequentemente ignoram ou vilificam o “mercado”, as empresas e, por extensão,
todo tipo de organização. Por outro lado, executivos amiúde desprezam as torres de
marfim em favor de panaceias e soluções simplórias para seus problemas de gestão e
qualificação. Transitando entre esses dois mundos, estudantes e profissionais são
frequentemente frustrados pelo abismo que se apresenta entre o que desejam, o que o
sistema de educação oferece e o que o mercado de trabalho demanda. Vencer tal abismo
é tarefa hercúlea. Melhorar as práticas de recursos humanos nas empresas, um passo
modesto, talvez ajude um pouco.

118
Analfabetismo funcional
Alarmante! A dificuldade para interpretar textos e contextos, articular ideias e
escrever está presente em seletos ambientes do mundo corporativo e da
academia.

A condição de analfabeto funcional aplica-se a indivíduos que, mesmo capazes de


identificar letras e números, não conseguem interpretar textos e realizar operações
matemáticas mais elaboradas. Tal condição limita severamente o desenvolvimento
pessoal e profissional. O quadro brasileiro é preocupante, embora alguns indicadores
mostrem evolução positiva nos últimos anos.

Uma variação do analfabetismo funcional parece estar presente no topo da pirâmide


corporativa e na academia. Em uma longa série de entrevistas realizadas por este escriba,
nos últimos cinco anos, com diretores de grandes empresas locais, uma queixa revelou-se
rotineira: falta, a muitos profissionais da média gerência, a capacidade de interpretar de
maneira sistemática situações de trabalho, relacionar devidamente causas e efeitos,
encontrar soluções e comunicá-las de modo estruturado. Não se trata apenas de usar
corretamente o vernáculo, mas de saber tratar informações e dados de maneira lógica e
expressar ideias e proposições de maneira inteligível, com começo, meio e fim.

Na academia, o cenário não é menos preocupante. Colegas professores, atuando na área


de administração de empresas, frequentemente reclamam de pupilos incapazes de criar
parágrafos coerentes e de expressar suas ideias com clareza. A dificuldade afeta alunos de
MBAs, mestrandos e até mesmo doutorandos. Editores de periódicos científicos da
mesma área frequentemente deploram a enorme quantidade de manuscritos vazios,
herméticos e incoerentes que recebem para publicação. E seus autores são
frequentemente pós-doutores!

119
O problema não é exclusivamente tropical. Michael Skapinker registrou, em sua coluna
no jornal inglês Financial Times, a história de um professor de uma renomada
universidade norte-americana. O tal mestre acreditava que escrever com clareza constitui
habilidade relevante para seus alunos, futuros administradores e advogados. Passava-
lhes, semanalmente, a tarefa de escrever um texto curto, o qual corrigia, avaliando a
capacidade analítica dos autores. Pois a atividade causou tal revolta que o diretor da
instituição solicitou ao professor que a tornasse facultativa. Os alunos parecem acreditar
que, em um mundo no qual a comunicação se dá por mensagens eletrônicas e tweets,
escrever com clareza não é mais importante.

O mesmo Skapinker lembra uma emblemática matéria de capa da revista norte-


americana Newsweek, titulada “Why Johnny can’t Write”. Merrill Sheils, que assinou o
texto, revelou à época um quadro preocupante do declínio da linguagem escrita nos
Estados Unidos. Para Sheils, o sistema educacional, da escola fundamental à faculdade,
estava desovando na sociedade uma geração de semianalfabetos. Com o tempo, explicou
a autora, as habilidades de leitura pioraram, as habilidades verbais deterioraram e os
norte-americanos tornaram-se capazes de usar apenas as mais simples estruturas e o mais
rudimentar vocabulário ao escrever, próprios da TV.

Entre as diversas faixas etárias, os adolescentes eram os que mais sofriam para produzir
um texto minimamente coerente e organizado. E o mundo corporativo também acusou
o golpe, pois parte de sua comunicação formal exige precisão e clareza, características
cada vez mais difíceis de encontrar. Educadores mencionados no artigo observaram que
um estudante que não consegue ler e compreender textos jamais será capaz de escrever
bem. Importante: a matéria de Newsweek é de 1975!

Quase 40 anos depois, os iletrados trópicos parecem sofrer do mesmo flagelo. Por aqui,
vivemos uma situação curiosa: de um lado, cresce a demanda por análises e raciocínios
sofisticados e complexos; e de outro, faltam competências básicas relacionadas ao
pensamento analítico e à articulação de ideias. O resultado é ora constrangedor, ora
cômico. Nas empresas, muitos profissionais parecem tentar tapar o sol com uma peneira

120
de PowerPoints, abarrotados de informação e vazios de sentido. Na academia,
multiplicam-se textos caudalosos, impenetráveis e ocos. Se aprender a escrever é
aprender a pensar, e escrever é mesmo uma atividade em declínio, então talvez estejamos
rumando céleres à condição de invertebrados intelectuais.

121
No mato sem cachorro
Organizações de todos os tipos vêm investindo no desenvolvimento de seus
gestores. Entretanto, os resultados são pífios. Em todas as latitudes e
altitudes, faltam bons profissionais.

O que tira o sono dos habitantes do alto da pirâmide corporativa? Estripulias


macroeconômicas governamentais, custo do capital e a eterna penúria da nossa
infraestrutura estão na lista de fatores de insônia. Entretanto, há alguns anos, outro fator
vem se sobrepondo a todos esses: a falta de bons gestores. Pois nos escalões
intermediários abundam mandões, capatazes e feitores. Sobram técnicos ensimesmados,
pequenos burocratas e resmungões crônicos. Sobejam exibidos e falastrões. No entanto,
faltam, para o infortúnio de acionistas, clientes e funcionários, discretos tomadores de
decisão, inventores de novos modos: homens e mulheres capazes de ver o todo,
transcender pequenos interesses, mobilizar (sem manipular) corações e mentes, e alterar
para melhor o estado das coisas.

A resposta das empresas à escassez de gestores é abrir a torneira do orçamento, despejar


alguns milhões nos bolsos de escolas de negócios e consultorias, e orar para que os sapos
sejam transformados em príncipes do management. No entanto, o dinheiro não parece
estar comprando competências. Texto publicado por este escriba em CartaCapital, em
2013, explorou os pecados da educação corporativa. Artigo recente, publicado na revista
McKinsey Quarterly, adiciona novas perspectivas ao tema. Os autores Pierre Gurdjian,
Thomas Halbeisen e Kevin Lane argumentam que as organizações têm investido bom
dinheiro no desenvolvimento de seus líderes. As cifras impressionam, até mesmo nos
tristes trópicos. Na raiz da gastança, encontra-se a percepção de que faltam gestores para
enfrentar um mundo marcado por rupturas tecnológicas e instabilidade
macroeconômica. Entretanto, pouco retorno é percebido. O que há de errado?

122
O primeiro problema apontado pelos autores é que muitos programas de
desenvolvimento são padronizados e não refletem o contexto específico da organização:
sua estratégia, seus objetivos e sua cultura. Em qualquer iniciativa de desenvolvimento
de gestores, a primeira pergunta a ser feita é: Qual o objetivo? Cada contexto comanda
um objetivo, e cada objetivo demanda um tipo de programa de desenvolvimento.
Considerar o contexto traz um benefício adicional: faz com que a empresa troque as
longas listas de competências, impossíveis de serem desenvolvidas, e coloque foco no
que realmente importa. Bons programas de desenvolvimento também identificam o
ponto de partida e o ponto de chegada para cada participante. Afinal, não há bons
ventos para quem não sabe aonde vai.

O segundo problema indicado por Gurdjian, Halbeisen e Lane refere-se à distância entre
a teoria e a prática. Enviar gestores a escolas de negócios pode ser salutar e ter efeito
oxigenador. No entanto, adultos retêm apenas 10% do que veem em salas de aula.
Mesmo os mais bem-intencionados enfrentam dificuldades para aplicar o que aprendem
em programas de desenvolvimento. Solução: relacionar as atividades de
desenvolvimento a projetos que possam gerar impactos positivos nos negócios. Afinal,
adultos aprendem fazendo.

O terceiro problema mencionado pelos autores relaciona-se à dificuldade para alterar


comportamentos. Embora muitas organizações admitam que alterações no perfil
gerencial exijam mudanças profundas em formas de pensar e agir, poucas se dispõem a
enfrentar o desafio de transformar valores e crenças. A discussão do “lado oculto” é
caminho cheio de pedras e armadilhas, mas precisa ser trilhado.

