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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Beatriz Cardoso

Geraldo Vieira

Atividade Avaliativa 1

Belo Horizonte

16/05/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Beatriz Cardoso

Geraldo Vieira

Atividade Avaliativa 1

Trabalho entregue ao Professor Marco Martínez


da disciplina de Simbolismo e Ritual.

Belo Horizonte

16/05/2018
O seguinte trabalho tem como objetivo analisar e descrever as
características de um ritual, símbolo ou objeto. O objeto de estudo escolhido foi
o ritual Karhunpeijaiset, celebrado pelos povos sami, grupos indígenas também
chamados de Lapões que habitam a Finlândia, Suécia Noruega e a Península
de Kola, localizada na Rússia. Sua preferência de ocupação se direcionada aos
fiordes noruegueses, às zonas florestais, às serranas, que são chamadas de
fjäll, às zonas costeiras, e às zonas geladas.

Baseado no xamanismo, o povo Sami é considerado neopagão, pois é


praticante do politeísmo desde seu surgimento, prática que perdura até os dias
atuais nos grupos que não foram cristianizados. Os Sami possuem a crença de
que o mundo físico é habitado constantemente por agentes do sagrado em
forma de espíritos, de modo que estes costumam frequentar lugares com
paisagens predominantemente naturais e acampamentos samis, e certos
espíritos estão vinculados a determinados locais, ou até mesmo podem ter sua
presença ligada à morte e ao aparecimento de ancestrais já falecidos. O
animismo presente na cultura sami se mostra como a crença de que tudo
presente na natureza, incluindo animais, plantas e pedras hospedam uma
alma. Por exemplo, há o costume de cada família Sami possuir um guardião
relacionado ao seu clã, nomeados como Seita, Sieidis ou Storjunkare, os quais
auxiliam na proteção do rebanho familiar e instruem na captura de animais. Em
troca de sua guarda, geralmente são feitas oferendas aos guardiões usando
peles e cascos de animais, de forma que os guardiões geralmente são
tomados como blocos de rocha anímicos localizados em pedaços de terra
elevados ou na parte mais bela da gramínea da propriedade familiar. Segundo
os mitos, originalmente os Storjunkare seriam pedras de aparência semelhante
a humanos ou animais com poder sobre todos os animais existentes, de modo
que passaram a disponibilizar sorte aos que pescavam e caçavam para eles,
além de sempre estarem instaladas em topos de montanhas e nas redondezas
de cavernas e corpos d’ água. Apesar de ser mais comum que as famílias
adorem aos guardiões devido à prática de criação de rena familiar, é comum
que uma pessoa só cultue seu próprio Storjunkare em busca de boa sorte.
Assim, tal oferenda de peles e cascos aos Storjunkare pode ser ilustrada como
um modo de intermédio entre o sujeito e os seres sobrenaturais, em uma
maneira de reciprocidade, citado por Hubert & Mauss (1899), de modo a
manter a aliança entre o sagrado e o profano, como se fosse as oferendas
fossem, ao final, diferentes formas de alimentar as divindades e seres
místicos., como ilustra o trecho a seguir:

“No totemismo, e o totem e o deus são parentes de seus adoradores,


têm a mesma carne e o mesmo sangue; a finalidade do rito é se
comunicar e garantir esta vida comum que os anima e a associação
que os liga. Se é necessário, reestabelece a unidade. A aliança pelo
sangue e a comida em comum são os meios mis simples para
alcançar esse resultado.” (HUBERT & MAUSS, 1899, pp. 2)

Os cultos e as oferendas aos guardiões são relações cosmológico


ecológicas de forma que possivelmente podem ser comparadas à pedra de
Nunkui e aos cânticos realizados para o crescimento das plantações realizados
pelas mulheres Achuar da Amazônia retratadas por Philippe Descola em “As
Lanças do Crepúsculo”, pois vinculam as relações homem-natureza de
subsistência e equilíbrio do meio ao sagrado. A aurora boreal, fenômeno
celeste que ocorre nas terras nórdicas, explicita também uma relação
cosmológica. Durante o acontecimento da aurora boreal, os Sami acreditam
que as luzes coloridas presentes no céu estão, na verdade, saindo das almas
de seus antepassados, e enquanto esta manifestação do místico ocorre, é
estabelecida uma ligação direta entre os espíritos e a terra. Por esse motivo, a
maioria dos samis procuram manter-se em casa durante a aurora boreal, pois
acreditam que o contato com as luzes pode lhes causar algum malefício que
somente o contato com o espírito de um urso sagrado poderia reverter. Vê-se
claramente a partir destes dados o valor cosmológico atribuído aos fenômenos
naturais, associação decorrente do processo interpretativo do mundo exterior
presente em todos os povos de certa maneira.

