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CAPITALISMO SELVAGEM 2:
Crônicas da Vida Corporativa e do Trabalho
1ª edição
São Paulo
Edição do Autor
2014
Copyright © 2014 Thomaz Wood Jr.
Todos os direitos reservados
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por qualquer meio ou
forma sem a prévia autorização do autor.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610./98 pelo
artigo 184 do Código Penal.
ISBN 978-85-914912-1-6
Edição do autor
Fone 55 11 38 46 06 01
Email thomaz.wood@fgv.br
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Para Ana e Daniel, que ajudarão a construir um mundo melhor...
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SUMÁRIO
Apresentação 07
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Parte 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Talentos escassos 116
Analfabetismo funcional 119
No mato sem cachorro 122
Virtudes perdidas 125
MBA ou não MBA: eis a questão 128
Educação corporativa em xeque 131
Pecados capitais da educação corporativa 134
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APRESENTAÇÃO
trabalho impôs limites às empresas. Entretanto, não se pode dizer que o sistema tenha
“selvageria” surgiu, mais sofisticado, porém tão desumanizador quanto o original. Essa
nova selvageria manifesta-se pela colonização da vida pessoal por valores empresariais e
Este livro traz reflexões sobre essa realidade. Seu conteúdo foi gerado pela observação
direta, pelo contato com as experiências, muitas vezes traumáticas, de colegas, clientes e
corporativo contemporâneo.
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A obra está organizada em cinco partes: a primeira parte apresenta uma leitura mais
quinta parte trata de tentativas de fuga dos cidadãos, se não do sistema, ao menos de
Boa leitura!
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PARTE 1 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A SOCIEDADE
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Compra-me ou devoro-te!
Mais um dia, mais um shopping center: no Brasil, como em outros países em
desenvolvimento, a onda consumista continua em alta, porém sinais de
ressaca pontuam o horizonte.
Os grandes centros comerciais surgiram há quase 100 anos, nos Estados Unidos.
Multiplicaram-se após a Segunda Guerra Mundial, por lá e alhures, acompanhando a
expansão dos subúrbios. Desde o princípio, a ideia foi criar um ambiente fechado,
destinado a estabelecer certo nível de controle sobre o comportamento das vítimas: os
consumidores.
Depois de décadas de expansão, nos Estados Unidos, muitos centros comerciais vêm
perecendo, vítimas da crise econômica e do comércio eletrônico. No Brasil, os centros
comerciais já se contam às centenas, e o número continua crescendo. Enquanto o
mundo começa a sentir os efeitos da era do consumismo, os países em desenvolvimento
continuam emulando os países desenvolvidos, clonando seus vícios com algumas
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décadas de atraso. Hoje, significativamente, os maiores centros comerciais do mundo
estão em países em desenvolvimento, tais como China, Filipinas, Malásia, Tailândia,
Turquia e Indonésia.
True Storie, filme de 1986, dirigido e estrelado por David Byrne, apresenta uma divertida
colagem de personagens e histórias passadas na cidade fictícia de Virgil, no Texas. O
centro comercial da cidade é o ponto de encontro dos personagens, referência central de
suas existências. Poderia estar em qualquer lugar da Terra, ou aqui e agora.
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Reza uma jocosa definição que a cultura do consumo é um amálgama de valores e
comportamentos que se sustenta em três pilares: a mídia, o automóvel e o cartão de
crédito. A mídia, especialmente a TV, diz às hordas o que comprar e onde encontrar; o
automóvel transporta-as até as fontes; e o cartão de crédito viabiliza a transação, mesmo
que o cidadão não tenha fundos.
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A praga do espelho
Estudos científicos sugerem que estamos vivendo uma verdadeira epidemia
do narcisismo.
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Um trabalho de autoria de Jacqueline Z. Bergman, James W. Westerman e Joseph P.
Daly constatou que os estudantes universitários norte-americanos, especialmente aqueles
que cursam administração de empresas, apresentam níveis de narcisismo próximos
daqueles de estrelas de cinema e de músicos populares. Um estudo mais recente,
também liderado por Bergman, identificou uma relação entre narcisismo e materialismo,
e que, quanto maior o materialismo, menor a ética ambiental.
Os jovens estão se tornando cada vez mais narcisistas, e as mídias sociais provêm uma
plataforma para suas exibições. Elas se transformaram em vitrinas constrangedoras para
manifestações narcisistas e comportamentos infantis. E os narcisistas parecem estar
criando um padrão de comportamento para os demais.
No centro da epidemia, a fotografia parece ter sido reinventada. Antes, uma foto podia
ter a banalidade simpática de uma cena familiar, tocando por seu significado pessoal, ou
a aura de um registro artístico, emocionando pelo objeto registrado ou por sua
composição. O fotógrafo era o agente invisível, a equilibrar, com maior ou menor
talento, sua imaginação e suas intenções com o mundo de movimentos, luzes e sombras
à sua frente. Este escriba só tomou contato com a aparência física dos mestres Henri
Cartier-Bresson e Robert Capa anos depois de começar a admirar suas imagens. Na era
das mídias sociais, a fotografia parece ter se transformado em qualquer composição que
inclua o fotógrafo: eu e meu gato, eu e meu risoto, eu no Taiti, eu na maratona... eu na
Paulista!
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Quais as consequências? Autoconfiança e um grau “administrado” de narcisismo podem
contribuir para aumentar nossa iniciativa e nossa autonomia, ajudando a superar as
frustrações do dia a dia. Entretanto, além de certo ponto, o narcisismo pode tornar-se
nocivo. Conforme observou o pesquisador Roy Lubit há mais de 10 anos, indivíduos
que sofrem de “narcisismo destrutivo” dão importância excessiva a si mesmos, são
arrogantes e orientam-se exageradamente para a conquista de poder e riqueza. Muitas
empresas cultivam e cultuam tais tipos, porém elas podem pagar um preço alto por isso.
Narcisistas podem ser caprichosos, egoístas, instáveis, tóxicos e chatos, muito chatos.
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Influência 2.0
A onipresença das redes sociais, a ansiedade por status e o culto da
celebridade estão levando à criação de índices de influência.
O fenômeno foi detectado acima da linha do Equador. Em abril de 2012, a revista Wired
publicou matéria a respeito. No final de novembro, um texto no website da Harvard
Business Review fez-lhe eco e, em seguida, uma colunista do Financial Times orientou sua
ironia britânica ao assunto. O cento da polêmica é o índice Klout, criação de Joe
Fernandez, um empreendedor de São Francisco, a mesma cidade na qual Alfred
Hitchcock filmou Vertigo. A cria gerou polêmica, e alguma vertigem, porque o tal índice
foi desenvolvido para medir o grau de influência de qualquer indivíduo (eu, tu, ele, nós,
vós e eles) nas redes sociais, ou pseudossociais.
O índice Klout, como outros similares, é calculado a partir de uma base de variáveis que
inclui o número de seguidores no Twitter, a frequência de atualizações, o número de
recomendações, o índice Klout de amigos e seguidores etc. A escala varia de 1 a 100: 1
equivale a um atestado de inexistência digital; valores próximos de 20 indicam a
insignificância social do indivíduo; valores próximos de 100 são atribuídos aos luminares
do nosso tempo, como a celebridade pop Justin Bieber.
Para ter um índice Klout decente, é necessário frequentar as redes sociais, dedicando
tempo e energia a indicar os mais incríveis restaurantes japoneses no Facebook e a
inserir aforismos filosóficos, em até 140 caracteres, no Twitter. Entretanto, isso não
basta: é preciso também que as pérolas, em fatos e fotos, viagem pelas redes sociais e
sejam reproduzidas por outros usuários.
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Agora, reportam os cronistas do Norte, o fenômeno chega às empresas. De fato, no
mundo corporativo, o fetiche da influência não é novo. Há duas décadas, em um estudo
científico, pesquisadores fizeram ao corpo gerencial de uma empresa três singelas
perguntas: primeiro, quem é o seu líder? Segundo, em quem você confia? E, terceiro,
quem você procura, quando tem um problema? Da compilação das respostas surgiram,
respectivamente, o organograma da empresa, sua rede de confiança e sua rede de
expertise. Significativamente, os diagramas gerados eram diferentes. Alguns gestores, de
alta patente, apareceram solitários nas redes de confiança e de expertise. Outros, apesar
da baixa patente, mostraram-se influentes.
A novidade, agora, é a onipresença das redes sociais, inclusive nas empresas. Com a base
montada, era questão de tempo até que um empreendedor californiano, anabolizado por
um investidor, criasse um obscuro algoritmo matemático e inventasse um índice de
influência.
Empresas mencionadas pela Wired estão também utilizando o índice Klout de clientes
para decidir a quem devem dar maior atenção. Talvez, em um futuro próximo, tenhamos
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celebridades Klout sendo convidadas a furar filas, ganhando descontos especiais em
hotéis e restaurantes, e obtendo upgrades instantâneos em viagens aéreas.
Com a novidade, vieram as críticas. A ideia de ter a vida profissional ou pessoal afetada
por algoritmos obscuros criados por pós-adolescentes recém-egressos de Stanford pode
ser detestável. Lucy Kellaway, do Financial Times, afirma que não faz sentido sintetizar em
um número algo tão subjetivo quanto o grau de influência. Simplista, o índice Klout
iguala celebridades pop a chefes de Estado.
Joe Fernandez, o criador, declarou à Wired que vê o índice Klout como uma forma de
dar mais poder às pessoas comuns, de democratizar a influência. Parece ter boas
intenções. No entanto, em um mundo obcecado com a aparência e o status, os índices de
influência podem também constituir mais um componente para alimentar a estratificação
social, a ansiedade e o comportamento de manada, características já marcantes, e
irritantes, do nosso tempo.
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Anjo caído
O caso recente, envolvendo acusações de doping contra o superciclista Lance
Armstrong, traz lições e alertas para o mundo corporativo.
Quando a notícia foi divulgada há alguns anos, ganhou manchetes em todo o mundo: a
Agência Norte-americana Antidoping (USADA) baniu o superatleta Lance Armstrong,
para o resto da vida, dos esportes olímpicos, e ainda cancelou todos os seus prêmios da
Volta da França, embora haja dúvidas sobre se tais medidas estão sob a alçada da
agência.
A decisão veio depois de muitos anos de suspeita e ao final de dois anos de investigação.
Baseou-se em declarações de testemunhas que faziam parte do ciclo mais próximo de
colegas do ciclista. O fato é chocante e polêmico. Alguns observadores declararam que,
apesar do processo e das evidências, nunca se saberá se Armstrong é ou não culpado da
utilização de drogas para a melhoria de seu desempenho nas competições, especialmente
na superprova do país de Asterix.
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Armstrong nasceu em 1971, no Texas. Na juventude, foi exímio nadador e participou de
provas de triatlo. Com 16 anos, começou a vencer corridas de bicicleta. Seu coração e
seu corpo pareciam ter sido esculpidos para o ciclismo. Em 1993, tornou-se o mais
jovem atleta a vencer uma etapa da Volta da França. Em 1996, recebeu um diagnóstico
de câncer nos testículos, com um prognóstico sombrio. A doença havia atingido os
pulmões e o cérebro. Surpreendentemente, Armstrong venceu a doença, voltou a
competir e ganhou edições consecutivas da Volta da França, de 1999 a 2005. O ciclista
também criou uma fundação, que leva seu nome e apoia pesquisas sobre o câncer. Virou
herói do esporte e transformou-se em fonte de inspiração para milhares de doentes.
Depois de superar o câncer, passou a afirmar que a doença havia lhe ensinado lições
importantes, tais como a relevância da estratégia e do trabalho em equipe para vencer os
desafios. Aprendeu a combinar sua impressionante condição física com uma espantosa
disciplina de treinamento e uma enorme atenção ao planejamento das corridas, fator
essencial para vencer provas de longa duração. O ciclista era descrito frequentemente
como um atleta obsessivo, atento permanentemente à alimentação e focado nos avanços
tecnológicos. Sintomaticamente, nunca se afastava de suas bicicletas. Diante das
acusações, Armstrong se disse vítima de uma caça às bruxas. Pode-se concordar com ele,
mas isso não é o mesmo que afirmar que bruxas não existam, principalmente no doentio
mundo do esporte profissional.
Superatletas são personagens icônicos do nosso tempo. Eles são consumidos como
exemplos de esforço, superação e realização. Empresas brigam para ter a imagem
daqueles mais bem-sucedidos associada aos seus produtos. No mundo empresarial,
superatletas constituem também fonte de inspiração, supostamente capazes de catalisar
as energias dos exércitos corporativos. Em mercados abertos e turbulentos, marcados
pela competição sem fronteiras, superatletas mostram que é preciso, e possível, superar
barreiras e ultrapassar os próprios limites.
Muitas empresas têm a busca frenética pela capacidade competitiva como traço cultural,
característica essencial de seu DNA corporativo. Frequentemente, são organizações
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financeiras, ou organizações controladas e gerenciadas por profissionais formados no
mercado financeiro. Como os superatletas que as inspiram ou representam, muitas delas
são empresas bem-sucedidas e reconhecidas. Entretanto, não lhes faltam detratores.
Concorrentes as criticam por adotarem condutas desleais. Fornecedores reclamam do
tratamento rude e das práticas agressivas. Funcionários e ex-funcionários denunciam
condições de trabalho subumanas, com pressões exageradas por resultados e exigência
de disponibilidade 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana).
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PARTE 2 – O CAPITALISMO SELVAGEM E AS EMPRESAS
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História reescrita
O 50º aniversário da crise dos mísseis de Cuba, em 2012, foi marcado por
uma revisão da história oficial. O caso traz lições sobre a natureza do poder
nas grandes e pequenas esferas.
Desde 1997, revela Schwarz, pesquisadores têm acesso às gravações das reuniões que
Kennedy realizou durante a crise com seus principais assessores. Entre esses
pesquisadores, encontra-se Sheldon M. Stern, que foi historiador da biblioteca John F.
Kennedy por quase um quarto de século. Stern analisou vasta documentação e concluiu
que Kennedy e seu grupo tiveram parte considerável da responsabilidade pela
deflagração da crise. Eles iludiram a opinião pública sobre o balanço nuclear entre as
superpotências e esconderam suas ações para derrubar o governo cubano.
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Na verdade, na corrida nuclear, os norte-americanos estiveram sempre à frente. O
poderio soviético era uma fração do estadunidense. Insensível à superioridade já
conquistada, Kennedy comandou a maior expansão militar ocorrida em tempos de paz.
Esse esforço incluiu a instalação de mísseis em regiões próximas à União Soviética: uma
provocação.
Tudo levava a crer que Washington preparava-se para dar o primeiro golpe em um
ataque nuclear. Sob essa ótica, endossada por historiadores, o envio de mísseis a Cuba
pode ser visto como uma resposta que visava estabelecer equilíbrio e dissuadir o inimigo,
e não um ato de agressão.
Além disso, a instalação dos mísseis não alterava de maneira substantiva o equilíbrio
nuclear: os soviéticos já possuíam mísseis instalados em outras bases e em submarinos.
Esse arsenal poderia atingir os Estados Unidos em tão pouco tempo quanto os mísseis
instalados em Cuba. Kennedy e seus assessores, atestam os analistas, conheciam a
realidade. No entanto, com apoio da mídia e da TV, mantiveram a plateia nacional
aterrorizada.
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pela sensata proposta de seu antípoda Khrushchev. O norte-americano, entretanto, foi
responsável o suficiente para refrear seus assessores mais belicosos, reverter o quadro e
evitar o fim do mundo.
A história, reza a máxima, é escrita pelos vencedores. Aos perdedores, sobram as notas
de rodapé. Aos historiadores, resta a tarefa de pôr os pingos nos is, anos mais tarde. O
saudável zelo do revisionismo histórico costuma focar grandes momentos e
acontecimentos. O mundo corporativo não costuma merecer tal atenção, exceto quando
provoca calamidades ou catástrofes. Entretanto, também nele está presente a
maquiavélica arte de contar lorotas e enganar incautos.
Abra o prezado leitor as páginas de uma revista de negócios e boa chance haverá de
deparar-se com ficção de qualidade duvidosa, manifestações grosseiras de culto à
celebridade e meias verdades, esculpidas por relações públicas. A criação de heróis, mitos
e narrativas épicas está presente em fusões e aquisições, na introdução de novos
produtos e nos mais prosaicos eventos do dia a dia corporativo. Como se sabe, nas
grandes e pequenas esferas do poder, não há business sem show business.
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Duas décadas de gestão prêt-à-porter
Apesar do vasto conhecimento acumulado em administração de empresas,
muitos executivos continuam preferindo as modas gerenciais.
A partir do final dos anos 1970, entretanto, um novo fenômeno veio povoar o mundo
da administração, uma onda que chegou aos trópicos nos anos 1990. A abertura de
mercado, as reformas econômicas e as privatizações criaram o ambiente para sucessivas
modas gerenciais.
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entusiasmadas, adotam a novidade em uníssono. A mídia reflete e catalisa a onda,
publicando histórias de sucesso, reais ou fictícias. Dentro das empresas, os novidadeiros
são promovidos. As escolas incorporam o “novo paradigma” em seu currículo e o
espalham por meio de seus cursos de educação corporativa.
O que fica disso tudo? A mídia de negócios vende revistas e espaço publicitário, as
editoras comercializam livros, os consultores empurram seus pacotes e os gurus
enriquecem. Dentro das empresas, os padrinhos das novas ideias são promovidos e seus
asseclas ganham força. No entanto, para as organizações, depois que baixa a neblina,
pouco resta.