O quarto problema lembrado por Gurdjian, Halbeisen e Lane refere-se à dificuldade


para medir mudanças no desempenho dos gestores ao longo do tempo. E, sem
mensuração, as iniciativas de desenvolvimento perdem credibilidade. Muitas empresas
adotam avaliações de reação, nas quais os próprios participantes registram sua percepção
sobre os programas que frequentaram. Tal prática é salutar, porém insuficiente. Além
disso, pode estimular a realização de programas agradáveis, mas que não desafiam os

123
participantes. A solução é estabelecer sistemas de avaliação que meçam mudanças nas
atitudes e comportamentos dos gestores, a progressão na carreira e o impacto dos
projetos por eles realizados.

124
Virtudes perdidas
Ao longo de sua história, as escolas de negócios abdicaram de seus altos
propósitos originais, de formar profissionais voltados para atender os
interesses da sociedade, e abraçaram sem pudor o comercialismo.

Vivemos em uma sociedade de grandes organizações. Elas podem ser empresas privadas,
estatais ou configurações híbridas. Qualquer que seja o tipo, nós dependemos delas para
nascer, estudar, trabalhar, comer, beber, envelhecer e morrer. No centro de nosso
sistema social, existe um poder invisível: o poder exercido pelos exércitos anônimos de
executivos e gestores. Exceto por algumas estrelas fugazes, eles não chamam muito a
atenção. No entanto, a forma como pensam, tomam decisões e agem pode afetar, de
maneira sutil ou dramática, o destino de cada um de nós.

No livro From Higher Aims to Hired Hands: the Social Transformation of American Business
Schools and the Unfulfilled Promise of Management as a Profession (Princenton University Press),
o professor e pesquisador de Harvard Rakesh Khurana analisa a história centenária das
instituições que formam esses exércitos. Seu argumento é que, com o passar do tempo,
as escolas de negócios abandonaram seu propósito original, de consolidar uma nova
profissão, formando gestores, e perderam o rumo, deixando-se pautar exclusivamente
pelas forças de mercado.

Profissões, explica Khurana, ocupam um lugar de destaque na hierarquia do mundo do


trabalho. Elas carregam valores culturais e respondem a demandas sociais. Um médico,
por exemplo, é mais do que um trabalhador da saúde. Sua profissão deve refletir valores
humanos e éticos, e sua prática deve responder às necessidades da sociedade na qual está
inserido. Além de responderem às demandas sociais, as profissões também interferem e
ajudam a criar a ordem social. As profissões mais emblemáticas tornam-se referências de

125
valores, e seus profissionais tornam-se modelos de conduta: médicos, bombeiros e
professores carregam símbolos positivos; políticos têm constituído sua antítese.

Em suas primeiras décadas, as escolas de negócios, especialmente aquelas surgidas no


seio das universidades, assumiram a missão de formar administradores, como as escolas
de medicina formavam médicos: profissionais íntegros e éticos, capazes de preservar os
mais altos valores e responder às demandas sociais. Entretanto, a partir da década de
1970, mudanças nos ambientes econômico e educacional desvirtuaram essa missão.

A primeira mudança foi uma orientação para pesquisa científica que, apesar das boas
intenções, afastou as escolas da prática empresarial e as transformou em torres de
marfim, voltadas para o próprio umbigo. A segunda mudança envolveu a crescente
prevalência de certas perspectivas econômicas e financeiras, transformando o
administrador em um operador da “mão invisível”, um instrumento a serviço da
obtenção de resultados de curto prazo. A terceira mudança relacionou-se ao crescente
processo de comercialização do ensino da administração. De fato, o ensino da gestão
deixou de ser uma atividade educacional para se transformar em uma indústria, capaz de
movimentar vastos recursos e gerar invejáveis margens de lucro. Com isso, as próprias
escolas passaram a ser geridas como empresas, sempre buscando polir sua imagem,
atender seus clientes, racionalizar o uso de suas instalações e maximizar seus resultados.
O Brasil seguiu, com algum atraso e adicionando peculiaridades, o processo norte-
americano.

Hoje, a educação em gestão é um negócio global, complexo e ainda em transformação.


Até a década de 2000, a indústria foi dominada pelos MBAs norte-americanos, vistos por
jovens ambiciosos de todo o mundo como passaporte para o sucesso. Sua fama foi
alavancada pela proliferação dos rankings, muitos deles enfatizando explicitamente o
retorno sobre o investimento, ou seja, quanto o salário aumenta depois de uma
passagem por um MBA.

126
Nos últimos anos, o modelo MBA perdeu fôlego e ganhou concorrentes. Surgiram os
Masters in Management, para profissionais em início de carreira, e ganharam popularidade
os Executive MBAs, mais curtos que os MBAs e destinados a profissionais mais
experientes. Os próprios MBAs, antes essencialmente generalistas, passaram a ser
oferecidos como programas especializados em finanças, marketing e grande variedade de
cores e sabores.

Ao Norte, como ao Sul do Equador, as mudanças distorceram as boas intenções


originais, de fazer da administração uma profissão reconhecida e socialmente relevante.
A crítica de Khurana foca exclusivamente a administração e as escolas de negócios.
Entretanto, os processos apontados pelo autor ocorreram em outras profissões. Se
persistirem as tendências, talvez o próprio conceito de profissional seja uma ideia com os
dias contatos, a ser sepultada por coveiros nostálgicos no cemitério da força de trabalho.

127
MBA ou não MBA: eis a questão
O famoso modelo de formação de líderes empresariais, que se espalhou pelo
mundo a partir dos Estados Unidos, continua sendo alvo de críticas.

A invenção norte-americana é centenária. Após a Segunda Guerra Mundial, cresceu


vigorosamente e tornou-se sinônimo de formação de líderes empresariais. Nos anos
1980 e 1990, avançou pelo mundo, no embalo da globalização. Até mesmo a
Universidade de Oxford cedeu aos seus encantos. Junto com teorias e técnicas, o MBA
ajudou a espalhar pelo planeta a crença na mágica do mercado e no poder científico do
management.

O modelo chegou com atraso ao Brasil, mas aqui encontrou terreno fértil,
multiplicando-se pelo litoral e pelas montanhas. Curiosamente, a versão local tem pouco
do modelo original. Por detrás da sigla, os MBAs nacionais são criaturas peculiares. Eles
raramente seguem o regime de dedicação integral e frequentemente abandonam o caráter
de formação generalista em gestão. Muitos MBAs brasileiros são simples adaptações de
cursos de graduação em administração, com pitadas de espetáculo para manter os alunos
interessados e acordados.

Nos trópicos, popularizaram-se os MBAs especializados nas áreas tradicionais da


administração de empresas: finanças, marketing, recursos humanos etc. Multiplicaram-se
também os cursos de nicho, voltados para temas e setores específicos, e até para outros
campos de conhecimento, como MBA em economia, turismo e direito. A única restrição
à criatividade é a capacidade de preencher salas de aula.

A mística em torno dos cursos permanece; seus poderes milagrosos sobre as carreiras
continuam a ser propagandeados pela mídia. Em 2013, a revista The Atlantic divulgou

128
uma lista das 10 universidades mais aptas a produzir multimilionários. Não foi surpresa
que a Universidade de Harvard, matriz da Harvard Business School, tenha liderado o
ranking. A instituição conta com quase três mil egressos que “valem” mais do que 30
milhões de dólares. E quase todas as universidades do top do ranking contam com
escolas de negócios.

Junto com o sucesso, vieram as críticas. As escolas são acusadas de desinibido


comercialismo e de adotar uma lógica hoteleira, procurando otimizar a ocupação de salas
para maximizar seus ganhos. Os cursos são acusados de estimular uma visão imediatista,
visando à busca de resultados de curto prazo, sem preocupação com a perenidade dos
negócios. Alguns críticos têm ressaltado a falta de preocupação com a ética e a
responsabilidade social nos negócios. Henry Mintzberg, um notável professor de
estratégia, chegou a acusar os MBAs de formar atores, capazes de interpretar líderes, mas
pouco aptos a identificar e resolver os problemas reais das empresas.

The Wall Street Journal, periódico que não se pode acusar de tendências esquerdistas, deu
voz a mais um detrator. Dale Stephens, em um texto veiculado no início de março,
sugere que um investidor esperto não faria um MBA: ele ou ela investiria o dinheiro em
um treinamento específico e na construção de sua própria rede de relacionamentos. E
não se trata de pouco dinheiro: um título de uma escola internacional de elite pode
custar mais do que 300 mil reais. No Brasil, os melhores programas custam cerca de 50
mil reais.

