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Índice

AULA 1 Scruton, Como Ser um Conservador


O que é conservadorismo?
A Incoerência Intelectual do Conservadorismo
Por que não sou conservador
Os Filósofos São Ignorantes no que Tange a Politica?
Conservadores Contra o Capitalismo de Livre Mercado
Por Que Os Conservadores Religiosos Deveriam Defender Direitos Seculares?

AULA 2 Mises, Liberalismo


O que é Liberalismo Clássico?
Vamos erradicar a pobreza, e não destruir a riqueza
Por Que as Nações Fracassam

AULA 3 Boaz, O Manifesto Libertário

AULA 4 Scruton, As Vantagens do Pessimismo

AULA 5 Dalrymple, Em Defesa do Preconceito

AULA 6 Rand, A Virtude do Egoísmo

AULA 7 Hazlitt, Economia Numa Unica Lição

AULA 8 Friedman, Liberdade para Escolher


A fórmula para um mundo mais rico? Liberdade, justiça e virtudes burguesas

AULA 1
COMO SER UM CONSERVADOR
O conservadorismo ou conservantismo é uma filosofia política e social que defende a
manutenção das instituições sociais tradicionais no contexto da cultura e da civilização. Por
algumas definições, os conservadores procuraram várias vezes preservar as instituições,
incluindo a religião, a monarquia, o governo parlamentar, os direitos de propriedade e a
hierarquia social, enfatizando a estabilidade e a continuidade, enquanto os elementos mais
extremos chamados reacionários se opõem ao modernismo e buscam um retorno à "maneira
como as coisas eram".
O primeiro uso estabelecido do termo em um contexto político originou-se com François-René
de Chateaubriand em 1818, durante o período de restauração de Bourbon que procurou reverter
as políticas da Revolução Francesa. O termo, historicamente associado com a política de direita,
desde então tem sido usado para descrever uma ampla gama de pontos de vista.
Não há um único conjunto de políticas que sejam universalmente consideradas como
conservadoras, porque o significado de conservadorismo depende do que é considerado
tradicional em um determinado lugar e tempo. Assim, conservadores de diferentes partes do
mundo - cada um mantendo suas respectivas tradições - podem discordar em uma ampla gama de
questões. Edmund Burke, um político do século 18 que se opôs à Revolução Francesa, mas
apoiou a Revolução Americana, é creditado como um dos principais teóricos do
conservadorismo na Grã-Bretanha na década de 1790.
De acordo com Quintin Hogg, Presidente do Partido Conservador britânico (Partido
Conservador) em 1959, "o conservadorismo não é tanto uma filosofia mas uma atitude, uma
força constante, desempenhando uma função intemporal no desenvolvimento de uma sociedade
livre e correspondente a uma exigência profunda e permanente da própria natureza humana".
O conservadorismo britânico deriva largamente de Edmund Burke e da sua obra "Reflexões
sobre a revolução na França" (1790), onde este defende que as constituições não devem ser o
produto da razão abstracta (como as francesas) mas sim de uma lenta evolução histórica (como a
constituição inglesa), considerando a sociedade como sendo não apenas um contrato entre os
vivos, "mas entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer".
Dentro destes princípios gerais - defesa da tradição, das particularidades nacionais, regionais e
locais, dos corpos intermédios e da autoridade, contra o colectivismo, o individualismo e o
racionalismo político - , o conservadorismo tem assumido diferentes variantes de país para país,
até pela sua rejeição dos modelos universalistas. Frequentemente, é feita uma contraposição entre
o conservadorismo anglo-saxônico, mais liberal, e o conservadorismo continental, mais
autoritário e estatizante.

