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A ETNICIDADE DOS QUILOMBOLAS E A RELIGIÃO DOS

EVANGÉLICOS: UM EXEMPLO DO BAIXO AMAZONAS1

VÉRONIQUE BOYER

CNRS/IRD/CNPQ/LAGET

Entre 1996 e 1999, uma pesquisa sobre o cresci- uma vila no interior do município de Óbidos, cha-
mento do movimento evangélico na Amazônia me 2
mada o Silêncio do Matá, um lugar reconhecido
levou a fazer um amplo levantamento das situações como de quilombolas e onde havia alguns crentes.
encontradas em grupos de populações diversas para O método aplicado em outros contextos, isto é,
ter uma visão geral do fenômeno: conheci o interi- seguir as redes de relações entre evangélicos, se re-
or da Zona Bragantina, trabalhei com colonos no velou logo inadequado para o Silêncio. A razão era
sul do Pará e no Estado de Rondônia, visitei ribeiri- simples: dispunha de pouco tempo, não conhecia
nhos no Médio Solimões e em Santarém, falei com as Igrejas de Óbidos e queria chegar rapidamente à
os pastores nas cidades dessa região, conversei com congregação do Silêncio do Matá. A opção foi en-
antigos seringueiros no Acre, e acompanhei um curso tão entrar em contato com alguns simpatizantes do
teológico dirigido aos Baniwa evangélicos em São movimento negro que me foram indicados. Essa me-
Gabriel da Cachoeira3. Estava faltando uma catego- diação era a priori um meio para chegar aos evan-
ria de população, sobre a qual tinha poucas informa- gélicos do Silêncio do Matá. Mas percebi logo que
ções, tanto no que diz respeito à cultura quanto à esse caminho apontava para alguma coisa interes-
organização social: as chamadas comunidades ne- sante: uma certa incompatibilidade em ser ao mes-
gras rurais ou quilombos. mo tempo quilombola e crente.
Tinha conhecimento, claro, do que a imprensa re- Com o intuito de restituir o clima da pesquisa e
latava: que os quilombolas atuais são os descendentes a minha descoberta do mundo dos quilombolas, gos-
de escravos africanos foragidos que fundaram vilas na taria de começar relatando algumas anedotas de
1
Esse texto é mata. Sabia também, como todos, que em 1988, isto campo que apontam para importantes variações no
baseado em um é, 100 anos após a abolição, o Ato das Disposições discurso militante e posições distintas em relação a
artigo publicado
em francês no Constitucionais Transitórias incluía um artigo (o 68º) ele. A meu ver, pode-se ordenar em parte essas ma-
Journal de la
Société des estabelecendo que o Estado devia dar o titulo de pro- neiras diferentes de falar considerando um gradien-
Américanistes
(2003), com priedade definitivo aos remanescentes de quilombos te que vai do que se diz para os de fora até o que se
titulo Quilombo-
las et Évangéli- ocupando a terra dos seus ancestrais. Por fim, eu sabia diz dentro do grupo.
ques: une
incompatibilité que muitos grupos no interior entraram logo com um A primeira anedota diz respeito a meu encontro
identitaire?
(réflexions à pedido para obter a propriedade das suas terras en- com um professor de Óbidos que me fora indicado,
partir d’une étu- quanto quilombolas, isto é, querendo se beneficiar do isto é, alguém de fora da comunidade, mas militan-
de de cas en
Amazonie brési- artigo 68. Tudo isso me deixava pensar que as comu- te da causa negra. Depois de afirmar que os quilom-
lienne).
nidades negras eram grupos conscientizados dos seus bolas encarnam a prova da resistência negra à or-
2
Fiz um primeiro
retrato da situa-
direitos e bastante organizados. dem dominante branca, e que “eles [os negros do
ção geral em Apesar das minhas informações sobre quilom- campo] são muito diferentes de nós [os brancos da
Boyer (2001a).
bolas não passarem disso, me foi dito que entre eles cidade]”, ele encerrou a nossa conversa dizendo:
3
Resultados
desse trabalho
também estavam entrando as Igrejas evangélicas. Eu “você é branca. Daí, eles vão te achar esquisita”.
de campo foram tinha então de avaliar qual espaço elas estavam de Fiquei perplexa, me perguntando se eu era a única
publicados em
Boyer (2001b). fato conseguindo conquistar nesses grupos e quais branca esquisita ou se ele também era visto assim,
4
segmentos de população estavam aderindo ao mo- já que se encaixava na categoria “nós brancos”.
Professora e
pesquisadora do vimento evangélico. Por isso, resolvi seguir o con- Quando cheguei no Silêncio, estava quase con-
Núcleo de Altos
Estudos Amazô- selho de Edna Castro4, que agradeço aqui, e escolhi vencida que ia encontrar um grupo bastante fechado,
nicos, UFPA.