O autor toca em dois fundamentos dos MBAs: os cursos seriam supostamente


relevantes porque ensinam boas teorias e métodos e, ao mesmo tempo, ajudam os
alunos a construir redes de relacionamento, que serão fundamentais em suas carreiras.
Stephens argumenta que o conhecimento está hoje disponível na internet e não é preciso
pagar por ele. Além disso, as escolas de negócios estão mais preocupadas com a
publicação de artigos científicos e os rankings do que com o ensino. Quando à
construção de redes de relacionamento, o autor argumenta que é algo fundamentado em
confiança, que se desenvolve diligentemente ao longo do tempo. Não se pode adquirir

129
facilmente. Mais astuto, sugere o autor, é buscar diretamente o desenvolvimento de
competências específicas e construir negócios próprios. Mesmo que não dê certo, a
experiência será valiosa e aumentará a empregabilidade.

As provocações de Stephens são pertinentes. No entanto, o autor não considera que


muitos profissionais procuram os programas para ganhar a legitimidade do título. Ter no
currículo um MBA de uma escola de renome abre portas. Além disso, aumenta a
autoconfiança e situa o ego em um patamar mais alto.

Até recentemente, ter um MBA era uma distinção, frequentemente traduzida em


polpudos contracheques. A popularização dos cursos está anulando o diferencial. Com
isso, potenciais empregadores tendem a olhar com mais cuidado as realizações e o
potencial de eventuais candidatos. O futuro indicará se os MBAs continuarão a significar
bons negócios para profissionais, escolas e empresas.

130
Educação corporativa em xeque
Empresas de todo porte têm investido maciçamente em programas internos
de formação em gestão. Entretanto, os resultados frequentemente frustram as
expectativas.

As maiores empresas em operação no Brasil chegam a gastar mais de 100 de milhões de


reais por ano para treinar seus profissionais. Orçamentos milionários destinados à
educação corporativa são cada vez mais comuns. O que motiva tais investimentos?
Primeiro, a baixa qualificação profissional. Em um mercado de trabalho aquecido, as
empresas têm dificuldade para encontrar quadros aptos a operar seus negócios. O
problema é agravado pela incompetência universitária para formar profissionais para o
mercado de trabalho. Segundo, a especialização crescente dos negócios. Tal condição
exige conhecimentos específicos em termos de mercados, produtos e cadeia logística.
Terceiro, para seguir a onda. Se a General Electric, o McDonald’s e até a Apple têm
universidades corporativas, então todos precisam ter uma!

O fato é que a educação corporativa se tornou mais uma panaceia gerencial, uma solução
para os mais variados males organizacionais: baixa qualificação, falta de motivação,
práticas gerenciais anacrônicas, comunicação ineficiente, cultura organizacional
antiquada, baixa competitividade e muito mais. E, como toda panaceia, gerou muitos
negócios, porém entregou poucos resultados.

Como esperado, apesar de todo o dinheiro gasto, os resultados são frequentemente


decepcionantes. Sue Todd, presidente da Corp/U, uma empresa norte-americana de
consultoria especializada em educação corporativa, sugeriu, em palestra realizada no final
de 2012, que profissionais que participam de atividades de desenvolvimento raramente
conseguem aplicar o que aprendem. Significativamente, muitos executivos estão ficando

131
impacientes com programas que não geram impactos e que não trazem benefícios
palpáveis para os negócios.

Por que há falta de resultados? Entre muitas causas, duas são mais comuns. A primeira
são problemas no nascedouro dos projetos. Muitas empresas falham na definição dos
temas e conteúdos a serem tratados nos programas de formação. Seus gestores delegam
o projeto para a área de recursos humanos, que, por sua vez, o terceiriza para uma
pletora de provedores, ansiosos para vender pacotes de autoajuda disfarçados de
desenvolvimento gerencial. A segunda causa é uma desconexão entre os objetivos de
melhoria da gestão da empresa e as iniciativas de formação. Enquanto a empresa sofre
por ter uma cadeia logística fragmentada e mal gerenciada, seus executivos aprendem as
mais modernas técnicas de feedback e comunicação interpessoal.

O que fazer? Os bons oráculos recomendam começar pelo básico: toda iniciativa de
educação corporativa deve seguir o princípio de alinhamento estratégico, ou seja, seus
objetivos e focos devem contribuir para o atendimento dos objetivos e focos
estratégicos da empresa. Se o desafio é expandir os negócios, os conteúdos devem ser
pautados por esse tema. Se a meta é melhorar o relacionamento com clientes, as
atividades devem ser norteadas por esse tópico. Se a empresa quer resolver todos os
problemas ao mesmo tempo, é melhor parar e pensar. Afinal, para quem não sabe para
onde vai, qualquer vento serve.

Outra medida saudável é ampliar o público envolvido nas atividades de formação.


Programas que envolvem somente uma parte do quadro gerencial têm impacto limitado.
Para gerar efeito positivo, é preciso criar massa crítica em torno de novos
conhecimentos e novas práticas. Pode não ser economicamente viável estender
programas de formação para todos os quadros, mas é possível comunicar e multiplicar
seu conteúdo, de maneira simplificada, por meio de facilitadores internos e sistemas de
videoconferência. Além disso, é saudável transformar líderes em “professores”. Ensinar
é a melhor forma de aprender.

132
Além disso, as empresas devem combinar o modelo mais tradicional, de ensino em sala
de aula, com novos modelos. O modelo tradicional ainda é essencial. A presença física
facilita a interação, promove a integração e a troca de ideias. No entanto, o tempo
consumido e o custo envolvido limitam sua aplicação. Novos modelos vêm sendo
disseminados, como a realização de projetos; leituras dirigidas, seguidas de grupos de
discussão; workshops com especialistas; simulações e jogos; e inúmeras aplicações de
ensino a distância.

Finalmente, é preciso fugir da armadilha da autoajuda e da tendência de transformar


programas de desenvolvimento em atividades de lavagem cerebral. Como qualquer tipo
de organização, também as empresas necessitam estimular a diversidade, a visão crítica e
a busca de novas visões e perspectivas. Essa é uma contribuição que um sistema de
educação, mesmo balizado pelas restrições do ambiente corporativo, pode trazer.

133
Pecados capitais da educação corporativa
Para melhorar seu desempenho e enfrentar o mercado, as organizações têm
investido maciçamente em programas de formação gerencial. No entanto,
muitos desses sistemas ainda sofrem com erros básicos.

Evidências não faltam: o Brasil é um país mal administrado. Não é o único nem o pior
caso de incompetência gerencial nacional, mas chama a atenção pelo desperdício
gigantesco de recursos e capacidades. Das empresas privadas aos órgãos públicos, das
estatais às organizações sociais: onde a vista alcança, percebemos problemas e
deficiências. Nosso sistema educacional é medíocre, desequilibrado e frequentemente
perdulário. Nosso sistema de saúde é precário e desumano, incapaz de atender às
necessidades dos indivíduos. A segurança pública é frágil e ineficaz, gerando apreensão e
medo na população. Nossas estatais, aquelas que sobreviveram às ondas de privatização,
continuam operando como burocracias da metade do século passado: protegidas,
inchadas e ineficientes.

O quadro não é diferente na esfera privada. Por trás de fachadas polidas com esmero
por profissionais de relações públicas, as grandes empresas locais vivem imersas em um
caos gerencial, incapazes de definir seus focos e alinhar seus esforços e recursos de
maneira coerente. Sofrem os funcionários, sofrem os clientes. Onde olharmos – da
reforma do apartamento, realizada por uma pequena equipe de operários, à construção
da rodovia, realizada por uma grande empreiteira –, enxergaremos trabalho malfeito e
caro. Cada brasileiro paga o preço. O País paga a conta.

Não é preciso ser um gênio consultor para perceber que as organizações locais são mal
geridas. Algumas disfunções corporativas são notórias: os intrincados jogos de poder da
alta gestão, a letargia e o permanente estado de confusão mental dos administradores, a

134
falta de disciplina e o frenesi amalucado dos profissionais, sempre apagando incêndios,
criados ou imaginados. Na raiz dos problemas, tem destaque a má qualificação em
gestão, que assola os quadros de funcionários e faz vítimas em todos os tipos de
organização.