ARTIGO I

O que é conservadorismo?
Por Russell Kirk [*]
Uma amiga minha, a quem chamaremos Srta. Worth, teve uma conversa com uma vizinha –
digamos, Sra. Williams – que, um dia antes, havia vendido um velho imóvel, há muito tempo na
família, para que fosse demolido e virasse uma loja de carros usados. A Sra. Williams sentia uma
certa culpa; mas, disse ela resolutamente, “não se pode parar o progresso”. Ela espantou-se com
a resposta da Srta. Worth, que foi a seguinte: “geralmente não se pode, mas pode-se tentar”. A
Srta. Worth não acreditava que o Progresso, com P maiúsculo, fosse algo bom em si mesmo. O
progresso pode ser bom ou ruim, isso depende em que sentido se está progredindo. É bem
possível, e isso ocorre frequentemente, que se progrida em direção a um precipício. O
conservador inteligente, seja ele jovem ou velho, crê que todos nós devemos obedecer à lei
universal da mudança; ainda assim temos todos muitas vezes o poder de escolher quais
mudanças aceitar e quais mudanças rejeitar. O conservador é uma pessoa que se empenha em
conservar o que há de melhor em nossas tradições e instituições, conciliando esse melhor com as
mudanças inevitáveis que ocorrem com o passar do tempo. “Conservar” significa “guardar”. Veja
a maldição de Cupido:
Aqueles que trocam velhos amores por novos amores,
Queiram os deuses que troquem para algo pior.