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de poucos contatos com o mundo exterior e hábitos rapidamente o quadro geral do movimento de qui- Referindo-se
ao início do mo-
bem diferentes de outros interiores que conhecia. A lombolas no Baixo Amazonas. vimento negro
no Silêncio,
primeira frase de Conceição, a professora da escola Apenas um ano após a publicação do artigo 68, Conceição
insistiu sobre o
que ia me hospedar, reforçou essa impressão quando isto é, em 1989, um primeiro grupo da região se papel do profes-
sor acima
afirmou que os limites espaciais do Silêncio sustenta- mobiliza para obter a titulação de sua terra enquan- mencionado, o
qual teria con-
vam a sua particularidade sociocultural: “as raízes to remanescentes de quilombo, titulação que o gru- quistado pouco
a pouco a con-
negras começam aqui, nesse território”. po consegue em 95, ano da celebração oficial dos fiança de uma
A segunda anedota concerne ao resto da minha con- 300 anos da morte de Zumbi. Outros grupos se- velha senhora
pelo interesse
versa com Conceição, que assume também o cargo de guem logo o mesmo caminho e, a partir de 90, as- que demostrava
pelas historias
tesoureira da associação local de quilombolas. Depois sociações semelhantes surgem nos municípios de da sua infância:
“Antes tinha
de falarmos longamente da especificidade da identida- Alenquer e Óbidos. Todas elas se agrupam, em 1997, essa velha des-
confiada, que
de negra, das conquistas dos seus direitos pelos negros, formando a Comissão de Articulação do Baixo não falava com
os brancos. Mas
do território negro etc., perguntei a ela se o termo ne- Amazonas. Desde então, o movimento não pára de ela se confiou a
Daniel. Ela con-
gro era muito usado (uma curiosidade minha, pois não crescer: em 1998, 229 comunidades negras rurais tava o que seus
é usado nas baixadas de Belém ou em outros interio- estavam identificadas no Estado do Pará, mas so- pais tinham fa-
lado para ela.
res). A resposta não deixou dúvida nenhuma: “não, as mente 11 delas tinham conseguido o titulo de pro- Antes ninguém
levava a sério.
pessoas ainda não são bastante conscientizadas. Elas priedade definitivo de suas terras6. Agora mudou”.
Esse relato
preferem preto [e após um silêncio, acrescentou:] na Paralelamente à organização desse movimento aponta para um
paradoxo inte-
verdade, é moreno”. Não vou me deter sobre o uso de reivindicações políticas e territoriais, se acentua ressante: para
emergir, a iden-
desse eufemismo, mostrando a persistência do precon- também o interesse pela história e cultura das po- tidade positiva
de quilombolas,
ceito no íntimo do território negro. Só gostaria de sali- pulações de remanescentes de quilombo. Os estu- pelo menos no
entar que, provavelmente, Conceição estava adaptan- dos mostram que, entre 1778 e 1820, foram trazi- Silêncio do
Matá,
do o seu vocabulário à sua interlocutora (branca, da dos 38.323 escravos no Pará, a grande maioria oriun- necessitou, em
parte, do olhar
cidade e de classe média) e que nem todos, na vila, da do nordeste7. Foi também provado que, para a de um branco
vindo da cidade.
tinham uma facilidade igual de romper com os pre- região do Baixo Amazonas (correspondendo ao
conceitos que sofreram, sofrem e interiorizaram, para Médio Amazonas atual), os escravos se concentra- 6
Ver E. Castro
(2001).
poder usar uma nova terminologia. vam nas cidades de Santarém, Alenquer e Óbidos,
7
Aliás, e será meu último exemplo, a tia da profes- trabalhando na criação de gado e em produções Funes (1995:
50). Ver também
sora fez questão de esclarecer, na ausência de Concei- extrativistas como o cacau, a castanha e a borra- Salles (1971).

ção, que “aqui era lugar de escravos foragidos, que cha8. Os historiadores descobriram traços de expe- 8
Andrade
tinha alguns deles por aqui, mas que na minha famí- dições punitivas datando do início do século XVIII, (1995: 49-50).