A resposta para essa questão está, obviamente, na busca de capacitação. Com isso,
orçamentos milionários destinados à educação corporativa são cada vez mais comuns.
As maiores empresas em operação no Brasil chegam a investir mais de 100 milhões de
reais por ano para treinar seus profissionais. A educação corporativa tornou-se mais uma
panaceia gerencial, uma solução para os mais variados males organizacionais: da suposta
falta de motivação às práticas gerenciais defasadas, da baixa produtividade à baixa
competitividade.

Como toda panaceia, ela gera muitos negócios, porém nem sempre consegue entregar os
resultados pretendidos. Muitos executivos estão ficando impacientes com sistemas
incapazes de gerar benefícios palpáveis para os negócios. Na raiz da questão, encontram-
se algumas patologias, encontradas com expressiva frequência nos sistemas de educação
corporativa (veja quadro). Obviamente, cada organização apresenta um quadro
particular. Entretanto, alguns problemas apresentam-se constantemente,
independentemente do tipo, setor ou porte da organização.

135
Educação corporativa: grandes expectativas, resultados frustrantes

Patologias Sintomas

Alinhamento insuficiente entre as Programas de desenvolvimento que não


prioridades dos negócios e as iniciativas tratam das questões estratégicas: as mais
de formação gerencial. relevantes para a empresa. Tais
programas são soluções em busca de
problemas, que nem sempre existem.

Concepção pouco coerente e pouco Sistemas de educação do tipo “colcha de


articulada dos sistemas de formação retalhos”, com iniciativas isoladas e
gerencial. Gestão “randômica”. descontínuas ao longo do tempo.

Ligação frágil entre as práticas gerenciais Ensino das mais “modernas” práticas e
e os conteúdos desenvolvidos nos das mais novas modas gerenciais... que
programas. nunca serão utilizadas na empresa.

Atração exagerada por soft skills: a praga Dias e dias de treinamento em liderança
da autoajuda, amada pelos gestores de transformacional, feedback, coaching,
recursos humanos. mentoring, shadowing... só falta bullying!

Falta de conteúdos de negócios – hard Ausência de conteúdos relacionados aos


skills: a incapacidade de identificar os temas centrais da agenda executiva:
conhecimentos que realmente importam. estratégia, finanças e operações.

Atenção inapropriada às práticas Educação como show e entretenimento,


pedagógicas: fascínio por jogos, com professores “espetaculares” e culto a
dinâmicas e filmes. atividades lúdicas: teatro sem substância.

Medição inadequada dos resultados e dos Valorização excessiva da opinião dos


impactos das iniciativas de formação participantes: se o público se diverte e
gerencial. aplaude, então deve ser bom! Será?

Como tornar o sistema de educação corporativa eficaz? Os passos para a construção (ou
reconstrução) de um sistema são descritos na boa literatura sobre o assunto. O projeto
deve ter início no topo da organização, com a definição de seus objetivos estratégicos e
um processo de comprometimento da liderança. Em seguida, deve-se estabelecer o
modelo de gestão e organização do sistema, estruturando suas atividades e definindo
seus recursos. É também essencial identificar as lacunas existentes e as competências-

136
chave a serem desenvolvidas, considerando os objetivos de negócios e organizacionais
da empresa.

Toda iniciativa de educação corporativa deve seguir o princípio de alinhamento


estratégico: seus objetivos devem contribuir para o atendimento das metas estratégicas
da organização. Também é boa prática ampliar o público envolvido nas atividades de
formação, incluindo até mesmo os “sabe-tudo” do topo da pirâmide, gerando, assim,
massa crítica para a melhoria das práticas gerenciais. Finalmente, é desejável adotar os
princípios da objetividade e da simplicidade. Há tanto a ser feito nas organizações locais,
que basta escolher um tema estratégico, criar espaço para aprendizagem e reflexão, e
garantir a aplicação prática do conhecimento adquirido. O efeito será positivo. Clientes,
acionistas, funcionários e gestores agradecerão.

137
PARTE 5 – ESCAPANDO DO CAPITALISMO SELVAGEM

138
Nova onda?
Evidências sugerem que jovens administradores estão cada vez mais
interessados em abrir negócios próprios e alinhar suas carreiras com temas de
impacto social e ambiental.

A administração de empresas chegou ao Brasil há quase 60 anos, por obra e graça do Tio
Sam. Veio permeada pela ideologia ianque: valorização do pensamento científico, culto
da meritocracia, pragmatismo e fé no mercado. Nos trópicos, parece ter encontrado solo
propício. Hoje, o curso de administração de empresas é o mais popular programa de
graduação do País. Seu irmão mais velho, o MBA, chegou mais tarde, nos anos 1990,
mas teve o mesmo destino, atraindo corações e mentes do Oiapoque ao Chuí. Os
programas mais renomados ajudaram a formar e reformar nossa elite dirigente. Hoje,
parte considerável do topo da pirâmide corporativa brasileira é habitada por egressos de
programas de administração.

Nas últimas décadas, os programas foram atualizados. Mudou a economia, mudou a


sociedade e mudaram os interesses dos alunos. Para os administradores, os anos 1990
foram marcados pela busca de colocações em grandes organizações, especialmente as
empresas de telecomunicações e de consultoria. A virada do século, com a bolha da
internet, atraiu recrutas para as empresas de tecnologia. Os anos 2000, até a crise do final
da década, foram dominados pelo mercado financeiro. O momento atual tem um pouco
de cada período anterior, porém são notáveis o crescente interesse dos alunos pelo
empreendedorismo, o sonho do negócio próprio e o aumento da preocupação com
questões mais amplas, de cunho ambiental e social.

Todos os anos, no mês de novembro, a FGV-EAESP (escola de administração à qual


este escriba está vinculado) organiza o dia da pesquisa. No evento, são apresentadas

139
pesquisas realizadas por alunos de graduação, sob a orientação de professores da
instituição. No ciclo 2011-2012, foram realizados 44 trabalhos. Examinando-se o
conjunto, tem-se boa ideia dos interesses dos alunos.

Diversos trabalhos, como esperado, versam sobre temas clássicos de negócios, focando
mercados financeiros, finanças corporativas, criação de valor, marcas e comportamento
do consumidor. Entretanto, compõe a lista um número significativo de trabalhos com
preocupações ambientais e sociais. Uma pesquisa trata do duradouro fenômeno da
cracolândia, no bairro da Luz, em São Paulo, outra investiga a ação da facção criminosa
PCC, e uma terceira aborda a influência de “recursos políticos” no processo de
internacionalização de empresas brasileiras. Vários pesquisadores deslocaram-se de São
Paulo rumo ao Paraná, Minas Gerais, Pará, Ceará e Acre para conhecer experiências de
gestão pública subnacional voltadas para a resolução de problemas relacionados à saúde,
educação, meio ambiente e combate à pobreza.

Do outro lado do Atlântico, Christoph Loch, diretor da escola de negócios da


Universidade de Cambridge, no Reino Unido, declarou ao jornal Financial Times que seus
estudantes não estão mais se limitando a “seguir o dinheiro”, ou seja, buscar colocações
milionárias no setor financeiro. Muitos formandos agora querem “fazer diferença” (para
a sociedade). Eles (e elas) também buscam atividades mais atraentes e interessantes. Ao
Norte, como ao Sul, tal comportamento traduz-se no envolvimento com organizações
sociais e com negócios relacionados à sustentabilidade. Loch observa que tais mudanças
são naturais, acompanham as transformações que estão acontecendo no mercado de
trabalho e ocorrem em ondas.

Não se sabe se a onda atual é duradoura e que outra onda a sucederá. No entanto, seus
efeitos já podem ser sentidos no aquecido mercado de trabalho brasileiro, carente de
quadros qualificados. Estudantes de boas escolas de administração estão cada vez mais
interessados em ter negócios próprios. Eles estão aprendendo a criar start-ups já nos
bancos escolares e estão encontrando um ambiente econômico, cultural e empresarial

140
que favorece tal opção. Além disso, estão buscando trabalhos que lhes tragam satisfação
pessoal e oportunidades de crescimento, além de condições financeiras para sobreviver.

Tal condição cria desafios consideráveis para as empresas estabelecidas, que precisam
atrair e manter jovens talentos para sustentar seus planos de expansão.
Significativamente, cresceram nos últimos anos os programas de trainees, com forte
disputa entre empresas pela conquista dos jovens de maior potencial. Tal disputa agora
se desloca na cadeia educacional, rumo aos bancos escolares, buscando atrair e reter
estagiários. E contratar não basta. Tão difícil quanto aliciar jovens quadros é mantê-los
na empresa. Ganharão as empresas que souberem adaptar-se ao novo perfil dos jovens
profissionais. Perderão aquelas que não reconhecerem as mudanças ou não souberem
alterar suas políticas e práticas de gestão de pessoas.

