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VÉRONIQUE BOYER
CNRS/IRD/CNPQ/LAGET
Entre 1996 e 1999, uma pesquisa sobre o cresci- uma vila no interior do município de Óbidos, cha-
mento do movimento evangélico na Amazônia me 2
mada o Silêncio do Matá, um lugar reconhecido
levou a fazer um amplo levantamento das situações como de quilombolas e onde havia alguns crentes.
encontradas em grupos de populações diversas para O método aplicado em outros contextos, isto é,
ter uma visão geral do fenômeno: conheci o interi- seguir as redes de relações entre evangélicos, se re-
or da Zona Bragantina, trabalhei com colonos no velou logo inadequado para o Silêncio. A razão era
sul do Pará e no Estado de Rondônia, visitei ribeiri- simples: dispunha de pouco tempo, não conhecia
nhos no Médio Solimões e em Santarém, falei com as Igrejas de Óbidos e queria chegar rapidamente à
os pastores nas cidades dessa região, conversei com congregação do Silêncio do Matá. A opção foi en-
antigos seringueiros no Acre, e acompanhei um curso tão entrar em contato com alguns simpatizantes do
teológico dirigido aos Baniwa evangélicos em São movimento negro que me foram indicados. Essa me-
Gabriel da Cachoeira3. Estava faltando uma catego- diação era a priori um meio para chegar aos evan-
ria de população, sobre a qual tinha poucas informa- gélicos do Silêncio do Matá. Mas percebi logo que
ções, tanto no que diz respeito à cultura quanto à esse caminho apontava para alguma coisa interes-
organização social: as chamadas comunidades ne- sante: uma certa incompatibilidade em ser ao mes-
gras rurais ou quilombos. mo tempo quilombola e crente.
Tinha conhecimento, claro, do que a imprensa re- Com o intuito de restituir o clima da pesquisa e
latava: que os quilombolas atuais são os descendentes a minha descoberta do mundo dos quilombolas, gos-
de escravos africanos foragidos que fundaram vilas na taria de começar relatando algumas anedotas de
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Esse texto é mata. Sabia também, como todos, que em 1988, isto campo que apontam para importantes variações no
baseado em um é, 100 anos após a abolição, o Ato das Disposições discurso militante e posições distintas em relação a
artigo publicado
em francês no Constitucionais Transitórias incluía um artigo (o 68º) ele. A meu ver, pode-se ordenar em parte essas ma-
Journal de la
Société des estabelecendo que o Estado devia dar o titulo de pro- neiras diferentes de falar considerando um gradien-
Américanistes
(2003), com priedade definitivo aos remanescentes de quilombos te que vai do que se diz para os de fora até o que se
titulo Quilombo-
las et Évangéli- ocupando a terra dos seus ancestrais. Por fim, eu sabia diz dentro do grupo.
ques: une
incompatibilité que muitos grupos no interior entraram logo com um A primeira anedota diz respeito a meu encontro
identitaire?
(réflexions à pedido para obter a propriedade das suas terras en- com um professor de Óbidos que me fora indicado,
partir d’une étu- quanto quilombolas, isto é, querendo se beneficiar do isto é, alguém de fora da comunidade, mas militan-
de de cas en
Amazonie brési- artigo 68. Tudo isso me deixava pensar que as comu- te da causa negra. Depois de afirmar que os quilom-
lienne).
nidades negras eram grupos conscientizados dos seus bolas encarnam a prova da resistência negra à or-
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Fiz um primeiro
retrato da situa-
direitos e bastante organizados. dem dominante branca, e que “eles [os negros do
ção geral em Apesar das minhas informações sobre quilom- campo] são muito diferentes de nós [os brancos da
Boyer (2001a).
bolas não passarem disso, me foi dito que entre eles cidade]”, ele encerrou a nossa conversa dizendo:
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Resultados
desse trabalho
também estavam entrando as Igrejas evangélicas. Eu “você é branca. Daí, eles vão te achar esquisita”.
de campo foram tinha então de avaliar qual espaço elas estavam de Fiquei perplexa, me perguntando se eu era a única
publicados em
Boyer (2001b). fato conseguindo conquistar nesses grupos e quais branca esquisita ou se ele também era visto assim,
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segmentos de população estavam aderindo ao mo- já que se encaixava na categoria “nós brancos”.