lia, não tinha não!” Ainda parece doloroso, para os comprovando que os fugitivos fundaram, não mui- 9
Acevedo &
mais velhos (e, pode-se supor, para os menos fami- to longe da cidade de Óbidos, uma primeira comu- Castro
(1998:15).
liarizados com o discurso militante), aceitar a idéia nidade conhecida como “Quilombo do Trombetas”
10
Andrade
de descender de escravos, mesmo que sejam escra- que chegou a ter uma população de 2.000 pessoas (1995:54)
vos em revolta contra a opressão branca. Aparecia antes de ser destruído em 1823. Supõe-se que as 13
11
Deve-se notar
desta forma uma dificuldade perceptível em aderir, comunidades negras identificadas no município de que a palavra
apesar da necessidade política, ao discurso identitário Óbidos9, entre as quais o Silêncio do Matá, descen- quilombo é
pouco usada
dos quilombolas tal como o formulam os militantes. dem deste quilombo histórico10 ,11. pelas popula-
ções, as quais
Exatamente como tinha previsto o professor de É neste contexto de crescente interesse pelos qui- preferem o ter-
mo mocambo.
Óbidos, senti certa desconfiança para comigo da parte lombolas e de forte mobilização das populações, com Veran (1999:6)
o afirma a res-
de algumas pessoas. No entanto, essa desconfiança não o intuito de reforçar os laços entre as comunidades peito do Estado
da Bahia e Mari
se devia ao fato de eu ser branca, mas sim de ter um negras, que a Organização Cultural de Óbidos de Nasaré de
Baiocci (1995:
tema de pesquisa esquisito do ponto de vista deles. Com (ACOB) decide realizar, em julho de 1998, o primei- 39) faz a mesma
efeito, estranhavam que uma pesquisadora vinda de tão ro encontro de uma série conhecida como a das Raízes observação para
o Estado de
longe se interessasse pelos evangélicos em vez de que- Negras. O evento do Pacoval é tão bem sucedido que, Goiás. Enfim, a
citação por E.
rer estudar a cultura negra (razão pela qual vieram an- no segundo, em junho de 1990, comparecem não só Funes das
palavras de um
teriormente o professor de Óbidos, e outros5). delegações das comunidades de Alenquer, Óbidos e dos seus infor-
mantes leva a
Oriximiná, mas também representantes de ONGs, pensar que a si-
tuação não é
As manifestações das Raízes Negras como o CEDENPA (Centro de Estudos e de Defesa do diferente na re-
gião amazônica:
no Baixo Amazonas Negro no Pará). O CEDENPA se mostra entusiasmado “quilombo é uma
Antes de falar com mais detalhes sobre a relação e encoraja a organização do terceiro encontro das invenção, o no-
me adequado é
entre quilombola e crente, é necessário apresentar Raízes Negras no Silêncio do Matá, em julho 1990. mocambo”.

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Os habitantes do Silêncio ainda têm lembranças A congregação evangélica
emocionadas da festa onde, claro, compareceram mo- Nova Esperança
radores de outras comunidades. Houve também vi- A história da pequena congregação começa em 1993,
sitantes da capital do Estado que fizeram demonstra- quando o pastor da Assembléia de Deus de Óbidos
ção de capoeira e de cultos afro-brasileiros, que nun- encarregou o dirigente de São José, uma vila vizi-
ca tinham visto antes. Sentiram-se por fim muito nha, de ir “visitar” o Silêncio do Matá para levar a
honrados com a presença de personalidades do movi- seus habitantes a Boa Nova da volta próxima de
mento negro e escutaram com a devida atenção os Cristo. Diferentemente dos moradores do Silêncio,
seus discursos. A animação foi tão grande, rompeu os habitantes do São José não se consideram, e não
tanto com a monotonia do dia-a-dia, que alguns não são considerados, como quilombolas. No entanto,
hesitam em qualificar o encontro de internacional. como os casamentos entre famílias das duas vilas
Apesar de não estar na época (a data normal é agos- são freqüentes, os moradores são não só vizinhos,
to), a própria comunidade aproveitou o encontro para mas ainda às vezes parentes. O dirigente evangéli-
organizar a festa do seu santo padroeiro, São Benedi- co, Zé Pereira, também nasceu no São José, e é pro-
to12. É evidente que o fato desse santo ser representado vável que ele tenha sabido se aproveitar dos laços
como negro tem um significado especial numa comu- de amizade e de parentesco, mesmo indiretos, para
nidade quilombola, e que precisava ser exibido nesta se introduzir no Silêncio, convencendo aos poucos
ocasião. Além do que, a festa é também chamada alguns indivíduos a abraçar a causa de Cristo. Em
Aiuê13, termo que alguns acreditam de origem africa- 1997, a congregação Nova Esperança reunia umas
na14. A elaboração da identidade negra no Silêncio do trinta pessoas (incluindo as crianças), a maioria con-
Matá é desta forma intimamente ligada ao festejo de vertida há pouco tempo, e o dirigente pensava em
São Benedito e à devoção um santo negro. fazer um primeiro batismo de nove pessoas.
Pode-se então razoavelmente supor que, quando As explicações dadas pelos crentes do Silêncio à
a legitimidade de luta pela terra se afirma pela parti- sua adesão ao movimento evangélico não diferem
cipação em festas católicas, uma coletividade se sen- do que se pode escutar de populações sociologica-
te ameaçada pela presença, mesmo minoritária, de mente distintas e em outras regiões da Amazônia.
outro grupo religioso, e pelo interesse que esse susci- Entre as numerosas razões encontra-se a descober-
ta junto aos de fora. A desconfiança inicial em rela- ta do Livro, o pacto com Deus, a transformação pes-
ção à pesquisa não teve outro motivo. Pois o proble- soal, sobre as quais, por falta de espaço, não me
ma ainda era sério: em vez de mostrar curiosidade deterei. Um relato restitui bem o discurso habitual:
para com as manifestações religiosas católicas associ- “aos olhos de Deus e da comunidade, eu não valia
adas à cultura negra, em particular ao culto de santos mais nada. Eu era o monstro da comunidade, era
de devoção e à festa do santo padroeiro, eu queria violento. Quando vim de Óbidos, participei do gru-
falar com os evangélicos da vila, observar suas práti- po de jovens na Igreja, mas eu bebia para criar cora-
cas religiosas e recolher histórias de vida. gem para pregar. Os católicos pregavam, mas não
A capela católica é, portanto, um centro impor- sabiam explicar a Bíblia.” Os temas da aquisição de
tante da sociabilidade local: é usada para as reuniões um saber religioso, da dignidade reencontrada e da
12
Da mesma da associação de quilombolas e serve também para revalorização da sua própria imagem, predominam
forma, durante
o primeiro en- os encontros entre pais de alunos. Foi precisamente sem dúvida sobre o tema da dificuldade eventual-
contro no na capela que, depois da missa dominical, fui convi- mente sentida de respeitar as numerosas proibições
Pacoval, os
integrantes do
cordão do Ma-
dada pelo catequista, por outro lado secretário da (álcool, dança, futebol) impostas pela Assembléia
rambiré, que se associação de quilombola, a explicar as razões da mi- de Deus. O espaço da congregação é então percebi-
apresentam
normalmente no nha vinda. Esclarecendo que ele estava cansado com do como um lugar favorável ao desenvolvimento
dia 6 de janeiro,
fizeram uma de- “toda essa gente que vêm, pega a nossa cultura, e de relações interpessoais mais satisfatórias.
monstração dos
seus talentos não implanta projeto nenhum para a comunidade”, Rompendo por escolha com a “tradição” católi-
em julho.
incentivou o público (composto de mulheres, velhos ca, os crentes se afastam da capela, palco “de muitas
13
Conforme o e crianças), a perguntar o que se podia esperar de brigas, muitos conflitos, [que mostram] a falta de
dicionário Auré-
lio, aiuê é uma mim em troca da permissão de permanecer no Silên- união”. Pois se o papel atribuído à capela é de sim-
interjeição brasi-
leira que “expri- cio. Apesar da minha resposta claramente descartar bolicamente representar o grupo na sua totalidade,
me alegria, gra-
cejo ou mofa”.
a possibilidade de qualquer implantação de projeto e atestar a sua unidade frente ao mundo exterior,
de desenvolvimento, ela deve, porém, ter satisfeito o ela dificilmente consegue preenchê-lo com sucesso.
14
Ver Funes auditório, pois recebi a autorização de me aproxi- Na verdade, ela não consegue nem agregar todos os
(1995:342,
358). mar da congregação evangélica. habitantes em volta do santo padroeiro. Dona Ana,