E assim foi por duas décadas. Entre nós, não foram poucas as ondas e marolas. Quem
não se lembra da qualidade total, da reengenharia, do planejamento estratégico, da gestão
por objetivos, da organização matricial, da gestão do conhecimento, das melhores
práticas, da cultura organizacional e das competências centrais? A lista é longa. Todas
essas modas gerenciais tiveram seu momento. Conheceram a ascensão, a maturidade e o
declínio. Todas tiveram gurus e livros seminais. Todas prometeram mundos e fundos.
Elas garantiam respostas para os desafios da globalização, para as ameaças dos
concorrentes, para a competitividade, para a lucratividade e para a felicidade. Quase
todas terminaram esquecidas.
O que explica a repetição desses ciclos? Primeiro, o fato de os executivos desejarem ser
vistos como homens de ação, sempre preocupados em mostrar que estão adotando as
mais novas técnicas de gestão. Segundo, os agentes envolvidos – gerentes, consultores,
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professores e autores – faturarem com as ondas e, portanto, trabalharem para promovê-
las. Terceiro, as organizações não aprenderem. Elas evitam refletir sobre seus erros e
gostam de celebrar façanhas inexistentes. Quarto, a fascinação dos gerentes tropicais
com artefatos ianques: se vem do Norte, deve ser bom. Será?
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10 panaceias gerenciais
Qualidade total
Escolha o seu guru, leia os seus livros e torne-se um evangélico da causa. Todos na
empresa devem ser responsáveis: nada é mais importante do que a qualidade! Ignore
coisas supérfluas como a inovação, a produtividade e a lucratividade. Tudo vai dar certo!
Ou não...
Reengenharia
Organização matricial
Quebre as barreiras dos departamentos e crie times que cruzem as áreas funcionais em
tornos de projetos e produtos. Mas prepare-se para a guerra por recursos e para o caos
criado pelo novo modelo.
Competências centrais
Descubra quais são as competências que sua empresa domina e que a diferenciam dos
concorrentes. Se não conseguir, escreva qualquer uma que esteja na moda. Mas, se
conseguir, esqueça-as rapidamente, porque o sucesso de hoje pode ser o fracasso de
amanhã.
Sistemas empresariais
Faça como todas as grandes empresas: abandone seus sistemas legados, desenvolvidos
para as suas necessidades, e adote um sistema padronizado. Prepare-se para um projeto
que ultrapassará o prazo de entrega, estourará o orçamento, entregará resultados pífios e
tornará sua empresa dependente de um fornecedor caprichoso e caro.
Cultura organizacional
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Pipelines de liderança
Inovação frugal
Siga o exemplo dos indianos: construa e comercialize produtos que custem uma fração
do preço usual. Sua empresa poderá atingir milhões de novos consumidores. Mas
prepare-se para recalls e processos judiciais. A economia, como se sabe, é frequentemente
a base da porcaria.
Seis-sigma
Ponha todos os funcionários para brincar de lutadores de caratê. Se deu certo na GE,
tem que dar certo na sua empresa. Mas prepare-se para conviver com hordas de faixas-
pretas arrogantes, reuniões intermináveis, muita estatística e poucos resultados.
Empreendedorismo
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Novos tempos, velhas neuroses
O tempo passa, o mundo gira, mas as organizações continuam sofrendo com
as mesmas patologias que as assolaram no século passado.
A vida em sociedade, com suas pressões, seus desequilíbrios e suas injustiças, gera e
alimenta muitas neuroses. Haja psicólogos e psicanalistas! Organizações, especialmente
as grandes, reproduzem e ampliam tais neuroses. E, após décadas de privatizações,
fusões, aquisições e reestruturações, elas estão mais turbulentas, confusas e neuróticas do
que nunca. Haja consultores!
Publicado na década de 1980, o livro The Neurotic Organization, assinado por Manfred F.
R. Kets de Vries e Danny Miller, continua atual. Kets de Vries tem uma eclética
formação em economia e psicanálise, e é professor de liderança e mudança
organizacional no Insead, na França. Miller é pesquisador e professor titular de uma
cadeira de empreendedorismo da HEC, no Canadá. A obra traz uma instigante tipologia,
com cinco tipos neuróticos de organização.
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O segundo tipo é a organização compulsiva. Ela é perfeccionista e preocupa-se com
detalhes triviais; é dogmática e obsessiva. Apega-se exageradamente a procedimentos e
quer controlar tudo que supostamente a afeta. Esse tipo de organização é
frequentemente cindido em duas populações distintas: uma que trabalha e outra que
controla. Os que trabalham veem os que controlam como parasitas, que existem apenas
para dificultar seu labor. Os que controlam veem os que trabalham como agentes do
caos; vivem imersos na criação e perpetuação de regras bizantinas, a perseguir o mundo
da perfeição burocrática.
O quinto tipo é a organização dramática. Seu corpo gerencial caracteriza-se pela atenção
exagerada a si mesmo, pelo narcisismo e pela expressão excessiva de emoções. Falta-lhe
a capacidade de focalização e de concentração. Seus executivos parecem viver para tentar
impressionar as “pessoas certas”. Organizações dramáticas gostam de arquitetar
“grandes jogadas” e correr riscos, comumente fonte dos sonhos (ou delírios) de
executivos que gostam de seguir sua intuição e seus desejos.
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Organizações neuróticas frequentemente induzem seus funcionários a aceitar e praticar
seus vícios. Com o tempo, elas desenvolvem normas implícitas e sistemas formais de
incentivo que condicionam seus quadros a se conformarem ao estilo dominante.
Organizações neuróticas nutrem líderes neuróticos. Líderes neuróticos, por sua vez,
fomentam atitudes e comportamentos consistentes com suas características. Fecha-se,
assim, um ciclo vicioso, que tende a se perpetuar.
Kets de Vries e Miller argumentam que conhecer o tipo neurótico dominante em uma
organização ajuda a definir processos de intervenção mais substantivos, indo além das
soluções simplórias frequentemente receitadas por gurus e consultores. Entretanto,
mudanças dificilmente vêm de dentro. Ao contrário de indivíduos que podem buscar,
com autonomia, a própria cura, organizações raramente conseguem se corrigir. Elas
mudam em consequência de crises e grandes rupturas externas, capazes de abalar suas
estruturas e mover seus quadros executivos além de suas zonas de conforto. Para os
descontentes, resta a porta de saída, sempre serventia da casa, e buscar uma nova casa, e
talvez uma nova neurose.
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A doença do management
Sociólogo francês argumenta que os modernos modelos de gestão
empresarial constituem uma patologia social, capaz de atrair e seduzir suas
vítimas.
Seu argumento central, desenvolvido no livro Gestão como Doença Social (Editora Ideias e
Letras), é que a disseminação das práticas do management constitui fator de
instrumentalização e alienação dos profissionais, ao colocá-los diante de paradoxos
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insolúveis. Os paradoxos estão no centro do modelo: espera-se autonomia, porém
dentro de limites restritos; fomenta-se a criatividade, porém dentro de um sistema super-
racional; espera-se total comprometimento com a organização, porém a possibilidade de
demissão está sempre presente.
Os novos modelos de gestão fazem crer que somos capazes de atingir desempenhos
superiores, conquistar metas e nos realizarmos. Somos capturados pela ilusão narcisista
de grandes conquistas. O sistema faz com que percamos o verdadeiro sentido do
trabalho e nos orientemos cegamente para o atendimento de metas fixadas pela
organização. Reagimos adoecendo e procurando a ajuda de médicos, psicólogos e coaches.
Acreditamos que o problema nos diz respeito individualmente, não coletivamente.
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a tarefa. O novo padrão busca o controle do corpo, da mente e da alma. Avançou por
todas as latitudes nas últimas décadas, e segue a passos firmes. Em breve, estará em mais
uma empresa, organização estatal ou ONG perto de você!
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O caos nosso de cada dia
Empresas locais, de todos os portes, parecem viver imersas em um estado
crônico de confusão.
Converse o prezado leitor com um executivo de uma empresa local, de qualquer porte, e
dele ouvirá histórias de horror. Todas as organizações parecem viver em constante
estado de confusão. Jornadas intermináveis de trabalho, telefones celulares que não
param de cuspir emergências, e-mails que não cessam de disparar urgências, chefes
atordoados e liderados em pânico: a lista é longa e tenebrosa. Todos parecem viver à
beira de um ataque de nervos.
O que provoca tal estado das coisas? O suspeito usual é velho conhecido. Nove entre
dez executivos, perguntados a respeito, provavelmente culparão a globalização, a
volatilidade econômica e a instabilidade dos mercados. Há alguma verdade nessa
resposta. De fato, quanto mais conectado for um sistema, mais sensível um componente
será em relação à ação de outro componente. Uma borboleta batendo as asas na
Amazônia pode provocar um tufão no Texas.
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O segundo fator é a confusão estrutural. Um modelo de organização bem pensado
provê foco para o trabalho, indica o que cada um deve fazer e os limites de sua ação. Os
melhores modelos equilibram clareza e flexibilidade, permitindo extrair o melhor de cada
profissional, ao mesmo tempo que garante espaço para a criatividade. Muitas empresas
ignoram as boas práticas e trabalham com estruturas mal desenhadas, provocando
alocação inadequada de recursos e gerando conflitos. Com isso, gasta-se mais tempo
definindo o que deve ser feito e quem deve fazer do que realizando.
O quarto fator é a confusão cultural. Nas últimas décadas, empresas de todos os setores
passaram por inúmeros processos transformacionais: fusões, aquisições e outras
mudanças radicais. Hoje, muitas empresas constituem aglomerados de tribos com
histórias, identidades e culturas distintas, trabalhando sob uma mesma bandeira. Ocorre
que elas mantêm seus valores, comportamentos e formas de tomar decisões e conduzir
negócios. O resultado é uma nau em estado permanente de motim, o capitão e seus
asseclas sempre atarantados, procurando manter a aparência de normalidade sob uma
realidade convulsionada.
O quinto fator é a presença dos agentes do caos (não confundir com agentes da Kaos,
da antiga série de TV, embora haja semelhanças). Os agentes do caos são executivos que
sofrem de confusão mental crônica. Eles (e elas) poderiam ter uma vida produtiva e feliz
longe dos centros decisórios empresariais. Porém, por razões desconhecidas,
conseguiram penetrar nas pirâmides corporativas e delas fizeram seu lar. Foram
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promovidos por motivos misteriosos, vindo a ocupar cargos nos quais têm grande poder
de influência. E fazem de seus cargos a plataforma para espalhar a confusão.
Os agentes do caos marcam e desmarcam reuniões, às quais sempre chegam com atraso
e das quais sempre saem mais cedo; sua mente flana por outras galáxias; eles estabelecem
prioridades, esquecendo-as em seguida; mobilizam equipes para realizar projetos de
utilidade duvidosa e resultados embaraçosos; esquecem compromissos e ignoram
cronogramas. O melhor amigo do agente do caos é seu telefone celular,
permanentemente em ação, sua principal ferramenta para disseminar a desordem.
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Terra de gigantes
Desenvolvida com arquitetura aberta, cultura alternativa e ímpetos libertários,
a internet se parece cada vez mais com o “mundo real”, com grandes
criaturas a dominar meios e mensagens.
As investigações fizeram eco àquelas enfrentadas pela Microsoft nos anos 1990.
Conforme cresceram e expandiram seus negócios, as empresas foram capazes de
mobilizar recursos, adquirir ou aniquilar competidores. Ambas foram acusadas, por
rivais e por agentes reguladores, de explorar de maneira injusta sua posição dominante
no mercado.
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Nos últimos anos, no entanto, o crescimento de grandes corporações com atividades
baseadas na rede, ou parcialmente relacionadas à rede, parece estar tornando o mundo
virtual cada vez mais parecido com o mundo real. Bruce Sterling, um escritor norte-
americano de ficção científica, observador do cenário virtual, argumenta que a internet é,
cada vez mais, algo conformado ou fortemente influenciado por cinco “pilares”: Apple,
Google, Facebook, Amazon e Microsoft.
Esses cinco gigantes têm histórias extraordinárias. A Apple, cria do idolatrado Steve
Jobs, renasceu das cinzas para tornar-se uma empresa colossal, invejada por sua
capacidade de inovar e de moldar o mercado. A Google, a partir de uma singela
ferramenta de busca, transformou-se em uma líder incontestável da propaganda on-line.
O Facebook atropelou seus rivais e superou, em 2012, um bilhão de zumbis (ou
usuários). A Amazon passou de livraria virtual a um gigante da logística, gerenciando um
portfolio abrangente de produtos. A Microsoft, de Bill Gates e Paul Allen, hoje
gerenciada por Steve Ballmer, continua sendo o maior fabricante mundial de software,
porém se reinventou, investindo em videogames e outros produtos.
Conforme argumentou Alexis C. Madrigal, no website da revista The Atlantic, se você for a
Nokia, a Hewllet-Packard ou um fabricante japonês de produtos eletrônicos, esses cinco
gigantes “roubam todo o seu oxigênio”. E podemos completar: se você for um simples
mortal, um mero consumidor, esses cinco gigantes o submeterão a um conhecido
processo que envolve sedução, conquista, extração de valor e aprisionamento, quando
você se tornará refém de seus modelos de negócio e plataformas. No mundo que essas
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empresas estão criando, a tecnologia funciona bem dentro de seus domínios, mas cruzar
as fronteiras pode ser um pesadelo.
O impacto de um movimento desse tipo seria notável, mas seria benéfico para o
consumidor? Ou seria mais sensato aguardar que o “sistema” opere sua mágica, que os
gigantes trombem entre si, ou tombem por sua própria arrogância, e outros lhes tomem
o lugar? O fato é que, como indica o antigo provérbio, em briga de elefantes, quem mais
sofre é a grama.
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Grandes demais para quebrar
A expansão dos negócios é usualmente vista como fruto de boa gestão. No
entanto, além de certo limite, o porte pode ser nocivo para as próprias
empresas e para a sociedade.
A expressão “grande demais para quebrar” foi popularizada na crise financeira do final
da década passada. Expressa a premissa de que algumas organizações, especialmente
instituições financeiras, são tão grandes e têm tantas ramificações que sua falência teria
um custo intolerável para a sociedade. Portanto, na iminência de uma crise séria, seria do
interesse da própria sociedade que o governo as protegesse. A tese é polêmica, e sua
aceitação poderia levar algumas organizações a tentarem tirar vantagens da eventual
proteção. Alan Greenspan, ex-Federal Reserve, chegou a declarar que, se uma
organização é grande demais para quebrar, ela é simplesmente grande demais, e deveria
ser dividida em organizações menores.
A busca do gigantismo parece ser mantra para as grandes corporações. Quanto maior,
melhor. Será? Em edição veiculada no dia 3 de novembro de 2012, a revista britânica The
Economist, lança dúvidas sobre a premissa. O texto sugere que, assim como os arranha-
céus vão batendo recordes de altura, as empresas vão batendo recordes de porte. No
entanto, na construção civil como no mundo corporativo, o limite pode estar bem
abaixo do céu. Como bem sabem os engenheiros, após certo limite, o projeto e a
construção tornam-se muito complexos, o que, na prática, limita a altura racionalmente
indicada. A construção de prédios ultra-altos em países periféricos deve-se mais ao ego
de governantes e empresários do que à racionalidade econômica.
O mesmo raciocínio pode ser válido para empresas. A busca de economias de escala
justifica o crescimento, seja orgânico ou por meio de fusões e aquisições. À medida que
43
uma empresa cresce, os custos de desenvolvimento de produtos, de implantação de
sistemas e de manutenção de estruturas centrais de controle são diluídos. Com isso, a
empresa ganha músculos, torna-se mais produtiva e, supostamente, competitiva.
Porém, como no caso dos prédios, há limites para o gigantismo. Primeiro, há restrições
impostas de fora para dentro. Empresas grandes demais podem adotar práticas
comerciais contrárias aos interesses da sociedade. Além disso, seguindo o argumento de
Greenspan, seu porte pode situá-las além do risco tolerável, no caso de uma falência.
Segundo, há restrições originadas na própria empresa. Gerenciar uma organização de 25
mil funcionários é diferente de gerenciar uma empresa de 50 mil funcionários, que é
diferente de gerenciar um gigante com 100 mil funcionários. Muda a estrutura, mudam
os sistemas, muda o estilo de gestão e mudam as competências necessárias. Empresas
que passam por processos de fusão sentem na pele o drama. Além de acordarem ao lado
do inimigo, são obrigadas a se reinventar, e tudo isso sob a pressão de realizar as
economias de escala esperadas do processo. O resultado pode ser catastrófico.
Naturalmente, tais limites variam de setor para setor. O Brasil, cuja ecologia empresarial
é enormemente heterogênea, tem setores povoados por centenas de pequenas empresas,
pouco competitivas, sem escala suficiente para orientar recursos para a inovação e a
melhoria da competitividade. Entretanto, alguns setores já apresentam frágeis gigantes,
enfrentando consideráveis dificuldades para manter seus múltiplos negócios sob controle
e operando de modo ineficiente. De fato, o mundo corporativo está cheio de histórias de
terror, de empresas bem geridas que se transformaram, após o crescimento, em palcos
de lutas fratricidas, viram sua produtividade despencar e perderam clientes.
Então, por que os processos de expansão continuam nas agendas das corporações?
Primeiro, porque crescer é um valor essencial do capitalismo e permeia a cultura e os
sistemas das organizações. Nos rituais estratégicos e orçamentários, poucos executivos
teriam a audácia de propor uma redução de metas para o exercício seguinte. Para a frente
e para o alto é que se anda! Segundo, porque, conforme comentado anteriormente,
crescer pode gerar economias de escala e aumentar a competitividade. No Brasil, forjar
44
“campeões nacionais”, capazes de competir no cenário internacional, tornou-se objetivo
de Estado. Terceiro, porque empresários são frequentemente seres impulsivos e capazes
de tomar decisões pouco racionais para satisfazer seu inflado ego. Quarto, porque o
gigantismo torna a empresa supostamente imprescindível (grande demais para quebrar),
o que pode transformar a sociedade em sua refém. Crescer além de certo porte pode ser
um ótimo negócio para empresários e executivos (por algum tempo), mas pode ser um
mau negócio para a sociedade.
