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FELIPE BRAGANTINO
DEMANDA ÉTICA EM
RELAÇÃO AOS ANIMAIS:
DESAFIOS, CONTROVÉRSIAS E POSSÍVEIS
IMPACTOS NA MUDANÇA DE SUA
NATUREZA JURÍDICA
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FELIPE BRAGANTINO
DEMANDA ÉTICA EM
RELAÇÃO AOS ANIMAIS:
DESAFIOS, CONTROVÉRSIAS E POSSÍVEIS
IMPACTOS NA MUDANÇA DE SUA
NATUREZA JURÍDICA
1ª edição
2015
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Felipe Bragantino
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil
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Essere nel Mondo
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Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul
Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269
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Texto eletrônico
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CDD-Dir.: 341.3476
Prefixo Editorial: 67722
Número ISBN: 978-85-67722-36-8
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Felipe Bragantino
Mahatma Gandhi
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NOTA DO AUTOR
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Felipe Bragantino
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LISTA DE SIGLAS
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Felipe Bragantino
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
REVISÃO HISTÓRICA 17
A CONSTRUÇÃO DA SUPERIORIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO 18
DO DIREITO PARA O USO DOS OUTROS SERES
A TEORIA CARTESIANA 33
DEMANDA ÉTICA EM RELAÇÃO AOS ANIMAIS 39
OS ARGUMENTOS CONSERVACIONISTA, BEM-ESTARISTA E ABOLICIONISTA 46
O AGRONEGÓCIO 88
MERCADOS DE ALIMENTAÇÃO ALTERNATIVOS 89
MODO ALTERNATIVO DE CRIAÇÃO ANIMAL 100
IMPLICAÇÕES NA MUDANÇA DE PADRÃO ALIMENTAR EM DECORRÊNCIA 105
DA NOVA NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS
REFERÊNCIAS 119
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PREFÁCIO
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proposição conclusiva, mas alerta sobre diversas implicações de ordem
prática e política, nas quais, entende, radicam os verdadeiros obstáculos.
É sobre esses verdadeiros obstáculos que nos adverte ao final do seu
trabalho, com termos próprios e palavras de filósofos consagrados.
Serão nossas conclusões morais suficientes para autoimpor limites aos
nossos interesses?
O trabalho de Bragantino oferece excelente ajuda para pensar
nessa questão, sem maniqueísmos, mas também sem o confortável
conformismo a que nos induz a naturalização de perspectivas que, por
estarem incorporadas, nos dão a impressão de serem aceitáveis.
Sociólogo
Professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia e
do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da
Universidade Regional de Blumenau
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INTRODUÇÃO
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move sobre ela (BÍBLIA, 2011). Assim, é possível questionar se, de fato,
há justiça no tipo de tratamento dispensado às outras criaturas.
Independentemente da resposta, parece clara a existência da
sensação de que, apesar dos argumentos filosóficos, teológicos e jurídicos
que a sustentam, há alguma coisa errada no modo como são tratadas as
criaturas não humanas.
Esse questionamento, em geral, toma novos contornos, à medida
que se constata que o critério de racionalização da produção industrial
vem promovendo, ano a ano, aumento expressivo da quantidade de seres
sensíveis submetidos a tratamentos que provocam dor e sofrimento.
Entretanto, as questões tomam conotações mais específicas quando se
averigua a existência de uma vasta discussão mundial sobre esse assunto,
porém com pouca expressão no Brasil, país que, por sinal, detém um dos
maiores crescimentos desse fenômeno por conta da divisão internacional
do trabalho.
O que resulta da discussão filosófica, ética e jurídica em relação
a esse tema tão controverso? Como essas reflexões repercutiriam no
modelo de desenvolvimento brasileiro?
Para tentar responder a essas questões, com o objetivo de discutir
o impacto que uma eventual mudança da natureza jurídica dos animais
causaria ao modelo de desenvolvimento adotado no Brasil, no que
diz respeito à pecuária, este trabalho apresenta uma análise crítica da
legislação brasileira e dos pressupostos morais que a subsidiam nesse
aspecto em particular.
Têm-se identificado correntes de pensamento claramente definidas
quanto ao tratamento dispensado aos animais não humanos possíveis de
serem traduzidas em conservadora, bem-estarista e abolicionista, cujos
argumentos serão discutidos a seguir, já que elas exprimem os principais
dilemas e desafios apresentados quando se tenta estabelecer a relação
entre a reflexão ética e os padrões de desenvolvimento.
Apesar dos avanços obtidos na consideração de uma consciência
animal, a história mostra que a sociedade cristã ocidental, com sua
visão antropocêntrica do mundo, sempre se arvorou como senhora e
legítima possuidora de tudo o que há na face da Terra, considerando
sempre que a existência se justifica para sua utilização, fato ainda
observado atualmente.
Reflexo, dessa forma, do olhar para o mundo e o que há nele vem
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Objetivou-se apresentar a legislação brasileira nos níveis federal,
estadual e municipal, verificando como ela sofre influência antropocêntrica
em sua elaboração e, ainda, como impede o avanço da concepção de um
estatuto jurídico aos animais; para tal, partiu-se de análise da discussão
ética em contraponto à legislação brasileira e de apresentação do campo
da ética ambiental, na qual se discutem as concepções trazidas pelas já
mencionadas correntes conservadora, bem-estarista e abolicionista.
A obra é composta por cinco capítulos. No primeiro, a introdução,
apresentam-se o tema, o problema de pesquisa, seu objetivo e a justificativa
para sua realização.
O segundo capítulo expõe a análise da evolução histórica da
superioridade do ser humano em relação aos animais, abordando a
influência do antropocentrismo na construção da visão de mundo e o
contexto histórico de sua caracterização, à contrapartida de algumas
das tradições filosóficas asiáticas, a fim de demonstrar outro viés de
consideração moral ao ser humano e sua relação com o cosmos e para
com os animais. Trata, ainda, de discutir a demanda ética em relação
à extensão de direitos aos animais, finalizando com a exposição das
correntes conservadora, bem-estarista e abolicionista.
No terceiro capítulo, é analisada a legislação brasileira nos níveis
federal, estadual e municipal em relação ao uso dos animais como
matéria-prima da indústria alimentícia. Busca-se demonstrar que a visão
antropocêntrica está arraigada na legislação, a qual objetiva a proteção do
ser humano, a proteção da matéria-prima e da qualidade dos produtos e,
em contrapartida, oferece poucos recursos para a proteção dos animais.
Já no quarto capítulo objetiva-se, em um primeiro momento,
demonstrar a força do agronegócio no Brasil, principalmente no setor
da agropecuária, e sua pressão sobre a produção em massa de animais
para o consumo do ser humano, além de sua importância em nível
global. Também se pretende apresentar mecanismos alternativos de
alimentação e modelos diferenciados de criação animal, bem como os
possíveis impactos que uma eventual mudança da natureza jurídica dos
animais traria ao modelo de criação animal, no qual se apoia o modelo de
desenvolvimento brasileiro.
Ao final, no quinto capítulo, são explanadas as conclusões da obra,
com auxílio da pesquisa bibliográfica.
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REVISÃO
HISTÓRICA
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A CONSTRUÇÃO DA SUPERIORIDADE HUMANA
COMO FUNDAMENTO DO DIREITO PARA
O USO DOS OUTROS SERES
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Pela visão cristã, não há pecado algum em matar animais não
humanos, pois os pecados existem como classificação para com Deus,
para com outros homens e para consigo mesmo; portanto, não há uma
categoria de pecados contra outros seres vivos.
Para São Tomás, por exemplo (apud SINGER, 2010, p. 283), ao
sujeitar todas as coisas aos homens, inclusive os animais, Deus não pede
ao homem para prestar contas do que faz com os bois ou outros animais
e, embora admita que a compaixão pelos animais advém de que esses
seres sentem dor, conclui que isso é insuficiente para considerá-los pelo
mesmo ponto de vista e “a única razão existente contra a crueldade para
com os animais é que ela pode levar à crueldade com seres humanos”.
Conforme Levai (2004, p. 6), do ponto de vista do antropocentrismo,
os animais não humanos somente merecem consideração em razão da
sua serventia aos seres humanos, quer como alimentos ou vestuário,
perdendo, assim, sua singularidade, tendo “negada sua natural condição
de seres sensíveis”.
De acordo com a concepção cristã, no início, o ser humano possuía
uma relação muito mais amistosa para com os animais, porém essa visão
mudou a partir do momento em que o ser humano se concebeu como
medida de tudo.