Como outro exemplo de manifestação do animismo se encaixa o culto


aos ursos, que foi datado desde o paleolítico através de estudos arqueológicos.
A prática do ritual visa o princípio de que os ursos são vindos do céu ,
podendo reencarnar e são os senhores dos animais, ocupando uma posição
totêmica devido à sua importância. . Supõe-se, então, que devido ao
totemismo, os Sami apresentem características perspectivistas devido aos
animais totem estarem relacionados à reencarnação de ancestrais de
determinados clãs. Portanto, o totemismo sami remete à idéia de que os
animais presentes na natureza podem ser, na verdade, reencarnações de
ancestrais pertencentes ao seu clã de animal totem. A partir disto, podemos
lembrar do trabalho de Viveiros de Castro em “Pronomes Cosmológicos e o
Perspectivismo Ameríndio” sobre os animais inseridos na natureza
conseguirem se transmutar para a forma humana e vice-versa, de modo que só
alteram sua roupagem, e automaticamente relacioná-los à reencarnação dos
ancestrais em seus animais totem.

A caça aos ursos é tradicional de determinadas épocas do ano, como a


temporada de hibernação, e o final do inverno e o início da primavera. Ao
encontrar o covil de um urso, os caçadores se preparam para a caça, enquanto
o xamã e seu tambor são consultados. Então, os caçadores partem para a
floresta, de forma que o homem responsável por encontrar a localização do
urso é o responsável por liderar o grupo, e o xamã o segue e determina qual
dos homens será apto a atacar o urso primeiro. Na maioria das vezes, o
homem que localizou o urso o desperta. Para atacarem o urso, eram utilizados
arco e flechas, armas de fogo, lanças e machados. Após a morte do urso, seu
corpo é arrastado para fora do covil e é chicoteado com ramos de bétula ou
galhos macios, e sua mandíbula inferior é presa a partir de um anel, e iniciasse
a cantoria ritualística (joiking). A música juoigan , também conhecida como yoik
, é cantada convertendo certos sentimentos em melodia, sendo sempre de
conteúdo pessoal, partilhada apenas perante amigos e família, e os noaidi
também as utilizam de seus encantamentos também para prever mudanças
climáticas e garantir o bem-estar de seu povo, como ilustra o trecho de Rafael
Karsten:

“Um interruptor é torcido na forma de um anel que e preso na forma


de um anel que é preso à mandíbula inferior do urso. Está ligado ao
cinturão do principal matador de ursos; o último puxa três vezes
cantando (joiking) em um tom peculiar que ele se tornou o mestre dos
ursos”. (Karsten, 1955, pp. 116).
Ao retornarem às suas habitações, os sijdda, a esposas cumprimentam
os homens com o ato de cuspir suco de casca de árvore velha em seus rostos,
e o principal matador de ursos leva seu anel à sua habitação, o goahte,
batendo três vezes na porta. Se o urso morto é fêmea, ele passa a ser
denominado como chama siva neit, ou santa virgem, e esta é a palavra
chamada ao entrar na casa, mas se o urso for macho, ele chama e grita por
siva ive, ou homem santo, demonstrando o respeito e a sacralização
direcionada aos ursos. A esposa do homem que se tornou dono do urso ao
caçá-lo guarda o anel em um pano de linho até o fim da refeição cerimonial,
permanecendo como guardiã dos feitos de seu marido em um âmbito
simbólico. Antigamente, os homens costumavam cozinhar e preparar a carne
do urso dentro de uma habitação especializada cuja entrada de mulheres era
proibida, talvez pelo mesmo motivo da imunização que ocorre ao final do ritual:
a tentativa de mantê-las protegidas da ira do espírito do urso, de modo que as
mulheres cobriam suas cabeças e estavam restringidas a olhar para o
assassino do urso através de um anel de latão durante os próximos cinco dias.
Passados os primeiros três dias, a pele do urso é esticada ao centro da área
onde ocorrerá o banquete, e tabaco e refeições são oferecidas à sua alma.
Pelo motivo de o urso representar o ser humano, e possivelmente a
masculinidade, as mulheres se encontravam frágeis à presença do animal e
também de seu assassino, temendo serem fertilizadas por sua presença e
entrando em contato com o animal apenas para comê-lo, antes da fase final do
rito, quando seus ossos são enterrados. Assim, é dado um discurso sobre a
caça do urso e o banquete com sua carne se inicia. Com o término da
comemoração, o anel é retirado e as mulheres e crianças juntam a ele pedaços
de correntes de latão, e depois este é amarrado ao rabo do urso. O anel é dado
aos homens, os quais o enterram juntamente aos ossos, que são dispostos
para serem enterrados de acordo com sua forma original, e toda a pele do urso
é depositada em um toco, para que as esposas dos matadores, vestindo
vendas em seus olhos, possam atirar-lhe flechas de modo revezado. Esta
última etapa do ritual antes da alma do urso retornar à floresta é chamada de
Imunização, e é executada afim de manter as mulheres e crianças livres da ira
da alma vingativa do urso atirando em sua carcaça, como afirma Rafael
Karsten no seguinte trecho:
“A caça e o assassinato de tais animais é certamente necessária,
mas o mesmo tempo é frequentemente uma questão perigosa,
porque ao fazer isso o caçador naturalmente incorre na raiva do
animal morto.”(Karsten, 1955, pp. 113)”.

Acredita-se que a alma do urso divide-se em duas partes, pois apesar do


consumo da carne, o crânio do urso permanece guardado e sua alma reside
nele, enquanto a outra parte da alma, ou força vital, fosse transmitida para os
comedores, em um processo de incorporação de seu próprio animal totem.

Portanto, a morte do urso causa extrema culpa sobre os caçadores, o


que aumenta os motivos para a realização do ritual e o livramento da
humanidade para com a ira dos espíritos malignos; no final tudo se trata de
uma tentativa de encontrar a harmonia para com os seres místicos, pois o
próprio sacrifício do urso, ao mesmo tempo que se trata do consumo de sua
carne, também há a possibilidade de conferir a oferenda de seu sangue ao
âmbito sobrenatural, porém o próprio sacrifício consiste na possibilidade do
enraivecimento do espírito do urso morto, o que também deve ser evitado por
parte dos sami, que executam ao ritual do Karhunpeijaiset na tentativa de
redimir-se para com os espíritos zangados e manter seu equilíbrio com a
natureza. Há, também, a possibilidade do ritual de oblação consistir somente
no oferecimento de peles e cascos para os Storjunkare, de maneira que o culto
ao urso morto pode consistir apenas em um ritual com o intuito de livrar os
indivíduos de seu assassinato direcionado ao urso. Pode-se afirmar com toda a
certeza que ambos os rituais executam diferentes funções, porém não consigo
concluir se estes se intersectam a partir da bibliografia.

O culto ao urso, portanto, seria uma gama de sentimentos direcionados


ao animal, pois segundo Hubert e Mauss (1899), para o povo que realiza o
ritual, que no caso do Karhunpeijaiset é um ritual de sacrifício, existe um nível
de parentesco entre a humanidade e o animal específico, de maneira que o
animal como símbolo totêmico representa o próprio grupo, expressando a
identificação que o grupo sofre para com ele, assim o rito também tem a função
de reafirmar essa ligação de parentesco entre o objeto de adoração e seu
adoradores.