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Criatividade sitiada
Festejada por artistas, empresários e até governos, a criatividade sofre sob o
jugo de chefes despreparados, lutando para sobreviver em ambientes
agressivos e caóticos.
Criatividade é um termo da moda. Migrou do mundo das artes, seu tradicional reduto,
para o mundo corporativo. Sabidinhos inventaram as indústrias criativas, as classes
criativas e até a economia criativa. Governos pelo mundo, acima e abaixo do Equador,
gostaram e gastaram.
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improvisação criativa, há mudanças significativas na atividade cerebral. Em certas
condições, ações espontâneas ocorrem sem a interferência de atividades de supervisão e
controle. No cérebro, como nas empresas, a criatividade não parece conviver bem com
capatazes.
Romeiro aprofundou a trilha de pesquisa aberta por Amabile, observando três fatores
que condicionam a criatividade: a natureza coletiva do trabalho, a pressão do tempo e a
tensão entre a inovação e a aceitação. O trabalho coletivo geralmente estimula a
interação criativa. No entanto, quando há competição excessiva entre pares e grandes
47
egos entram em conflito, então a criatividade sofre. A pressão do tempo, um recurso
sempre escasso, estabelece desafios e impele o trabalho criativo. Porém, o desafio perene
de fazer mais com menos, as múltiplas tarefas simultâneas e o permanente estado de
caos das empresas aumentam a transpiração e restringem a imaginação. A criatividade
viceja quando há espaço para o autor experimentar e trilhar novos caminhos e inovar,
criar algo inédito. Entretanto, esbarra frequentemente no conservadorismo, na
inapetência para o novo, em chefes conservadores e em clientes temerosos de ferir os
padrões e contrariar os bons costumes.
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A arte de vender calorias
A obesidade avança e transforma-se em mal onipresente. Livro recente
desvenda os ardis dos fabricantes de alimentos na luta pela participação no
estômago de seus consumidores.
A questão da obesidade ganhou grande atenção nos últimos anos. Michael Bloomberg, o
reverenciado prefeito de Nova Iorque, tentou banir a venda de bebidas com açúcar em
grandes embalagens. A decisão gerou polêmica, mas não foi fortuita: a obesidade
transformou-se em um problema crônico de saúde, afetando milhões de pessoas,
sobrecarregando os sistemas de saúde e gerando impactos negativos sobre a
produtividade e a qualidade de vida. Bloomberg baseou-se em pesquisas que indicam
serem os refrigerantes os principais vetores de açúcar na dieta norte-americana.
No final de 2012, a revista britânica The Economist publicou um extensa matéria especial a
respeito da questão da obesidade, veiculada pouco depois em CartaCapital. Charlotte
Howard, autora do texto, argumenta que a origem do problema está nas rápidas
mudanças ocorridas em poucas décadas: o trabalho migrou para os escritórios, o
transporte foi motorizado e a oferta de alimentos processados aumentou. Resultado: as
pessoas estão engordando como nunca, e ficando doentes. O que começou como um
problema de países desenvolvidos chegou rapidamente aos países em desenvolvimento,
inclusive o Brasil, que é hoje um dos campeões da engorda.
49
período, conversou com mais de 300 pessoas: ex-empregados da indústria, cientistas,
profissionais de marketing e presidentes de empresas. O produto da investigação resultou
no livro Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us (Randon House). A conclusão do
autor é que houve um esforço consciente em laboratórios de pesquisa, nas reuniões de
marketing e nos corredores dos supermercados para viciar os consumidores em alimentos
convenientes e baratos.
O livro, que teve um extrato publicado pelo The New York Times Magazine, em 20 de
fevereiro de 2013, está cheio de histórias saborosas. Moss conta como, no final da
década de 1990, um grupo bem-intencionado de altos executivos de grandes empresas
tentou abrir os olhos de seus pares para a necessidade de produzir alimentos mais
saudáveis e evitar, com isso, o destino da vilificada indústria do tabaco. A iniciativa,
entretanto, esbarrou na ganância do grupo. Um dos participantes apontou: “Nós não
vamos estragar as joias da empresa só porque uns caras de jaleco branco estão
preocupados com a obesidade”. Muito sensível!
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O conhecimento do comportamento do consumidor evoluiu; os bancos de dados e as
ferramentas estatísticas sofisticaram-se. No entanto, o princípio norteador de toda ação é
simples. O que estudantes aprendem nas escolas de administração e marketing, e a
“cultura” que encontram estabelecida nas empresas, parte de um postulado implacável:
descubram o que o consumidor quer comprar e vendam em grandes volumes; se os
clientes querem açúcar ou sal, preparem produtos com esses ingredientes, em grandes
quantidades; se ingredientes caros puderem ser substituídos por ingredientes baratos,
disfarçados por embalagens atraentes, ótimo; e não se esqueçam de contratar as
melhores agências de propaganda e promover os produtos, especialmente para as
crianças, que constituem o público de hoje e de amanhã. Amém!
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Campeões... de reclamações
Algumas divagações exploratórias sobre os resultados dos rankings de
reclamação do Banco Central e do Procon.
Consta que apenas 10% do volume dos icebergs situa-se acima da superfície. Pois esse
pode ser também o caso dos rankings de reclamações, compilados por órgãos de controle
e de proteção ao consumidor. A maior parte dos problemas fica submersa, longe das
estatísticas, porém prejudica consumidores e também as empresas, penalizadas por sua
própria ineficiência. Depois dessa pequena analogia, os fatos. Em seguida, algumas
divagações sobre as razões para o estado das coisas.
Chama a atenção que dois grandes bancos privados, supostamente mais ágeis, modernos
e atentos ao mercado e aos clientes, tenham superado os mamutes estatais. As
reclamações mais frequentes referem-se a débitos não autorizados em conta, prestação
de serviço irregular na conta salário e cobrança irregular de serviços não contratados. Os
“líderes”, conforme informou o Portal InfoMoney, retribuíram a divulgação com as
declarações de praxe: estão comprometidos com o cliente, tratarão todos os casos e
prometem melhorar. Blá, blá, blá...
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de reclamações, seguido pelo Bradesco, pelo BV, pelo Santander e pelo Banco do Brasil.
No ranking geral, os bancos parecem estar conseguindo a façanha de destronar as
empresas de telefonia, alvo do ódio popular por muitos anos. Não há quem não tenha
parentes, colegas ou amigos com histórias de horror sobre problemas de atendimento
bancário. Os absurdos são tantos que dariam matéria para várias comédias pastelão, se
não fossem estressantes e, vez por outra, dramáticos.
Fica a questão: o que provoca tal situação? Os dois campeões do ranking do Banco
Central são instituições respeitáveis, embora não livres de polêmicas. O Itaú é um caso
notável de sucesso empresarial brasileiro, tem reputação sólida e orquestrou uma
trajetória consistente de expansão nas últimas décadas. O Santander é uma das maiores
instituições financeiras do mundo e um exemplo de conduta estratégica, tendo ampliado
sua presença global desde os anos 1990. Enfrentou tropeços no Brasil, mas tem no País
uma de suas principais bases de negócios.
Além disso, Itaú e Santander, como muitas outras empresas de grande porte, passaram,
nos últimos anos, por processos substantivos de mudança. O Itaú uniu-se ao Unibanco.
O Santander adquiriu o ABN-Real. A integração de organizações desse porte não é
trivial. Além dos aspectos óbvios, tais como marca, identidade visual e sistemas, é
preciso reconstruir a arquitetura organizacional, rever estratégias, práticas gerenciais e
processos de tomada de decisão. Juntar equipes diferentes, frequentemente antigos
competidores, é tarefa hercúlea, marcada por conflitos. Enquanto o topo sofre com a
“dança das cadeiras”, a média gerência vive um clima de indefinição e apreensão, e a
base da pirâmide reza pelo melhor e prepara-se para o pior. Há conhecimento e
53
tecnologia gerencial de sobra para lidar com processos de integração pós-aquisição.
Inexplicavelmente, muitos desses processos continuam a ser conduzidos a partir de
abordagens reducionistas e simplórias, gerando crises e problemas previsíveis.
No entanto, a melhor explicação para os resultados dos rankings talvez venha da “teoria
dos jogos”, menina dos olhos de alguns economistas, psicólogos comportamentais e
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cientistas políticos. A atividade financeira repousa em um cipoal de regras e práticas,
nem sempre racionais, justas e claras. Os agentes – dos diretores dos bancos aos seus
gerentes de agência – movem-se e tomam decisões nesse cipoal, de acordo com seus
interesses.
De fato, eles podem estar participando de dois “jogos” simultâneos. O primeiro é o jogo
oficial, com regras fixadas pelos órgãos controladores, desdobradas internamente e
auditadas. O segundo é o jogo da busca dos lucros, claro nos objetivos, porém nem
sempre nos meios. Nesse jogo, há uma conivência tácita entre os agentes. Os agentes
planejadores receiam, de modo consciente ou inconsciente, determinar regras muito
rígidas, correndo o risco de, ao tentar reduzir as reclamações dos clientes, restringir o
“espírito capitalista selvagem” de seus agentes comerciais na busca de resultados e, dessa
forma, perder espaço para a concorrência e reduzir seus lucros. Os agentes comerciais,
por sua vez, continuam a tentar bater suas metas, agindo em zonas cinzentas,
equilibrando oportunidades e riscos. Todos buscam realizar seus objetivos, considerando
as regras e punições vigentes. Consequência: erros acontecem. Assim, as reclamações
não são mais do que o resultado previsível de um sistema criado para gerar problemas...
até certo nível.
Como resolver? Acreditar que a boa vontade e o discurso voluntarioso das empresas
mudará a ordem das coisas é utópico. Agindo sob a égide da racionalidade econômica,
ainda que frequentemente limitada e incompetente, as empresas apenas procurarão
reduzir o prejuízo aos consumidores até o ponto que isso não possa afetar
negativamente seus próprios resultados ou não possa ser compensado com esforços de
propaganda e marketing. A solução só pode ser externa: tornar as penas mais duras ou
aumentar seu impacto simbólico.
55
existem centenas de indivíduos que foram prejudicados. Não se trata de transformar
dramas humanos em espetáculo, mas de mostrar o sentido real do impacto da
incompetência das grandes burocracias sobre seus clientes.
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Arrastão nos escritórios
A busca da produtividade e o avanço da tecnologia poderão gerar mudanças
de grande impacto nas empresas e em ocupações do setor de serviços.
A busca por maior produtividade, mantra empresarial, pode ser um processo doloroso,
principalmente para os elos mais frágeis da cadeia produtiva. Sintomaticamente, não
faltam reações de resistência. Na base da hierarquia, as massas semiorganizadas
contrapõem como podem os cortes e enxugamentos. No meio da pirâmide, a oposição
passiva ajuda a preservar pequenas vantagens e a adiar mudanças. Resistir é fútil, alertam
os oráculos. Mais cedo ou mais tarde, cargos e empregos desaparecerão. E, se for mais
tarde, talvez levem junto as empresas que os mantiveram. O planeta está cheio de
regiões outrora exuberantes, hoje decadentes, para mostrar e demonstrar a crueza do
fenômeno.
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A edição de 18 de janeiro de 2014 da revista britânica The Economist tratou do tema. A
ilustração da capa mostrava dois tornados devastando fileiras de mesas e barnabés em
um escritório. Segundo os ingleses, o movimento que vimos testemunhando nos últimos
30 anos é análogo ao choque provocado pela revolução industrial. Para muitas profissões
e profissionais, tudo que era sólido agora se desmancha no ar. E muito mais está por vir.
Se o prezado leitor tem uma ocupação que pode ser decomposta em tarefas e
padronizada, boas chances há de que seja substituído por um robô japonês ou um
software alemão. O movimento atingiu as indústrias nos anos 1980 e 1990, e já chegou ao
setor de serviços, grande empregador de mão de obra.
Segundo a revista britânica, até agora os empregos mais vulneráveis foram aqueles que
envolviam tarefas repetitivas, de rotina. No entanto, o avanço nas tecnologias de
informação e comunicação está possibilitando o surgimento de computadores e sistemas
capazes de realizar tarefas complexas melhor que seres humanos. Um estudo da
Universidade de Oxford indica que quase metade dos trabalhos atuais poderá ser
automatizada nos próximos 20 anos.
O caso da indústria fotográfica, citado por The Economist, é exemplar. A Kodak, pioneira
e líder de mercado durante décadas, chegou a empregar 145 mil funcionários. Eram
operários, técnicos, vendedores e administradores. Além disso, alimentava uma malha
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gigantesca de lojas de prestação de serviços de revelação e acabamento. Apesar de seu
porte e recursos, sucumbiu à transição da tecnologia analógica para a digital. O
Instagram, um dos websites mais populares de fotografia da atualidade, foi vendido por
um bilhão de dólares ao Facebook há um ano. Contava, então, com 30 milhões de
clientes e empregava apenas 13 pessoas. Caso extremo? Talvez! Entretanto, a indústria
musical oferece exemplos similares e a indústria editorial vem seguindo caminho
parecido. Outras, a seu tempo, enfrentarão as mesmas rupturas. Preparemo-nos para as
ventanias.
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O tempo não para
O Brasil está envelhecendo. Pesquisa recente mostra o despreparo das
empresas para lidar com quadros profissionais mais maduros.
Uma empresa juniorizada salta aos olhos. Antes, o escritório, silencioso e solene, era
dominado por calvícies e cabelos brancos. Seis meses depois, o nível de ruído aumentou
e uma horda juvenil se estabeleceu. Foram-se as regras e procedimentos, substituídos
por um frenesi frequentemente confundido com agilidade e produtividade. Porém, o
mais importante é que a folha de pagamento foi reduzida. Inferno na Terra, paz no
olimpo corporativo.
A juniorização, por sua vez, quando realizada com o propósito de reduzir custos,
compromete a qualidade da gestão e põe em risco o futuro das empresas. Vista como
60
panaceia, acaba evitando que a empresa trate de questões mais substantivas, relacionadas
ao seu modelo de negócios e às suas práticas de gestão.
Em terceiro lugar, há poucas iniciativas para garantir melhor qualidade de vida e para ter
quadros mais saudáveis no futuro. Há também poucas ações para acomodar o perfil e as
necessidades dos profissionais que se encontram próximos da aposentadoria.
Em suma, a maioria das empresas parece não ter ainda tomado consciência de que a
evolução da pirâmide demográfica e as mudanças no mercado de trabalho demandarão
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alterações em suas práticas de gestão de carreiras. No centro da questão, situa-se uma
dificuldade para reconhecer o valor de quadros mais maduros e para administrá-los.
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Os lobinhos de Wall Street
Um filme de Woody Allen, outro de Martin Scorsese, o mundo das finanças e
a vida como ela é.
Em 2013, dois ícones do cinema apontaram suas lentes para o extravagante mundo das
finanças. Woody Allen escreveu e dirigiu Blue Jasmine, narrando a história de Jeanette
"Jasmine" Francis (Cate Blanchett), esposa de um milionário que é preso por fraudes
financeiras. Martin Scorsese dirigiu e coproduziu O Lobo de Wall Street, baseado nas
memórias de Jordan Belford, um corretor que acumulou fortuna com negócios
fraudulentos, até ser encarcerado.
O filme de Allen foi comparado à peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams,
por similaridades relacionadas aos personagens e à história. O vaporoso mundo das
finanças constitui a origem da riqueza e da tragédia de Jasmine. No filme de Scorsese,
Jordan Belford (Leonardo DiCaprio) encarna os excessos e a flexibilidade moral
frequentemente associados ao mundo das finanças. Personagens, estilo e enredo
remetem a Goodfellas (1990), retrato primoroso da ascensão e queda de uma família
mafiosa, e Cassino (1995), registro singular da intersecção entre negócios e crimes em Las
Vegas.
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Seus personagens vieram das melhores universidades, cheios de energia, com alguns
ideais e com muita vontade de enriquecer. Entretanto, viram seu entusiasmo ser
arrefecido por pilhas de relatórios enfadonhos, jornadas intermináveis e chefes
intolerantes. O autor informa que os salários ainda são respeitáveis, porém não houve
entrevista na qual os jovens profissionais não tivessem reclamado do declínio de sua
qualidade de vida e confessado problemas relacionados à saúde física e mental.
Roose concluiu que três fatores explicam por que Wall Street (leia-se: partes
consideráveis do mundo das finanças) é um lugar insalubre. O primeiro fator relaciona-
se às longas horas de trabalho. Muitos profissionais de outras ocupações trabalham duro.
A diferença no mercado financeiro são a turbulência e a instabilidade. Pedidos urgentes
podem vir a qualquer momento do dia ou da noite, e o atendimento tem que ser perfeito
e imediato. A consequência é que os jovens profissionais vivem em estado permanente
de alerta e ansiedade.
O segundo fator é o vil metal. Indústrias vivem ciclos. Informática, telefonia móvel e
consultoria tiveram seus bons momentos, atraindo recrutas com boas perspectivas de
carreira e com bons salários. Mas nada dura para sempre. O mercado financeiro também
teve anos felizes. Hoje, é um mundo em transição. Ainda há bons empregos e bons
salários, mas os controles aumentaram, as margens de lucro tendem a cair e a
possibilidade de demissão projeta uma sombra permanente sobre os mais jovens.
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O quadro não é diferente nos trópicos. Também aqui muitos universitários almejam o
enriquecimento rápido e o status de pertencer a uma grande instituição financeira. No
entanto, colegas professores coletam com frequência relatos sinistros de alunos e ex-
alunos lutando contra úlceras e depressões. Trocam amigos e família por trabalho.