A partir dessa concepção, a natureza deixa de ter um valor em si para
ser somente algo do qual o ser humano pode apropriar-se indistintamente.
Como já se colocou, a possessão humana sobre os animais vem
sendo justificada com base no pensamento cristão de que Deus fez o
mundo para o ser humano e a ele subordinou todas as coisas e criaturas
da Terra.
Após a saída do homem do paraíso, pela qual foram culpadas a mulher
e uma serpente, matar animais passou a ser permitido (SINGER, 2010).
Rodrigues (2008, p. 40) explica que:
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Mais do que do perfeccionismo aristotélico, a concepção de
domínio dos superiores, entendida como despotismo, parece
ter sido herdada da tradição judaica, revisitada pelo cristianismo
no pensamento de Tomás de Aquino, que usa, eu diria, mais
judaica do que aristotelicamente o perfeccionismo, para decretar
que seres superiores tudo podem fazer em busca de benefícios
pessoais, à custa dos inferiores. [Cf. Regan, Defending Animal
Rights, p. 7]. A tradução usual da palavra hebraica rada com o
sentido de domínio, como tirania sobre o mundo não humano,
tem sido criticada desde o final da década de sessenta do
século XX nas obras de White e de McHarg, que acusam-na de
ter causado a ‘crise ambiental’, da qual ainda não conseguimos
sair. Nas três décadas que se seguiram àquelas obras, Linzey
(1976, 1987), McDaniel (1989) e Callicott (1993) são apontados
por Regan como os críticos mais importantes do conceito rada
como domínio tirânico. Para esses autores, opositores, pois,
da tradição perfeccionista judaica e aristotélica, rada ‘pode ser
entendida como a idéia (sic) da responsabilidade, zelo ou cuidado
humanos pela ordem criada que é boa independentemente da
presença humana’.
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Se os homens se colocassem no lugar dos animais que os servem
de alimento e pudessem escolher em que situação prefeririam morrer,
acredita-se que seria selecionada a primeira opção.
Entretanto, justificava-se a matança dos animais para alimento
humano sob o argumento de que não haveria injustiça quando se matasse
o gado para fornecer alimento a um animal mais nobre, no caso, o homem.
Além desse pensamento, legitimava-se a utilização dos animais –
como alimento para o ser humano ou utilitário – sob a perspectiva de
que o sofrimento animal é diferente do sofrimento do ser humano, pois
o animal não tem concepção do futuro e nada perdia por ser privado da
vida. Tal pensamento, infelizmente, ainda persiste atualmente.
Levai (2004, p. 6) coloca que:
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Em si, a natureza não tem nenhum valor intrínseco, e a destruição
de plantas e animais não pode configurar um pecado, a menos
que, através dessa destruição, façamos mal aos seres humanos.
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Como está escrito no Livro de Gênesis, o mundo foi criado em
benefício dos homens, pois teria Deus dado ao homem o domínio sobre o
mar, a terra e o ar; portanto, a natureza não tem qualquer valor intrínseco,
e a destruição de animais e plantas não se constitui pecado (BÍBLIA, 2011).
De acordo com a visão que o homem possui do mundo, busca-se
apenas o próprio interesse em consumir sem produzir, em retirar todos os
esforços dos animais, inclusive suas crias, submetendo-os à escravidão
que impede suas vidas de chegarem ao fim de forma natural.
Só para se ter ideia, segundo informações levantadas por Gruen
(1995), somente nos Estados Unidos da América, mais de 5 milhões
de animais são abatidos todos os anos para servirem de alimento
ao ser humano; no Brasil, não é diferente, como será analisado mais
profundamente no capítulo 4.
Em tais casos, a esmagadora maioria desses animais sequer vê a
luz do dia, pois permanece confinada em suas baias ou cercados, com
pouquíssimo espaço, até mesmo para exercer sua natural condição de
locomoção à espera da morte.
Entretanto, no ano de 1988, a Igreja Católica Apostólica Romana
iniciou um movimento admitindo que a questão dos movimentos
ecológicos começava a se infiltrar em seus ensinamentos.
Singer (2010, p. 285-286) destaca que o ponto de partida se deu
com a encíclica Sollicitudo Rei Socialis (Sobre a Solicitude Social), quando
o então Papa João Paulo II apela para o desenvolvimento humano incluir
“respeito pelos seres que fazem parte do mundo natural”.
Vale destacar a parte do texto da encíclica colacionado em Singer
(2010, p. 286):
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jainistas. Para os primeiros, não é possível a alguém tocar, afetar
ou matar, de fato, o ser ou o espírito de outro. Pode-se destruir
apenas o organismo, isto é, a ‘embalagem’ na qual cada ser se
configura individualmente ao encarnar-se no mundo vivo. O
sacrifício de um animal, para o hinduísta, não mata o que há de
essencial, o ser animado, apenas sua aparência exterior (FELIPE,
2007, p. 202-203, grifo no original).
1 Para maior compreensão, ler o texto La ética india de Purussottoma Bilimoria, publicado
na obra Ética Prática de Singer (1994, p.82).
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um sexto (pensar/consciência/espírito), o que os diferencia dos demais.
Os jainistas se assemelham aos hinduístas, pois sua religião e
filosofia têm a finalidade de ajudá-los a evoluir e a atingir o estado de
não violência (ahimsã), no qual o ser evoluído está despido de qualquer
intenção cruel para com seu semelhante ou outros animais. Como bem
ilustra Felipe (2007, p. 207, grifo no original):
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A TEORIA CARTESIANA
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ou o espírito, reservados somente aos seres humanos; nesse contexto,
despidos da alma, não há como os animais sentirem as mesmas dores
que os humanos.
Para Aristóteles, a alma intelectiva é o próprio espírito, outro gênero
de alma – a única separável do corpo –, que se divide em espírito sensitivo
(receptivo), o qual exerce a exerce a função de matéria (potência), e
espírito eficaz (ativo), a que se atribui a forma (ato).
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Felipe Bragantino
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seguinte forma: “1. Somente seres dotados de linguagem podem ter
consciência. 2. Animais não são dotados de linguagem. 3. Logo, animais
não têm consciência”.
Nos dias atuais, a teoria construída por Descartes contraria o senso
comum; porém, na época de sua construção, era tida como natural, dadas
as conjunturas do momento (ano 1.630 em diante), muito embora já
houvesse quem a contestasse, como coloca Müller (2010, p. 35):
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Ele argumenta que seres humanos têm mentes que são imateriais
e corpos que são materiais. Em contraste, os outros animais só
têm corpos; eles não têm mentes. Para Descartes, os animais
não são conscientes de nada. Coloque um cachorrinho no fogo.
Arranque a pele de uma foca viva. Nenhum deles sente nada. Os
animais do mundo são desprovidos de mentes da mesma forma
que o coelho da pilha Energizer.
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possuírem sistema nervoso semelhante ao dos seres humanos – e, assim,
serem morfologicamente semelhantes aos humanos –, sentem dores.
Tais argumentos são sustentados na observação do comportamento
animal quando em situações que lhes infligem dor; nesses momentos,
são observados sinais como contorções dos rostos, gemidos, ganidos e
outras formas de apelo.
Se for admitido que os animais, pela impossibilidade de expressar
sua vontade, não sentem dor ou, ao menos, não têm consciência dela,
também seria correto afirmar que os seres humanos impossibilitados de
expressar sua vontade não teriam consciência da dor. Nesse contexto,
como exemplifica Singer (2010, p. 29, grifo no original):
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e a abolição do sistema que permite ao ser humano a exploração dos
animais como produtos para seu bem-estar. Nesse contexto, insere-se o
debate sobre a consideração de um estatuto ético em relação aos animais.
Por ética, pode-se entender aquilo que diz respeito, no âmbito
moral, à crítica dos hábitos humanos, ou seja, trata-se de uma reflexão
sobre os valores sociais considerados nos âmbitos coletivo e individual.
A ética seria uma reflexão da influência que o código moral
estabelecido exerce sobre a subjetividade e acerca de como o homem lida
com essas prescrições de conduta, se aceitos de forma integral ou não
esses valores normativos e, dessa forma, até que ponto se dá o efetivo
valor a tais valores (RIBEIRO, 2011, site).
Surge a ética como um pensar crítico da conduta do ser humano
– entre aquilo que pode e deve ser feito e aquilo que deve ser evitado –,
cuja finalidade é estabelecer normas mínimas de comportamento, a fim
de evitar o caos.
