Abjeção e desejo: uma aquele invisibilizado nas políticas e discursos etnografia travesti sobre o oficiais: quem são os consumidores de sexo modelo preventivo de aids. vendido pelas travestis? Como se relacionam com as travestis? São adeptos aos métodos PELÚCIO, Larissa. oficiais de prevenção à DST/aids?” (p. 18). Larissa Pelúcio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Paulo: Annablume-Fapesp, 2009. Segundo sua página pessoal no site4 do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em que atua Comecemos pelo começo do livro. Não como pesquisadora colaboradora, suas pela “apresentação”. Nem pelo começo que pesquisas abordam temas como sexualidade, antecede o próprio texto ou se confunde com saúde, corporalidade, travestis e gênero. ele: a trajetória acadêmica da pesquisadora. Mas Atualmente é professora de Antropologia na pelo começo que se apresenta antes de qualquer Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita outra coisa aos/às leitores/as: a capa. A capa do Filho (campus Bauru, Departamento de Ciências livro Abjeção e desejo: uma etnografia travesti Humanas, Faculdade de Arquitetura, Artes e sobre o modelo preventivo de aids,1 de Larissa Comunicação). Pelúcio, publicado em 2009, objeto desta O livro Abjeção e desejo é resultado da sua resenha, traz em destaque a imagem de uma tese defendida em 1997, na UFSCar. Nas primeiras travesti, de corpo escultural, blusa levantada, seios páginas do livro a autora revela que a perspectiva desnudos (quase) expostos e um sorriso que teórica inicial, que sugeria um “olhar quase parece traduzir a ambiguidade de uma epidemiológico da relação entre travestis e aids” existência marcada pela abjeção e pelo desejo. (p. 26), foi se transformando com a “experiência A travesti se chama Verônica Rios. etnográfica”. Desse modo, questões ligadas à Ao contrário de outras obras que analisam sexualidade e às relações de gênero, ausentes o “universo travesti”2 no Brasil e optam por uma no início da pesquisa, passaram a assumir lugar capa mais “comportada”, mais ambígua ou que central na sua interpretação. Também assumem invisibiliza o sujeito travesti, a capa do livro de destaque na obra da autora as reflexões do Larissa Pelúcio não se limita apenas a informar o filósofo francês Michel Foucault, principalmente título e o subtítulo da sua pesquisa. A pesquisadora o conceito de “dispositivo”, e da filósofa parece, desde o começo, querer provocar os/ americana Judith Butler, de quem Pelúcio toma as leitores/as. Assim como fizeram algumas peças emprestado o conceito de “abjeção”, que dá criadas por travestis na campanha governamental título ao livro. “Tenho direito de ser quem eu sou”,3 o livro da Durante o trabalho de campo, a pesquisa- pesquisadora, começando pela capa, parece dora conviveu com múltiplos sujeitos (técnicas convidar os/as leitores/as a olharem, a olharem de saúde, travestis, agentes de prevenção, de novo e verem além do preconceito. Verônica travestis que se prostituem, michês – homens que Rios sorri um sorriso de Monalisa que parece afirmar: se prostituem –, T-Lovers – homens que gostam “Tenho direito de ser quem eu sou”. de ter sexo com travesti), transitou por diferentes Todavia, não exageremos nas aproxima- lugares e vivenciou diferentes momentos de ções entre o trabalho de Larissa Pelúcio e os sociabilidade (agência pública de saúde, discursos das campanhas preventivas oficiais, pois espaços noturnos do mercado do sexo, pensões o objetivo de sua pesquisa é justamente analisar das cafetinas, Dia T – encontro semanal realizado de modo crítico o modelo oficial preventivo para pelos T-Lovers em algumas cidades do país –, DST/aids direcionado para as travestis que se boates e festividades). Seu livro apresenta um rico prostituem em São Paulo e como esse discurso é mosaico, multifacetado e nem sempre (re)significado pelas próprias travestis. Quais os harmonioso, das relações estabelecidas nesses limites, os avanços e os desafios enfrentados pelas territórios. campanhas preventivas? E ainda, como observa Larissa Pelúcio nos mostra que o alvo Berenice Bento no prefácio da obra, Larissa preferencial das políticas preventivas ainda tem
sido os “desviantes”, sejam eles/elas travestis, gays, sustenta a heteronormatividade compulsória, prostitutas ou usuários de droga. Como afirma a mas os próprios clientes, que, mesmo afirmando autora, “em todos os casos, o que se quer regular reiteradamente a sua heterossexualidade, dese- são as práticas sexuais que escapam à proposta jada ou desconstruída muitas vezes pelas próprias do sexo monogâmico, procriativo, heterossexual, travestis, também estariam marcados pelo não comercial, autorizado” (p. 34). Entretanto, os estigma e pela abjeção. corpos escapam às tentativas de classificação, O trabalho de Larissa Pelúcio apresenta, de controle e de sujeição. contribuindo com suas próprias novidades, certo Ao mesmo tempo que reconhece o esforço repertório temático também presente em outros dos/das profissionais da saúde em acompanhar estudos brasileiros sobre as travestis:5 o mundo da os novos paradigmas das políticas públicas de prostituição, as modificações corporais, as rela- prevenção, alicerçadas em conceitos como ções de gênero, as políticas de prevenção, a “protagonismo político”, “educação entre pares” relação com os clientes e “maridos” etc. Insere- e “prevenção dialogada”, a autora reconhece, se, desse modo, ao lado de estudos antropoló- inspirada pelas reflexões de Michel