Hipotecam a saúde por prêmios e bônus, esperando que o corpo possa ser resgatado
mais tarde. A satisfação, ou orgulho, de trabalhar para uma grande instituição financeira
está cedendo lugar à indiferença, ou ao embaraço, de estar ligado a um templo do
dinheiro. E o contracheque cada vez mais magro não parece mais ser suficiente para
adoçar a consciência.
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Gênios e idiotas
Executivo celebridade relata em obra autobiográfica sua convivência de quase
cinco décadas com figuras de proa da indústria automobilística.
Bob Lutz nunca chegou ao topo de uma grande montadora de automóveis. Entretanto,
por meio século, foi executivo importante nessa indústria que marcou o século XX e,
menos glamourosa e mais criticada, continua marcando o século XXI. Lutz nasceu na
Suíça, fez MBA em Berkeley, foi piloto de caça dos Marines e vendeu aspiradores de pó
para sustentar a família. Iniciou sua carreira na General Motors. Passou pela Opel,
BMW, Ford e Chrysler, e retornou à General Motors, nem sempre fazendo amigos. Seu
hobby é colecionar carros clássicos, aviões de caça e motocicletas. Coisa de menino!
Seu último livro – Icons and Idiots: Straight Talk on Leadership (Portfolio) – é um relato
autobiográfico de sua convivência com personagens marcantes da indústria
automobilística. O autor conviveu com seus pares no olimpo corporativo em tempos de
bonança e crise. Liderou processos importantes de desenvolvimento de novas linhas de
produto e chegou perto de ser nomeado número um, mas foi preterido.
Em entrevista concedida à revista Esquire, Lutz resume seu ponto de vista: qualquer
indivíduo criativo e empreendedor comete erros. Brilhantismo e idiotismo não são
sempre fáceis de separar. Então, é aconselhável estar sempre alerta e prestar muita
atenção na reação da plateia.
Seus personagens, que dão título aos capítulos, compõem uma galeria curiosa de
maníacos prodigiosos, manipuladores sem clemência, celebridades inseguras e tiranos
destemperados. Um de seus chefes na General Motors é descrito como racista,
homofóbico e estúpido, porém claro nas decisões e objetivo na comunicação. Que bom!
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Outro chefe, com alto posto de comando na mesma empresa, tinha como maior
qualidade a total incapacidade de atrapalhar seus liderados. Em suma: era uma nulidade.
Tipos similares foram encontrados nas passagens pelas empresas concorrentes. Um
executivo da Ford era tão obsessivo com a redução de custos que conteve investimentos
para reduzir problemas em uma linha de produtos, apostando que aqueles só surgiriam
depois do final da garantia, deixando, assim, o abacaxi para o consumidor. Esperto!
Também não faltam ao livro fofocas, registros de vícios e esquisitices de figurões, como
um presidente da Ford que mantinha um álbum com fotos de figuras ilustres sob o título
“pessoas importantes que me conheceram” (humilde!) e um alto executivo da General
Motors na Europa que era constantemente resgatado ébrio de seu bar preferido em
Frankfurt e levado para casa. Provavelmente bebia para tornar os outros mais
interessantes!
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O leitor de Icons and Idiots quiçá conclua ao final do livro que o estado sofrível das
gigantes empresas norte-americanas no final dos anos 2000 não foi obra somente da
concorrência internacional ou da situação econômica adversa. Foi, principalmente, fruto
da ação incompetente de seus próprios gestores. Os grandes líderes corporativos
também têm pés de barro. Mais assustador, talvez, seja constatar que muitas empresas
atuais, ao Norte e ao Sul, sofrem com tipos similares. E nem sempre os idiotas de
plantão têm as qualidades daqueles descritos por Lutz.
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O mito do gerente ocupado
Quatro décadas de estudos científicos demonstram: de muita agitação e
pouco trabalho efetivo é feito o dia a dia do executivo.
Tome-se a agenda de um executivo (ou executiva) do alto escalão e será fácil constatar a
frenética sucessão de reuniões, encontros, compromissos e viagens. As maratonas diárias
começam cedo e terminam tarde. Frequentemente, até mesmo as “pontas” do dia são
amarradas com cafés da manhã e jantares de negócios. A vida social, a família e a saúde
sofrem. A pressão constante por resultados e a rotina estressante vitimam corações e
mentes.
Mas o que tanto ocupa a agenda executiva? Haverá tanto trabalho a ser feito? Quatro
décadas de pesquisas sobre a natureza do trabalho executivo sugerem que essa incrível
agitação pode ser resultado de uma mistura de incapacidade, indisciplina e faz de conta.
Em 1975, Henry Mintzberg, publicou na Harvard Business Review um texto seminal sobre
o trabalho executivo. O conhecido pesquisador conseguiu separar mitos (o que os
executivos aparentam fazer) e fatos (a realidade de trabalho do dia a dia). Primeiro, os
executivos são vistos como planejadores disciplinados, mas a pesquisa mostrou que eles
frequentemente evitam a reflexão e privilegiam a ação. Segundo, os executivos são
percebidos como seres distantes das maçantes rotinas da empresa, mas a investigação
revelou que, ao contrário, eles dedicam parte considerável de seu tempo a alimentar a
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burocracia corporativa. Segundo, os executivos são vistos como tomadores racionais de
decisão, mas a pesquisa demonstrou que muitas decisões são tomadas em encontros
informais, sem o apoio de informações confiáveis e de análises estruturadas.
Nos anos 1980 e 1990, novas investigações, conduzidas por diferentes pesquisadores,
exploraram a dimensão cerimonial da ação dos executivos. Por serem vistos como
homens (e mulheres) de ação, eles (e elas) tendem a agir antes e justificar depois.
Frequentemente identificam problemas, ameaças e oportunidades a posteriori, para
justificar medidas já definidas ou ações já realizadas. Além disso, dedicam parte
considerável de seu tempo a alimentar cerimônias que reforçam e consolidam sua
posição e suas decisões.
No início dos anos 2000, os pesquisadores Heike Bruch e Sumantra Ghoshal revelaram,
em um artigo de grande repercussão, os resultados de 10 anos de pesquisa com
executivos de grandes empresas. Seguiram o espírito e o tom dos trabalhos anteriores.
De executivos, afirmavam os autores, o que mais se escuta é que o tempo é o seu
recurso mais escasso. Cada minuto é investido em questões importantes, estratégicas. Na
prática, o que se vê é diferente: eles (e elas) correm de reunião em reunião, verificam seus
e-mails compulsivamente e não se separam de seu smartphone.
A pesquisa de Bruch e Ghoshal revelou que 90% dos executivos gastam parte
considerável de seu tempo em atividades improdutivas. Os autores dividiram os
executivos observados em quatro grupos: os procrastinadores, os desengajados, os
distraídos e, finalmente, os objetivos (os 10% que são de fato efetivos). Os
procrastinadores cumprem suas rotinas, frequentando reuniões e elaborando relatórios,
porém são inseguros e raramente tomam iniciativas. Os desengajados têm foco, mas não
têm energia. Preferem negar os problemas a tomar as medidas necessárias para resolvê-
los. Os distraídos são bem-intencionados, porém confundem movimentação frenética
com ação focada e construtiva. Sobram os executivos objetivos, com senso de propósito
e energia para aproveitar oportunidades e vencer dificuldades.
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Somem-se os três primeiros grupos e teremos uma massa difícil de ser vencida pelos
10% que restaram. Os resultados podem ser assustadores, porém não devem
surpreender. Quem observar com olhar atento e crítico o ambiente de trabalho de
qualquer organização provavelmente se deparará com muita agitação e pouco trabalho.
O dia de trabalho começa cedo e termina tarde, mas pouco trabalho realmente útil, bem-
direcionado e produtivo é realizado. A conta da incompetência é alta e amplamente
socializada.
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Equilibristas bêbados
Executivos precisam atuar em diversas frentes e balancear diferentes
demandas, porém alguns desempenham seu papel como se estivessem
embriagados.
Girar pratos é também uma conhecida metáfora para o trabalho gerencial. Muitos
executivos, quando perguntados sobre sua rotina, respondem com a frase “continuo
tentando manter os pratos no ar”. A expressão, aplicada ao mundo corporativo, tem
vários significados. Primeiro, traduz o lado performático da atividade executiva:
gerenciar é manter a plateia atenta e alegre. Segundo, chama a atenção para a necessidade
de dar conta de diferentes frentes de trabalho: o preço do sucesso é a eterna vigilância.
Terceiro, lembra que há sempre o risco de ocorrer um desastre: a qualquer momento,
um prato pode escapar da vareta e espatifar-se no chão.
Collin Price, diretor do escritório de consultoria McKinsey & Company em Londres, fez
eco ao senso comum: publicou artigo na revista da empresa (McKinsey Quarterly),
sugerindo que liderança tornou-se, de fato, a arte de girar pratos. O consultor refere-se
aos paradoxos que caracterizam a vida nas organizações e à necessidade dos executivos
de buscarem posições de equilíbrio, nem sempre triviais.
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Sua principal premissa é que a forma racional para buscar melhores resultados nas
organizações, focando questões financeiras e operacionais, e trabalhando com metas,
pode não ser a maneira mais efetiva. Não deixa de parecer irônico, dado que sua
empresa construiu um impressionante portfólio de clientes vendendo justamente esse
tipo de abordagem. Price parece ter descoberto que, embora gostemos de ver as
empresas como manifestações da racionalidade, a realidade frequentemente nos mostra
que ações e decisões corporativas são comumente marcadas pela imprevisibilidade e pela
excentricidade do comportamento humano.
O consultor identifica grandes paradoxos que marcam a vida corporativa. Dois deles
merecem destaque. O primeiro paradoxo envolve mudança e estabilidade. Toda empresa
que deseja sobreviver precisa manter-se no passo de mudança de seu ambiente.
Frequentemente, isso implica realizar alterações na estratégia, reformar estruturas,
renovar quadros e acelerar o desenvolvimento e lançamento de produtos. No entanto, o
excesso de mudanças causa estresse e gera resistência. De fato, muitas empresas vêm
sofrendo com instabilidades desnecessárias e autoimpingidas. Sofrem os clientes, os
funcionários e os acionistas. Mais sensato é procurar o equilíbrio entre mudança e
estabilidade, respeitando os limites das pessoas e dos processos.
73
A mensagem de Price tem méritos. De fato, para enfrentar os desafios do dia a dia, os
executivos devem aceitar a natureza paradoxal da vida nas empresas e reconhecer que
sua atividade é permeada por contradições. Infelizmente, muitos executivos parecem agir
como equilibristas bêbados. Sobra-lhes desinibição e falta-lhes consciência. Se
trabalhassem “sóbrios”, talvez fossem capazes de reconhecer a real natureza de sua
tarefa e manter todos os pratos no ar.
74
PARTE 3 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A ACADEMIA
75
Nova era da ciência
Artigo publicado pela revista Nature defende a aceleração da cooperação
internacional na pesquisa científica.
Não faltam hipóteses. Europa e América do Norte ainda concentram parte considerável
da produção científica mundial. Os mais renomados institutos de pesquisa, as principais
universidades e as revistas de maior impacto encontram-se em países dessas regiões. O
clube prima pela meritocracia, porém é frequentemente acusado de elitista. Ali e acolá, a
porosidade vem aumentando. O centro vem atraindo contingentes crescentes de
asiáticos e eslavos.
Matéria veiculada pela revista Nature, no final de maio, trata do mesmo tema da
cooperação internacional em pesquisa. Jonathan Adams, o autor, argumenta que a
atividade de pesquisa, essencial para sustentar o avanço econômico e a qualidade de vida,
progrediu em três eras: a individual, a institucional e a nacional. Agora, segundo o
especialista, estamos iniciando a quarta era, caracterizada pela colaboração internacional
76
entre grupos de elite. Nesta nova era, as instituições de pesquisa que não estabelecerem
parcerias internacionais podem tornar-se irrelevantes.
Adams conduziu uma pesquisa que incluiu cerca de 25 milhões de artigos científicos,
publicados de 1981 a 2012. Foram analisados seis países desenvolvidos – Estados
Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Holanda e Suíça – e cinco países em
desenvolvimento – China, Índia, Coreia do Sul, Brasil e Polônia. Nos países
desenvolvidos, a produção científica total cresceu, enquanto a parte exclusivamente
doméstica dessa produção se manteve estável. Portanto, o crescimento foi consequência
de parcerias internacionais.
Adams também constatou que o impacto dos trabalhos assinados por autores de mais de
um país supera aquele dos trabalhos exclusivamente domésticos. Além disso, essa
diferença parece aumentar ao longo do tempo. O impacto, ou fator de impacto, indica
quanto o trabalho de um pesquisador é citado por outros pesquisadores, ou seja, revela a
importância do trabalho no campo de conhecimento. O autor chama a atenção para o
caso inglês. No reino de Elizabeth II, as instituições de pesquisa que apresentam maiores
taxas de trabalhos colaborativos internacionais atingem maior impacto e concentram
parte substantiva das verbas para pesquisa.
77
atraem os melhores talentos e os maiores recursos, e instituições periféricas, menos
capazes de aglutinar esses preciosos recursos.
78
O caminho das pedras
Para enfrentar a dura prova de publicar nos principais periódicos científicos
internacionais, muitos pesquisadores brasileiros estão recorrendo a assessorias
cada vez mais sofisticadas.
Foi uma criança prodígio. Dissecava drosófilas aos seis anos de idade e resolvia equações
aos oito. A família exibia seus dotes para os vizinhos, e o avô vaticinava: vai ser cientista.
Destino marcado, carreira definida. Um quarto de década depois, realizou a profecia do
avô. Graduou-se com pompa e doutorou-se com circunstância. Conquistou um posto
em um templo do saber e colocou seu cérebro a serviço da ciência. Agora, só falta
aprender a escrever. Surpreendente? Nem tanto.
79
Em um número publicado em abril de 2011, a revista Pesquisa Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) trouxe matéria sobre o tema. O jornalista
Fabrício Marques retratou o desafio enfrentando pelos cientistas e sua consequência: a
proliferação de serviços especializados em redação científica.
Para os brasileiros, uma das principais dificuldades pode ter origem em nossa estrutura
de pensamento. No artigo clássico “Cultural Thought Patterns in Intercultural
Education”, de 1966, o linguista Robert B. Kaplan descreve como indivíduos de
diferentes culturas estruturam seus textos. O trabalho foi baseado em sua experiência
com estudantes internacionais. O autor constatou que, enquanto estudantes anglo-saxões
aplicavam um estilo objetivo, indo direto ao ponto, os asiáticos aproximavam-se em
círculos e os russos seguiam uma trajetória titubeante, com ideias mal relacionadas. Não
há registro de estudantes brasileiros na amostra de Kaplan, mas eles poderiam ser
incluídos em um grupo de comportamento similar ao dos russos.
Kaplan foi criticado por simplificar a realidade e por fazer generalizações impróprias.
Ainda assim, suas conclusões continuam sendo uma explicação convincente para a
dificuldade que muitos de nós, latinos, enfrentamos para organizar as ideias e produzir
textos no estilo econômico e direto que se tornou dominante na ciência. Se acreditarmos
em Kaplan, então a tarefa das novas assessorias de preparação de artigos científicos
80
merece todo o respeito: vencer certos estados de confusão mental é, de fato, uma tarefa
hercúlea.
Ou, talvez, os cientistas possam fazer como as empresas de software ou alguns escritórios
norte-americanos de contabilidade, que terceirizam seus serviços na Índia. Exagero?
Hoje, sim; amanhã, quem sabe? O fato é que muitos cientistas brasileiros, como seus
colegas de outras partes do mundo, estão usando cada vez mais apoio especializado para
escrever seus trabalhos e poder encaminhá-los para o duro funil das melhores revistas
científicas do planeta.
81
Pseudoacademia
A popularização dos periódicos científicos de acesso livre, fenômeno
importante da democratização do conhecimento, caminha junto com a
proliferação de “periódicos predadores”.
Os indícios são preocupantes: não há semana em que não cheguem à caixa postal deste
escriba duas ou três notícias de novos congressos científicos, mais uns tantos convites
para publicar artigos nos mais recentes periódicos acadêmicos. Os eventos espalham-se
por todos os continentes: de Glasgow a Bangkok, de Macau a Orlando... Las Vegas
parece ser um destino preferencial. Não faltam menções explícitas ao turismo. As novas
publicações, por sua vez, têm nomes pomposos e sonoros, misturando termos
ressonantes: interdisciplinary, cross-cultural, international, advances. Nada de nomes simples,
como Science, Econometrica ou Journal of Finance. Os editores parecem gostar de nomes
longos e sonoros, em inglês, obviamente.
82
despesas e usam as receitas de assinaturas para custeá-las. Afinal, não há almoço gratuito!
Com a internet e a índole libertária de alguns cientistas, surgiram os periódicos abertos,
supostamente mais democráticos. A maioria deles ainda não tem a tradição dos irmãos
mais velhos, porém é vista com crescente simpatia pela comunidade científica. Até aqui,
tudo bem!
Jeffrey Beall, um especialista ouvido por Kolata, estima que existam hoje mais de quatro
mil “periódicos predadores” sendo publicados, representando, no mínimo, um quarto do
número de periódicos de acesso livre. Ele mesmo sintetiza o modelo dos predadores:
baixas barreiras de entrada, pouco trabalho e dinheiro fácil. Em suma, um ótimo
negócio, que está dando origem a pequenos impérios editoriais. Um desses grupos,
citados por Kolata, publica 250 revistas científicas e cobra dos autores 2.700 dólares por
artigo.