O debate ético que ainda se faz atualmente, mesmo vivendo em
uma época em que existe um sistema normativo de conduta humana, é
imprescindível para impulsionar a evolução do pensamento.
Quando se ouve falar em direito dos animais, há variadas opiniões
sobre tal assunto mesmo entre especialistas, para os quais não existe um
consenso sobre o mais adequado.
Nesse hiato existente quanto à definição de como considerar a figura
dos animais não humanos, mesmo entre aqueles que biologicamente se
aproximam dos seres humanos, como os mamíferos, por exemplo, não se
consegue conceber uma ideia-centro de como considerá-los.
Do ponto de vista dos direitos morais, tem-se assentado hoje que
todo e qualquer ser humano tem garantido, por ser inerente a si mesmo,
como sujeitos da ação, os direitos morais, como a vida, a liberdade e o
corpo, como ensina Regan (2006).
Vale destacar:
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Frey defende a tese de que para um ser ter desejos é preciso que
seja capaz de crenças. Crer, em outras palavras, é querer. Querer
é desejar algo por saber que isso existe. Desejos, crenças, querer,
são eventos só possíveis a seres dotados de linguagem, pois
é na linguagem que tudo se armazena para a construção dos
desdobramentos necessários ao querer por crer na existência
de algo. Para Frey, os animais não têm interesses, embora
tenham necessidades, não tendo conhecimento de suas próprias
necessidades, não são capazes de crer em coisa alguma. Na falta
de capacidade de crer, nenhum animal é capaz de desejar. Em
não sendo capaz de desejar, não há interesse que um animal
possa cultivar.
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menos que puedan comprender el habla de otros. Según esta
concepción, el lenguaje está necesariamente vinculado a actitudes
proposicionales, como «deseos», «creencias» o «intenciones». Un
ser no puede excitarse o decepcionarse sin el lenguaje2.
2 Alguns filósofos, incluindo Donald Davidson em Inquiries into truth and interpretation
e R. G. Frey em Interests and rights, alegaram que os seres não podem ter pensamentos
a menos que possam entender a linguagem dos outros. Nessa visão, a linguagem
está necessariamente ligada a atitudes proposicionais como “desejos”, “crenças” ou
“intenções”. Uma pessoa não pode ser animada ou desapontada sem linguagem (tradução
do autor).
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Direito até hoje a fórmula elaborada por KANT informa a grande
maioria das conceituações jurídico-constitucionais da dignidade
da pessoa humana. A formulação kantiana coloca a idéia (sic)
de que o ser humano não pode ser empregado como simples
meio (ou seja, objeto) para a satisfação de qualquer vontade
alheia, mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo
(ou seja, sujeito) em qualquer relação, seja em face do Estado
seja em face de particulares. Isso se deve, em grande medida,
ao reconhecimento de um valor intrínseco a cada existência
humana, já que a fórmula de se tomar sempre o ser humano
como um fim em si mesmo está diretamente vinculada às
idéias (sic) de autonomia, de liberdade, de racionalidade e de
autodeterminação inerentes à condição humana.
3 Ética é sobre valores, sobre o bem e o mal, certo e errado: não podemos evitar ser
envolvidos nela, pois tudo o que fazemos – e não fazemos – sempre possibilita o objeto
da avaliação. Qualquer pensamento é envolvido, consciente ou inconscientemente, na
ética (tradução do autor).
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indagação sobre a natureza essencial dos direitos”.
Portanto, a interrupção da utilização dos animais para serviço do
ser humano depende da mudança do enfoque em relação a eles, ou seja,
garantir uma sobrevivência segura e sem medo ou sofrimento, além da
interferência governamental para cortar subsídios e incentivos que levem
à prática da crueldade com os animais.
OS ARGUMENTOS CONSERVACIONISTA,
BEM-ESTARISTA E ABOLICIONISTA
E continua:
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a serem defendidos ou preservados. Mais uma vez, resume Felipe (2007)
que o argumento de Frey se assemelha à teoria cartesiana, posto que,
enquanto Descartes negava direito aos animais não humanos em razão
da falta de linguagem, Frey os nega em razão da falta de interesses por
serem incapazes de crer.
Outros autores, como White e Cohen (apud FELIPE, 2007), por
exemplo, também defendem a não extensão aos animais não humanos
dos direitos morais, que entendem ser exclusivos dos seres humanos,
haja vista que, para eles, direitos são concedidos para serem usados,
usufruídos, exigidos, reivindicados; contudo, ao mesmo tempo,
exigem a contrapartida, definida como um dever, uma obrigação, uma
responsabilidade, ou seja, há necessidade da compreensão da troca.
White, parafraseado por Felipe (2007, p. 137-138), explica:
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Felipe Bragantino
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por exemplo.
Além das duas correntes apresentadas, há ainda uma terceira,
denominada bem-estarista.
Os bem-estaristas defendem o uso dos animais pelos seres humanos,
desde que não lhes sejam infligidos dor e sofrimento em nenhuma etapa de
suas vidas; com isso, busca-se compatibilizar a produção industrial com a
diminuição do sofrimento, legitimando o uso instrumental dos animais no
contexto da indústria, criando condições para que sua utilização continue
e se expanda mais e mais.
Os bem-estaristas têm se apropriado das argumentações de Singer
(2010), pois esse autor não exclui completamente a ideia de que, em
determinadas circunstâncias, possa ser justificado o uso de animais;
todavia, jamais concordaria com a posição dos bem-estaristas na utilização
dos animais como a indústria da carne o faz, por exemplo, tanto que em
sua obra, Animal Liberation, o autor tece duras críticas à forma de criação
intensiva de animais e sua exploração pela indústria de alimentos. Singer
baseia-se, ainda, na ideia de utilitarismo, conforme a qual, em qualquer
situação, devem ser considerados igualmente os interesses dos seres
diretamente envolvidos pela ação.
Como colocado por Felipe (2010, p. 12):
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Felipe Bragantino
vida animal.
Na definição de Araújo (2003), Peter Singer defende uma vertente
mais moderada, mais permeável à solução de simples salvaguarda do
bem-estar animal, mesmo que em detrimento de direitos individuais de
seres não humanos, mas aberta a um cômputo mecânico de interesses
em confronto, de acordo com critérios e ditames utilitaristas.
Aliás, o doutrinador anteriormente citado coloca em evidência
a existência de duas teses centrais que, na visão dele, dividiram-se
entre admissões indiretas e diretas de um estatuto moral próprio dos
animais não humanos; de acordo com o autor, as primeiras catalisam a
primazia dos valores antropocêntricos, e as segundas assentam-se num
descentramento da ética ou da bioética (ARAUJO, 2003).
Entre as teses indiretas, destaca-se a visão cristã, na qual se
reconhece uma hierarquia de seres vivos; no seu topo, estão os seres
humanos e, por conseguinte, os que estão em níveis abaixo devem ter
seus direitos relativizados em comparação aos que, conforme a hierarquia,
estão acima, sendo eles os únicos merecedores em si mesmos de uma
consideração moral (ARAUJO, 2003). Outro destaque das teses indiretas
considera a tese cartesiana, pela qual os seres não humanos são despidos
de alma, assim seu comportamento é puramente mecânico.
De outro norte, há a visão kantiana, conforme a qual, considerando
que só os seres humanos são capazes de libertar-se das paixões e dos
instintos, somente a eles é possível exigir um distanciamento crítico. Há,
ainda, a visão contratualista, na qual a moralidade e o direito só podem
ser considerados quando há seu livre exercício (ARAUJO, 2003).
Nas visões expostas, como destaca Araújo (2003), os interesses
dos animais não humanos não são diretamente relevantes, estão sempre
atrelados aos interesses dos seres humanos sobre eles, como o apego aos
animais de estimação (abalo pela perda), o proveito econômico do animal
ou a lesão eventualmente causada a outrem.
Contudo, uma vez que a ética não admite parcialidade, o que
vale para um deve valer para o outro. Nesse sentido, existem questões
importantes para o debate dos direitos dos animais: o direito moral e o
direito legal, que serão analisados mais adiante.
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LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA E
NORMATIVOS
INTERNOS
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sentido, as normas criadas defendem ou tendem a defender ou, ainda, a
realizar um interesse coletivo, de forma a criar ou manter condições de
caráter geral, indispensáveis para que cada indivíduo possa buscar seu
interesse particular (CRUZ, 2002).