141
O frugal Mr. Money Mustache
Um improvável guru de finanças pessoais, que se aposentou aos 30 anos de
idade, combate o consumismo com senso comum e bom humor.

Primeiro, dois parágrafos acerca de uma crônica cinematográfica sobre o estado das
coisas. Depois, a entrada triunfal de nosso novo herói. O filme em questão é The Joneses.
Foi dirigido por Derrick Borte, em 2009. Não é grande coisa, mas o argumento é ótimo!
Os Joneses são uma família perfeita. Eles são bonitos, inteligentes, simpáticos e,
principalmente, ricos. Vivem em uma mansão em um subúrbio elegante, com móveis de
design nórdico e grama imaculada. Dirigem carros alemães e usam roupas das melhores
grifes. Eles têm apenas um problema: não constituem uma família de verdade. De fato,
foram contratados por uma empresa de marketing para se tornarem stealth marketers, trend
setters e opinion makers, no espetaculoso jargão da disciplina.

Os Joneses portam-se como uma perfeita família de comercial de TV: seus bens e
hábitos foram planejados para inspirar vizinhos a invejarem seu estilo de vida e a
tentarem emulá-lo pelo consumo compulsivo. O time, formado por quatro profissionais
– interpretando pai, mãe e um casal de filhos adolescentes –, tem metas ambiciosas de
vendas, monitoradas em tempo real. Sua ação é um sucesso... até certo ponto. Vejam o
filme e comprem a camiseta!

Agora, no surpreendente mundo dos blogs, os Joneses parecem ter encontrado sua
nêmesis. O personagem responde pelo sonoro pseudônimo de Mr. Money Moustache e,
ao contrário da falsa família, existe de verdade. Para fins de entrevista, atende pelo nome
de Pete. Ele é casado e tem um filho. Curiosidade: Pete e sua esposa aposentaram-se aos
30 anos de idade. Isso mesmo! Como foi possível? Simples: o casal fez tudo que os
Joneses não indicariam. Eles não compraram carros de luxo ou roupas de marca; nunca

142
adquiriram bens acima de suas possibilidades ou fizeram dívidas. Em suma, cultivaram,
desde cedo, um estilo de vida simples e frugal.

Em uma entrevista dada ao jornal The Washington Post, Pete declarou singelamente: “Eu
provavelmente nasci com um desejo por eficiência – o desejo de tirar o máximo de
diversão de todas as situações, sem desperdiçar recursos”. Dito e feito: na prática, o casal
inverteu a equação do consumo em benefício da qualidade de vida. Reformaram
sozinhos sua própria casa, conservaram seus carros velhos enquanto seus amigos
exibiam seus carros novos, substituíram o auto pela bicicleta sempre que possível, e
cozinharam em casa em lugar de frequentar restaurantes.

Então, aos 30 anos de idade, haviam acumulado dinheiro suficiente para a precoce
aposentadoria. Hoje, o casal mora em casa própria, totalmente paga. O aluguel de um
segundo imóvel lhes cobre as despesas. Reservas aplicadas em fundos de investimentos
lhes garantem segurança para o futuro. A aposentadoria lhes dá controle total do próprio
tempo. Pete, que estudou engenharia, eventualmente ganha algum dinheiro fazendo
pequenos serviços de carpintaria para parentes e amigos. Sua esposa, que foi corretora de
imóveis, vez por outra ajuda conhecidos a encontrar novas moradas.

O blog de finanças pessoais Mr. Money Mustache surgiu, segundo Pete, da irritação
causada pela enxurrada de perguntas recebidas de conhecidos que, mesmo com salários
elevados, estavam atolados em dívidas e escravizados pelo trabalho. Eram vítimas dos
Joneses, gastando enorme energia para extrair prazer duvidoso de hábitos caros. Mesmo
assim, não conseguiam entender como alguém com formação superior e um bom
emprego tinha se aposentado tão cedo.

Pete elegeu com facilidade os alvos de seu blog: carros caros e beberrões, TV a cabo e o
que chama de indústria da ioga. A vida da classe média, segundo ele, é um “vulcão
explodindo de desperdício”. Há maneiras melhores para atender nossas necessidades,
porém as manadas parecem obcecadas pelos caminhos mais difíceis e caros, tornando a
própria vida mais difícil.

143
O ciclo vicioso é poderoso. A vida adulta vem com um pacote pronto, incluindo ideais
de posses e hábitos de consumo. Os primeiros salários já vêm casados com os primeiros
gastos: carro novo, bugigangas eletrônicas, restaurantes e viagens. O hábito faz o
escravo. O cérebro segue em piloto automático. As pessoas tornam-se complacentes
com contas absurdas de telefone, prestações infindáveis de roupas, juros inacreditáveis
de cartão de crédito e muito mais. Viver, para muitos, é pagar dívidas, passadas,
presentes ou futuras.

A receita de Mr. Money Mustache é inverter a equação: morar perto do trabalho;


preparar a própria comida; cuidar da própria casa, do próprio cabelo e do próprio corpo;
não tomar dinheiro empresado; cancelar a assinatura da TV a cabo e, principalmente,
usar a bicicleta. Lazer? Sim, é fundamental. A dica é explorar a natureza.
Frequentemente, é de graça e recompensador.

144
Vivendo em 1986
Um casal de canadenses abandona seus gadgets para fortalecer os laços
familiares. Um músico estadunidense registra em documentário a era de ouro
de um estúdio analógico. São sinais do fenômeno da nostalgia da tecnologia.

Blair e Morgan McMillan formam um casal canadense típico, exceto pelo fato de terem
eliminado de suas vidas todas as tecnologias introduzidas após 1986. Por que 1986?
Porque foi o ano em que ambos nasceram. A dupla decidiu experimentar uma vida livre
de internet, iPhone, Xbox, iPad, GPS, Facebook, Instagram, Twitter e qualquer outra
“maravilha” moderna.

Tudo começou quando o casal percebeu que as tais maravilhas estavam roubando a
infância de seus filhos, dois pimpolhos com 5 e 2 anos de idade. O mais velho já se
recusava a abandonar seu iPad para brincar fora de casa. Foi nesse momento que o casal,
conforme descrito por um jornal de Toronto, decidiu aposentar seus telefones celulares,
cortar a TV a cabo e apagar suas contar no Facebook.

O casal recusou-se a ver a foto digital de uma sobrinha recém-nascida. Foi conhecê-la
pessoalmente. Suas fotos são tiradas em maquinas analógicas e reveladas. Nada de
Instagram! Em lugar do Google ou da Wikipedia, Blair e Morgan agora usam uma
enciclopédia, impressa! Os videogames deram lugar a livros e jogos. Seus visitantes
passaram a ser instruídos a deixarem seus aparelhos em uma caixa de madeira, localizada
sobre um armário, na sala da casa.

A adaptação não foi simples. Blair confessou que sentiu um tipo de “dor fantasma” após
livrar-se de seu telefone celular e que às vezes ainda tem a sensação de vibração em seu
bolso, como se o aparelho ainda estivesse ali. Morgan, no início da nova vida, não se

145
conformava de ter que apagar seu perfil no Facebook, mas declarou que já leu 15 livros
desde então.

Para viabilizar a sobrevivência durante o ano que o experimento está previsto para durar,
o casal faz algumas concessões. A esposa continua usando computadores, mas somente
no trabalho. O carro do casal é de 2010, mas as viagens são feitas com apoio de mapas
impressos. Nada de GPS! Os resultados são, segundo o casal, notáveis: enquanto as
crianças das outras famílias mergulham nos tablets dos pais, seus filhos inventam formas
criativas para se entreterem e apreciam as paisagens e os lugares que visitam.

Sound City, um documentário dirigido pelo músico Dave Grohl, exala o mesmo tipo de
preocupação e de nostalgia que parece ter atingido os McMillans. Grohl fez sucesso em
grupos populares como o Nirvana e o Foo Fighters, mas Sound City foi sua primeira
incursão como diretor. O filme narra a ascensão, os instáveis dias de glória e a queda do
famoso estúdio californiano de gravação que lhe dá título.

Passaram por Sound City artistas e grupos que marcaram a era criativa do rock, como
Fleetwood Mac, Tom Petty, Neil Young e o próprio Nirvana. O local é descrito como
uma pocilga, um estúdio montado improvisadamente em um conjunto de galpões que
antes serviam a uma fábrica, mal-acabado e malconservado. Brilham apenas a simpatia
dos donos e da equipe de apoio, e uma imponente mesa de gravação Neve 8028, um
prodígio da tecnologia analógica da época.