Um conservador não é, por definição, alguém estúpido ou egoísta. Em vez disso, é alguém que
acredita que há em nossas vidas algo que vale a pena guardar. Na verdade, conservadorismo é
uma palavra com um significado antigo e honrado – mas um significado quase esquecido pelos
americanos até tempos recentes. Abrahan Lincoln queria ser reconhecido como um conservador.
“O que é conservadorismo?” ele disse. “Não é preferir o antigo e já provado ao novo e não
provado?” É isto sim; e é também um corpo de crenças éticas e sociais. Os liberais, por um bom
tempo, vêm perambulando pela esquerda, na direção de seus primos radicais, e o liberalismo, em
anos recentes, veio a denotar uma preferência pelo Estado centralizado e a impessoalidade
lúgubre do Admirável Mundo Novo de Huxley ou o 1984 de Orwell. Homens e mulheres que se
percebem como não sendo liberais[1] nem radicais começam a se perguntar em que afinal
acreditam, e como querem chamar a si mesmos. O sistema de ideias oposto ao liberalismo e ao
radicalismo é a filosofia política conservadora.
O que é conservadorismo?
O conservadorismo moderno ganhou forma nos primórdios da Revolução Francesa, quando
homens visionários na Europa e na América perceberam que, se a Humanidade deve conservar
os elementos da civilização que tornam a vida digna de ser vivida, algum corpo coerente de
ideias deveria resistir ao impulso destruidor de revolucionários fanáticos.[2] Na Inglaterra o
fundador do conservadorismo verdadeiro foi Edmund Burke, cujas Reflexões Sobre a Revolução
na França virou a maré da opinião britânica e teve uma influência incalculável sobre os líderes da
sociedade no Continente e na América. Nos recém-estabelecidos Estados Unidos os Pais da
República, conservadores por educação e por experiência prática, estavam decididos a criar
constituições que guiariam sua posteridade pelos difíceis caminhos da justiça e da liberdade.
Nossa Guerra da Independência Americana não foi uma revolução real, mas antes uma separação
da Inglaterra; os estadistas de Massachusetts e Virgínia não desejavam pôr a sociedade de cabeça
pra baixo. Nos escritos que deixaram, especialmente na obra de John Adams, Alexander
Hamilton e James Madison, encontramos um conservadorismo sóbrio, testado e aprovado,
fundamentado no entendimento da História e da natureza humana. A Constituição elaborada
pelos líderes daquela geração provou ser o dispositivo conservador mais bem sucedido da
História.
Os líderes conservadores, desde Burke e Adams, têm aderido a certas ideias gerais que podemos
descrever brevemente por meio de definições. Os conservadores desconfiam daquilo que Burke
chamou de “abstrações” – ou seja, dogmas políticos absolutos divorciados da experiência prática
e das circunstâncias particulares. Não obstante, creem eles na existência de certas verdades
permanentes que governam a conduta da sociedade humana. Talvez os principais postulados que
caracterizaram o pensamento conservador americano sejam estes:
1) Os homens e as nações são governados por leis morais; e essas leis têm origem numa
sabedoria mais que humana – na justiça divina. Os problemas políticos são, no fundo, problemas
religiosos e morais. O estadista sábio tenta apreender a lei moral e se conduz de acordo com ela.
Temos todos uma dívida moral com nossos antepassados, que nos confiaram a guarda da
civilização, e um dever moral para com as gerações que virão. Esta dívida nos foi ordenada por
Deus. Não temos, portanto, o direito de interferir despudoradamente na natureza humana ou no
delicado tecido de nossa ordem social civil.
2) As marcas de uma alta civilização são a variedade e a diversidade. Uniformidade e igualdade
absoluta são a morte de qualquer real vigor e liberdade na existência. Os conservadores resistem
com força resoluta à uniformidade de uma tirania ou oligarquia, e à uniformidade daquilo que
Tocqueville chamou o “despotismo democrático”.
3) “Justiça” significa que cada homem e cada mulher tem direito àquilo que lhe é próprio – às
coisas mais adequadas à sua natureza, à recompensa pela sua habilidade e integridade, à sua
propriedade e à sua personalidade. A sociedade civilizada demanda que todos os homens e
mulheres tenham direitos iguais perante a Lei, mas essa igualdade não deve se estender à
igualdade de condições: ou seja, a sociedade é uma grande parceria em que todos têm os mesmos
direitos – mas não as mesmas coisas. Uma sociedade justa requer lideranças sólidas,
remunerações diferentes para diferentes habilidades, e um senso de respeito e dever.
4) Propriedade e liberdade são inseparáveis; nivelamento econômico não é progresso econômico.
Os conservadores valorizam a propriedade como algo em si mesma, é claro; mas eles a
valorizam ainda mais pelo fato de que sem ela todos estariam à mercê de um governo onipotente.
5) O poder é cheio de perigos; assim, o bom Estado é aquele em que existem pesos e contrapesos
e é restringido por constituições e costumes sólidos. Tanto quanto possível, o poder político deve
se manter nas mãos de cidadãos comuns e instituições locais. A centralização é geralmente um
sinal de decadência social.
6) O passado é um grande repositório de sabedoria; como Burke disse, “o indivíduo é tolo, mas a