Assim, a proteção dos direitos fundamentais, que são em verdade
certos bens inerentes a todo ser humano, surge como fator mais importante
no Direito Constitucional ao garantir a segurança do indivíduo frente ao
Poder do Estado ao mesmo tempo que limita, divide e responsabiliza o
Poder do Estado em relação ao indivíduo. Portanto, correspondem a uma
ideia de direito absoluto que só excepcionalmente podem sofrer mutações
e, ainda assim, somente por meio de lei de emenda à Constituição
(BONAVIDES, 2008).
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, os
Direitos Fundamentais estão previstos no Título II, mais especificamente
nos artigos 5 a 17 (BRASIL, 1988, site). Neles, estão apresentados os direitos
e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, da nacionalidade e
políticos, que além de regularem as relações entre os indivíduos, também
limitam e responsabilizam a atuação do Poder do Estado em relação ao
indivíduo. Entretanto, limitam-se os direitos e garantias fundamentais
previstos na Constituição à pessoa humana (BRASIL, 1988, site).
Além da liberdade ao indivíduo, os direitos e garantias fundamentais
garantem também a igualdade de tratamento, valendo a máxima de que
todos são iguais perante a lei, nos exatos dizeres de Cruz (2002, p. 136):
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complexa estrutura de direitos que tem na solidariedade humana o
elemento caracterizador.
Para Cruz (2002), é possível ainda distinguir quatro “gerações” de
direitos e garantias fundamentais constitucionalmente reconhecidas,
como destaca:
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Seria possível ir além, ou seja, abandonar definitivamente a
ideia de espécies, deixando de lado também o pensamento de que os
animais são bens suscetíveis de movimento próprio, desvinculando-os
da vontade humana e, dessa forma, salvaguardando sua natureza de ser
sensível, o que criaria um conjunto de regras jurídicas destinado à sua
tutela.
O que impede isso? A visão de mundo do homem? O medo de
que, com a mudança, o ser humano perderá a identidade? O medo de ter
consciência de quanto se está errado na forma de agir com os animais?
A defesa de um estatuto jurídico próprio aos animais poderia passar
pela mudança de paradigma a não mais utilizar o ser humano como
modelo para extensão de direitos aos animais. Nesse aspecto, tomando
como exemplo a ideia de constituir garantia legal aos animais, poderia
ser prevista na constituição a garantia das chamadas cinco liberdades
(nutricional, sanitária, ambiental, comportamental e psicológica) – termos
criados em 1967 pelo Conselho de Bem-Estar de Animais de Produção
(Farm Animal Welfare Council [FAWAC]) da Inglaterra, que estabeleceu
um conjunto de estados ideais chamados de as “cinco liberdades” dos
animais.
As cinco liberdades reconhecidas significam que os animais devem
permanecer livres de: 1) fome e sede, o que implica a provisão abundante
de água e alimentação adequada que permita manter sua saúde e vigor;
2) desconforto, o que implica a provisão de um ambiente apropriado
em termos de abrigo e área para um descanso confortável; 3) dores,
ferimentos e doenças, o que implica atenção veterinária preventiva
e rápido tratamento; 4) impedimentos a exercer seu comportamento
natural, o que requer espaços adequados à espécie e companhia
de animais da mesma espécie; 5) medo ou estresse, o que significa
condições de tratamento que evitem o sofrimento mental ou psíquico
(FLORIT, 2011).
Portanto, pensar na elaboração de normas jurídicas capazes
de defender os interesses dos animais, estabelecendo um mínimo de
dignidade na forma como são criados, passa pela análise das chamadas
cinco liberdades, quais sejam: nutricional, sanitária, ambiental,
comportamental e psicológica, como já descritas.
58
Felipe Bragantino
LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL E
INFRACONSTITUCIONAL
5 Domésticos, aqui, são considerados os animais que convivem com o ser humano
harmonicamente.
59
A promulgação da atual Constituição Federal, em 5 de outubro de
1988, renovou as esperanças voltadas à proteção dos animais,
mesmo porque um de seus principais dispositivos – aquele
que propõe proteger a fauna, evitar a extinção das espécies e
proibir a crueldade (art. 225 § 1º, inciso VII) – foi incorporado
ao texto da maioria das Constituições Estaduais. E também
inspirou a redação do artigo 32 da Lei n. 9.605/98 (Lei dos
Crimes Ambientais), que considera infração penal a conduta de
crueldade para com animais.
60
Felipe Bragantino
61
a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou
submetam os animais à crueldade” (BRASIL, 1988, site).
As Constituições Estaduais repetem o estabelecido pela Constituição
Federal; como exemplo, cita-se a Constituição Estadual de Santa Catarina
de 1989, que estabelece em seu artigo 182, inciso III, a tarefa do Estado,
na forma da lei, proteger a fauna e a flora, vedadas as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem extinção de espécie
ou submetam animais a tratamento cruel.
Apesar da inexistência de um princípio constitucional que estenda
aos animais a proteção à vida e à garantia como norma inerente do próprio,
há várias outras regras que, se não põem a salvo a vida dos animais, ao
menos garantem, ainda que em tese, o sofrimento desnecessário6.
Nessa esteira, a primeira norma legal de proteção à vida animal que
se tem conhecimento é o Decreto Federal nº 16.590, de 10 de setembro
de 1924 (Regulamento das Casas de Diversões Públicas), promulgado
pelo então Presidente da República Arthur da Silva Bernardes. O artigo
5º desse documento vedava a concessão de licença para corridas de
touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários, além de quaisquer
outras diversões desse gênero causadoras de sofrimento aos animais
(LEVAI, 2004).
Dez anos depois, em 10 de julho de 1934, o Governo Provisório de
Getúlio Vargas expediu o Decreto Federal nº 24.645, proibitivo da prática
de maus-tratos (LEVAI, 2004).
Alguns autores, entre os quais se destaca Levai (2004), sustentam
que a exceção feita ao superado sistema das penas previstas no Decreto
nº 24.645 – não foi revogado por nenhuma lei posterior a ele –, nem
expressa nem tacitamente, tem natureza de lei, de modo que somente
outra lei poderia inviabilizá-lo, o que até o momento não aconteceu.
Na mesma linha, Rodrigues (2008, p. 66, grifo no original) sustenta
que:
62
Felipe Bragantino
63
tratos, fere ou mutila animais silvestres, domésticos ou domesticados,
nativos ou exóticos. Entretanto, nenhuma legislação considera os animais
não humanos como detentores de direitos fundamentais tal como o
homem. Embora prevejam a proteção, o fazem pelo viés da vedação à
crueldade com os animais.
As legislações citadas, portanto, não aderem à ideia de que os animais
não humanos possam ter direito à vida, à liberdade, à inviolabilidade de
seus corpos. Como coloca Felipe (2010, p. 13):
64
Felipe Bragantino
essa é a razão pela qual Tom Regan entende que é crucial começar
por postular-se a existência de direitos subjectivos conexos
com um «valor intrínseco», objectivo, dos animais – pois isso
transferiria o ônus da justificação para quem quer que, com os
seus atos, procurasse infligir algum sofrimento em animais.
Assim, mais uma vez, pode-se observar que, como proclamam vários
pensadores da defesa animal, a legislação, quando elaborada e pensada
65
para a proteção dos animais, sempre se faz pelo viés antropocêntrico.
Como já colocou Rodrigues (2008, p. 72), “para o ordenamento
jurídico como ciência antropocêntrica, tanto os Animais como bens
socioambientais, quanto coisas ou semoventes, são tidos tão somente
como objetos de direito”.
Ainda atualmente os animais são vistos como coisas semoventes e
disponíveis, apesar de sua natureza jurídica ter sido modificada de coisas
sem dono para bens públicos. De qualquer forma, eles continuam a ser
vistos não como sujeitos de direito, mas sob a ótica do objeto de direito.
Para que essa situação mude, há a necessidade de a sociedade, com
novos hábitos e convicções, impor ao Direito o reconhecimento de que
os seres não humanos possuem interesses próprios e, por isso, merecem
ser respeitados.