É desse amálgama que emergem alguns discos antológicos da história da música popular
norte-americana. Inexplicável? Nem tanto. A criatividade não costuma brotar de
ambientes assépticos e bem controlados. Surge da combinação nem sempre previsível de
paixões e obsessões humanas, eventualmente associadas com algum tipo de tecnologia
que facilita e amplifica sua expressão, sem condicioná-la ou domesticá-la.

O declínio do estúdio e o desaparecimento da mágica criativa são associados à


emergência das tecnologias digitais, que transformaram substancialmente a indústria da

146
música. Nostálgico, Grohl compra e recupera a mesa Neve e volta a utilizá-la em seu
próprio estúdio, com seus amigos, como se estivessem nos anos 1980 ou 1990.

O músico e diretor não é um ludita, mas o documentário registra um profundo lamento


pela perda do fator humano, ocorrido na passagem da era analógica para a era digital,
com suas infinitas possibilidades de manipulação e sua capacidade de sedução. Talvez os
McMillans possam assistir a Sound City, se for lançado em VHS, ou ouvir a trilha sonora,
se for distribuída em vinil ou em fita cassete. A qualidade não será perfeita, mas a
vitalidade estará lá.

147
Sonhando acordado
Flanar semiconsciente pelo mundo da imaginação, conectando sem
compromisso fatos e ficções, é essencial para desenvolver a criatividade e
construir o futuro.

La Science des Rêves (2006) é um filme francês de verve surrealista, dirigido por Michel
Gondry. O ator mexicano Gael García Bernal vive Stéphane Miroux, um jovem cujos
sonhos avançam frequentemente sobre a realidade. Gondry conduz a trama trazendo o
espectador para o mundo de Stéphane, borrando frequentemente a linha que separa
imaginação e realidade. À época do lançamento, A. C. Scott, crítico de cinema do jornal
The New York Times, observou que o filme, com sua intensa peculiaridade, seu desapego
às leis da física e da linguagem cinematográfica, seu desrespeito pela lógica e pela
coerência, traz, paradoxalmente, um registro autêntico e fidedigno da vida.

Jessica Lahey, em texto veiculado no website da revista The Atlantic, faz uma defesa dos
encantos de sonhar acordado e, indiretamente, dos Stéphane Miroux que ainda teimam
em navegar com a mente solta por uma sociedade obcecada pela objetividade. Seu foco
de atenção (e preocupação) são os mais jovens: as crianças bombardeadas
continuamente com estímulos e atividades, sem tempo para flanar livres pelo mundo da
imaginação. Entre os mais jovens, o grande inimigo dessa saudável navegação interior
são as distrações tecnológicas: a TV, os videogames e outras armadilhas eletrônicas. A
mensagem de Lahey, como a de Gondry, serve a todas as idades.

Sonhar acordado é, segundo Lahey, o que ocorre quando a mente, livre das
preocupações do dia a dia, vaga sem amarras entre pensamentos randômicos e memórias
aleatórias. Trabalhos clássicos da psicologia, lembra a autora, situam a atividade de

148
sonhar acordado como uma função cerebral fundamental: uma forma de pensar
essencial para manter nossa saúde emocional e intelectual.

Para o observador externo, pode parecer pura preguiça. No entanto, o ato de sonhar
acordado relaciona-se ao desenvolvimento da autoconsciência e da criatividade, à
capacidade de planejamento e de improvisação, à possibilidade de reflexão profunda
sobre as experiências do dia a dia, e ainda ao raciocínio moral. A aparência pode ser de
devaneio sem rumo, porém o cérebro pode estar operando um processo neurológico
complexo, sofisticado e produtivo.

Viajar despreocupadamente por emoções imperfeitas e pensamentos (aparentemente)


desconexos tem, ainda, efeito terapêutico: alivia a tensão e o estresse. Conclusões de
Lahey: cultivar o silêncio e sonhar acordado é essencial. Então, sugere a autora, corte as
distrações eletrônicas e reserve tempo para os devaneios, caminhe sem rumo nem fones
de ouvido.

O inglês Neil Gaiman, autor de romances, livros infantis e quadrinhos, declarou em um


palestra para a Reading Agency (reproduzida pelo jornal The Guardian) que nosso futuro
depende de livrarias, da leitura e da capacidade de sonhar acordado. O autor abriu sua
palestra mencionando que a próspera indústria norte-americana de construção de prisões
usa como variável para previsão de demanda (a necessidade futura de celas) o percentual
de crianças com 10 e 11 anos que não são capazes de ler. Significativo! Para Gaiman,
temos uma obrigação de sonhar acordados e usar a imaginação. São essas atividades que
nos fazem criar mundos alternativos, que nos permitem construir o futuro.

No mundo do trabalho, a atividade de sonhar acordado já teve dias melhores. Muitas


organizações contemporâneas declaram amor incondicional pela criatividade e pela
inovação. Paradoxalmente, continuam a refrear, disciplinar ou expelir seus sonhadores.
Eles resistem como podem, sonhando acordados para enfrentar o tédio no trabalho. A
revolução industrial e a ascensão das linhas de montagem sepultaram a criatividade e
exilaram os sonhadores. À medida que o fordismo-taylorismo cruzou as fronteiras das

149
fábricas e avançou no mundo do comércio e dos serviços, os sonhadores foram
estigmatizados e encurralados. A eles foram destinados apenas os pequenos territórios e
as margens. Não lhes restaram nem os territórios da cultura, cujas províncias foram
significativamente rebatizadas de indústrias criativas, e agora sintomaticamente unidas
em torno da economia criativa. Tudo pelo mercado!

150
Aprender pela arte
Educar-se é mais do que absorver conhecimentos; é tornar-se capaz de
pensar criticamente sobre o mundo ao redor.

Liberal Arts é um filme norte-americano de produção independente, escrito, dirigido e


estrelado por Josh Radnor. Conta a história de Jesse, um amante de livros, desencantado
com sua vida pessoal e entediado com seu trabalho. No início do filme, Jesse é
convidado a visitar a faculdade onde estudou, uma escola de artes e humanidades, para
homenagear um antigo mestre que está se aposentando. A visita desdobra-se em uma
relação epistolar com uma estudante de teatro, uma aventura com uma antiga e
desiludida professora, e o contato com um brilhante e depressivo estudante de literatura.
A experiência tem efeito redentor sobre Jesse. Além das tramas afetivas, o filme é uma
ode ao ensino de artes e ao papel da poesia, da literatura e do teatro na construção da
experiência humana.

Em um texto publicado no final de maio pelo The New York Times, Gary Gutting, um
professor de filosofia da Universidade de Notre Dame, faz eco a Liberal Arts, ao refletir
sobre a experiência do aprendizado nas universidades. Gutting parte de uma perspectiva
crítica: segundo ele, a educação superior parece fundar-se na tarefa de fazer com que os
pupilos absorvam um corpo complexo de conhecimentos rapidamente, somente para
realizar exames e, em seguida, esquecê-los quase por completo.

O filósofo argumenta que tanto para conhecimentos básicos e corriqueiros – como ler,
escrever e fazer contas – como para conhecimentos mais sofisticados – como aqueles
necessários para projetar aviões ou realizar cirurgias –, o que garante o verdadeiro
aprendizado é a curiosidade e a prática. Nós conseguimos lidar com nossas contas e
exercer uma profissão especializada porque constantemente aplicamos o conhecimento

151
necessário para realizar tais operações e atividades. O que aprendemos e não utilizamos é
quase sempre esquecido.

Gutting argumenta que os cursos superiores deveriam deixar de focar a transmissão de


conhecimento por si e engajar os estudantes em “exercícios intelectuais”. O autor cita o
exemplo de seu próprio curso, no qual explora com os estudantes obras de Platão,
Calvino e Nobokov. O objetivo é simplesmente colocar os pupilos em contato com
grandes textos. O que se ganha não é verniz cultural, mas o prazer de explorar caminhos
intelectuais e estéticos, de ampliar a visão do mundo e da natureza humana.

Para o filósofo, a educação universitária pode ser o espaço do explorador. O ensino,


para ele, não deveria ser avaliado pela quantidade de informações transmitidas e
assimiladas, mas pela possibilidade de estimular uma atitude de abertura a novos
conhecimentos e pela capacidade de assimilar novas ideias que provoca nos estudantes.
O conhecimento, que vem do uso e da prática, é o produto final de uma semente
plantada na escola.