espécie é sábia”. Os conservadores acreditam que precisamos nos guiar pelas tradições morais,
pela experiência social e pelo grande e complexo corpo de conhecimento transmitido pelos
nossos antepassados. O conservador vai além das apressadas opiniões de momento e recorre ao
que Chesterton chamou “a democracia dos mortos” – ou seja, às opiniões abalizadas dos homens
e mulheres sábios que viveram antes de nós, à experiência da raça. Em resumo, os conservadores
sabem que não nascemos ontem.
7) A sociedade moderna necessita urgentemente ser uma comunidade verdadeira: e uma
comunidade verdadeira é um mundo inteiramente diferente do coletivismo. Comunidades reais
são governadas pelo amor e pela caridade, e não pela compulsão. Por meio de igrejas,
associações de voluntários, governos locais e uma variedade de instituições, os conservadores
buscam manter a comunidade sadia. Conservadores não são egoístas, mas sim dotados de
espírito público. Eles sabem que o coletivismo é o fim da comunidade real, pois esse substitui a
variedade pela uniformidade e a cooperação espontânea pela força.
8) Nas relações internacionais, os conservadores americanos sentem que seu país deve ser um
exemplo para o mundo, mas não deve tentar refazer o mundo à sua imagem. É uma lei, tanto da
política quanto da biologia, que todo ser vivo ama acima de tudo – mesmo acima da própria vida
– sua personalidade distinta, que o destaca de todas as outras coisas. Os conservadores não
aspiram à dominação mundial nem sentem prazer na ideia de um mundo reduzido a um único
padrão de governo e civilização.
9) Os conservadores sabem que os homens e mulheres não são perfectíveis, muito menos as
instituições políticas. Não podemos criar um paraíso na Terra, mas podemos torná-la um inferno.
Somos todos criaturas em que se misturam o bem e o mal; e, se as boas instituições são
negligenciadas e os antigos princípios morais ignorados, o mal em nós tende a predominar.
Sendo assim, os conservadores desconfiam de todos os esquemas utópicos. Eles não creem que
se possa resolver todos os problemas da humanidade pelo poder do direito positivo. Podemos
esperar tornar o mundo tolerável, mas não há como torná-lo perfeito. Se o progresso foi
alcançado, ele o foi por meio do prudente reconhecimento das limitações da natureza humana.
10) Os conservadores estão convencidos de que “mudança” e “melhoramento” não são
sinônimos: inovações morais e políticas podem ser tanto destrutivas como benéficas; e se tais
inovações são empreendidas num espírito de arrogância e entusiasmo, provavelmente será algo
desastroso. De tempos em tempos todas as instituições humanas alteram-se em certa medida, já
que a mudança lenta é o meio de se conservar a sociedade assim como é o meio de se renovar o
corpo humano. Mas os conservadores americanos buscam reconciliar o crescimento e as
alterações essenciais á nossa vida com a força de nossas tradições morais e sociais. Como Lord
Falkland, eles dizem: “Quando não é necessário mudar, é necessário não mudar”. Eles sabem que
homens e mulheres sentem mais contentamento quando vivem num mundo estável de valores
perenes.
O conservadorismo então não é simplesmente coisa de pessoas que têm dinheiro ou influência;
não é simplesmente defender status ou privilégios. A maioria dos conservadores não têm nem
dinheiro e nem poder. Mas todos, mesmo o mais humilde deles, obtém grandes benefícios de
nossa República. Eles possuem liberdade, segurança pessoal e para seus lares, igual proteção da
lei, direito aos frutos de seus empreendimentos, e a oportunidade fazer o melhor que são capazes
de fazer. Têm o direito à personalidade em vida, e o direito à consolação na morte. Os princípios
conservadores abrigam as esperanças de todos na sociedade. E o conservadorismo é um conceito
social importante para todos que desejam justiça equitativa, liberdade pessoal e todos os bons e
velhos hábitos da humanidade. O conservadorismo não é apenas uma defesa do “capitalismo”
(“capitalismo”, de fato, é uma palavra cunhada por Karl Marx, concebida desde o início para
insinuar que tudo que os conservadores defendem é a vasta acumulação de capital privado). Mas
os conservadores verdadeiros defendem sim a propriedade privada e uma economia livre, tanto
por elas mesmas quanto por serem meios para grandes fins.
Esses grandes fins são mais que econômicos e mais que políticos. Envolvem a dignidade
humana, a personalidade humana, a felicidade humana. Envolvem inclusive a relação entre Deus
e o Homem. Já o coletivismo radical de nossa época é violentamente hostil a qualquer outra
autoridade: o radicalismo moderno detesta a fé religiosa, a virtude pessoal, a personalidade
tradicional, e uma vida de satisfações simples. Tudo o que vale a pena conservar está ameaçado
em nossa geração. A mera oposição negativa e não raciocinada ao atual estado de coisas,
agarrando-se em desespero ao que ainda possuímos, não será suficiente nesta época. O
conservadorismo instintivo deve ser reforçado por um conservadorismo do pensamento e da
imaginação.
[*] Russell Kirk. “What is Conservatism?”. The Imaginative Conservative, 4 de Dezembro de
2013.
Tradução: Felipe Alves