Professora e
pesquisadora do vimento evangélico. Por isso, resolvi seguir o con- Quando cheguei no Silêncio, estava quase con-
Núcleo de Altos
Estudos Amazô- selho de Edna Castro4, que agradeço aqui, e escolhi vencida que ia encontrar um grupo bastante fechado,
nicos, UFPA.
ção, que “aqui era lugar de escravos foragidos, que cha8. Os historiadores descobriram traços de expe- 8
Andrade
tinha alguns deles por aqui, mas que na minha famí- dições punitivas datando do início do século XVIII, (1995: 49-50).
lia, não tinha não!” Ainda parece doloroso, para os comprovando que os fugitivos fundaram, não mui- 9
Acevedo &
mais velhos (e, pode-se supor, para os menos fami- to longe da cidade de Óbidos, uma primeira comu- Castro
(1998:15).
liarizados com o discurso militante), aceitar a idéia nidade conhecida como “Quilombo do Trombetas”
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Andrade
de descender de escravos, mesmo que sejam escra- que chegou a ter uma população de 2.000 pessoas (1995:54)
vos em revolta contra a opressão branca. Aparecia antes de ser destruído em 1823. Supõe-se que as 13
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Deve-se notar
desta forma uma dificuldade perceptível em aderir, comunidades negras identificadas no município de que a palavra
apesar da necessidade política, ao discurso identitário Óbidos9, entre as quais o Silêncio do Matá, descen- quilombo é
pouco usada
dos quilombolas tal como o formulam os militantes. dem deste quilombo histórico10 ,11. pelas popula-
ções, as quais
Exatamente como tinha previsto o professor de É neste contexto de crescente interesse pelos qui- preferem o ter-
mo mocambo.
Óbidos, senti certa desconfiança para comigo da parte lombolas e de forte mobilização das populações, com Veran (1999:6)
o afirma a res-
de algumas pessoas. No entanto, essa desconfiança não o intuito de reforçar os laços entre as comunidades peito do Estado
da Bahia e Mari
se devia ao fato de eu ser branca, mas sim de ter um negras, que a Organização Cultural de Óbidos de Nasaré de
Baiocci (1995:
tema de pesquisa esquisito do ponto de vista deles. Com (ACOB) decide realizar, em julho de 1998, o primei- 39) faz a mesma
efeito, estranhavam que uma pesquisadora vinda de tão ro encontro de uma série conhecida como a das Raízes observação para
o Estado de
longe se interessasse pelos evangélicos em vez de que- Negras. O evento do Pacoval é tão bem sucedido que, Goiás. Enfim, a
citação por E.
rer estudar a cultura negra (razão pela qual vieram an- no segundo, em junho de 1990, comparecem não só Funes das
palavras de um
teriormente o professor de Óbidos, e outros5). delegações das comunidades de Alenquer, Óbidos e dos seus infor-
mantes leva a
Oriximiná, mas também representantes de ONGs, pensar que a si-
tuação não é
As manifestações das Raízes Negras como o CEDENPA (Centro de Estudos e de Defesa do diferente na re-
gião amazônica:
no Baixo Amazonas Negro no Pará). O CEDENPA se mostra entusiasmado “quilombo é uma
Antes de falar com mais detalhes sobre a relação e encoraja a organização do terceiro encontro das invenção, o no-
me adequado é
entre quilombola e crente, é necessário apresentar Raízes Negras no Silêncio do Matá, em julho 1990. mocambo”.
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