Esse direito sempre existiu – como coloca Rodrigues (2008) – como
pensamento abstrato, tal como a ideia do Contrato Social que deu base à
Democracia. Assim coloca:
os seres vivos devem ter direitos legais assim como são os direitos
humanos. Na realidade, como observa o brilhante filósofo Michel
Serres, esse direito sempre existiu como uma idéia (sic) abstrata,
da mesma forma da idéia (sic) do contrato social que fundou a
Democracia. Ou seja, mesmo aqueles que não possuíam direitos
legais, como as mulheres, as crianças, os povos indígenas,
os escravos, em verdade os tinham abstratamente, mas só
passaram a tê-los lealmente com a evolução do sistema jurídico
(RODRIGUES, 2008, p. 107).
66
Felipe Bragantino
7 Art. 71. A natureza ou Mãe Terra, onde se reproduz e realiza a vida, tem o direito
de ver plenamente respeitada a sua existência e a manutenção e regeneração de seus
ciclos de vida, estrutura, funções e processos evolutivos. Toda pessoa, comunidade, vila
ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da
natureza. O Estado incentivará os indivíduos e a coletividade, para proteger a natureza
e promover o respeito a todos os elementos que compõem um ecossistema (tradução
do autor).
67
conceituada como Pacha Mama (Mãe Terra), reconhecendo
a natureza como sujeito de direitos onde a mesma possui,
conforme o texto legal, o direito a que se respeite integralmente
sua existência e manutenção.
A constituição em comento aprofunda e avança, incluindo também
como sujeitos de direitos os ciclos vitais (ou ecossistemas),
assim como preconizam o respeito a todos os seres vivos que
formam um ecossistema (Art.71). Tal feita insinua e obriga, com
hierarquia constitucional, a adoção de uma visão mais ampla
que sugere também a necessidade de proteção dos demais
seres vivos, expresso pelo termo ‘respeto a todos los elementos
que forman un ecosistema’ (Art.71). A norma constitucional,
ao deferir direitos a seres vivos que habitam ecossistemas,
definitivamente força o paradigma antropocêntrico indo ao
encontro inevitável aos princípios da ecologia profunda, o
Deep Ecology, desenvolvendo personalidade normativa sem
precedentes em nenhuma constituição no mundo.
68
Felipe Bragantino
Não é mais possível admitir que o Direito sirva apenas para reger
as relações entre os homens, embora essa seja a premissa maior como
regulamentação das relações jurídicas entre o homem versus o homem e
o homem versus o animal.
O Direito, atualmente, precisa considerar, para extensão de
garantias, não só os agentes morais, mas também os pacientes morais
(seres sencientes). Os animais, como pacientes morais, tanto merecem
atenção quanto os seres humanos (agentes morais), pois não parece
razoável deixar de estender direitos aos animais apenas porque não se
pode esperar reciprocidade deles.
Recentemente, a França reconheceu os animais como seres
sencientes, por meio da redação dada ao artigo 518-14 do Código Civil e,
embora seja cedo para avaliar as consequências efetivas dessa mudança,
parece promissora do ponto de vista jurídico a consideração estendida
aos animais.
Não há, pelo menos nesse momento, uma certeza da forma como
será efetivada essa nova garantia, ou seja, se ela apenas servirá de
mero apêndice sem efetividade, ou se será entendida como uma norma
proibitiva, no sentido da utilização dos animais como objeto no campo
afetivo ou no campo comercial. (ANDA, 2015, site).
De acordo com Felipe (2006, p. 55-56), em crítica à Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o documento somente protege a pessoa
humana, único sujeito de uma vida, considerando-a inviolável, o que
acarreta a ideia de superioridade do sujeito moral sobre todas as espécies,
à exceção da sua.
Na mesma obra, a autora conclui:
69
atribuída à responsabilidade pela preservação das condições da
vida no planeta, devendo ocupar-se disso, e não apenas de seu
próprio bem-estar. A paz, nesse sentido, será buscada também
para outras espécies vivas, desse modo, ao preservar os valores
morais construídos por sua razão, finalmente o ser humano
expande o círculo da moralidade para além das fronteiras da
espécie Homo sapiens. Essa é a única saída para redimensionar a
Declaração, tornando-a digna do momento ético alcançado pela
razoabilidade humana, o da consciência de deveres para com
todas as formas de vida (FELIPE, 2006, p. 81).
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71
No Brasil, destaca-se a criação de bovinos e bubalinos – o rebanho
brasileiro é considerado um dos maiores do mundo (senão o maior). Além
disso, o país se sobressai mundialmente também na criação de caprinos,
ovinos, aves, equídeos e suínos.
Analisando os normativos do MAPA, denota-se que a maior preocupação
faz referência à segurança e à higiene do produto destinado ao consumo e,
em menor grau, ao cuidado com os interesses dos animais destinados ao
abate, embora recomenda-se o abate humanitário (BRASIL, 2012).
Destaca-se a informação lançada no sítio eletrônico do MAPA quanto
à sanidade animal:
72
Felipe Bragantino
73
Também fica claro que os animais são tratados como mera
propriedade de seus donos, sem qualquer consideração por suas vidas,
na análise do artigo 1º, da Lei nº 569, de 21 de dezembro de 1948,
publicada no Diário Oficial da União, de 23 de dezembro de 1948, Seção
1, página 18.256, a qual estabelece medidas de defesa sanitária animal e
dá outras providências (BRASIL, 1948, site).
Estabelece o referido artigo 1º:
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Felipe Bragantino
75
Tabela 1 – Estabelecimentos de abate do Médio Vale do Itajaí
segundo tipo de insensibilização
Uso de insensibilização
Sem Total de
Município Choque
Marreta Outra insensibilização estabelecimentos
elétrico
Apiúna 1 0 0 0 1
Ascurra 0 0 0 0 0
Benedito Novo 1 0 0 0 1
Blumenau 1 1 0 3 4*
Botuverá 0 0 0 0 0
Brusque 0 0 0 0 0
Doutor Pedrinho 1 0 1 0 1*
Gaspar 1 0 0 1 2
Guabiruba 0 0 0 0 0
Indaial 6 2 1 2 10*
Pomerode 4 4 0 1 9
Presidente Getúlio 3 1 0 0 3
Rio dos Cedros 4 3 1 0 7*
Rodeio 0 0 0 0 0
Timbó 1 1 0 1 3
TOTAL 23 12 3 8 41
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77
No estado de Santa Catarina, a responsável pelo controle de doenças e
do bem-estar animal é a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de
Santa Catarina (CIDASC). Esse órgão, por meio de portarias, organiza a circulação
de animais e produtos deles derivados. Todavia, as normativas publicadas
espelham a preocupação com o animal em razão de seu valor econômico, por
assim dizer, além, é claro, em função do impacto na saúde humana.
Esses aspectos tornam-se evidentes quando se analisam algumas
portarias, como a Portaria SAR nº 75, de 12 de dezembro de 2011, que
estabelece regras de controle da doença chamada anemia infecciosa
equina, exigindo exames para a circulação e a criação de animais no estado
e determinando o abate dos animais infectados, bem como a forma de
indenização de seus proprietários (SANTA CATARINA, 2011).
Além da portaria citada, existem outras que impõem controle sobre a
entrada, circulação, abate e processamento de animais, como a Portaria SAR
nº 17, de 28 de outubro de 2010, conforme a qual o Serviço de Inspeção
Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal no estado de Santa
Catarina será executado de acordo com o Regulamento da Inspeção Industrial
e Sanitária de Produtos de Origem Animal no estado de Santa Catarina,
aprovado pelo Decreto nº 3.748, de 12 de julho de 1993, alterado pelo
Decreto nº 2.740, de 11 de novembro de 2009 (SANTA CATARINA, 2010).
Por intermédio do Decreto nº 3.748, de 12 de julho de 1993, artigo
2º, “ficam sujeitos à inspeção e reinspeção, previstas neste Regulamento,
os de abate, o pescado, o leite, o ovo, o mel, a cera de abelha e seus
subprodutos derivados” (SANTA CATARINA, 1993).
O parágrafo 1º do artigo 2º, do Decreto nº 3.748, de 12 de julho de
1993, especifica a que se refere a inspeção e qual sua motivação, como
se pode observar pela transcrição a seguir.
78
Felipe Bragantino
animal (SANTA CATARINA, 1993). Isso fica claro quando são estudados os
artigos 420 e 616 que assim prescrevem:
ARTIGO 420:
Considera-se impróprio para o consumo o pescado:
I - de aspecto repugnante, mutilado, traumatizado ou deformado;
II - que apresente coloração, cheiro ou sabor anormais;
III - portador de lesões ou doenças microbianas que possam
prejudicar a saúde do consumidor:
IV - que apresente infestação muscular maciça por parasitas, que
possam prejudicar ou não a saúde do consumidor;
V - tratado por anti-séticos ou conservadores não aprovados pela
S.A.A.