Naturalmente, as sociedades necessitam de profissionais tecnicamente qualificados,


capazes de preencher as vagas nas empresas e desempenhar suas tarefas. Profissões
como a medicina, a administração, a engenharia e a advocacia exigem o domínio de
grandes corpos de conhecimento. Entretanto, o simples domínio desse conhecimento
não torna o detentor capaz de exercer uma profissão. Empresas e outras organizações
exigem cada vez mais de seus funcionários a capacidade de entender o mundo ao redor,
de pensar criativamente, de criar e de agir com autonomia.

É a nossa base cultural, que permeia a literatura, a música, o cinema e o teatro, que
contém os elementos para desenvolver essas capacidades. São nossas viagens intelectuais
pelo mundo das artes que nos permitem escapar das convenções, olhar além dos lugares-
comuns, fazer conexões, pensar fora do convencional e buscar novas ideias. Quem não
tem a oportunidade de mergulhar no amálgama cultural tem menores chances de
desenvolver tais capacidades.

152
O brasileiro Paulo Freire chamava de “educação bancária” a pedagogia que trata
estudantes como meros depositários de conhecimentos que devem ser absorvidos sem
análise crítica ou discussão. A educação bancária separa claramente educador e
educando: o primeiro pensa e fala, o segundo é pensado e escuta; o primeiro escolhe o
conteúdo e o prescreve, o segundo sujeita-se ao conteúdo e o assimila; o primeiro é o
sujeito, o segundo é objeto. Já é tempo de superá-la.

153
A arte do tempo
Pesquisador da Universidade de Minnesota procura entender fenômenos
empresariais a partir da linguagem da música.

Conta-se que, ao final de uma conferência do partido comunista, durante a era soviética,
foi realizada uma homenagem a Josef Stalin. Então, todos se levantaram e aplaudiram
com entusiasmo, por três minutos... quatro minutos... cinco minutos... o tempo foi
passando, e aplaudir foi se tornando cada vez mais doloroso, mas nenhum dos presentes
se arriscava a ser o primeiro a parar. A polícia secreta estava atenta. Os aplausos
passaram dos 10 minutos e ninguém manifestava a intenção de parar. Entre os presentes,
estava o diretor de uma fábrica. Aos 11 minutos, ele parou de aplaudir, sentou-se e foi
seguido pelos demais. Na mesma noite, foi preso sob um pretexto. Seu interrogador lhe
disse para nunca ser o primeiro a parar de aplaudir.

A historinha faz parte do livro When: the Art and Science of Perfect Timing, de Stuart Albert,
lançado no Brasil em 2014. Albert é professor da Carlson School of Management, da
Universidade de Minnesota. O livro é fruto de duas décadas de pesquisa e reflexão do
autor.

O pitoresco fato ilustra um dilema comum: qual é o momento certo para agir? Uma
empresa criativa e empreendedora, ao lançar um novo produto, pode estar se adiantando
ao seu tempo e não encontrar o mercado pronto para absorver a inovação proposta.
Porém, se decidir aguardar, poderá testemunhar com desgosto um concorrente capturar
a vantagem de ser o primeiro a chegar aos clientes.

Executivos veem-se, diariamente, diante de decisões relacionadas ao tempo. Qual o


momento certo para expandir nossos negócios? Quando devemos iniciar o processo de

154
internacionalização da empresa? Devemos contratar mão de obra agora ou aguardar o
aumento da demanda? Se agirmos agora, estaremos nos precipitando? Se não agirmos,
nossos concorrentes passarão à nossa frente?

O frenesi competitivo dos últimos anos levou as empresas a buscar a rapidez em suas
ações. Quem sai na frente tem a vantagem do pioneirismo: fortalece sua imagem, chega
antes aos clientes, ocupa o mercado, consegue trabalhar com maiores margens de lucro e
inibe a ação de concorrentes. Entretanto, a rapidez cobra seu preço. Os pioneiros
podem errar nas escolhas tecnológicas, enfrentar mercados ainda imaturos e instáveis,
sofrer para convencer os potenciais clientes a adotar a novidade e penar para operar
novos canais de distribuição. As revistas e livros de negócios estão cheios de narrativas
laudatórias de empresas criativas, porém, para cada história de sucesso, há várias
histórias de fracasso, de organizações que erraram o passo da inovação.

Por que temos tanta dificuldade para lidar com questões relacionadas ao tempo? Os
suspeitos usuais são a complexidade e a incerteza ambiental. Entretanto, Albert acredita
que o problema principal é que a forma como nós descrevemos o mundo ao redor não
inclui as sequências, intervalos, sobreposições e outras características temporais de tudo
o que acontece: de cada plano e de cada ação. Ao raciocinar de maneira estática,
empobrecemos nossa percepção sobre a realidade e, assim, corremos o risco de tomar
decisões inconsistentes.

O que fazer? O pesquisador sugere que, para conduzir melhores análises, e assim poder
tomar melhores decisões, é necessário incorporar a variável tempo: encontrar padrões
temporais e analisá-los. Albert advoga que devemos olhar para os fenômenos a serem
analisados, sejam eles decisões corporativas ou crises políticas, como se olha para a
partitura musical de uma sinfonia. Uma partitura musical contém duas dimensões: a
dimensão vertical apresenta os diversos instrumentos e a dimensão horizontal apresenta
o que cada instrumento tocará.

155
Os eventos desdobram-se de modo similar nas empresas. Muitas ações ocorrem
simultaneamente (a dimensão vertical) e cada indivíduo ou grupo segue uma sequência
própria (a dimensão horizontal), com seu ritmo e suas pausas. O conjunto poderá
produzir um resultado harmônico e prazeroso, ou apenas gerar dissonância e ruído.
Algumas empresas são verdadeiras orquestras sinfônicas, com seus naipes perfeitamente
sincronizados, produzindo música de alta qualidade. Outras se assemelham a bandas de
jazz, permitindo aos seus músicos criar e improvisar, a partir de padrões predefinidos.
Algumas outras, entretanto, perdem o ritmo, atravessam constantemente a melodia e
alienam sua audiência.

Dominar a arte do ritmo e do tempo não é tarefa simples. Leonard Bernstein, Herbert
von Karajan, Duke Ellington e Benny Goodman não se formaram em pouco tempo.
Porém, observando a ação desses mestres e adotando as lentes propostas por Albert,
talvez possamos desenvolver nossa sensibilidade, somar arte e ciência, e compreender
melhor a inexorável experiência do tempo, nas empresas e fora delas.

156
A arte do pensamento negativo
Contra as receitas de sucesso e a autoajuda, recomenda-se o bom uso da
ironia e da sensibilidade humanista.

Do inevitável Bergman ao movimento Dogma 95, e além, o cinema escandinavo sempre


ofereceu alternativas aos interessados em fugir do entediante escapismo hollywoodiano.
A Arte do Pensamento Negativo é uma comédia de humor negro norueguesa, realizada em
2006. O filme, escrito e dirigido por Bård Breien, foi apresentado na 34ª Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, em 2010. A história gira em torno de Geirr, um
homem de 33 anos que ficou paraplégico após um acidente de automóvel. O
protagonista vive em uma casa de campo, na companhia de sua bela e dedicada esposa,
Ingvild. Passa o tempo bebendo, fumando maconha e assistindo filmes sobre a Guerra
do Vietnã.

Preocupada com o marido, Ingvild o inscreve em um grupo de autoajuda, formado por


pessoas com diferentes deficiências. O grupo é liderado por Tori, uma entusiasta da
autoajuda. Ela, que não tem nenhuma deficiência, proíbe os membros do grupo de dizer
qualquer coisa negativa sobre seus problemas e os estimula com clichês e frases de
efeito. “Focar nossas fraquezas nos apequena, mas se focarmos nosso potencial nós
podemos nos tornar gigantes”, proclama Tori em uma reunião, para deleite do grupo.

O choque entre Tori e Geirr é inevitável. Tori tenta estimular Geirr a pensar
positivamente e “focar as soluções, não os problemas”. Geirr, iconoclasta e irreverente,
rebela-se contra a visão idílica de Tori e, de crise em crise, vai conquistando o grupo com
sua visão crítica e niilista da realidade. Aos poucos, o faz de conta induzido por Tori
perde força, os membros do grupo vão se abrindo para seus próprios problemas e
encontram algum consolo na honestidade e na solidariedade que começa a surgir.