Revisão: Cássia H.
[1] Na Europa e América do Norte, liberalism (em inglês) equivale às esquerdas, ao socialismo.
Designa os promotores de governos intervencionistas e limitantes, de mercados interditados, isto
é, limitados, e de propriedade coletiva ou estatal.
Em nossa América Latina, todavia, “liberalismo” pode significar exatamente o contrário,
sobretudo quando seguida do adjetivo “clássico”: designa os partidários de governos limitados a
umas poucas funções próprias muito específicas quanto ao livre mercado e à propriedade
privada.
Nos países anglo-saxões houve, não faz muito tempo, uma saudável resistência ao socialismo; e
por isso os socialistas evitavam se chamar pelo nome, e passaram a se autodenominar
“progressistas” (progressives), desde o século 19. Porém, no século 20 foram desmascarados, e
mudaram novamente para “liberais” (liberals). E como as esquerdas haviam se apropriado do
conceito de “liberalismo”, desde os anos 1950 Hayek recomendou aos verdadeiros liberais o uso
da expressão composta “liberalismo clássico” (classical liberalism).
Fonte: http://bit.ly/1SlTWQf
[2] É importante fazer a distinção entre conservadorismo, reacionarismo, imobilismo, e
progressismo (em sua forma aguda, que é o revolucionarismo, que quer destruir tudo e começar
do zero).
O imobilismo [social ou político] é uma posição que não aceita qualquer espécie de mudança,
que pretende que a situação atual se mantenha sem qualquer modificação. As pessoas vítimas do
imobilismo negam o tempo — e reagem a qualquer mudança, mesmo para melhor, mesmo
inócua. Os imobilistas, por exemplo, recebem desfavoravelmente transformações perfeitamente
legítimas ou inovações benéficas.
O reacionarismo nega o tempo de maneira mais radical do que o imobilismo, pois pretende que
ele reflua. Condena as transformações ocorridas numa determinada época recente, como se a
História pudesse ser vítima de condenação, como se a História não fosse, pela própria condição
humana, essencialmente ambígua, isto é, havendo, sempre, bem e mal em todas as situações
históricas.
Opõe-se ao conservadorismo o espírito progressista, isto é, daqueles que acreditam, ao contrário,
que a História é sempre um campo em que se realiza, automaticamente, um progresso continuado
e onde, pois, o novo, é sempre bom, ao contrário dos imobilistas e reacionários que admitem que
o novo é sempre mau, e do verdadeiro conservador que acha que o novo poderá ser bom, se não
houver uma ruptura com a tradição.
O conservador reconhece o tempo — mas como sendo passado e futuro. Não nega o passado,
como o progressista — os tempos pretéritos não foram pavorosos nem ignorantes. Não nega o
futuro, como os reacionários: o dia de amanhã poderá trazer grandes alegrias se soubermos
trabalhar.
Fonte: TORRES, J. C. de O. Os construtores do Império. São Paulo: Ed. Nacional, 1968.