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católica e tia da professora que me hospedava, se Os líderes da associação de quilombola se mos-
queixou nesse sentido do fraco entusiasmo manifes- tram pouco apressados em responder a tal expecta-
tado na ocasião da festa de são Benedito organizada tiva por parte de um grupo religioso que recusa o
durante as Raízes Negras. A adesão ao movimento culto dos santos. Se atendessem ao gesto esperado
evangélico parece então corresponder a uma decisão pelos crentes, a associação admitiria implicitamen-
da qual o pragmatismo não é excluído: “fiquei de- te que o festejo de São Benedito não seria reconhe-
cepcionado, resolvi passar para a crença.” cido como símbolo das Raízes Negras por todos os
Os crentes do Silêncio, no entanto, não preten- moradores do Silêncio, e que todos os quilombolas
dem romper com todas as práticas do catolicismo. não seriam devotos de um santo negro.
Eles aceitam abençoar os mais jovens, respondendo Este fato não é inócuo. Pois reconhecer a existên-
assim a uma solicitação atestando da importância cia de divergências internas ao grupo significaria,
15
Deve-se notar
do seu status de mais velho: “sou crente, mas meus para a associação, admitir os limites da sua represen- que, em vez de
irmãos continuem pedindo a minha benção; é uma tatividade, o que por sua vez diminuiria a capacida- quilombo ou “re-
manescentes de
questão de respeito”. Além disso, tanto quanto os de de negociação política junto ao Estado. Isto termi- comunidades de
quilombo”, ter-
católicos, os evangélicos se mostram orgulhosos que naria tendo conseqüências deploráveis, visto que os mos que incitam
a se interessar
dona Idaina, a professora de Óbidos que incentivou títulos de propriedade são atribuídos pelo Estado a pelos eventuais
restos ou sobre-
a organização do movimento, tenha levado o nome grupos que são referidos como comunidades rema- vivências, são
agora preferidas
do Silêncio do Matá a Belém, a capital do Estado. nescentes de quilombo15, e não a indivíduos. as expressões
“comunidades
São também conscientes das metas e da utilidade da O termo comunidade, designando o que antes remanescentes”
associação: “eles fizeram esses encontros, os qui- se chamava vila, povoado ou freguesia, merece uma ou “comunida-
des negras ru-
lombos, para fazer uma associação e pedir ajuda para reflexão. A comunidade não faz simplesmente refe- rais”, que inte-
gram as
a comunidade...” Enfim, reivindicam o seu inteiro rência a um conjunto de pessoas ligadas pelo paren- práticas atuais
desses grupos e
pertencimento ao Silêncio do Matá e entendem ter tesco e a residência16. Comportando uma dimensão a sua inserção
social e cultural
direito a se beneficiar plenamente dos recursos que suplementar, ela seria o grupo consciente de si mes- presente. Ver
Veran (1999).
a associação poderia obter. mo, dos interesses coletivos a defender, onde o con-
No entanto, é exato que aqueles que se tornam flito não teria vez. Nessa medida, recusar essa de- 16
Para uma aná-
lise crítica do
crentes deixam de comparecer às reuniões da asso- signação a um grupo é, por assim dizer, negar a sua termo comunida-
de, ver Roberto
ciação, alegando as muitas atividades na congrega- existência social, duvidar da sua maturidade política Araújo (1993).
ção, e afirmando que sua participação seria dora- e contestar a legitimidade das aspirações expressas
17
Desse ponto
vante submissa ao assentimento do dirigente. Sem pelos seus integrantes. Ser ou não reconhecido como de vista tam-
bém, falar dos
negar o peso da estrutura autoritária das Igrejas evan- comunidade, enquanto categoria de um discurso “remanescentes
gélicas, me parece que o motivo religioso (conheci- político, pode então se tornar fundamental para ter de comunidades
de quilombo” é
mento da Bíblia, a transformação etc.) vem aqui mais acesso à terra17. Uma federação de quilombolas re- bem diferente
de falar das
apoiar uma dissidência de fato do que a provocar. jeitou desta forma um grupo, contestando que se “comunidades
remanescentes
O argumento da submissão à autoridade religiosa tratasse de uma comunidade, quando esta quis ade- de quilombo”.
No segundo
constitui antes de tudo uma justificativa, fácil e inte- rir a um projeto de lotes individuais. caso, a realiza-
ção da idéia de
ligível por todos, da sua posição de retraimento, evi- De forma semelhante, o desentendimento entre comunidade –a
coesão do grupo
tando um confronto direto de opiniões acerca de crentes e quilombolas concerne diferentes posições – se situa no
coisas pouca religiosas como o devir do povoado e sobre modalidades de acesso e de distribuição da ter- presente e não
num passado
as escolhas da associação. ra. De fato, é notável que a maioria dos conflitos remoto.