VI - provenientes de águas contaminadas ou poluídas;
VII - procedente de pesca realizada em desacordo com a legislação
vigente ou recolhido já morto, salvo quando capturado em
operações de pesca:
VIII - em mau estado de conservação;
IX - quando não se enquadrar nos limites físicos e químicos
fixados para o pescado fresco.
Parágrafo único:
O pescado nas condições deste artigo deve ser condenado e
transformado em subprodutos não comestíveis.
ARTIGO 616:
É considerado impróprio para o consumo o queijo que:
I - contenha substâncias conservadoras não permitidas ou
nocivas à saúde;
II - apresente, disseminados na massa e na crosta parasitos,
detritos ou sujicidades;
III - esteja contaminado por germes patogênicos;
IV - apresente caracteres organolépticos anormais, de qualquer
natureza, que o tornem desagradáveis;
V - contenha substância não aprovadas pela S.A.A.
79
CATARINA, 1993, site).
Além da legislação apontada, o estado de Santa Catarina estabelece,
por meio de lei estadual, a obrigatoriedade de transporte adequado dos
animais, devendo os veículos serem limpos e desinfetados, bem como
observados os critérios de espaço mínimo requerido para cada espécie
(artigos 23º e 24º da Lei Estadual nº 10.366/1997); entretanto, a realidade
encontrada é diferente (SANTA CATARINA, 1997). Na maioria das vezes,
os veículos utilizados para transporte de animais não observam o espaço
mínimo ou a higienização requerida para evitar a proliferação de doenças.
Ainda se ressalva que a própria legislação não estabelece o espaço mínimo
para cada espécie a ser respeitado.
Em que pese a legislação do estado de Santa Catarina também
afirme que a proteção se dá muito mais em relação à qualidade do produto
final de origem animal do que à vida do animal em si, há que se destacar
a Lei Estadual nº 12.854, de 22 de dezembro de 2003, que instituiu o
Código Estadual de Proteção aos Animais (SANTA CATARINA, 2003). No
referido Estatuto, fica claro o avanço em relação à proteção animal, como
se depreende da leitura do artigo 2º:
Art. 2º É vedado:
I - agredir fisicamente os animais silvestres, domésticos
ou domesticados, nativos ou exóticos, sujeitando-os a qualquer
tipo de experiência capaz de causar-lhes sofrimento ou dano, ou
que, de alguma forma, provoque condições inaceitáveis para sua
existência;
II - manter animais em local desprovido de asseio, ou que
os prive de espaço, ar e luminosidade suficientes;
III - obrigar animais a trabalhos extenuantes ou para cuja
execução seja necessária uma força superior à que possuem;
IV - exercer a venda ambulante de animais para menores
desacompanhados por responsável legal;
V - expor animais para qualquer finalidade em quaisquer
eventos agropecuários não autorizados previamente pela
Secretaria de Estado da Agricultura e Política Rural; e
VI - criar animais em lixeiras, lixões e aterros sanitários
públicos ou privados (SANTA CATARINA, 2003, site).
80
Felipe Bragantino
81
pesquisas científicas e médicas, exceto por requerimento de autoridade
consular para realização de estudos científico ou médico); 27 a 34 (tipo,
forma e valores de penalidades pelas infrações) (SANTA CATARINA, 2003).
Como visto, a legislação estadual também tenta traçar uma linha
para demarcar o uso de animais sem sofrimento, quer seja para locomoção,
experimento ou mesmo alimentação; todavia, ainda assim, a lei considera
o animal apenas como objeto de apropriação, conforme se vê nos artigos
9º (permissão da tração animal em veículos ou instrumentos agrícolas
e industriais), 13 (permissão para criação de animais em confinamento
e uso de tecnologia visando economia de espaço e trabalho e rápido
ganho de peso), 15 (prescrição para utilização de métodos científicos e
modernos de insensibilização no abate de animais) e 17 (permissão da
prática da vivissecção) (SANTA CATARINA, 2003).
82
Felipe Bragantino
83
2010, que institui o Código do Meio Ambiente do Município de Blumenau,
e dá outras providências, quando se refere aos direitos dos animais,
apenas condiciona a aplicação de multa a quem os maltratar, porém se
nota que nenhuma preocupação há em relação à sua condição de ser
senciente (BLUMENAU, 2010a).
Tal conceito resta claro da leitura dos dispositivos legais colacionados
a seguir, extraídos do corpo da Lei Complementar nº 747/2010.
84
Felipe Bragantino
Art. 47 ...
XI - lançar ou atirar aves ou animais mortos, lixo, detritos, papéis,
invólucros, ciscos, pontas de cigarro, gomas de mascar ou
quaisquer resíduos sólidos ou líquidos, ainda que biodegradáveis
em curto prazo, nas vias públicas, praças, jardins ou quaisquer
áreas ou logradouros públicos (BLUMENAU, 2010d, site, grifo no
original).
Art. 58 (...)
Parágrafo Único - A proibição contida neste artigo não se aplica
quando a criação desses animais se realizar em locais afastados
dos centros urbanos, obedecidas as seguintes disposições:
I - os animais deverão permanecer em confinamento:
II - os pisos das instalações deverão ser impermeabilizados;
III - os dejetos provenientes das lavagens das instalações
deverão ser canalizados para fossas sépticas exclusivas, vedada
a sua condução até as fossas em valas ou em canalizações a céu
aberto (BLUMENAU, 2010d, site, grifo no original).
85
Apesar dos poucos avanços na legislação quanto à proteção da
integridade dos animais, é necessário destacar que Blumenau proíbe
a utilização de animais em espetáculos de circo. Essa vedação está
estampada no artigo 1º da Lei nº 6.422/2004, que assim estabelece: “Art.
1º. É proibida, em toda a extensão territorial do Município de Blumenau,
a utilização, sob qualquer forma, em espetáculos de circo, de animais
selvagens, domésticos, nativos ou exóticos” (BLUMENAU, 2004, site).
Ademais, a Lei Complementar nº 530, de 27 de julho de 2005, que
baliza as ações do Poder Público Municipal, objetivando o controle das
populações animais, a prevenção e o controle de zoonoses e o equilíbrio
do meio ambiente, no município de Blumenau, em seu artigo 2º, conceitua,
nos incisos IX e X, a questão dos maus-tratos e das condições inadequadas
na tentativa de minimizar o sofrimento animal, conforme se infere pela
seguinte transcrição:
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Felipe Bragantino
87
A NOVA
NATUREZA
JURÍDICA DOS
ANIMAIS E SUAS
IMPLICAÇÕES
PARA O
DESENVOL-
VIMENTO
88
Felipe Bragantino
O AGRONEGÓCIO
89
fórmula tecnocrata ‘manejo & produção’, sem nenhum compromisso com
o chamado ‘bem-estar animal’”.
Todos os dias, no Brasil, os grandes matadouros chegam a abater
1.500 bovinos e 1.500 suínos e sacrificam até 300 mil frangos (LEVAI,
2004). Somente no segundo trimestre de 2012, foram abatidas 7,625
milhões bovinos, representando aumento de 5,6% em relação ao trimestre
imediatamente anterior e de 7,9% em relação ao mesmo período de 2011,
conforme relatório de produção animal do segundo semestre de 2012
(IBGE, 2012).
O mesmo relatório destaca ainda:
90
Felipe Bragantino
91
uma doutrina capaz de assegurar a vida deles quando sua produção se
destina ao consumo humano.
Há que se ponderar ainda que eventual mudança no status jurídico
dos animais não humanos implicará a busca de modos alternativos de
sustentabilidade e desenvolvimento humanos, posto que não será mais
palatável a utilização dos animais como força motriz, seja ela econômica
– indústria alimentícia ou vestuária – ou força de trabalho escravo.
Há várias consequências no tipo de criação intensiva desenvolvida e
aplicada atualmente nas grandes fazendas e abatedouros, que vão desde
o aparecimento de doenças nos animais e falta de espaços adequados
para a movimentação deles até a forma, na maioria das vezes, cruel como
são abatidos.
Como coloca Singer (2010, p. X), “os europeus conheceram a
indústria do agronegócio com o surgimento da doença da vaca louca e
da aftosa”. Ele ainda afirma que, a partir desses eventos, essa sociedade
percebeu que os bovinos (primeiro) não viviam em pastos como até então
se pensava e (segundo) não eram alimentados só por vegetais, posto que,
grande parte das vezes, é ingerida ração com proteína animal, ou seja, é
alimento processado com restos de outros animais.