ARTIGO II

A Incoerência Intelectual do Conservadorismo


por Hans-Hermann Hoppe
O conservadorismo moderno, nos Estados Unidos e na Europa, é confuso e distorcido. Sob a
influência da democracia representativa e com a transformação dos EUA e da Europa em
democracias de massa a partir da Primeira Guerra Mundial, o conservadorismo foi transformado
de uma força ideológica anti-igualitarista, aristocrática, anti-estado em um movimento de
estatistas culturalmente conservadores: a direita dos socialistas e social-democratas.
A maioria dos auto-declarados conservadores contemporâneos estão preocupados, como
deveriam estar, com o declínio das famílias, divórcio, bastardia, perda de autoridade,
multiculturalismo, desintegração social, libertinagem sexual e crime. Todos esses fenômenos que
eles consideram anomalias e desvios da ordem natural, ou o que podemos chamar de
normalidade.
No entanto, a maioria dos conservadores contemporâneos (pelo menos a maioria dos porta-vozes
do establishment conservador) ou não reconhecem que seu objetivo de restaurar a normalidade
requer as mais drásticas, até mesmo revolucionárias, mudanças sociais anti-estado ou (se eles
sabem disso) eles estão engajados em trair a agenda cultural conservadora a partir de seu interior
para promover uma agenda inteiramente diferente.
Que isso é em grande parte verdadeiro para os assim chamados neoconservadores não requer
maiores explicações aqui. Decerto, no que concerne seus líderes, suspeita-se que a maioria deles
é do último tipo. Eles não estão verdadeiramente preocupados com questões culturais, mas
reconhecem que devem jogar a carta do conservadorismo cultural de modo a não perder poder e
promover seu objetivo inteiramente diferente de social-democracia global. O caráter
fundamentalmente estatista do neoconservadorismo americano está melhor resumido por uma
afirmação de um de seus principais defensores intelectuais, Irving Kristol:
“O princípio básico por trás de um estado de bem-estar social conservador deve ser um simples:
sempre que possível, as pessoas devem ser permitidas a manter seu próprio dinheiro – ao invés
de tê-lo transferido (por meio de impostos ao estado) – sob a condição de que elas o ponham em
certos usos definidos.” [Two Cheers for Capitalism, New York: Basic Books, 1978, p. 119].
Essa visão é essencialmente idêntica àquela dos modernos social-democratas europeus pós-
marxistas. Assim, o Partido Social-Democrata Alemão (SPD), por exemplo, no seu programa de
Godesberg de 1959, adotou como seu lema central o slogan “tanto mercado quanto possível,
tanto estado quanto necessário.”
Um segundo, um pouco mais velho porém hoje em dia indistinguível ramo do conservadorismo
americano contemporâneo é representado pelo novo (pós-Segunda Guerra Mundial) lançado e
promovido, com ajuda da CIA, por William Buckley e sua National Review. Enquanto o velho
(pré-Segunda Guerra Mundial) conservadorismo americano foi caracterizado por visões de
políticas externas decididamente anti-intervencionistas, a marca registrada do novo
conservadorismo Buckley tem sido seu militarismo fanático e política externa intervencionista.
Em um artigo, “A Young Republican’s View”, publicado em Commonweal em 25 de janeiro de
1952, três anos antes do lançamento da sua National Review, Buckley sintetizou o que se
tornaria o novo credo conservador: em vista da ameaça posta pela União Soviética, “nós [novos
conservadores] temos de aceitar governo grande durante todo o período – pois nem uma guerra
ofensiva nem um defensiva pode ser travada … exceto por meio do instrumento de uma
burocracia totalitária dentro de nossas margens.”
Conservadores, escreveu Buckley, tinham o dever de promover “as extensas e produtivas leis
fiscais que são necessárias para amparar uma vigorosa política externa anti-comunista”, bem
como “grandes exércitos e forças aéreas, energia atômica, inteligência central, escritórios de
guerra e a concomitante centralização de poder em Washington.”
Não surpreendentemente, desde o colapso da União Soviética no final dos anos 1980, nada nessa
filosofia mudou essencialmente. Hoje, a continuação e preservação do estado de bem-estar social
americano é justificado e promovido por novos e neo-conservadores semelhantes com referência
a outros perigos e inimigos estrangeiros: China, o fundamentalismo islâmico, Saddan Hussein,