mencionados pelos crentes do Silêncio a respeito da 18


A propriedade
Os evangélicos e a associação: capela giravam em torno da propriedade coletiva da individual seria
dificilmente
o descompasso terra18 que a associação, dizem eles, queria impor. compatível com
o manejo das
Aliás, se os crentes se afastaram da capela e da asso- Aqueles que se sentiram, por diversas razões, deixa- terras na Ama-
zônia, já que o
ciação por sua própria vontade, ainda esperam que os dos de lado, ou que não conseguiram expressar o seu local das roças
familiares muda
representantes os venham convidar. Um testemunho ponto de vista, encontram no movimento evangélico a cada ano. No
entanto, cada
resume bem a ambigüidade dessa posição: “desde que um lugar e uma linguagem religiosa que permitiu a um deseja ter
confirmado indi-
saí do Encontro, eles não vieram ainda para a gente eles se afastarem da associação de quilombola. Como vidualmente os
fazer a associação juntos. Mas a gente pode dar o nome em outros lugares da região, a adesão à crença pare- seus direitos
sobre a terra
da gente para a comunidade, porque também somos ce um meio de se subtrair às hierarquias sociais lo- que assegura
seu sustento,
filhos dessa comunidade. Como a gente é daqui, de- cais para recompor redes de relações onde cada um para ter certeza
de que nenhuma
vemos organizar a associação. A associação é para o espera ver a sua posição melhorar, o que mostra, por outra família
controle o
povoado todo, e para que todos se beneficiem.” exemplo, a obtenção de um cargo ritual (diácono, acesso a ela.