83
Naturalmente, nem todos são inocentes. O modelo de negócio dos predadores conta
com a ingenuidade ou a ambição do “cliente”, que busca, com a publicação de seu texto,
embelezar seu currículo, fortalecer sua reputação e alavancar sua carreira acadêmica. O
fenômeno traz uma alerta para os trópicos, onde a comunidade científica foi seduzida há
tempos pela ideia de fazer crescer quantitativamente sua lista de publicações.
84
A ciência no pântano
Um artifício criativo orquestrado por editores de revistas científicas brasileiras
expõe mais uma faceta obscura da academia.
A regra da profissão é simples: se você trabalha na Ambev, a cada ano tem que empurrar
alguns litros de álcool a mais goela abaixo dos consumidores de sua zona de atuação; se
você é um cientista, a cada ano tem que empurrar mais artigos científicos goela abaixo
dos editores e avaliadores das revistas acadêmicas de seu campo de estudos. Conforme
85
publica artigos, o operário da ciência acumula pontos, que conferem prestígio, aceleram
a carreira e facilitam o acesso a recursos.
Ocorre que o espaço nas boas revistas científicas é muito disputado, e a maioria dos
artigos é rejeitada. Que fazer? A própria comunidade acadêmica encontrou uma
resposta, multiplicando o número de revistas. Tal medida é positiva, porque abre espaço
para a disseminação do conhecimento. Entretanto, o processo para uma revista científica
tornar-se importante é árduo. É preciso atrair bons autores e trabalhos relevantes. A
evolução é medida pelo fator de impacto, que indica quantos artigos, em uma longa lista
de periódicos científicos, citaram artigos de uma determinada revista.
O triste evento é mais uma peça podre a emergir do pântano no qual a ciência está se
transformando. Nas últimas décadas, o Brasil multiplicou seu número de cientistas. Há,
entre eles, grandes cérebros, estrelas ascendentes e uma legião de abnegados, porém
muitos não honram o título. São pequenos burocratas, acomodados à lerdeza dos campi
universitários. Vivem de verbas públicas. Realizam pesquisas de utilidade duvidosa para
delas extrair máxima vantagem.
O culto ao fator de impacto, uma métrica útil, porém descabidamente valorizada, gera
distorções. Algumas instituições de ensino adotam como prática contratar pesquisadores
para “envernizar” seus indicadores e conseguir melhores avaliações. No debate que se
seguiu à divulgação do esquema, o alvo oscilou entre os editores responsáveis pelas
86
revistas e o “sistema”, considerado injusto e vicioso. Terá sido o esquema uma solução
criativa para enfrentar um sistema anacrônico? O tempo talvez traga a resposta. O
pântano pode ser extenso e profundo. Novas surpresas poderão emergir a qualquer
momento.
87
A arte de turvar ideias
Pesquisador inglês, incomodado com o jargão científico, investiga em livro as
razões do hermetismo acadêmico nas ciências sociais.
88
Se cruzarmos o Atlântico, a situação é semelhante. A edição de novembro de 2013 do
periódico Organization Studies, um dos mais respeitados da Europa, traz pérolas como:
“Rogue Resistance: Sidestepping Isomorphic Pressures in a Patchy Institutional Field” e
“Can Sociological Paradigms Still Inform Organizational Analysis? A Paradigm Model
for Post-Paradigm Times”. Simples!
Ao longo da carreira acadêmica, Billig desenvolveu uma visão ácida acerca dos textos
acadêmicos e sua prosa pomposa, frequentemente pobre de ideias. Segundo ele, nas
últimas décadas, aumentou consideravelmente a pressão para produção de artigos
científicos. Cada campo foi se tornando mais e mais fragmentado: a academia tornou-se
uma gigantesca colcha de retalhos, habitada por pequenos círculos de pesquisadores,
produzindo apressadamente.
89
Turpin, diretor do IMD, uma renomada escola de administração suíça, comentou que as
instituições de ensino estão se tornando cada vez mais acadêmicas, buscando professores
não por sua capacidade de ensino, mas por sua capacidade de publicar artigos científicos.
Tais profissionais são experts, como exemplifica Turpin, em trilhas sonoras para
supermercados, cores para rótulos de garrafas ou preços na indústria farmacêutica.
Como poderão ensinar gestores que precisam ter visão generalista e dominar assuntos
variados? Onde estará a resposta, meu amigo? Soprando ao vento?
90
Festa agridoce
Uma das mais respeitadas instituições educacionais do País celebrou em 2011
um feito extraordinário. Porém, há mais por fazer do que a comemorar.
Entretanto, nem tudo é festa. Quando se trata de avaliar a USP perante as melhores
instituições internacionais, sua posição é incompatível com sua fama local. Existem,
dentro da instituição, conhecidas ilhas de excelência, porém o quadro geral é
preocupante. No moderno mundo da produção científica, quantidade não se traduz
diretamente em qualidade. Formar muitos mestres e doutores, e publicar muitos artigos,
pode agradar à CAPES (a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, órgão federal que regula e avalia nossos programas de pós-graduação), mas não
garante um lugar ao sol na praia cada vez mais internacionalizada da geração de
conhecimento.
91
fechado, trabalhando em torno de si mesma. Ela deve ajudar a sociedade a identificar e
solucionar suas questões mais prementes e relevantes.
Para o sistema, tudo que entrar deve sair. Então, muitos noviços seguirão claudicantes
pela linha de montagem, até que uma banca examine, com repugnância reprimida e
tolerância exacerbada, o produto de sua labuta. Muitas dissertações e teses deixam a
linha de montagem com lacunas teóricas e restrições metodológicas. Poucas servem para
92
desenvolvimento teórico ou aplicação prática. Seu destino é mofar nos depósitos das
universidades locais: as bibliotecas.
Para que serve tal sistema, que ilude e frustra os noviços, e ainda trai a sociedade que o
sustenta? Primeiro, para manter o emprego dos mestres e doutores. Segundo, para
legitimar as instituições de ensino diante aos reguladores brasilienses. Terceiro, para
perpetuar o próprio sistema, concedendo títulos (de duvidoso valor) a futuros mestres e
doutores. Quarto, para dar uma chance aos noviços de aprender alguma coisa que
deveriam ter aprendido antes: ler, escrever e pensar em linha reta. E, finalmente, na
quinta prioridade, para gerar conhecimento útil para o País. Infelizmente, mesmo à custa
de sangue, suor e lágrimas, e do uso de fundos públicos, são poucos os profissionais que
chegam ao final dessa lista.
93
Inferno na torre de marfim
As “modernas” linhas de montagem universitárias, que produzem doutores e
pesquisas científicas, são caras, frequentemente improdutivas e estão se
tornando insalubres.
94
ou os Estados Unidos. É reconhecido por seus pares e pela sociedade, que o têm na
mais alta conta, por sua sapiência e dedicação desinteressada ao bem comum. Afinal,
ajuda a edificar os pilares do nosso progresso tecnológico e a formar nossa futura elite
intelectual.
Essa imagem idílica pode ser observada em Harvard, Oxford e Cambridge ou, mais
provável, nas películas de Hollywood que romanceiam a vida nessas universidades. No
entanto, a realidade parece caminhar em outra direção. Em renomadas instituições de
ensino locais, o mato cresce, o ar-condicionado não funciona, as mentes brilhantes
deram lugar a criaturas conformistas e opacas, e a vida acadêmica assemelha-se cada vez
mais ao trabalho em uma linha de montagem fordista, com capatazes, metas e uma
irritante burocracia.
Uma pesquisa publicada por Otacilio Antunes Santana, do Centro de Ciências Biológicas
da Universidade Federal de Pernambuco, explora outra dimensão preocupante da
mesma questão: o efeito das condições de trabalho sobre a saúde dos docentes de pós-
graduação. Seu ponto de partida foi a constatação de aumento de pedidos de licenças
médicas, principalmente aquelas relacionadas a sintomas ou consequências de doenças
cardiovasculares.
Santana analisou dados de 540 professores, de seis faixas etárias, entre 36 e 65 anos de
idade. Suas conclusões fazem eco a um debate emergente na academia brasileira, acerca
da pressão por produção científica e pela formação de mestres e doutores. A pesquisa
comprovou que quanto maiores o número de publicações científicas e o número de
95
orientandos, maior o número de intervenções cardíacas, doenças coronárias e acidentes
vasculares cerebrais. Em suma: trabalhar, nessas condições, faz mal! O quadro é
agravado, segundo Santana, pela falta de dieta equilibrada, de atividades físicas e de
acompanhamento médico regular dos docentes.
Nas mais diversas latitudes e longitudes, o modelo tradicional de universidade está sendo
criticado. Acelerar a linha de montagem e produzir mais mestres, doutores e artigos
científicos é uma resposta simples para o desafio que se coloca, mas parece estar
matando os operários e prejudicando a qualidade da produção. Pode ser mais um marco
da passagem da era da elite bem-pensante para a era da pesquisa burocrática, conduzida
por operários do conhecimento, uma etapa que talvez ainda resulte em ciência, mas, por
enquanto, apenas mascara um sistema caro, improdutivo e insalubre.
96
Mal-estar na academia
Editorial da revista The Lancet toca na sensível questão da desorientação da
pesquisa científica e seu limitado impacto social.
The Lancet é uma das mais tradicionais, conhecidas e respeitadas publicações científicas
da área médica. A revista foi criada pelo cirurgião inglês Thomas Wakley no primeiro
quartil do século XIX. É o The New York Times das revistas acadêmicas: se lá foi
publicado, é porque é verdade e deve ser lido; quase sempre...
Segundo o editorialista, a cada ano, são investidos 160 bilhões de dólares em pesquisas
na área médica. Entretanto, suspeita-se de que o benefício social seja, no mínimo,
duvidoso. Em 2009, Ian Chalmers e Paul Glasziou, em um texto publicado na própria
The Lancet, estimaram que 85% das pesquisas realizadas desperdiçam recursos ou são
97
ineficientes. As deficiências abrangem quatro dimensões: a falta de relevância para
médicos e pacientes; a inadequação do escopo e dos métodos; a dificuldade de acesso
aos resultados; e restrições relacionadas à imparcialidade e à significância clínica. Em
outras palavras, apenas 15% das pesquisas são confiáveis e relevantes.
O editorialista encerra seu texto com uma chamada para a ação: chegou a hora de fazer
uma reflexão crítica sobre o estado das coisas e repensar a forma como a pesquisa é
conduzida: primeiro, é preciso que os pesquisadores se lembrem do propósito real da
ciência; segundo, é necessário criar processos participativos que possam definir que
pesquisas são necessárias e que impacto se deve esperar delas; terceiro, as instituições de
pesquisa e universidades devem avaliar pesquisadores com base em resultados de longo
prazo; e quarto, os próprios pesquisadores devem se lembrar de por que escolheram suas
carreiras. Afinal, é deles a responsabilidade de defender um ambiente propício à
pesquisa.
98
A provocação da revista The Lancet não causa surpresa. Trata-se de mais um sinal do mal-
estar resultante do estado das coisas na torre de marfim. Há tempos vêm surgindo, nas
mais diversas áreas e latitudes, críticas e apelos a mudanças. As universidades modernas
nutriram uma elite peculiar de pesquisadores, uma classe sofisticada, apartada do mundo
ao redor e zelosa de seus pequenos privilégios. Onde ocorreu, a tentativa de domesticá-la
pela adoção de uma pletora de práticas de negócios parece ter gerado mais efeitos
colaterais do que resultados positivos.
Reformar o sistema não é tarefa trivial. Sua missão foi desvirtuada, recursos estão sendo
mal utilizados, mentes brilhantes estão sendo desperdiçadas e o impacto social fica
aquém das mais justas expectativas. Nada disso, entretanto, parece ser suficiente para
fazer frente a um modelo que soma pequenas inércias para criar um gigante imune e
entorpecido, deitado em berço esplêndido.
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Slow science
Na França, pesquisadores abraçam um movimento contra a
“mcdonaldização” da ciência. Enquanto isso, nos trópicos, a slow bureaucracy
tenta implantar a fast science.
Agora, da terra do resistente Asterix, nos chega uma nova onda do slow movement: a slow
science. Seus arautos condenam a cultura da pressa e do imediatismo que invadiu, nos
últimos anos, as universidades e outras instituições de pesquisa. A fast science, segundo os
rebeldes franceses, busca a quantidade acima da qualidade. Aprisionados pela lógica do
100
“produtivismo” acadêmico, os pesquisadores tornam-se operários de uma linha insana
de montagem. E quem não se mostrar agitado e sobrecarregado, imerso em inúmeros
projetos e atividades, será prontamente cunhado de improdutivo, apático ou preguiçoso.
Os cientistas signatários da slow science entendem que o mundo da ciência sofre de uma
doença grave, vítima de uma ideologia da competição selvagem e da produtividade a
todo preço. A praga cruza os campos científicos e as fronteiras nacionais. O resultado é
o distanciamento crescente dos valores fundamentais da ciência: o rigor, a honestidade, a
humildade diante do conhecimento, a busca paciente da verdade.
Os defensores da slow science acreditam que é possível resistir à fast science. Sonham com a
possibilidade de reservar ao menos metade de seu tempo para a atividade de pesquisa; de
livrarem-se, vez por outra, das demandantes atividades de ensino e das tenebrosas
atividades administrativas; de privilegiar a qualidade em detrimento da quantidade de
publicações; e de preservar algum tempo para os amigos, a família, o lazer e o ócio.
A eventual chegada da onda da slow science aos trópicos deve se observada com atenção.
Por aqui, cruzará com a tentativa de fomentar a fast science. Entre nós, o objetivo de
aumentar a produção de conhecimento levou à criação de uma slow bureaucracy, que avalia
e controla o aparato científico. A implantação gradativa da lógica fast, com seus
indicadores e suas métricas, pretende definir rumos, estabelecer metas, ativar as
competências criativas da comunidade científica local e contribuir para a construção do
futuro da augusta nação. Boas intenções!
101
Entretanto, os efeitos colaterais são consideráveis. A lógica fast está condicionando os
cientistas operários a comportamentos peculiares. Sob as ordens de seus capatazes
acadêmicos, ou por iniciativa própria, eles estão reciclando conteúdos para aumentar
suas publicações; incluindo, em seus trabalhos, como autores, colegas que pouco ou
nada contribuíram; e assinando, sem inibição, artigos de seus alunos, aos quais eles
pouco acrescentaram. Tudo em prol da melhoria de seus indicadores de produção.
Enquanto as antigas gerações vão se adaptando, aos trancos e barrancos, ao modo fast,
as novas gerações de pesquisadores já são formadas sob os princípios da nova doutrina.
Aqui, como ao Norte, vão adotando o lema da fast science: publish or perish (publique ou
desapareça). E, se o objetivo é publicar, vale tudo, ou quase tudo. Para onde vão os
cientistas e a ciência? O destino não é conhecido, mas eles estão indo cada vez mais
rápido.
102
Universidades virtuais
A educação presencial não anda lá bem das pernas. Serão os modelos virtuais
capazes de responder aos enormes desafios atuais ou apenas reproduzirão e
ampliarão os vícios existentes?
George Bernard Shaw fuzilou: “Desde pequeno tive que interromper minha educação
para ir à escola”. Albert Einstein não ficou atrás: “É um milagre que a curiosidade
sobreviva à educação formal”.
Nossa sociedade celebra a educação, mas não perde oportunidade de criticar as escolas.
E não faltam motivos. O Brasil tem um sistema peculiar. Nossa antiga classe média
frequenta colégios privados e universidades públicas, nas quais entra sem objetivos, que
frequenta sem inibições e de onde sai sem aspirações. Durante quatro ou cinco anos,
convive com mestres de imponentes insígnias e pouco apreço à educação. Nossa nova
classe média frequenta colégios públicos e universidades privadas, nas quais entra com
algumas ambições, que frequenta como pode e de onde sai por sorte. Durante quatro ou
cinco anos, convive com mestres que são verdadeiros operários do ensino, com muitas
contas a pagar e pouco tempo para se dedicar.
Agora, dizem os sabidos, a grande novidade é a universidade virtual. Mais uma vez,
profetizam, as novas tecnologias operarão o milagre de transformar água em vinho,
pedra em pão. Será?
103
leia-se, aquela oferecida pelas melhores universidades. Por enquanto, a empresa
sobrevive graças a investidores.
O fato relevante foi o anúncio recente de que mais uma seleta lista de universidades
concordou em fornecer conteúdo para a Coursera disponibilizar na internet. As parceiras
da empresa agora incluem as universidades de Princeton, Duke, Stanford, Pennsylvania,
Michigan, Toronto e Edinburgh, entre outras. Uma delas já declarou que reconhecerá
créditos realizados na Coursera, e outras duas informaram que colocarão mais 3,7
milhões de dólares na empresa, elevando os investimentos a 22 milhões de dólares. No
próximo período letivo, a Coursera pretende oferecer mais de 100 cursos on-line, visando
atingir 100 mil alunos. Não é pouco!
104
superiores, estão se tornando anacrônicas. Alguns professores tentam agir como
animadores de auditório, usando anedotas e recursos performáticos para manter a
atenção das hordas de apedeutas. A vítima é o aprendizado.
Um sistema de estudo dirigido, com apoio de recursos on-line e que respeite o ritmo do
aprendiz pode, eventualmente, ajudar. Afinal, o valor de frequentar uma instituição de
ensino superior não está nas aulas básicas, mas no contato com professores e colegas, na
criação de redes de relacionamento e, principalmente, no trabalho conjunto e na
realização de projetos de interesse comum.
105
A crise do giz
Novas tecnologias, novos métodos e a suposta redução da capacidade de
atenção dos alunos colocam em xeque o modelo tradicional de aula
expositiva.