Tal dieta é necessária para a obtenção de rápido crescimento e
desenvolvimento no animal, porém estudos científicos comprovam que
os efeitos colaterais podem ser desastrosos tanto para os animais que
se alimentam desse tipo de ração quanto para os seres humanos que
consomem a carne de animais contaminados.
As fazendas de criação de animais para o corte, como são chamados,
em nada lembram aquela cena bucólica dos livros infantis, em que a vaca
pode passear livremente pelo campo e se alimentar de capim, enquanto
o porco chafurda na lama, e a galinha cisca no quintal. Na verdade,
atualmente, as grandes corporações tomaram conta da criação de animais
para o fornecimento de alimentos aos seres humanos, visando, por óbvio,
ao lucro máximo com essa atividade.
A busca pela lucratividade máxima, com o menor desperdício de
insumos e o maior aproveitamento dos animais, faz com que eles sejam
tratados em verdadeiras linhas de desmontagens. Como mesmo escreve
Singer (2010, p. X), “o que se viu foi uma prova incontestável de que a
moderna produção pecuária trata os animais como coisas, apenas meios
para seus fins. É como se existissem somente para isso”.
92
Felipe Bragantino
Chuahy (2009, p. 35) destaca que “só nos Estados Unidos, quatro
corporações controlam 79% da indústria da carne, e esse tipo de fazenda
mata 100 milhões de mamíferos e cinco bilhões de aves por ano”.
Exemplifica Singer (2010, p. 142):
93
Em arremate, esclarece Chuahy (2009, p. 43): “Enquanto o Brasil
aumenta a produção desse tipo de produto, outros países como Inglaterra,
Áustria, Alemanha e Israel, já se conscientizaram do método cruel utilizado
para a produção de foie gras e baniram a prática” (Grifo no original).
Sabe-se que a vida dos animais, quando submetidos a esse tipo
de criação, é miserável do nascimento à morte. Como descreve Chuahy
(2009, p. 36):
94
Felipe Bragantino
A situação das galinhas poedeiras, por sua vez, não é melhor do que
a dos frangos de corte, pois elas são amontoadas em gaiolas metálicas,
nas quais cabem cinco ou seis aves, enfileiradas umas sobre as outras,
de modo que não há espaço físico para movimentar-se. Como exemplifica
Singer (2010, p. 161):
95
Do lado do ser humano, as fazendas-fábricas veem seus
empregados como mera fonte de renda, sem dispensar maiores
cuidados à saúde. Para se ter noção de quanto o trabalho nas fazendas-
fábricas faz mal ao homem, Singer (2010) esclarece que um estudo
realizado pelo Departamento de Medicina Comunitária da Universidade
de Melbourne, na Austrália, identificou que 70% dos trabalhadores
em criadouros de galinhas apresentavam irritação nos olhos, quase
30% apesentavam tosse regular e cerca de 15% apresentavam asma e
bronquite crônicas.
Pesquisa realizada no mês de agosto de 2004, na região do Médio
Vale do Itajaí, mapeou 17 abatedouros municipais e 13 estaduais, todos
autodenominando-se empresas familiares (MORSCH e FLORIT, 2009).
Sobre os trabalhadores, a mesma pesquisa constatou que 54 atuam nos
estabelecimentos municipais e 89 nos estaduais, verificando-se que os
abatedouros estaduais, com menor número de empresas, contribuem para
o maior índice de empregos, o que corresponde a uma cadeia produtiva
de carne mais intensiva (MORSCH e FLORIT, 2009). Essa constatação
demonstra que, mesmo em uma região cujo foco econômico-industrial
principal não é o agronegócio, esse tipo de cultura se mostra enraizado.
Por fim, vale destacar a conclusão da referida pesquisa na relação entre o
ser humano e sua profissão, a qual aponta para um “dilema entre o ato de
matar e o sofrimento do animal e de alguns envolvidos neste processo”
(MORSCH e FLORIT, 2009).
Denota-se, assim, que o ambiente em que são criados os animais
não faz mal apenas a eles, mas também a todo o conjunto à sua volta,
afetando desde o meio ambiente até o próprio ser humano, que, além
da saúde debilitada, possui baixos salários e fica exposto a acidentes de
trabalho.
Chuahy (2009) esclarece que, nos Estados Unidos, o número de
acidentes de trabalho envolvendo o setor agropecuário é três vezes maior
do que os que se referem aos trabalhadores de outros ramos da indústria.
Estudo realizado por Padovani (2008, site) esclarece a situação no
Brasil:
96
Felipe Bragantino
97
A rotina dos trabalhadores da indústria de abate de aves, suínos e
bovinos envolve inúmeros riscos em razão do manuseio de instrumentos
cortantes, da pressão por altíssima produtividade e, não raro, de jornadas
exaustivas em ambientes frios e insalubres.
Produzida pelo Repórter Brasil (2012), a investigação Moendo
Gente mostra os maiores problemas da indústria dos frigoríficos, um dos
principais setores do agronegócio nacional. Atualmente, empregam-se
mais de 750 mil pessoas e, em 2011, foi exportado o equivalente a 15,64
bilhões de dólares em carnes.
A referida investigação apurou que, na unidade da Brasil Foods
de Rio Verde-Goiás-GO, segundo levantamento do Ministério Público do
Trabalho (MPT), cerca de 90 mil pedidos de afastamento foram registrados
entre janeiro de 2009 e setembro de 2011. As licenças relacionadas
a injúrias osteomusculares (chamadas distúrbios osteomusculares
relacionados ao trabalho [DORT]) foram as mais recorrentes – uma
média altíssima de 28 atestados por dia ou 842 por mês. Já na unidade
da JBS de Barretos-São Paulo, 14% dos aproximadamente 1.850
funcionários estão permanentemente afastados do trabalho em razão
de acidentes e doenças ocupacionais; consequentemente, sobrevivem
com o benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Só no primeiro semestre de 2011, registraram-se 496 pedidos de
afastamento temporário (com menos de 15 dias) por conta de distúrbios
psíquicos e problemas esquelético-musculares. Em 2011, a Seara
(empresa do grupo Marfrig) foi condenada a pagar uma indenização
de 14,6 milhões de reais por danos morais coletivos causados aos
trabalhadores na unidade de Forquilhinha (SC). A Justiça determinou
também que a empresa conceda pausas para recuperação térmica de
20 minutos a cada 1 hora e 40 minutos de trabalho. A mesma sentença
obriga ainda o frigorífico a liberar a ida dos trabalhadores ao banheiro
sem a necessidade de autorização prévia de um superior (REPÓRTER
BRASIL, 2012).
Segundo Paiva (1999, p. 29 apud PANDOVANI, 2008, site), “a
Indústria de Alimentos no país representa um segmento importante da
produção industrial brasileira”, com faturamento anual de praticamente
184,6 bilhões de reais, cerca de 9,7% do Produto Interno Bruto (PIB)
nacional conforme se vê na Tabela 2.
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MERCADOS DE ALIMENTAÇÃO ALTERNATIVOS
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101
origem animal, excluindo inclusive o consumo de leite, seus derivados e
ovos, substituindo-os por alimentos à base de vegetais, como o leite e a
carne de soja, tofu etc.
Além da soja, Felipe (2012b) escreve que há várias outras formas
de se obter leite, chamado de leite vegano. Destaca-se, então, a produção
de leite à base de sementes, por exemplo, de abóbora, alpiste, amêndoa,
amendoim, entre outros produtos de origem vegetal possíveis de utilização.
Essa preparação pode ser produzida em casa, em menos de 10 minutos.
Embora seja certo pensar que a consideração pelos animais não
humanos deva passar necessariamente pela modificação dos hábitos
alimentares, é claro também que isso não ocorrerá do dia para noite,
como se diz.
Recomenda-se, nesses casos, que aquela pessoa que se sentiu
tocada pela situação dos animais e que não concorda com a sua utilização
como alimento substitua os alimentos de origem animal pelos de origem
vegetal, mas não de uma só vez, e sim aos poucos (SINGER, 2010).
Além do mercado alternativo de alimentação, também serve de
pressão o boicote à utilização de artigos de vestuário que tenham como
base peles e couros de animais, por exemplo. Atualmente, é muito fácil
a substituição de sapatos de couro por outros fabricados com material
sintético, assim também cintos, casacos, bancos de automóveis e toda
uma gama de produtos que não precisam ser fabricados utilizando-se
parte de animais.