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porteiro, presidente do grupo de jovens, de crianças rurais atuais, independentemente das condições his-
etc.). É interessante que a adesão ao movimento evan- tóricas particulares da sua fundação.
gélico, cujo discurso é avesso à reivindicação políti- No entanto, como escreve Neusa Gusmão os qui-
ca, pode aparecer como o meio de expressar uma lombolas não formam “outro povo ou outra cultu-
divergência com as escolhas das lideranças. ra, mas uma realidade interna ao próprio sistema e
O exemplo do Silêncio mostra como as pessoas com respeito ao qual não se sabe muito bem como
lançam mão de um sistema religioso exterior (o agir, interagir ou o que fazer” (In O’Dwyer
evangelismo) para exprimir os seus desacordos em 1995:61). Prossegue a autora: “ao fazer parte do
relação a uma ação política que toma emprestado contexto nacional inclusivo, o negro passa ideolo-
de uma outra religião (o catolicismo) os elementos gicamente a não ter história própria, tanto quanto
necessários para construir a sua legitimidade. não tem uma língua que o particulariza, formas de
Evidentemente, nesse caso, pode-se temer que, em organização própria ou mesmo, um governo ou
reação à escolha de elementos religiosos católicos poder em separado” (Gusmão, 1995:69). As pes-
para codificar a negritude dos descendentes de quisas, produzidas na independência da ideologia
quilombolas, qualquer iniciativa política, qualquer que nega “a condição e o direito à diferença” (Gus-
tentativa de organização da coletividade seja consi- mão, 1995:69) dos negros, devem então contribuir
19
Por exemplo derada como obra do diabo pelos evangélicos. Ape- para revelar a especificidade das comunidades ne-
Edna Castro: “a sar da incompatibilidade parecer naquele momento gras rurais. As estruturas familiares e políticas, a
lembrança,
nessas comuni- insuperável, os crentes na verdade não se negam a relação com o meio ambiente, e o modo de produ-
dades, aparece
acionando as re- ser quilombolas. Simplesmente eles não aceitam as ção econômico estão dentre os elementos mais cita-
presentações
sobre as gera- modalidades da sua atual definição. dos.
ções que se su-
cederam, a es- No entanto, se os textos falam de modo recor-
colha dos luga-
res para se as- A respeito de comunidades negras rurais: rente do casamento endógamo e das regras de su-
sentaram, os
usos dos recur- postura cientifica e militância política cessão, ficam infelizmente demais imprecisos na des-
sos, o trabalho Mas o que são quilombos? Como a literatura os de- crição da realidade social à qual se referem. O lei-
e o esforço para
garantir a re- fine? Para o Estado, encontram o seu lugar inte- tor se encontra então desarmado para apreciar a
produção da
vida, os confli- grando-se ao projeto de cultura nacional, o artigo importância das diferenças, e deve se satisfazer com
tos e os movi-
mentos lúdicos 68 lhe dando a sua forma jurídica, onde é conside- afirmações demasiado gerais para convencer19 ou
que ordenavam
as áreas de pra- rado que são “bens de patrimônio brasileiro […] com declarações nutridas mais pelo romantismo que
zer da vida
comunitária” que se trata de proteger” (Veran, 1999:56). Como pelos dados etnográficos20.
(2001:18).
observa Alfredo Wagner, esse projeto do Estado é Entre os elementos claramente explicitados, al-
20
Ver por exem- voltado para o passado, o período escravista e as guns, como as estruturas matricentradas21, a orga-
plo, E. Funes
quando afirma sobrevivências (1999:11) e não consegue entender nização do espaço ou o uso coletivo das terras, não
que “ao se o presente das comunidades negras rurais. são traços exclusivos das comunidades negras ru-
curvarem para
recolher as
castanhas e ou-
O trabalho de vários historiadores e antropólo- rais. Sobre o primeiro ponto, pode ser observado
riços, os ho- gos contribui para redefinir o que é quilombo, re- que no meio urbano igualmente as mulheres ocu-
mens realizam
um gesto que jeitando a estreita concepção aceita pelo Estado. Eles pam uma posição análoga de centro dos grupos
sugere um ato
de reverencia e mostraram a diversidade das condições históricas domésticos22. No que tange a organização do espa-
de agradecimen-
to para com a na formação das comunidades negras rurais atuais, ço, Deborah Lima (2002) mostrou que os ribeiri-
natureza pelos
frutos rece- nem sempre estabelecidas em territórios de antigos nhos também fazem suas casas nas margens, enquan-
bidos. Percebe-
se, mais uma quilombos, a terra podendo ser herdada do senhor, to o lugar das roças se encontra na direção oposta,
vez, a perfeita
relação entre os
dada em recompensa a “algumas das chamadas no “centro”. Para as mesmas populações, a autora
mocambeiros e ‘comunidades negras’ de hoje [que] foram aciona- descreveu de maneira notável a especificidade da
o ecossistema
do qual também das para lutar no passado contra os quilombolas” apropriação do território, aliando uma área de uso
fazem parte”
(Funes, 1995: (Wagner 1999:14), ou simplesmente concedida para coletivo e roças individuais23.
119).
a subsistência dos escravos. Por isso, o objetivo dos A proposta de Alfredo Wagner de definir os qui-
21
Às vezes abu- antropólogos e historiadores, que se referem hoje lombos pela sua autonomia econômica, “uma forma
sivamente as-
similada à às comunidades negras rurais ou “terras de preto”, de afirmação […] da pequena produção agrícola”
matrilinearidade.
não é identificar somente genealogias ou reconstituir (1999:13) da qual já se encontram traços antes da
22
Boyer (1993). a trajetória do deslocamento das populações para abolição, tem a vantagem de incluir na categoria qui-
23
confirmar a presença efetiva de escravos foragidos. lombo o conjunto das comunidades negras rurais inde-
O que J.H.
Benatti, chama Procura-se identificar traços culturais ou sociológi- pendentemente da sua história singular. No entanto,
de “posse agro-
ecológica”. cos caracterizando todas as comunidades negras essa definição se revela demais ampla e também con-