Portanto, o sacrifício é de extremo pesar para todos os indivíduos do


grupo, e por isso existem práticas permissivas específicas para atribuir
normalidade ao ato do sacrifício, no caso o Karhunpeijaiset ocorre com a
finalidade de permitir a caça ao urso, que será utilizado para subsistência do
grupo, como por exemplo, para a alimentação, de modo que o determinado
ritual permite o retorno da alma do urso à floresta. Dessa forma, a morte de um
urso resulta na simbolização da salvação de toda a sua espécie, livrando-a de
servir como alimento para os homens, e também dando continuidade a um
ciclo sagrado que consiste na salvação da alma do animal morto, a qual
renasce na floresta, o que torna ainda mais especial a morte do urso
sacrificado. O ritual de sacrifício distingue-se do ritual de consagração pelo fato
de unir os homens e o divino através do sangue, gerando uma fusão da vida
profana e da vida divina, e ao oferecer um animal ao divino, o homem está a
oferecer uma parte de si mesmo, devido a sua identificação para com o animal
totêmico como um igual.

Mediante a alimentação à base da carne do urso, os fiéis estariam se


identificando com sua natureza em comum com este, o que resulta em sua
dessacralização. Os sacrifícios então, constam na sacralização ou na
dessacralização de um objeto para fins específicos, o que no caso do
Karhunpeijaiset, se trata de um ato de dessacralização para que seja permitido
e também não problemático o consumo da carne de urso. Durante o ritual, a
alma do urso, considerado um parente para os sami, é dissociada de sua
constituição física e sua carne que será comida, resultando, assim, em um
processo de dessacralização de um ícone sagrado. Conclui-se que o o culto ao
urso não é, então, uma simples oblação, como ocorre com os Storjunkare, pois
ele apresenta uma maior força religiosa, pelo fato de o objetivo do rito apenas
ser alcançado mediante a destruição de seu objeto, que no caso é o urso.
Contanto, o rito de adoração ao urso é uma consagração, e o fato de este ser
um sacrifício se dá pela destruição.
O sacrifício totêmico foi classificado por R. Smith entre os chamados
ritos expiatórios ou propiciatórios, ou sacrifícios de oferenda ou honorários. O
rito propiciatório teria basicamente a função de tornar possível a execução de
determinadas atitudes que seriam consideradas proibidas pela sociedade que
vigora. Segundo a explicação de Hubert e Mauss, os ritos propiciatórios
desenvolveram-se através da prática ritual comum a povos pastores, de
maneira que durante o surgimento destes ritos apenas os sacerdotes possuíam
a permissão para tocar ou comer os animais representantes dos totens.
Através do consumo, ocorria uma transformação que transmutava o animal
sagrado, desfazendo-o de sua sacralidade e associando-o à impureza. A
prática humana crescente da criação de rebanhos e domesticação de animais
teria desencadeado a explicação do sacrifício-oferenda como um presente do
homem direcionado ao sagrado, de modo que o sacrifício de sangue dos
próprios humanos caiu em desuso com o passar do tempo, pois este substituiu
o sacrifício animal durante um período indeterminado para os semitas.

Contanto, a sacralização do sacrifício se dá pelo fato de a expiação da


morte do animal estar ligada à objetivos comunitários, ou seja, estar vinculada
a uma necessidade que atenderá à diversos indivíduos, causando um “bem
maior”, o que torna legítima a morte do animal. Como no caso de todo
sacrifício, os indivíduos que forneceram o urso para o rito passam por um
processo que os modifica, de maneira que o sacrificado não é o único afetado
pelo ritual, pois o indivíduo que realiza o ritual tem sua concepção sobre o
objeto do rito modificada, de forma que suas crenças e impressões depositadas
neste objeto são destruídas pela dessacralização, ocasionando uma mudança
religiosa.
Bibliografias: CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Os pronomes Cosmológicos e o
Perspectivismo Ameríndio”. MANA 2(2):115-144, 1996;

DESCOLA, Philippe. “As Lanças do Crepúsculo: relações jivaro na Alta


Amazônia”. São Paulo: Cosa Naify, 2006;

KARSTEN, Rafael. “The Religion of the Samek”. Leiden: Munich, 1955;

KWON, Heonik. “BRINQUE COM O URSO: Mito e Ritual no Leste da Sibéria.


História das Religiões, 1999;

MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri, “Essai sur la natue et la fonction Du


sacrifice”, Année sociologique, n. 2, 1899 e republicado em MAUSS, M.
Oeuvres 1. Les fonctions sociales Du sacré, Paris, Éditions de Minuit, 1968
(Trad Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2013);

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