Um quadro do século XIV, pintado por Laurentius de Voltolina, mostra uma aula em
Bolonha. Do lado esquerdo, sentado em um púlpito elevado, vê-se o pomposo
professor. À sua frente e à sua lateral, em fileiras de carteiras fixas, encontram-se pouco
mais de 20 estudantes. Apenas quatro ou cinco deles parecem escutar atentamente o
mestre; alguns miram seus cadernos, outros conversam e dois parecem dormitar.
Séculos depois, a cena das salas de aula não parece ter mudado. O visitante que entrar
hoje, ao acaso, em uma sala de aula, provavelmente se deparará com cena similar. O
mestre talvez seja mais jovial e comunicativo do que aquele do quadro de Voltolina.
Entretanto, à sua frente, estarão os mesmos estudantes entediados. Poucos estarão
atentos à cena, muitos outros estarão mergulhados em seus notebooks e smartphones, e
alguns provavelmente estarão cochilando.
A escola permanece, para muitos, um lugar de enfado e tédio, ou o sacrifício a fazer por
um diploma. O dramaturgo britânico George Bernard Shaw deixou para a posteridade,
entre outras tantas pérolas, o registro de que os únicos momentos nos quais sua
educação foi interrompida foram aqueles nos quais estava na escola. O “educador
futurista” David Thornburg declarou, em uma entrevista para a revista The Atlantic, que,
de todos os lugares de sua infância, a escola era o mais depressivo.
106
parecem ainda não ter surtido efeito. O quadro-negro deu lugar à tela. O computador
substituiu o giz. Agora, a febre são as aulas em vídeos, no YouTube. No entanto, são as
mesmas aulas de sempre, ou versões pioradas.
Nos últimos anos, as aulas expositivas parecem ter se transformado em vilão e alvo
preferencial de críticos. Buscam-se novas dinâmicas e métodos. Será esse realmente o
melhor caminho? Algumas aulas produzem efeito narcótico, mas decretar o fim do
modelo talvez seja prematuro. Richard Gunderman, um professor de medicina da
Universidade de Indiana, escrevendo para a revista The Atlantic, observa que há boas e
más aulas. Gunderman argumenta que a presença física do professor faz diferença: bons
professores são capazes de despertar a imaginação dos pupilos e inspirá-los. Preparar
uma boa aula é uma arte, que requer esforço e muitas horas de prática.
Hoje, a informação está disponível nos mais diversos meios. O objetivo da aula é
contagiar os estudantes: contar uma história, com começo, meio e fim, transmitir o
entusiasmo do mestre pelo assunto e tornar os pupilos seus “cúmplices”. Uma boa aula
não é uma repetição mecânica de teorias e modelos. É um processo interativo, no qual
ator e audiência interagem e, eventualmente, trocam papéis. “O bom professor abre os
olhos dos aprendizes para novas questões, conexões e perspectivas que eles não
consideraram antes, iluminando novas possibilidades para trabalhar e viver”, argumenta
Gunderman.
Em Monsieur Lazhar, filme canadense de 2011, dirigido por Philippe Falardeau, Bashir
Lazhar é um argelino refugiado em Montreal. Ávido por um emprego, ele oferece seus
serviços a uma escola fundamental, escondendo a falta de experiência como professor.
Ansiosos por substituir uma professora que cometera suicídio na escola, traumatizando
seus pupilos, a diretora contrata Bashir. Seus métodos tradicionais incluem ditados,
leituras clássicas francesas, e a reversão do arranjo de mesas e cadeiras ao antiquado
modelo de fileiras paralelas. Entretanto, à medida que a história evolui, a relação com os
estudantes desenvolve-se positivamente e Bashir os ajuda a enfrentar o trauma da perda
de sua antiga professora, enquanto supera suas próprias perdas.
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Ensinar e aprender é um processo relacional que vai além dos métodos e das
tecnologias. Diz essencialmente respeito a relações humanas. Não é entretenimento ou
diversão. Tampouco é sofrimento. Envolve escutar, avaliar, refletir e praticar. Pode ser
penoso, às vezes, mas deve sempre recompensar estudantes e professores. Pode usar
novos métodos e novas tecnologias, mas depende essencialmente da construção de um
palco para a interação coletiva.
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A favor da sociedade
Instituições de ensino e pesquisa deveriam orientar mais explicitamente suas
políticas e ações para a geração de benefícios tangíveis para a sociedade.
No dia 26 de dezembro de 2013, o médico Marco Antonio Zago foi escolhido pelo
governador de São Paulo, a partir de uma lista tríplice, para o cargo de reitor da USP.
Durante sua campanha, Zago declarou à imprensa que “a USP precisa fazer mais. Isso
porque, além de centro produtor de conhecimento e de formação, a USP tem que ser
instrumento de mudança da sociedade”.
O tema do impacto social não é novo. O marco inicial das preocupações atuais é
frequentemente atribuído ao trabalho pioneiro do norte-americano Wannevar Bush. Seu
relatório: “Science: the Endless Frontier”, divulgado em 1945, advogava que a ciência
deveria satisfazer as necessidades da população, e os motores da prosperidade seriam o
conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico. Portanto, quanto mais
recursos fossem aplicados na ciência, maior seria o benefício social.
A partir dos anos 2000, percebeu-se que o avanço do conhecimento não implica,
inexoravelmente, a criação de riqueza, e que bem-estar social é mais do que crescimento
econômico. Isso levou à busca de indicadores de impacto mais sensíveis às demandas
sociais.
109
No entanto, medir o impacto social do conhecimento gerado em universidades e
instituições de pesquisa não é tarefa trivial. Para desvendar o enigma, diversos países
desenvolveram e testaram sistemas para avaliação do impacto social. Um relatório da
Comissão Europeia, de 2010, documenta os casos da Finlândia, da Alemanha e da
Holanda. Os processos de geração, disseminação e apropriação do conhecimento variam
significativamente entre disciplinas. Em cada campo do conhecimento, existem
mecanismos específicos que podem transformar os resultados da pesquisa ou do
processo de geração do conhecimento em impacto social. Por isso, o modelo de
avaliação deve ser multidimensional. Para cada dimensão, deve-se responder a questões
práticas e objetivas.
110
pesquisas que realizamos raramente têm aplicação prática e pouco contribuem para os
processos de inovação das empresas?
111
Procuram-se professores
O mundo precisa de pensadores críticos e bem informados, mas muitos deles
parecem pouco interessados nas questões mundanas da sociedade.
Assim escreveu Nicholas Kristof, jornalista ganhador de dois prêmios Pulitzer, em uma
coluna do The New York Times, publicada em 15 de fevereiro de 2014: “Alguns dos
pensadores mais inteligentes sobre questões domésticas ou do mundo ao redor são
professores universitários, mas a maioria deles simplesmente não tem importância nos
grandes debates de hoje”. O puxão de orelhas veio de longe, mas a distância não reduz a
pertinência, tampouco o efeito.
Entretanto, observa o colunista do The New York Times, o problema não é que o país
tenha marginalizado seus pensadores, mas que eles marginalizaram a si mesmos,
isolando-se nas torres de marfim das universidades, especializando-se em filigranas e
tornando sua linguagem cada vez menos acessível ao público. O resultado é o
112
isolamento dos pensadores da vida pública, criando um vazio que é frequentemente
preenchido por oportunistas e pseudointelectuais de pena afiada e garganta acelerada.
Kristof argumenta que uma das raízes do problema são os programas de doutorado, que
glorificam o hermetismo e desdenham a audiência e o impacto na sociedade. O sistema
reproduz-se de geração para geração de pesquisadores, que são condicionados pela
orientação para publicações e pelo sistema de promoção e carreira. Durante os anos mais
produtivos de suas vidas, acadêmicos dirigem seu foco e energia ao desenvolvimento de
artigos para revistas científicas ultraespecializadas. Os que “perdem seu tempo” com
livros e com artigos de disseminação, escritos para a “plebe”, são olhados com desdém.
O sistema também cuida de expelir os rebeldes, que não se conformam com a
burocracia acadêmica.
Com isso, multiplicaram-se os periódicos científicos, muitos deles com mais autores do
que leitores. Ao lidar, durante anos, com uma audiência reduzida e especializada, os
pensadores abdicam da possibilidade de comunicar suas ideias a um público maior e
perdem a capacidade de analisar questões mais amplas, de interesse social.
A escolha de temas para pesquisa, em muitas áreas, tem pouca ou nenhuma relação com
o que é relevante para a sociedade. Orienta-se, frequentemente, pelas preferências
pessoais e afinidades do pesquisador, e por suas estratégias de publicação. Pesquisa-se o
que pode ser mais fácil de ver no prelo, e não o que importa para o mundo ao redor.
113
necessárias. Talvez não seja muito diferente em outros campos de conhecimento, mas é
caso paradoxal. Afinal, a administração é uma ciência social aplicada.
Kristof mostra-se triste com a situação, declarando sua admiração pela sabedoria
encontrada nos campi universitários. O jornalista estudou em Harvard e Oxford. Deve-se
lamentar que, com todos os recursos de que dispõem, acesso a informação,
conhecimento e legitimidade, professores não ocupem um espaço maior nos debates
contemporâneos. Todos perdemos.
114
PARTE 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO
PROFISSIONAL
115
Talentos escassos
A dificuldade para encontrar profissionais qualificados e competentes é
questão complexa e mundial. Entretanto, pesquisa recente sugere que parte
do problema pode estar dentro das próprias empresas.
Entretanto, o problema vai muito além dos trópicos. Em pesquisa realizada em 2012, a
sétima de uma série sobre o tema, a empresa de consultoria ManpowerGroup mostra
que a escassez de talentos é questão mundial. A pesquisa envolveu mais de 38 mil
entrevistas em 41 países e territórios. Revelou que mais de um terço dos entrevistados
teve dificuldades para encontrar profissionais com o perfil de que precisava.
Paradoxalmente, em muitos países, a dificuldade para preencher vagas convive com altas
taxas de desemprego. Para piorar, a situação não é nova e não há sinais de mudança.
116
preenchimento de vagas são a falta de interessados, a falta de competências técnicas
específicas e a falta de experiência.
Em uma pesquisa sobre o mesmo tema, Elza Cuesta Gutierrez, mestranda da Fundação
Getulio Vargas, em São Paulo, orientada pela professora Beatriz Maria Braga, coletou as
percepções de quase 500 executivos paulistanos, a maioria deles atuando em grandes
empresas. Em foco, a dificuldade para preencher cargos de média gerência, um extrato
vital das organizações.
117
pretendem contratar e de não oferecerem programas adequados para desenvolver tais
competências. Significativamente, os executivos apontam soluções que convergem para
o aperfeiçoamento das práticas de gestão de recursos humanos.
A questão da escassez de talentos não tem solução trivial. Existe uma lacuna
considerável entre o que o ensino superior oferece e o que o mercado de trabalho
demanda. Muitos educadores, tomados por nobres ideais e armados com sofisticada
retórica, frequentemente ignoram ou vilificam o “mercado”, as empresas e, por extensão,
todo tipo de organização. Por outro lado, executivos amiúde desprezam as torres de
marfim em favor de panaceias e soluções simplórias para seus problemas de gestão e
qualificação. Transitando entre esses dois mundos, estudantes e profissionais são
frequentemente frustrados pelo abismo que se apresenta entre o que desejam, o que o
sistema de educação oferece e o que o mercado de trabalho demanda. Vencer tal abismo
é tarefa hercúlea. Melhorar as práticas de recursos humanos nas empresas, um passo
modesto, talvez ajude um pouco.
118
Analfabetismo funcional
Alarmante! A dificuldade para interpretar textos e contextos, articular ideias e
escrever está presente em seletos ambientes do mundo corporativo e da
academia.
119
O problema não é exclusivamente tropical. Michael Skapinker registrou, em sua coluna
no jornal inglês Financial Times, a história de um professor de uma renomada
universidade norte-americana. O tal mestre acreditava que escrever com clareza constitui
habilidade relevante para seus alunos, futuros administradores e advogados. Passava-
lhes, semanalmente, a tarefa de escrever um texto curto, o qual corrigia, avaliando a
capacidade analítica dos autores. Pois a atividade causou tal revolta que o diretor da
instituição solicitou ao professor que a tornasse facultativa. Os alunos parecem acreditar
que, em um mundo no qual a comunicação se dá por mensagens eletrônicas e tweets,
escrever com clareza não é mais importante.
Entre as diversas faixas etárias, os adolescentes eram os que mais sofriam para produzir
um texto minimamente coerente e organizado. E o mundo corporativo também acusou
o golpe, pois parte de sua comunicação formal exige precisão e clareza, características
cada vez mais difíceis de encontrar. Educadores mencionados no artigo observaram que
um estudante que não consegue ler e compreender textos jamais será capaz de escrever
bem. Importante: a matéria de Newsweek é de 1975!
Quase 40 anos depois, os iletrados trópicos parecem sofrer do mesmo flagelo. Por aqui,
vivemos uma situação curiosa: de um lado, cresce a demanda por análises e raciocínios
sofisticados e complexos; e de outro, faltam competências básicas relacionadas ao
pensamento analítico e à articulação de ideias. O resultado é ora constrangedor, ora
cômico. Nas empresas, muitos profissionais parecem tentar tapar o sol com uma peneira
120
de PowerPoints, abarrotados de informação e vazios de sentido. Na academia,
multiplicam-se textos caudalosos, impenetráveis e ocos. Se aprender a escrever é
aprender a pensar, e escrever é mesmo uma atividade em declínio, então talvez estejamos
rumando céleres à condição de invertebrados intelectuais.
121
No mato sem cachorro
Organizações de todos os tipos vêm investindo no desenvolvimento de seus
gestores. Entretanto, os resultados são pífios. Em todas as latitudes e
altitudes, faltam bons profissionais.
122
O primeiro problema apontado pelos autores é que muitos programas de
desenvolvimento são padronizados e não refletem o contexto específico da organização:
sua estratégia, seus objetivos e sua cultura. Em qualquer iniciativa de desenvolvimento
de gestores, a primeira pergunta a ser feita é: Qual o objetivo? Cada contexto comanda
um objetivo, e cada objetivo demanda um tipo de programa de desenvolvimento.
Considerar o contexto traz um benefício adicional: faz com que a empresa troque as
longas listas de competências, impossíveis de serem desenvolvidas, e coloque foco no
que realmente importa. Bons programas de desenvolvimento também identificam o
ponto de partida e o ponto de chegada para cada participante. Afinal, não há bons
ventos para quem não sabe aonde vai.
O segundo problema indicado por Gurdjian, Halbeisen e Lane refere-se à distância entre
a teoria e a prática. Enviar gestores a escolas de negócios pode ser salutar e ter efeito
oxigenador. No entanto, adultos retêm apenas 10% do que veem em salas de aula.
Mesmo os mais bem-intencionados enfrentam dificuldades para aplicar o que aprendem
em programas de desenvolvimento. Solução: relacionar as atividades de
desenvolvimento a projetos que possam gerar impactos positivos nos negócios. Afinal,
adultos aprendem fazendo.
123
participantes. A solução é estabelecer sistemas de avaliação que meçam mudanças nas
atitudes e comportamentos dos gestores, a progressão na carreira e o impacto dos
projetos por eles realizados.
124
Virtudes perdidas
Ao longo de sua história, as escolas de negócios abdicaram de seus altos
propósitos originais, de formar profissionais voltados para atender os
interesses da sociedade, e abraçaram sem pudor o comercialismo.
Vivemos em uma sociedade de grandes organizações. Elas podem ser empresas privadas,
estatais ou configurações híbridas. Qualquer que seja o tipo, nós dependemos delas para
nascer, estudar, trabalhar, comer, beber, envelhecer e morrer. No centro de nosso
sistema social, existe um poder invisível: o poder exercido pelos exércitos anônimos de
executivos e gestores. Exceto por algumas estrelas fugazes, eles não chamam muito a
atenção. No entanto, a forma como pensam, tomam decisões e agem pode afetar, de
maneira sutil ou dramática, o destino de cada um de nós.
No livro From Higher Aims to Hired Hands: the Social Transformation of American Business
Schools and the Unfulfilled Promise of Management as a Profession (Princenton University Press),
o professor e pesquisador de Harvard Rakesh Khurana analisa a história centenária das
instituições que formam esses exércitos. Seu argumento é que, com o passar do tempo,
as escolas de negócios abandonaram seu propósito original, de consolidar uma nova
profissão, formando gestores, e perderam o rumo, deixando-se pautar exclusivamente
pelas forças de mercado.
125
valores, e seus profissionais tornam-se modelos de conduta: médicos, bombeiros e
professores carregam símbolos positivos; políticos têm constituído sua antítese.
A primeira mudança foi uma orientação para pesquisa científica que, apesar das boas
intenções, afastou as escolas da prática empresarial e as transformou em torres de
marfim, voltadas para o próprio umbigo. A segunda mudança envolveu a crescente
prevalência de certas perspectivas econômicas e financeiras, transformando o
administrador em um operador da “mão invisível”, um instrumento a serviço da
obtenção de resultados de curto prazo. A terceira mudança relacionou-se ao crescente
processo de comercialização do ensino da administração. De fato, o ensino da gestão
deixou de ser uma atividade educacional para se transformar em uma indústria, capaz de
movimentar vastos recursos e gerar invejáveis margens de lucro. Com isso, as próprias
escolas passaram a ser geridas como empresas, sempre buscando polir sua imagem,
atender seus clientes, racionalizar o uso de suas instalações e maximizar seus resultados.
O Brasil seguiu, com algum atraso e adicionando peculiaridades, o processo norte-
americano.
126
Nos últimos anos, o modelo MBA perdeu fôlego e ganhou concorrentes. Surgiram os
Masters in Management, para profissionais em início de carreira, e ganharam popularidade
os Executive MBAs, mais curtos que os MBAs e destinados a profissionais mais
experientes. Os próprios MBAs, antes essencialmente generalistas, passaram a ser
oferecidos como programas especializados em finanças, marketing e grande variedade de
cores e sabores.