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vém a vilarejos que não são reconhecidos e não se exigências impostas pela lei para ter acesso à terra: a
reconhecem como comunidades negras rurais. Além obtenção dos títulos de propriedade é, com efeito,
disso, a autonomia dessas parece relativa na medida sujeita ao reconhecimento de uma diferença de cer-
em que os historiadores mostram que, desde o início, tos grupos em relação com o conjunto nacional.
foram inseridas em circuitos mercantis. Histo- Para evitar a perda do beneficio potencial da in-
ricamente, segundo E. Funes, as comunidades negras, clusão do artigo 68 na nova Constituição, era ne-
mesmo quando se formaram à margem da sociedade cessário encontrar uma “categoria de mobilização
colonial, até em reação a ela, não estavam totalmente política” eficiente (Wagner, 1999:24). Durante o
isoladas e “acabaram envolvidas numa forte teia de mesmo encontro de 99, o representante da Comis-
dependência, via endividamento, difícil de ser rompi- são Nacional da Articulação das Comunidades
da” (1995:196) onde os novos patrões, comercian- Remanescentes Negras Rurais Quilombolas deixou
tes, se opunham aos antigos senhores para defender assim bem claro que “a luta para a terra de preto
seus interesses mercantis. Novamente, uma tal situa- precisou buscar uma etnia” (in Wagner, 1999:24).
ção não é em si muito diferente do que foi descrito A referência a uma etnia negra se tornou então de
para as populações amazônicas no seu geral. uso recorrente no discurso dos militantes e, tam-
As análises parecem assim ter dificuldades em bém, nos estudos científicos.
estabelecer a especificidade cultural das comunida- No entanto, o uso dessa noção não deixa de ser
des negras rurais24. Esse fracasso tem evidentes problemático. Pois uma abordagem que fundamenta
conseqüências políticas que preocupam os militan- o fenótipo como o “elemento homogeneizador”25 da
tes do movimento negro. Num debate entre antro- população negra, pode levar a negligenciar diferen-
pólogos, juristas e militantes, um representante do ças essenciais nas representações do que é ser negro
Movimento Negro Unificado (MNU), também as- no contexto brasileiro e na maneira de o viver e de o
sessor de um deputado federal do PT, elaborou a afirmar. Refiro-me, por exemplo, ao trabalho de Lívio
questão da seguinte forma: Sansone que mostra, no caso da Bahia, que a fases
históricas distintas, em função do contexto eco-
Que práticas, que costumes e que hábitos seriam es- nômico, temos construções identitárias especificas do
ses? Seria algo tão difuso a ponto de não terem uma que é ser negro. Essas mudanças se refletem nos ter-
identidade própria, essa identidade que até então o mos de auto-designação utilizados: os pais que “acei-
movimento negro importava dos quilombos para as tam uma certa imobilidade social” se reconhecem
comunidades de afrodescendentes? […] Essa carac- como pretos, e os seus filhos se afirmam como ne-
terística […] pode ser tão difusa a ponto de não que gros, termo que era usado até agora “principalmente
não tenha unidade alguma, sendo simplesmente as pelos militantes [do movimento negro] e a teologia
pessoas que não têm terra. Pessoas que não têm ter- da libertação”(Sansone, 2000:98).
ra e que não são sem-terra, pois têm a terra que era No caso especifico das chamadas comunidades
de quilombo […] Parece que essa descaracterização negras podemos temer, na ausência de elementos
[seja] um tanto quanto perigosa […] Acho que den- socioculturais caracterizando a etnia negra, que a 24
Os estudiosos
tro do movimento negro […] essa relação quilom- cor da pele, o tipo de cabelo e os traços dos indiví- clássicos com
certeza concor-
bos, identidade étnica e combate ao racismo é a tri- duos sejam usados como critérios para atestar que dariam, já que,
ao contrário do
logia que não se abre mão […] A conquista da regu- os informantes “tivessem em comum as suas ori- que eles obser-
vavam nos cul-
lamentação dos conceitos de território de quilombos gens [e] descendessem de quilombolas” (Funes, tos afro-brasilei-
ros nas cidades,
para o movimento negro, e em particular para o 1995:32). Todavia, a elaboração de categorias so- não encontra-
ram nenhum ele-
MNU, é uma etapa fundamental de luta para os bre essa base é particularmente delicada, para não mento sociocul-
tural nos quilom-
afrodescendentes” (Brito, in Wagner, 1999: 21). dizer mais. Neusa Gusmão tem razão em chamar bos que os aju-
dasse no seu
atenção sobre “a dificuldade de saber quem é e quem trabalho de rea-
O problema é que, para o movimento negro, as não é negro no Brasil. Se as características fenotípicas bilitação do ne-
gro e da sua cul-
comunidades negras rurais não são só grupos entre são insuficientes para esclarecer a questão, o crité- tura. Ver por
exemplo Bastide
outros. Elas são emblemáticas da sua luta porque en- rio racial é também problemático” (1995:67). 1960.
carnam hoje a idéia dos quilombos de outrora. A di- Deve-se então ficar vigilante para que o termo etnia 25
Uso a expres-
ficuldade em definir de maneira precisa a sua di- não venha às escondidas ocupar o lugar do termo raça. são de Alain
Pascal Kali no
ferença cultural com os outros grupos regionais en- Alfredo Wagner mostra-se particularmente conscien- seu testemunho
sobre as impres-
fraquece então o seu impacto enquanto símbolo de te desse perigo: “do meu ponto de vista, a categoria sões de um
estudante
resistência. Essas dificuldades de identificação têm jurídica deve refletir [as superposições de identida- senegalês na
Bahia (Kali
também efeitos extremamente concretos devido às des], ou poderemos estar utilizando o mesmo critério 2001:113).