“estados trapaceiros” e a ameaça de “terrorismo global”.
No entanto, é também verdade que muitos conservadores são genuinamente preocupados com a
desintegração ou disfunção familiar e com o declínio cultural. Estou pensando aqui em particular
no conservadorismo representado por Patrick Buchanan e seu movimento. O conservadorismo de
Buchanan não é de modo algum diferente daquele do establishment conservador do partido
Republicano como ele e seus seguidores imaginam-se. Num aspecto decisivo seu tipo de
conservadorismo está em total acordo com o conservadorismo do establishment: ambos são
estatistas. Eles diferem no que exatamente deve ser feito para se restaurar a normalidade nos
EUA, mas eles concordam que isso deve ser feito pelo estado. Não há um traço de antiestatismo
baseado em princípios em nenhum dos dois.
Deixe-me ilustrar citando Samuel Fracis, que foi um dos principais teóricos e estrategistas do
movimento buchananista. Depois de deplorar a propaganda “anti-branco” e “anti-Ocidente”,
“secularismo militante, egoísmo aquisitivo, globalismo econômico e político, inundação
demográfica e centralismo estatal irrestrito,” ele expõe um novo espírito de “America First”, o
qual “implica não só colocar os interesses nacionais acima dos das outras nações e abstrações
como ‘liderança mundial’, ‘harmonia global’ e a ‘Nova Ordem Mundial’, mas também dar
prioridade à nação acima da gratificação individual e dos interesses subnacionais.”
Como ele propõe consertar o problema da degeneração moral e do declínio cultural? Não há
reconhecimento de que a ordem natural na educação significa que o estado não tem nada com
isso. Educação é inteiramente um assunto familiar e deve ser produzida e distribuída em arranjos
cooperativos dentro do âmbito da economia de mercado.
Ademais, não há reconhecimento de que a degeneração moral e o declínio cultural possuem
causas mais profundas e que não podem simplesmente ser curadas por mudanças curriculares
impostas pelo estado ou exortações e declamações. Ao contrário, Francis propõe que a virada
cultural – a restauração da normalidade – pode ser atingida sem uma mudança fundamental no
estado de bem-estar social moderno. Decerto, Buchanan e seus ideólogos defendem
explicitamente as três instituições nucleares do estado de bem-estar social: seguridade social,
assistência médica pública e seguro desemprego. Eles querem até expandir as responsabilidades
“sociais” do estado atribuindo-lhe a tarefa de “proteger”, usando restrições de importação e
exportação nacionais, os trabalhos americanos, especialmente em setores de preocupação
nacional, e “isolar os salários dos trabalhadores dos EUA dos trabalhadores estrangeiros que
devem trabalhar recebendo $ 1 por hora ou menos.”
De fato, buchananistas admitem livremente que são estatistas. Eles detestam e ridicularizam o
capitalismo, o laissez-faire, a livre troca, o livre mercado, a riqueza, as elites e a nobreza; e eles
advogam um novo conservadorismo populista – de fato proletário – que amalgama
conservadorismos social e cultural e uma economia socialista. Assim, Francis continua,
“enquanto a esquerda poderia ganhar americanos de classe média por meio de suas medidas
econômicas, ela os perde por seu radicalismo social e cultural, e enquanto a direita poderia atrair
os americanos de classe média por meio de apelos à lei e à ordem e pela defesa da normalidade
sexual, da moral convencional, da religião e de instituições sociais tradicionais e invocações de
nacionalismo e patriotismo, ela os perde quanto pratica suas velhas fórmulas econômicas
burguesas.”
Por isso, é necessário combinar as políticas econômicas da esquerda e o nacionalismo e
conservadorismo cultural da direita para criar “uma nova identidade sintetizando os interesses
econômicos e as lealdades cultural-nacionais da classe média proletária num movimento político
separado e unificado.”[2] Por razões óbvias, essa doutrina não é nomeada desta forma, mas
existe um termo para esse tipo de conservadorismo: chama-se social-nacionalismo ou nacional-
socialismo.
(Quanto à maioria dos líderes da chamada direita cristã e da “maioria moral”, eles desejam
simplesmente a substituição da elite social-democrata vigente a cargo da educação nacional por
outra, i.e., eles mesmos. “Desde Burke”, Robert Nisbet criticou essa postura, “tem sido um