127
MBA ou não MBA: eis a questão
O famoso modelo de formação de líderes empresariais, que se espalhou pelo
mundo a partir dos Estados Unidos, continua sendo alvo de críticas.
O modelo chegou com atraso ao Brasil, mas aqui encontrou terreno fértil,
multiplicando-se pelo litoral e pelas montanhas. Curiosamente, a versão local tem pouco
do modelo original. Por detrás da sigla, os MBAs nacionais são criaturas peculiares. Eles
raramente seguem o regime de dedicação integral e frequentemente abandonam o caráter
de formação generalista em gestão. Muitos MBAs brasileiros são simples adaptações de
cursos de graduação em administração, com pitadas de espetáculo para manter os alunos
interessados e acordados.
A mística em torno dos cursos permanece; seus poderes milagrosos sobre as carreiras
continuam a ser propagandeados pela mídia. Em 2013, a revista The Atlantic divulgou
128
uma lista das 10 universidades mais aptas a produzir multimilionários. Não foi surpresa
que a Universidade de Harvard, matriz da Harvard Business School, tenha liderado o
ranking. A instituição conta com quase três mil egressos que “valem” mais do que 30
milhões de dólares. E quase todas as universidades do top do ranking contam com
escolas de negócios.
The Wall Street Journal, periódico que não se pode acusar de tendências esquerdistas, deu
voz a mais um detrator. Dale Stephens, em um texto veiculado no início de março,
sugere que um investidor esperto não faria um MBA: ele ou ela investiria o dinheiro em
um treinamento específico e na construção de sua própria rede de relacionamentos. E
não se trata de pouco dinheiro: um título de uma escola internacional de elite pode
custar mais do que 300 mil reais. No Brasil, os melhores programas custam cerca de 50
mil reais.
129
facilmente. Mais astuto, sugere o autor, é buscar diretamente o desenvolvimento de
competências específicas e construir negócios próprios. Mesmo que não dê certo, a
experiência será valiosa e aumentará a empregabilidade.
130
Educação corporativa em xeque
Empresas de todo porte têm investido maciçamente em programas internos
de formação em gestão. Entretanto, os resultados frequentemente frustram as
expectativas.
O fato é que a educação corporativa se tornou mais uma panaceia gerencial, uma solução
para os mais variados males organizacionais: baixa qualificação, falta de motivação,
práticas gerenciais anacrônicas, comunicação ineficiente, cultura organizacional
antiquada, baixa competitividade e muito mais. E, como toda panaceia, gerou muitos
negócios, porém entregou poucos resultados.
131
impacientes com programas que não geram impactos e que não trazem benefícios
palpáveis para os negócios.
Por que há falta de resultados? Entre muitas causas, duas são mais comuns. A primeira
são problemas no nascedouro dos projetos. Muitas empresas falham na definição dos
temas e conteúdos a serem tratados nos programas de formação. Seus gestores delegam
o projeto para a área de recursos humanos, que, por sua vez, o terceiriza para uma
pletora de provedores, ansiosos para vender pacotes de autoajuda disfarçados de
desenvolvimento gerencial. A segunda causa é uma desconexão entre os objetivos de
melhoria da gestão da empresa e as iniciativas de formação. Enquanto a empresa sofre
por ter uma cadeia logística fragmentada e mal gerenciada, seus executivos aprendem as
mais modernas técnicas de feedback e comunicação interpessoal.
O que fazer? Os bons oráculos recomendam começar pelo básico: toda iniciativa de
educação corporativa deve seguir o princípio de alinhamento estratégico, ou seja, seus
objetivos e focos devem contribuir para o atendimento dos objetivos e focos
estratégicos da empresa. Se o desafio é expandir os negócios, os conteúdos devem ser
pautados por esse tema. Se a meta é melhorar o relacionamento com clientes, as
atividades devem ser norteadas por esse tópico. Se a empresa quer resolver todos os
problemas ao mesmo tempo, é melhor parar e pensar. Afinal, para quem não sabe para
onde vai, qualquer vento serve.
132
Além disso, as empresas devem combinar o modelo mais tradicional, de ensino em sala
de aula, com novos modelos. O modelo tradicional ainda é essencial. A presença física
facilita a interação, promove a integração e a troca de ideias. No entanto, o tempo
consumido e o custo envolvido limitam sua aplicação. Novos modelos vêm sendo
disseminados, como a realização de projetos; leituras dirigidas, seguidas de grupos de
discussão; workshops com especialistas; simulações e jogos; e inúmeras aplicações de
ensino a distância.
133
Pecados capitais da educação corporativa
Para melhorar seu desempenho e enfrentar o mercado, as organizações têm
investido maciçamente em programas de formação gerencial. No entanto,
muitos desses sistemas ainda sofrem com erros básicos.
Evidências não faltam: o Brasil é um país mal administrado. Não é o único nem o pior
caso de incompetência gerencial nacional, mas chama a atenção pelo desperdício
gigantesco de recursos e capacidades. Das empresas privadas aos órgãos públicos, das
estatais às organizações sociais: onde a vista alcança, percebemos problemas e
deficiências. Nosso sistema educacional é medíocre, desequilibrado e frequentemente
perdulário. Nosso sistema de saúde é precário e desumano, incapaz de atender às
necessidades dos indivíduos. A segurança pública é frágil e ineficaz, gerando apreensão e
medo na população. Nossas estatais, aquelas que sobreviveram às ondas de privatização,
continuam operando como burocracias da metade do século passado: protegidas,
inchadas e ineficientes.
O quadro não é diferente na esfera privada. Por trás de fachadas polidas com esmero
por profissionais de relações públicas, as grandes empresas locais vivem imersas em um
caos gerencial, incapazes de definir seus focos e alinhar seus esforços e recursos de
maneira coerente. Sofrem os funcionários, sofrem os clientes. Onde olharmos – da
reforma do apartamento, realizada por uma pequena equipe de operários, à construção
da rodovia, realizada por uma grande empreiteira –, enxergaremos trabalho malfeito e
caro. Cada brasileiro paga o preço. O País paga a conta.
Não é preciso ser um gênio consultor para perceber que as organizações locais são mal
geridas. Algumas disfunções corporativas são notórias: os intrincados jogos de poder da
alta gestão, a letargia e o permanente estado de confusão mental dos administradores, a
134
falta de disciplina e o frenesi amalucado dos profissionais, sempre apagando incêndios,
criados ou imaginados. Na raiz dos problemas, tem destaque a má qualificação em
gestão, que assola os quadros de funcionários e faz vítimas em todos os tipos de
organização.
A resposta para essa questão está, obviamente, na busca de capacitação. Com isso,
orçamentos milionários destinados à educação corporativa são cada vez mais comuns.
As maiores empresas em operação no Brasil chegam a investir mais de 100 milhões de
reais por ano para treinar seus profissionais. A educação corporativa tornou-se mais uma
panaceia gerencial, uma solução para os mais variados males organizacionais: da suposta
falta de motivação às práticas gerenciais defasadas, da baixa produtividade à baixa
competitividade.
Como toda panaceia, ela gera muitos negócios, porém nem sempre consegue entregar os
resultados pretendidos. Muitos executivos estão ficando impacientes com sistemas
incapazes de gerar benefícios palpáveis para os negócios. Na raiz da questão, encontram-
se algumas patologias, encontradas com expressiva frequência nos sistemas de educação
corporativa (veja quadro). Obviamente, cada organização apresenta um quadro
particular. Entretanto, alguns problemas apresentam-se constantemente,
independentemente do tipo, setor ou porte da organização.
135
Educação corporativa: grandes expectativas, resultados frustrantes
Patologias Sintomas
Ligação frágil entre as práticas gerenciais Ensino das mais “modernas” práticas e
e os conteúdos desenvolvidos nos das mais novas modas gerenciais... que
programas. nunca serão utilizadas na empresa.
Atração exagerada por soft skills: a praga Dias e dias de treinamento em liderança
da autoajuda, amada pelos gestores de transformacional, feedback, coaching,
recursos humanos. mentoring, shadowing... só falta bullying!
Como tornar o sistema de educação corporativa eficaz? Os passos para a construção (ou
reconstrução) de um sistema são descritos na boa literatura sobre o assunto. O projeto
deve ter início no topo da organização, com a definição de seus objetivos estratégicos e
um processo de comprometimento da liderança. Em seguida, deve-se estabelecer o
modelo de gestão e organização do sistema, estruturando suas atividades e definindo
seus recursos. É também essencial identificar as lacunas existentes e as competências-
136
chave a serem desenvolvidas, considerando os objetivos de negócios e organizacionais
da empresa.
137
PARTE 5 – ESCAPANDO DO CAPITALISMO SELVAGEM
138
Nova onda?
Evidências sugerem que jovens administradores estão cada vez mais
interessados em abrir negócios próprios e alinhar suas carreiras com temas de
impacto social e ambiental.
A administração de empresas chegou ao Brasil há quase 60 anos, por obra e graça do Tio
Sam. Veio permeada pela ideologia ianque: valorização do pensamento científico, culto
da meritocracia, pragmatismo e fé no mercado. Nos trópicos, parece ter encontrado solo
propício. Hoje, o curso de administração de empresas é o mais popular programa de
graduação do País. Seu irmão mais velho, o MBA, chegou mais tarde, nos anos 1990,
mas teve o mesmo destino, atraindo corações e mentes do Oiapoque ao Chuí. Os
programas mais renomados ajudaram a formar e reformar nossa elite dirigente. Hoje,
parte considerável do topo da pirâmide corporativa brasileira é habitada por egressos de
programas de administração.
139
pesquisas realizadas por alunos de graduação, sob a orientação de professores da
instituição. No ciclo 2011-2012, foram realizados 44 trabalhos. Examinando-se o
conjunto, tem-se boa ideia dos interesses dos alunos.
Diversos trabalhos, como esperado, versam sobre temas clássicos de negócios, focando
mercados financeiros, finanças corporativas, criação de valor, marcas e comportamento
do consumidor. Entretanto, compõe a lista um número significativo de trabalhos com
preocupações ambientais e sociais. Uma pesquisa trata do duradouro fenômeno da
cracolândia, no bairro da Luz, em São Paulo, outra investiga a ação da facção criminosa
PCC, e uma terceira aborda a influência de “recursos políticos” no processo de
internacionalização de empresas brasileiras. Vários pesquisadores deslocaram-se de São
Paulo rumo ao Paraná, Minas Gerais, Pará, Ceará e Acre para conhecer experiências de
gestão pública subnacional voltadas para a resolução de problemas relacionados à saúde,
educação, meio ambiente e combate à pobreza.
Não se sabe se a onda atual é duradoura e que outra onda a sucederá. No entanto, seus
efeitos já podem ser sentidos no aquecido mercado de trabalho brasileiro, carente de
quadros qualificados. Estudantes de boas escolas de administração estão cada vez mais
interessados em ter negócios próprios. Eles estão aprendendo a criar start-ups já nos
bancos escolares e estão encontrando um ambiente econômico, cultural e empresarial
140
que favorece tal opção. Além disso, estão buscando trabalhos que lhes tragam satisfação
pessoal e oportunidades de crescimento, além de condições financeiras para sobreviver.
Tal condição cria desafios consideráveis para as empresas estabelecidas, que precisam
atrair e manter jovens talentos para sustentar seus planos de expansão.
Significativamente, cresceram nos últimos anos os programas de trainees, com forte
disputa entre empresas pela conquista dos jovens de maior potencial. Tal disputa agora
se desloca na cadeia educacional, rumo aos bancos escolares, buscando atrair e reter
estagiários. E contratar não basta. Tão difícil quanto aliciar jovens quadros é mantê-los
na empresa. Ganharão as empresas que souberem adaptar-se ao novo perfil dos jovens
profissionais. Perderão aquelas que não reconhecerem as mudanças ou não souberem
alterar suas políticas e práticas de gestão de pessoas.
141
O frugal Mr. Money Mustache
Um improvável guru de finanças pessoais, que se aposentou aos 30 anos de
idade, combate o consumismo com senso comum e bom humor.
Primeiro, dois parágrafos acerca de uma crônica cinematográfica sobre o estado das
coisas. Depois, a entrada triunfal de nosso novo herói. O filme em questão é The Joneses.
Foi dirigido por Derrick Borte, em 2009. Não é grande coisa, mas o argumento é ótimo!
Os Joneses são uma família perfeita. Eles são bonitos, inteligentes, simpáticos e,
principalmente, ricos. Vivem em uma mansão em um subúrbio elegante, com móveis de
design nórdico e grama imaculada. Dirigem carros alemães e usam roupas das melhores
grifes. Eles têm apenas um problema: não constituem uma família de verdade. De fato,
foram contratados por uma empresa de marketing para se tornarem stealth marketers, trend
setters e opinion makers, no espetaculoso jargão da disciplina.
Os Joneses portam-se como uma perfeita família de comercial de TV: seus bens e
hábitos foram planejados para inspirar vizinhos a invejarem seu estilo de vida e a
tentarem emulá-lo pelo consumo compulsivo. O time, formado por quatro profissionais
– interpretando pai, mãe e um casal de filhos adolescentes –, tem metas ambiciosas de
vendas, monitoradas em tempo real. Sua ação é um sucesso... até certo ponto. Vejam o
filme e comprem a camiseta!
Agora, no surpreendente mundo dos blogs, os Joneses parecem ter encontrado sua
nêmesis. O personagem responde pelo sonoro pseudônimo de Mr. Money Moustache e,
ao contrário da falsa família, existe de verdade. Para fins de entrevista, atende pelo nome
de Pete. Ele é casado e tem um filho. Curiosidade: Pete e sua esposa aposentaram-se aos
30 anos de idade. Isso mesmo! Como foi possível? Simples: o casal fez tudo que os
Joneses não indicariam. Eles não compraram carros de luxo ou roupas de marca; nunca
142
adquiriram bens acima de suas possibilidades ou fizeram dívidas. Em suma, cultivaram,
desde cedo, um estilo de vida simples e frugal.
Em uma entrevista dada ao jornal The Washington Post, Pete declarou singelamente: “Eu
provavelmente nasci com um desejo por eficiência – o desejo de tirar o máximo de
diversão de todas as situações, sem desperdiçar recursos”. Dito e feito: na prática, o casal
inverteu a equação do consumo em benefício da qualidade de vida. Reformaram
sozinhos sua própria casa, conservaram seus carros velhos enquanto seus amigos
exibiam seus carros novos, substituíram o auto pela bicicleta sempre que possível, e
cozinharam em casa em lugar de frequentar restaurantes.
Então, aos 30 anos de idade, haviam acumulado dinheiro suficiente para a precoce
aposentadoria. Hoje, o casal mora em casa própria, totalmente paga. O aluguel de um
segundo imóvel lhes cobre as despesas. Reservas aplicadas em fundos de investimentos
lhes garantem segurança para o futuro. A aposentadoria lhes dá controle total do próprio
tempo. Pete, que estudou engenharia, eventualmente ganha algum dinheiro fazendo
pequenos serviços de carpintaria para parentes e amigos. Sua esposa, que foi corretora de
imóveis, vez por outra ajuda conhecidos a encontrar novas moradas.
O blog de finanças pessoais Mr. Money Mustache surgiu, segundo Pete, da irritação
causada pela enxurrada de perguntas recebidas de conhecidos que, mesmo com salários
elevados, estavam atolados em dívidas e escravizados pelo trabalho. Eram vítimas dos
Joneses, gastando enorme energia para extrair prazer duvidoso de hábitos caros. Mesmo
assim, não conseguiam entender como alguém com formação superior e um bom
emprego tinha se aposentado tão cedo.
Pete elegeu com facilidade os alvos de seu blog: carros caros e beberrões, TV a cabo e o
que chama de indústria da ioga. A vida da classe média, segundo ele, é um “vulcão
explodindo de desperdício”. Há maneiras melhores para atender nossas necessidades,
porém as manadas parecem obcecadas pelos caminhos mais difíceis e caros, tornando a
própria vida mais difícil.
143
O ciclo vicioso é poderoso. A vida adulta vem com um pacote pronto, incluindo ideais
de posses e hábitos de consumo. Os primeiros salários já vêm casados com os primeiros
gastos: carro novo, bugigangas eletrônicas, restaurantes e viagens. O hábito faz o
escravo. O cérebro segue em piloto automático. As pessoas tornam-se complacentes
com contas absurdas de telefone, prestações infindáveis de roupas, juros inacreditáveis
de cartão de crédito e muito mais. Viver, para muitos, é pagar dívidas, passadas,
presentes ou futuras.
144
Vivendo em 1986
Um casal de canadenses abandona seus gadgets para fortalecer os laços
familiares. Um músico estadunidense registra em documentário a era de ouro
de um estúdio analógico. São sinais do fenômeno da nostalgia da tecnologia.
Blair e Morgan McMillan formam um casal canadense típico, exceto pelo fato de terem
eliminado de suas vidas todas as tecnologias introduzidas após 1986. Por que 1986?
Porque foi o ano em que ambos nasceram. A dupla decidiu experimentar uma vida livre
de internet, iPhone, Xbox, iPad, GPS, Facebook, Instagram, Twitter e qualquer outra
“maravilha” moderna.
Tudo começou quando o casal percebeu que as tais maravilhas estavam roubando a
infância de seus filhos, dois pimpolhos com 5 e 2 anos de idade. O mais velho já se
recusava a abandonar seu iPad para brincar fora de casa. Foi nesse momento que o casal,
conforme descrito por um jornal de Toronto, decidiu aposentar seus telefones celulares,
cortar a TV a cabo e apagar suas contar no Facebook.