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discriminatório das teorias racistas do século XIX, das aspirações internas ao grupo. Os pesquisado-
como verdade e como objetivo” (1999: 24). res, que são muitas vezes associados na mente das
O mesmo autor propõe então falar em território populações ao Estado, ou a ONGs poderosas, são
étnico, expressão que tem a vantagem de tirar a idéia familiarizados com categorias políticas que devem
de uma necessária “comunidade de sangue” para in- tornar acessíveis a todos. No entanto, é o dever de-
sistir sobre o espaço fundado por “um aglutinador les não esquecer que eles se impõem, stricto sensu,
de diferenças contra uma forma de dominação es- a seus interlocutores, podendo então ser colocados
cravista” (Wagner, 1999:25). Mas permanece a refe- por esses, de maneira nem sempre consciente, na
rência a uma etnia que se custa a definir... posição de um patrão protetor.
Essa reflexão me parece ainda mais necessária já
Conclusão que a crescente solicitação dos antropólogos e histo-
Gostaria de concluir dizendo que temos que desen- riadores poderia dar sustento a una escolha política
volver uma reflexão mais ampla sobre as condições mais do que contestável. Com efeito, na medida em
de realização das pesquisas e sobre a relação entre que homologam grupos etnicamente identificados
antropólogo e informante. A produção de conheci- junto às instâncias dirigentes, os pesquisadores tra-
mento histórico e antropológico sobre a região é zem também a sua contribuição, e a sua caução, ao
absolutamente necessária. No entanto, tratando-se projeto implícito do Estado que procura limitar a
de uma identidade emergente (ninguém se dizia qui- redistribuição fundiária. Pois favorecer a formação
lombola antes de 90), é preciso ter muito cuidado de múltiplas comunidades que reivindicarão, em no-
na relação eventual entre a desigualdade dos esta- me da sua diferença, direitos sobre a terra que ocu-
tutos sociais dos atores (o pesquisador e o infor- pam, tem por efeito corolário a exclusão dos pro-
mante) e a produção de novos enunciados: “eu sou cessos de acesso à terra, ou de legalização, a todos
quilombola”. Pois ser percebido como professor, os que não têm identidade étnica reconhecida, isto
branco, formado, membro das classes médias urba- é, a maioria da população amazônica.
nas, por interlocutores negros ou mulatos, pobres e Devemos por fim, questionar sobre os efeitos da
analfabetos não é sem conseqüências – queira-se ou criação e da manipulação desses novos paradigmas
não – sobre a qualidade das relações que se tecem negros, nas relações estabelecidas entre grupos que
entre o pesquisador e seus informantes e das infor- optaram pelo epíteto quilombola e os povoados vi-
mações que se recebem. zinhos sem identidade definida. Pois esses vizinhos
26
Essa apelação
recente parece
Não estou sugerindo que as identidades são im- são muitas vezes parentes e, por isso, poderíamos
ligada ao suces- postas de maneira mecânica, nem – claro – dizendo estimar que são igualmente fundados a reivindicar
so do discurso
ecológico. que as lutas sociais e políticas não são legítimas. No a propriedade de sua terra enquanto descendentes
27
A respeito do
entanto, parece-me que devemos ficar atentos, nas de quilombolas. Em qual medida, portanto, esses
uso do termo análises que fazemos, às repercussões da nossa in- mestiços, ditos agora ribeirinhos26 após ter sido por
caboclo, ver en-
tre outras refe- tervenção no campo e não subestimar o peso das muito tempo chamados caboclos27, não poderiam
rências Lima
(1992). influências exteriores no processo de formalização se tornar por sua vez negros?

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