Nesse sentido, tem-se a substituição das velas, que antes eram
fabricadas com sebo e atualmente utilizam material sintético em sua
composição, bem como sabonetes, perfumes e outros produtos que
aderiram à tática. Portanto, a utilização de animais para benefício humano,
quer como alimento quer como vestuário ou outra forma qualquer, é antes
de tudo um luxo cruel.
Como coloca Chuahy (2009, p. 193):
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MODO ALTERNATIVO DE CRIAÇÃO ANIMAL
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com Gudynas (1999, p. 101). O autor destaca ainda: “Cuestiones como
la preservación de especies silvestres, los efectos de la contaminación, o
los problemas ambientales globales, son motivo de atención de políticos,
académicos y ciudadanos”10.
Embora haja discussões e estudos que tentam apontar soluções
para a problemática ambiental frente ao desenvolvimento, não parece
haver uma resposta unânime a essas questões.
Talvez a dificuldade de se encontrar uma via para atender o interesse
focado no desenvolvimento em equilíbrio com o meio ambiente esteja
na forma como se construiu o conceito de natureza, principalmente na
América Latina, pois se observa uma visão europeizada da natureza,
como aponta Gudynas (1999, p. 102):
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– apesar de sua importância – dado que há regiões, principalmente no
Brasil, que têm todo o seu planejamento voltado e centrado na criação de
animais, bem como o processamento de produtos de origem animal.
Nesse ponto, Florit (2011, p. 3) destaca:
14 O índice per capita é utilizado por Grava e Florit (2012) para apontar a densidade
de animais sencientes abatidos em um território específico com relação ao tamanho
da população humana desse mesmo local. Tal índice se diferencia dos cálculos que
expressam as toneladas de carne ou o peso das carcaças, mas que não quantificam os
seres abatidos. Assim, o índice de abate per capita de um território pode ser considerado
um indicador do grau de especismo do modelo de desenvolvimento predominante no
território.
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Total de Índice de
População
animais % % abate per
humana
abatidos capita
Brasil 5.050.109.405 100 190.755.799 100 26,47
Santa
908.143.597 17,98 6.248.436 3,27 145,33
Catarina
109
compromete todo o meio ambiente, incluindo a saúde dos seres humanos.
Felipe (2012a) considera minuciosamente a indústria do leite
(produto tratado pelo senso comum como sinônimo de pureza e suavidade),
verificando alguns dados estarrecedores por trás da sua produção que
exemplificam a lógica da indústria de produtos de origem animal como
um todo. Como observa a autora (2012a, p. 74):
110
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111
Se nada for feito, estima-se que, em 50 anos, a região se
transformará em uma grande plantação de soja e em pasto para o gado
ou, ainda, em um grande deserto.
A par disso, um recurso substancialmente afetado pela criação
industrial de animais é a água. Chuahy (2009, p. 170) explica que
a produção de carne e laticínios necessita da utilização de grande
quantidade de água. Exemplifica que “são necessários 550 litros de água
para produzir farinha suficiente para fazer um pão, o equivalente a uma
fração dos 7 mil litros utilizados para produzir um bife de 100 gramas”.
Em relação à utilização de água na produção de leite, Felipe (2012a, p.
77) coloca que:
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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reduzir ou limitar a ideia de que a esses seres não podem ser estendidos
os mesmos direitos morais que têm os seres humanos.
Negar a extensão desses direitos aos animais com base na falta de
comunicação com o homem é admitir, ainda que involuntariamente, que
seres humanos despidos da capacidade de comunicação e compreensão
podem ser classificados da mesma forma como se rotulam os animais.
Apesar de todo o avanço no debate que envolve a concessão de
direito aos animais, poucas mudanças efetivamente ocorreram. Reflexo
disso é a forma de olhar o mundo e o que há nele. Essa concepção está
estampada na legislação que ampara a conduta do ser humano em relação
aos animais e à natureza.
Atualmente, pode-se dizer que o debate está centrado em três
correntes: a conservadora, a bem-estarista e a abolicionista. Como
foi explicado ao longo da obra, é possível apontar que a corrente
conservadora, em linhas gerais, defende que somente os seres humanos
possuem interesses a serem resguardados ou respeitados e, embora
reconheça as necessidades dos animais, nega seus interesses, porque
eles não têm conhecimento disso.
De outro lado, a corrente bem-estarista, defendida por Peter Singer,
luta pelo princípio da igual consideração de interesses entre humanos e
animais. O problema dessa corrente parece ser estar ligado ao fato de
que ela não deixa de considerar a utilização dos animais para satisfação
do ser humano, embora a restrinja. Parece ser justamente esse o ponto
fraco dessa corrente, posto que a indústria se apropriou da corrente do
bem-estar e a moldou a seus interesses particulares, propagando a ideia
de que a utilização dos animais se justificaria desde que eles não sofram
em vida e tenham uma morte digna ou, como chamam, humanitária.
Se for considerado que os animais não podem mais ser utilizados
como fonte de recursos para a satisfação do ser humano, conclui-se nessa
análise que a corrente a se observar é a abolicionista.
Essa corrente, defendida por Tom Regan, considera cada ser como
sujeito de sua própria vida e, portanto, vê os animais sob a perspectiva
de sujeitos de uma vida, e não há apenas a relativização dos interesses
envolvidos.
Da análise da legislação vigente no Brasil, é possível concluir que,
apesar da proteção dada aos animais, mediante o § 1º, inciso VII, do artigo
225 da Constituição Federal, pouco se avançou efetivamente na proteção
116
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à vida dos animais, dado que ainda são vistos como objetos de direitos,
ou seja, passíveis de apropriação pelo ser humano (BRASIL, 1988).
Pelo estudo empreendido até aqui, é possível constatar que a
legislação brasileira incorpora a ideia de bem-estar animal, no sentido de
diminuir apenas alguns aspectos do sofrimento animal – de forma pouco
eficiente.
Este livro não possui o escopo de apresentar uma solução pronta
e acabada para essa questão, mas tenta trazer novos elementos ao
debate. Como visto, pode ser que a mudança de perspectiva em relação
ao estabelecimento de um estatuto jurídico aos animais esteja na forma
como são utilizados os paradigmas para considerá-lo.
Nesse sentido, seria possível acrescentar à discussão a criação de
uma nova categoria jurídica, no intuito de diferenciar o sujeito de direito,
o objeto de direito e os seres sencientes.
Denota-se, ainda, pelo que foi exposto na presente obra, que a
concessão de direitos aos animais encontra-se em dualidade de posições
com predomínio de fracos consensos que vão do reconhecimento absoluto
à recusa pura e simples do conceito de direito dos animais, confrontando-
se paixões extremas e dificilmente conciliáveis.
Na verdade, os interesses dos animais somente são levados em
consideração quando não se opõem ou se chocam com os interesses dos
seres humanos; quando verificada essa colisão de interesses, mesmo
quando for contrária à vida do animal humano e ao capricho do homem,
prevalece o interesse humano.
Deve-se considerar moralmente os animais não apenas quando em
jogo os sentimentos pessoais, como nos casos em que o homem se depara
com uma situação que envolva um animal de estimação, mas muito mais
em razão de que eles têm interesses próprios e não é justificável a sua
exclusão da esfera da consideração moral.
A eventual modificação da natureza jurídica dos animais ou a
elaboração de um estatuto jurídico que garanta aos animais a integridade
de sua vida, por exemplo, afetará de modo impactante os modelos de
desenvolvimento centrados na pecuária.
Nesse sentido, o Brasil, que atualmente é um dos maiores criadores
mundiais de animais e possui forte indústria centrada no beneficiamento
e processamento dos produtos com essa origem, deverá buscar modos
alternativos de desenvolvimento que possibilitem a convivência
117
harmoniosa entre os seres humanos e os não humanos, no sentido de
respeitar cada um pelo valor de sua vida.
Como colocado por Singer (2010), apesar da enorme distância a
percorrer e do lento caminhar, há alguns avanços significativos; como
exemplo, citam-se a proibição de baias de confinamento na Grã-Bretanha
e a eliminação das baterias de gaiolas da Suíça e na Holanda. Na Suécia,
explica, os avanços são maiores, tanto que destaca a proibição das:
118
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REFERÊNCIAS
119
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