Foucault e gicos que nos últimos anos têm se preocupado pela apropriação que Néstor Perlongher faz do em pesquisar as experiências das travestis conceito foucaultiano de “dispositivo”, que essas brasileiras. políticas atuam como dispositivos de poder. Esses trabalhos demonstram o pioneirismo Na obra não se encontra nem elogio ao das Ciências Sociais nas discussões de temas modelo preventivo para DST/aids, adotado pela como as homossexualidades, as travestilidades, agência pública DST/aids Cidade de São Paulo, obrigando-nos a fazer uma incômoda pergunta: nem crítica que desconsidere as transformações por que os/as historiadores/as têm se dedicado e os avanços das ações preventivas nesse tão timidamente às questões sobre as homos- campo, mas um olhar problematizador para as sexualidades e, principalmente, sobre as travestili- políticas de prevenção e as (re)significações dades? Qualquer familiaridade com a pergunta dessas políticas pelas travestis. feita nos anos 1980 por Maria Odila Leite da Silva Como lembra a pesquisadora, as travestis – “O que tornava difícil a história das mulheres não são um problema de saúde pública, mas, eram a ausência de fontes ou a invisibilidade via aids, acabam sendo tratadas como tal. O ideológica dessas?” –, lembrada por Joana Maria que o discurso preventivo parece não considerar, Pedro,6 não é mera coincidência. continua a autora, é que o problema das travestis Notas é o estigma – e não a aids. Assim, as medidas de 1 Opto por usar a sigla “aids” em minúsculo em respeito prevenção dirigidas a elas não se efetivam ao modo como a autora a escreve em seu texto. Larissa porque o entorno em que elas vivem permanece Pelúcio (Richard MISKOLCI e Larissa PELÚCIO, 2009, p. o mesmo. O que as coloca em permanente risco 127) lembra que “o uso em minúsculas se deve [também] não é uma doença que pode levar até 10 anos a uma perspectiva crítica em relação ao pânico sexual para se manifestar, mas a dor do estigma que as criado em torno da aids”. expulsa de casa, fecha a porta da escola e, 2 Larissa Pelúcio toma de empréstimo o conceito “universo consequentemente, limita as possibilidades no trans” de Marcos Benedetti. De acordo com esses/as mercado de trabalho, conclui Larissa Pelúcio (p. pesquisadores/as, essa expressão categoriza, “num 132). conjunto identificável, os espaços de convívio das travestis, Quanto à apresentação do universo dos onde são tecidas as relações sociais que compõem o clientes das travestis, mesmo que a autora tenha meio em que vivem, bem como o seu sistema material e trazido para o centro de sua discussão o universo moral” (p. 33). dos T-Lovers, “admiradores das travestis”, ele- 3 Campanha governamental de promoção dos direitos gendo-os como “referentes quando se pensa na humanos e de prevenção à aids, lançada em 2010, cujo material de sensibilização e de divulgação (cartazes, questão do apagamento da clientela” – aborda- vídeos, folders, toques de celular) foi criado pelas próprias gem que certamente diferencia o seu trabalho travestis. Nos cartazes estampados com fotos de travestis, de outros estudos sobre o “universo trans” –, outros sobressaem os dizeres: “Olhe, olhe de novo, e veja além clientes, menos “organizados”, e suas práticas do preconceito”. Disponível no site <http://www.aids.gov.br/ sexuais e afetivas continuam na clandestinidade. travestis>. Assim, a abjeção não marcaria apenas a 4 UNICAMP, 2011. existência das travestis, mas também a dos/das 5 Principalmente, Marcos Renato BENEDETTI, 2005; Don seus/suas clientes. Não apenas as travestis teriam KULICK, 2008; Hélio SILVA, 1993; e Alexandre Fleming VALE, sua (a)normalidade certificada pelo sistema 2005. binário dos gêneros (masculino e feminino) que 6 Joana Maria PEDRO, 2005.
Referências ta Latinoamericana, Rio de Janeiro: CLAM- BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e UERJ, n. 1, p. 25-157, 2009. o gênero das travestis. Rio de Janeiro: PEDRO, Joana Maria. “Traduzindo o debate: o uso Garamond Universitária, 2005. da categoria gênero na pesquisa histórica”. BRASIL. Ministério da Saúde. Campanha: Sou História, São Paulo: Unesp, v. 24, n. 1, p. 77- travesti. Tenho direito de ser quem eu sou. 98, 2005. 2010. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/ PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: travestis>. Acesso em: 7 ago. 2011. prostituição viril em São Paulo. São Paulo: BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los Brasiliense, 1987. límites materiales y discursivos del “sexo”. SILVA, Hélio. Travesti: a invenção do feminino. Buenos Aires, Barcelona, México: Paidós, 2002. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: UNICAMP. Larissa Pelúcio. Disponível em: <http:/ a vontade de saber. 11. ed. Rio de Janeiro: /www.pagu.unicamp.br/node/17>. Acesso Graal, 1993. em: 7 ago. 2011. KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero VALE, Alexandre Fleming. O vôo da beleza: e cultura no Brasil. Tradução de César Gordon. travestilidade e devir minoritário. Tese Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. (Doutorado em Sociologia) – Programa de MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. “A prevenção Pós-Graduação em Sociologia, Universidade do desvio: o dispositivo da aids e a repatologi- Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. zação das sexualidades dissidentes”. In: ______. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revis- Elias Ferreira Veras Universidade Federal de Santa Catarina