O casal recusou-se a ver a foto digital de uma sobrinha recém-nascida. Foi conhecê-la
pessoalmente. Suas fotos são tiradas em maquinas analógicas e reveladas. Nada de
Instagram! Em lugar do Google ou da Wikipedia, Blair e Morgan agora usam uma
enciclopédia, impressa! Os videogames deram lugar a livros e jogos. Seus visitantes
passaram a ser instruídos a deixarem seus aparelhos em uma caixa de madeira, localizada
sobre um armário, na sala da casa.
A adaptação não foi simples. Blair confessou que sentiu um tipo de “dor fantasma” após
livrar-se de seu telefone celular e que às vezes ainda tem a sensação de vibração em seu
bolso, como se o aparelho ainda estivesse ali. Morgan, no início da nova vida, não se
145
conformava de ter que apagar seu perfil no Facebook, mas declarou que já leu 15 livros
desde então.
Para viabilizar a sobrevivência durante o ano que o experimento está previsto para durar,
o casal faz algumas concessões. A esposa continua usando computadores, mas somente
no trabalho. O carro do casal é de 2010, mas as viagens são feitas com apoio de mapas
impressos. Nada de GPS! Os resultados são, segundo o casal, notáveis: enquanto as
crianças das outras famílias mergulham nos tablets dos pais, seus filhos inventam formas
criativas para se entreterem e apreciam as paisagens e os lugares que visitam.
Sound City, um documentário dirigido pelo músico Dave Grohl, exala o mesmo tipo de
preocupação e de nostalgia que parece ter atingido os McMillans. Grohl fez sucesso em
grupos populares como o Nirvana e o Foo Fighters, mas Sound City foi sua primeira
incursão como diretor. O filme narra a ascensão, os instáveis dias de glória e a queda do
famoso estúdio californiano de gravação que lhe dá título.
Passaram por Sound City artistas e grupos que marcaram a era criativa do rock, como
Fleetwood Mac, Tom Petty, Neil Young e o próprio Nirvana. O local é descrito como
uma pocilga, um estúdio montado improvisadamente em um conjunto de galpões que
antes serviam a uma fábrica, mal-acabado e malconservado. Brilham apenas a simpatia
dos donos e da equipe de apoio, e uma imponente mesa de gravação Neve 8028, um
prodígio da tecnologia analógica da época.
É desse amálgama que emergem alguns discos antológicos da história da música popular
norte-americana. Inexplicável? Nem tanto. A criatividade não costuma brotar de
ambientes assépticos e bem controlados. Surge da combinação nem sempre previsível de
paixões e obsessões humanas, eventualmente associadas com algum tipo de tecnologia
que facilita e amplifica sua expressão, sem condicioná-la ou domesticá-la.
146
música. Nostálgico, Grohl compra e recupera a mesa Neve e volta a utilizá-la em seu
próprio estúdio, com seus amigos, como se estivessem nos anos 1980 ou 1990.
147
Sonhando acordado
Flanar semiconsciente pelo mundo da imaginação, conectando sem
compromisso fatos e ficções, é essencial para desenvolver a criatividade e
construir o futuro.
La Science des Rêves (2006) é um filme francês de verve surrealista, dirigido por Michel
Gondry. O ator mexicano Gael García Bernal vive Stéphane Miroux, um jovem cujos
sonhos avançam frequentemente sobre a realidade. Gondry conduz a trama trazendo o
espectador para o mundo de Stéphane, borrando frequentemente a linha que separa
imaginação e realidade. À época do lançamento, A. C. Scott, crítico de cinema do jornal
The New York Times, observou que o filme, com sua intensa peculiaridade, seu desapego
às leis da física e da linguagem cinematográfica, seu desrespeito pela lógica e pela
coerência, traz, paradoxalmente, um registro autêntico e fidedigno da vida.
Jessica Lahey, em texto veiculado no website da revista The Atlantic, faz uma defesa dos
encantos de sonhar acordado e, indiretamente, dos Stéphane Miroux que ainda teimam
em navegar com a mente solta por uma sociedade obcecada pela objetividade. Seu foco
de atenção (e preocupação) são os mais jovens: as crianças bombardeadas
continuamente com estímulos e atividades, sem tempo para flanar livres pelo mundo da
imaginação. Entre os mais jovens, o grande inimigo dessa saudável navegação interior
são as distrações tecnológicas: a TV, os videogames e outras armadilhas eletrônicas. A
mensagem de Lahey, como a de Gondry, serve a todas as idades.
Sonhar acordado é, segundo Lahey, o que ocorre quando a mente, livre das
preocupações do dia a dia, vaga sem amarras entre pensamentos randômicos e memórias
aleatórias. Trabalhos clássicos da psicologia, lembra a autora, situam a atividade de
148
sonhar acordado como uma função cerebral fundamental: uma forma de pensar
essencial para manter nossa saúde emocional e intelectual.
Para o observador externo, pode parecer pura preguiça. No entanto, o ato de sonhar
acordado relaciona-se ao desenvolvimento da autoconsciência e da criatividade, à
capacidade de planejamento e de improvisação, à possibilidade de reflexão profunda
sobre as experiências do dia a dia, e ainda ao raciocínio moral. A aparência pode ser de
devaneio sem rumo, porém o cérebro pode estar operando um processo neurológico
complexo, sofisticado e produtivo.
149
fábricas e avançou no mundo do comércio e dos serviços, os sonhadores foram
estigmatizados e encurralados. A eles foram destinados apenas os pequenos territórios e
as margens. Não lhes restaram nem os territórios da cultura, cujas províncias foram
significativamente rebatizadas de indústrias criativas, e agora sintomaticamente unidas
em torno da economia criativa. Tudo pelo mercado!
150
Aprender pela arte
Educar-se é mais do que absorver conhecimentos; é tornar-se capaz de
pensar criticamente sobre o mundo ao redor.
Em um texto publicado no final de maio pelo The New York Times, Gary Gutting, um
professor de filosofia da Universidade de Notre Dame, faz eco a Liberal Arts, ao refletir
sobre a experiência do aprendizado nas universidades. Gutting parte de uma perspectiva
crítica: segundo ele, a educação superior parece fundar-se na tarefa de fazer com que os
pupilos absorvam um corpo complexo de conhecimentos rapidamente, somente para
realizar exames e, em seguida, esquecê-los quase por completo.
O filósofo argumenta que tanto para conhecimentos básicos e corriqueiros – como ler,
escrever e fazer contas – como para conhecimentos mais sofisticados – como aqueles
necessários para projetar aviões ou realizar cirurgias –, o que garante o verdadeiro
aprendizado é a curiosidade e a prática. Nós conseguimos lidar com nossas contas e
exercer uma profissão especializada porque constantemente aplicamos o conhecimento
151
necessário para realizar tais operações e atividades. O que aprendemos e não utilizamos é
quase sempre esquecido.
É a nossa base cultural, que permeia a literatura, a música, o cinema e o teatro, que
contém os elementos para desenvolver essas capacidades. São nossas viagens intelectuais
pelo mundo das artes que nos permitem escapar das convenções, olhar além dos lugares-
comuns, fazer conexões, pensar fora do convencional e buscar novas ideias. Quem não
tem a oportunidade de mergulhar no amálgama cultural tem menores chances de
desenvolver tais capacidades.
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O brasileiro Paulo Freire chamava de “educação bancária” a pedagogia que trata
estudantes como meros depositários de conhecimentos que devem ser absorvidos sem
análise crítica ou discussão. A educação bancária separa claramente educador e
educando: o primeiro pensa e fala, o segundo é pensado e escuta; o primeiro escolhe o
conteúdo e o prescreve, o segundo sujeita-se ao conteúdo e o assimila; o primeiro é o
sujeito, o segundo é objeto. Já é tempo de superá-la.
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A arte do tempo
Pesquisador da Universidade de Minnesota procura entender fenômenos
empresariais a partir da linguagem da música.
Conta-se que, ao final de uma conferência do partido comunista, durante a era soviética,
foi realizada uma homenagem a Josef Stalin. Então, todos se levantaram e aplaudiram
com entusiasmo, por três minutos... quatro minutos... cinco minutos... o tempo foi
passando, e aplaudir foi se tornando cada vez mais doloroso, mas nenhum dos presentes
se arriscava a ser o primeiro a parar. A polícia secreta estava atenta. Os aplausos
passaram dos 10 minutos e ninguém manifestava a intenção de parar. Entre os presentes,
estava o diretor de uma fábrica. Aos 11 minutos, ele parou de aplaudir, sentou-se e foi
seguido pelos demais. Na mesma noite, foi preso sob um pretexto. Seu interrogador lhe
disse para nunca ser o primeiro a parar de aplaudir.
A historinha faz parte do livro When: the Art and Science of Perfect Timing, de Stuart Albert,
lançado no Brasil em 2014. Albert é professor da Carlson School of Management, da
Universidade de Minnesota. O livro é fruto de duas décadas de pesquisa e reflexão do
autor.
O pitoresco fato ilustra um dilema comum: qual é o momento certo para agir? Uma
empresa criativa e empreendedora, ao lançar um novo produto, pode estar se adiantando
ao seu tempo e não encontrar o mercado pronto para absorver a inovação proposta.
Porém, se decidir aguardar, poderá testemunhar com desgosto um concorrente capturar
a vantagem de ser o primeiro a chegar aos clientes.
154
internacionalização da empresa? Devemos contratar mão de obra agora ou aguardar o
aumento da demanda? Se agirmos agora, estaremos nos precipitando? Se não agirmos,
nossos concorrentes passarão à nossa frente?
O frenesi competitivo dos últimos anos levou as empresas a buscar a rapidez em suas
ações. Quem sai na frente tem a vantagem do pioneirismo: fortalece sua imagem, chega
antes aos clientes, ocupa o mercado, consegue trabalhar com maiores margens de lucro e
inibe a ação de concorrentes. Entretanto, a rapidez cobra seu preço. Os pioneiros
podem errar nas escolhas tecnológicas, enfrentar mercados ainda imaturos e instáveis,
sofrer para convencer os potenciais clientes a adotar a novidade e penar para operar
novos canais de distribuição. As revistas e livros de negócios estão cheios de narrativas
laudatórias de empresas criativas, porém, para cada história de sucesso, há várias
histórias de fracasso, de organizações que erraram o passo da inovação.
Por que temos tanta dificuldade para lidar com questões relacionadas ao tempo? Os
suspeitos usuais são a complexidade e a incerteza ambiental. Entretanto, Albert acredita
que o problema principal é que a forma como nós descrevemos o mundo ao redor não
inclui as sequências, intervalos, sobreposições e outras características temporais de tudo
o que acontece: de cada plano e de cada ação. Ao raciocinar de maneira estática,
empobrecemos nossa percepção sobre a realidade e, assim, corremos o risco de tomar
decisões inconsistentes.
O que fazer? O pesquisador sugere que, para conduzir melhores análises, e assim poder
tomar melhores decisões, é necessário incorporar a variável tempo: encontrar padrões
temporais e analisá-los. Albert advoga que devemos olhar para os fenômenos a serem
analisados, sejam eles decisões corporativas ou crises políticas, como se olha para a
partitura musical de uma sinfonia. Uma partitura musical contém duas dimensões: a
dimensão vertical apresenta os diversos instrumentos e a dimensão horizontal apresenta
o que cada instrumento tocará.
155
Os eventos desdobram-se de modo similar nas empresas. Muitas ações ocorrem
simultaneamente (a dimensão vertical) e cada indivíduo ou grupo segue uma sequência
própria (a dimensão horizontal), com seu ritmo e suas pausas. O conjunto poderá
produzir um resultado harmônico e prazeroso, ou apenas gerar dissonância e ruído.
Algumas empresas são verdadeiras orquestras sinfônicas, com seus naipes perfeitamente
sincronizados, produzindo música de alta qualidade. Outras se assemelham a bandas de
jazz, permitindo aos seus músicos criar e improvisar, a partir de padrões predefinidos.
Algumas outras, entretanto, perdem o ritmo, atravessam constantemente a melodia e
alienam sua audiência.
Dominar a arte do ritmo e do tempo não é tarefa simples. Leonard Bernstein, Herbert
von Karajan, Duke Ellington e Benny Goodman não se formaram em pouco tempo.
Porém, observando a ação desses mestres e adotando as lentes propostas por Albert,
talvez possamos desenvolver nossa sensibilidade, somar arte e ciência, e compreender
melhor a inexorável experiência do tempo, nas empresas e fora delas.
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A arte do pensamento negativo
Contra as receitas de sucesso e a autoajuda, recomenda-se o bom uso da
ironia e da sensibilidade humanista.
O choque entre Tori e Geirr é inevitável. Tori tenta estimular Geirr a pensar
positivamente e “focar as soluções, não os problemas”. Geirr, iconoclasta e irreverente,
rebela-se contra a visão idílica de Tori e, de crise em crise, vai conquistando o grupo com
sua visão crítica e niilista da realidade. Aos poucos, o faz de conta induzido por Tori
perde força, os membros do grupo vão se abrindo para seus próprios problemas e
encontram algum consolo na honestidade e na solidariedade que começa a surgir.
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O filme norueguês trata cinicamente da “cultura de autoajuda”, praga contemporânea
que cruzou fronteiras nas últimas décadas, avançando sobre os mais diversos domínios
da sociedade, da Escandinávia aos trópicos. Sintomaticamente, a mídia popular brasileira
está hoje impregnada pela lógica e pelo discurso da autoajuda. Em muitos países, a
autoajuda transformou-se em uma indústria milionária, que inclui palestras, livros,
revistas, vídeos, treinamento e consultoria.
O mundo corporativo foi domínio no qual a autoajuda encontrou terreno propício, com
portas escancaradas pelas deslumbradas áreas de recursos humanos. Nas empresas, o
culto do pensamento positivo fomenta o otimismo, encoraja o estabelecimento de metas
ambiciosas e celebra o sucesso. Porém, sob os efeitos especiais dos powerpoints
apresentados em reuniões, as metas são manipuladas e o sucesso tem pés de barro.
158
management”. Circulam entusiasticamente vídeos das conferências TED (Technology,
Entertainment and Design), cujo grande objetivo parece ser atrair cientistas e
pensadores, misturá-los a caçadores de novidades, e transformar a todos em celebridades
de auditório.
Collinson observa que o pensamento positivo, base da liderança Prozac, pode ter certo
poder de transformação, facilitando inovações e processos de mudança. Porém, o
otimismo excessivo pode estimular o cinismo, erodir a confiança e provocar o
afastamento da realidade. Mais sábio seria combinar doses adequadas de pensamento
positivo e pensamento crítico, de modo a enfrentar realidades complexas. O ilusionismo,
bem sabemos, é competência essencial nas organizações, públicas e privadas, grandes e
pequenas. Porém, convém não exagerar.
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INDICAÇÕES DE LEITURA
Para o leitor de mente alerta e espírito aberto, segue uma seleção de obras que ajudam a
nutrir uma visão crítica sobre o capitalismo selvagem do século XXI. Colaboraram para
preparar esta lista os colegas Carlos Osmar Bertero, Maria Ester de Freitas e Isleide
Assédio Moral no Trabalho. Maria Ester de Freitas, Roberto Heloani e Margarida Barreto.
Editora Cengage, 2008.
Blind Spots: Why We Fail to Do What’s Right and What to Do About It. Max H. Bazerman e
Ann E. Tenbrunsel. Princeton University Press, 2012.
Como Gerenciar seu Chefe. Arménio Rego, Miguel Pina e Cunha e Thomaz Wood Jr.
Editora Da Boa Prosa, 2011.
Consumer Society: Critical Issues & Environmental Consequences. Barry Smart. Sage
Publications, 2010.
160
Cultura Organizacional: Identidade, Sedução e Carisma. Maria Ester de Freitas. Editora FGV,
1999.
Dangerous Company: Management Consultants and the Business They Shake and Ruin. James
O’Shea e Charles Madigan. Penguin Books, 1997.
Michel Foucault: Poder e Análise das Organizações. Rafael Alcadipani da Silveira. Editora
FGV, 2005.
Netslaves: True Tales of Working the Web. Bill Lessard e Steve Baldwin. Editora McGraw-
Hill, 2000.
O Novo Espírito do Capitalismo. Luc Boltansky e Eve Chiapello. Editora WMF Martins
Fontes, 2009.
O Poder das Organizações. Max Pagés, Michel Bonetti, Vincent de Gaulejac e Daniel
Descendre. Editora Atlas, 2005 (9ª edição).
161
Organised Crime: Entrepreneurs in Illegal Business. Petter Gottschalk. Edward Elgar
Publishing, 2009.
Power: Why Some People Have It and Others Don’t. Jeffrey Pfeffer. Editora Harper Collins,
2010.
Shop Class as Soulcraft: An Inquiry into the Value of Work. Matthew B. Crawford. The
Penguin Press, 2009.
Supercapitalism: The Transformation of Business, Democracy, and Everyday Life. Robert B. Reich.
Editora Vintage, 2007.
The Cinematic Society: The Voyer’s Gaze. Norman K. Denzin. Sage Publications, 1995.
The Culture of the New Capitalism. Richard Sennett. Yale University Press, 2007.
The Folckore of Management. Clarence B. Randall. Editora John Wiley & Sons, 1959.
The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. Daniel J. Boorstin. Editora Vintage, 1992.
The Shallows: What the Internet is Doing to our Brains. Nicolas Carr. Editora W.W. Norton,
2010.
Trabalho e Identidade em Tempos Sombrios. Pedro Fernando Bendassolli. Editora Ideias &
Letras, 2007.
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Vida, o Filme: Como o Entretenimento Conquistou a Realidade. Neal Gabler. Editora
Companhia das Letras, 1999.
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SOBRE O AUTOR
desde 1996, com a revista CartaCapital, na qual os textos deste livro foram originalmente
publicados.
ISBN 978-85-914912-1-6
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