157
O filme norueguês trata cinicamente da “cultura de autoajuda”, praga contemporânea
que cruzou fronteiras nas últimas décadas, avançando sobre os mais diversos domínios
da sociedade, da Escandinávia aos trópicos. Sintomaticamente, a mídia popular brasileira
está hoje impregnada pela lógica e pelo discurso da autoajuda. Em muitos países, a
autoajuda transformou-se em uma indústria milionária, que inclui palestras, livros,
revistas, vídeos, treinamento e consultoria.

O mundo corporativo foi domínio no qual a autoajuda encontrou terreno propício, com
portas escancaradas pelas deslumbradas áreas de recursos humanos. Nas empresas, o
culto do pensamento positivo fomenta o otimismo, encoraja o estabelecimento de metas
ambiciosas e celebra o sucesso. Porém, sob os efeitos especiais dos powerpoints
apresentados em reuniões, as metas são manipuladas e o sucesso tem pés de barro.

David Collinson, professor da Escola de Negócios da Universidade de Lancaster, no


Reino Unido, publicou um texto no jornal britânico Financial Times, com o sugestivo
título “O Lado Negativo da Liderança Positiva”. Collinson argumenta que no coração da
crise que afeta muitas nações ocidentais encontra-se uma abordagem específica de
liderança, da qual foi extirpado o pensamento crítico, em favor do pensamento positivo
e da propensão ao risco. O autor denomina o fenômeno de “liderança Prozac”, um mal
que afeta a sociedade e as empresas, causando vício em uma positividade excessiva e
artificial.

Os líderes Prozac fazem discursos delirantes, acreditam em suas próprias palavras e


desencorajam visões alternativas e críticas. Alguns líderes Prozac são carismáticos e
nutrem fiéis seguidores. Eles ignoram problemas e tornam suas organizações menos
preparadas para enfrentar crises. Quando encontram terreno propício, criam uma
“cultura positiva”, que pune ou aliena funcionários que não a assimilam ou praticam.

Candidatos a líderes Prozac são fáceis de identificar. Eles aguardam ansiosamente as


palestras promovidas pela HSM, uma empresa especializada em eventos de autoajuda
empresarial, e discutem avidamente as pérolas ouvidas dos “grandes nomes do

158
management”. Circulam entusiasticamente vídeos das conferências TED (Technology,
Entertainment and Design), cujo grande objetivo parece ser atrair cientistas e
pensadores, misturá-los a caçadores de novidades, e transformar a todos em celebridades
de auditório.

Collinson observa que o pensamento positivo, base da liderança Prozac, pode ter certo
poder de transformação, facilitando inovações e processos de mudança. Porém, o
otimismo excessivo pode estimular o cinismo, erodir a confiança e provocar o
afastamento da realidade. Mais sábio seria combinar doses adequadas de pensamento
positivo e pensamento crítico, de modo a enfrentar realidades complexas. O ilusionismo,
bem sabemos, é competência essencial nas organizações, públicas e privadas, grandes e
pequenas. Porém, convém não exagerar.

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INDICAÇÕES DE LEITURA

Para o leitor de mente alerta e espírito aberto, segue uma seleção de obras que ajudam a

nutrir uma visão crítica sobre o capitalismo selvagem do século XXI. Colaboraram para

preparar esta lista os colegas Carlos Osmar Bertero, Maria Ester de Freitas e Isleide

Fontenelle, da Linha de Pesquisa de Estudos Organizacionais, da FGV-EAESP.

A Corrosão do Caráter. Richard Sennett. Editora Record, 2004.

A Disneyzação da Sociedade. Alan Bryman. Editora Ideias & Letras, 2007.

A Era do Acesso. Jeremy Rifkin. Editora Makkron, 2005.

A Loucura do Trabalho. Christophe Dejours. Editora Oboré, 1987.

Ascensão e Queda do Planejamento Estratégico. Henry Mintzberg. Editora Bookman, 2004.

Assédio Moral no Trabalho. Maria Ester de Freitas, Roberto Heloani e Margarida Barreto.
Editora Cengage, 2008.

Blind Spots: Why We Fail to Do What’s Right and What to Do About It. Max H. Bazerman e
Ann E. Tenbrunsel. Princeton University Press, 2012.

Como Gerenciar seu Chefe. Arménio Rego, Miguel Pina e Cunha e Thomaz Wood Jr.
Editora Da Boa Prosa, 2011.

Consumer Society: Critical Issues & Environmental Consequences. Barry Smart. Sage
Publications, 2010.

160
Cultura Organizacional: Identidade, Sedução e Carisma. Maria Ester de Freitas. Editora FGV,
1999.

Dangerous Company: Management Consultants and the Business They Shake and Ruin. James
O’Shea e Charles Madigan. Penguin Books, 1997.

Desmedida do Capital. Daniele Linharte. Boitempo Editorial, 2007.

Igualdade e Meritocracia: A Ética do Desempenho nas Sociedades Modernas. Lívia Barbosa.


Editora FGV, 1999.

Imagens da Organização: Edição Executiva. Gareth Morgan. Editora Atlas, 2002.

Impression Management in Organizations: Theory, Measurement, Practice. Robert A. Giacalone,


Paul Rosenfeld e Catherine Riordan. Thomson Business Press, 1995.

La Société Malade de la Gestion. Vincent de Gaulejac. Editora Seuil, 2005.

MBA? Não, Obrigado! Henry Mintzberg. Editora Bookman, 2006.

Metamorfoses da Cultura Liberal. Gilles Lipovetsky. Editora Sulina, 2004.

Michel Foucault: Poder e Análise das Organizações. Rafael Alcadipani da Silveira. Editora
FGV, 2005.

Modernidade Líquida. Sygmunt Bauman. Editora Zahar, 2001.

Netslaves: True Tales of Working the Web. Bill Lessard e Steve Baldwin. Editora McGraw-
Hill, 2000.

O Culto da Performance. Alain Ehrenberg. Editora Ideias & Letras, 2010.

O Novo Espírito do Capitalismo. Luc Boltansky e Eve Chiapello. Editora WMF Martins
Fontes, 2009.

O Poder das Organizações. Max Pagés, Michel Bonetti, Vincent de Gaulejac e Daniel
Descendre. Editora Atlas, 2005 (9ª edição).

161
Organised Crime: Entrepreneurs in Illegal Business. Petter Gottschalk. Edward Elgar
Publishing, 2009.

Organizações Espetaculares. Thomaz Wood Jr. Editora FGV, 2001.

Os Executivos das Transnacionais e o Espírito do Capitalismo. Osvaldo López-Ruiz. Azougue


Editorial, 2997.

Power: Why Some People Have It and Others Don’t. Jeffrey Pfeffer. Editora Harper Collins,
2010.

Shop Class as Soulcraft: An Inquiry into the Value of Work. Matthew B. Crawford. The
Penguin Press, 2009.

Supercapitalism: The Transformation of Business, Democracy, and Everyday Life. Robert B. Reich.
Editora Vintage, 2007.

The Cinematic Society: The Voyer’s Gaze. Norman K. Denzin. Sage Publications, 1995.

The Culture of the New Capitalism. Richard Sennett. Yale University Press, 2007.

The Folckore of Management. Clarence B. Randall. Editora John Wiley & Sons, 1959.

The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. Daniel J. Boorstin. Editora Vintage, 1992.

The McDonaldization of Society: An Investigation into the Changing Character of Contemporary


Social Life. George Ritzer. Pine Forge Press, 1995.

The Shallows: What the Internet is Doing to our Brains. Nicolas Carr. Editora W.W. Norton,
2010.

Trabalho e Identidade em Tempos Sombrios. Pedro Fernando Bendassolli. Editora Ideias &
Letras, 2007.

Vida em Fragmentos. Zygmunt Bauman. Editora Zahar, 2011.

162
Vida, o Filme: Como o Entretenimento Conquistou a Realidade. Neal Gabler. Editora
Companhia das Letras, 1999.

163
SOBRE O AUTOR

Thomaz Wood Jr. é professor titular da FGV-EAESP e sócio da Matrix Consultoria e

Desenvolvimento Empresarial. Sua prática de consultoria inclui a coordenação de

projetos de transformação organizacional e de estratégia empresarial. Publicou mais de

50 artigos acadêmicos e 25 livros na área de gestão, incluindo: Organizações Espetaculares;

Gurus, Curandeiros e Modismos Empresariais e Mudança Organizacional. O autor colabora,

desde 1996, com a revista CartaCapital, na qual os textos deste livro foram originalmente

publicados.

ISBN 978-85-914912-1-6

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