preceito conservador, e um princípio sociológico desde Auguste Comte, que a maneira mais
segura de enfraquecer a família, ou qualquer grupo social vital, é o governo assumindo, e em
seguindo monopolizando, as funções históricas da família.” Em contrate, grande parte da Direita
Americana contemporânea “está menos interessada em imunidades burkeanas contra o poder do
governo do que em pôr o máximo de poder governamental nas mãos daqueles nos quais se
podem confiar. É controle de poder, não diminuição de poder, que se prioriza.”)
Eu não irei me preocupar aqui com a questão de se o conservadorismo de Buchanan tem ou não
apelo para as massas e se seu diagnóstico da política americana está sociologicamente correto.
Duvido que esse seja o caso, e certamente o destino de Buchanan durante as eleições
presidenciais primárias republicanas de 1995 e 2000 não indicam o contrário. Antes, eu quero
destacar as questões mais fundamentais: assumindo que haja tal apelo, isto é, assumindo que o
conservadorismo cultural e a economia socialista possam ser psicologicamente combinados (ou
seja, que as pessoas possam manter ambas as visões simultaneamente sem dissonância
cognitiva), podem eles ser efetiva e praticamente (econômica e praxeologicamente) combinados?
É possível manter o nível vigente de socialismo econômico (segurança social, etc.) e alcançar o
objetivo de alcançar a normalidade cultural (famílias naturais e regras normais de conduta)?
Buchanan e seus teóricos não sentem a necessidade de fazer essa pergunta, porque eles acreditam
que a política é só uma questão de vontade e poder. Eles não acreditam em coisas como leis
econômicas. Se as pessoas quiseram o bastante alguma coisa, e a elas é dado o poder para
implementar sua vontade, qualquer coisa pode ser obtida. O “economista austríaco morto”
Ludwig von Mises, a quem Buchanan se referiu desdenhosamente durante suas campanhas
presidenciais, caracterizou essa crença como “historicismo”, a postura intelectual do
Kathedersozialisten alemão, os acadêmicos Socialistas da Cadeira, os quais justificaram toda e
qualquer medida estatista.
Mas o desprezo pela economia e a ignorância econômica dos historicistas não mudam o fato de
que existem leis econômicas inexoráveis. Você não pode ter seu bolo e também comê-lo, por
exemplo. Ou o que você consome agora não pode ser consumido de novo no futuro. Ou produzir
mais de um produto requer produzir menos de outro. Nenhum wishful thinking não pode fazer
sumirem essas leis. Acreditar no contrário só pode levar a falhas na prática. “De fato”, observou
Mises, “a história econômica é um longe registro de políticas governamentais que falharam
porque foram projetadas com um ousado desrespeito pelas leis econômicas.”[3]
À luz de leis econômicas elementares e imutáveis, o programa buchananista de social-
nacionalismo é apenas outro sonho ousado porém impossível. Nenhum wishful thinking pode
alterar o fato de que manter as instituições nucleares do estado de bem-estar social e querer o
retorno das tradicionais famílias, normas, conduta e cultura são objetivos incompatíveis. Você
pode ter um – socialismo (bem-estar social) – ou o outro – moral tradicional – mas você não
pode ter ambos, pois a economia social-nacionalista, o pilar do sistema de bem-estar social que
Buchanan quer deixar intocável, é a própria causa das anomalias culturais e sociais.
Para esclarecer isso, é necessário somente relembrar-se da mais fundamental lei da economia que
diz que toda riqueza ou distribuição de renda compulsória, independentemente do critério no
qual se baseia, envolve tirar de alguém – os possuidores de algo – e dar para outros – os não
possuidores de algo. Consequentemente, o incentivo para ser um possuidor é reduzido, e o
incentivo para ser um não possuidor é aumentado. O que o possuidor tem é caracteristicamente
algo considerado “bom”, e o que o não possuidor não tem é algo “mau” ou uma deficiência.
Decerto, essa é a própria ideia subjacente a qualquer redistribuição: alguns têm muitas coisas
boas e outros não o suficiente. O resultado de toda redistribuição é que se produzirá, portanto,
menos bens e progressivamente mais maus, menos perfeição e mais deficiências. Subsidiando
com impostos (com fundos tomados de outros) pessoas pobres, mais pobreza (mau) será criada.
Subsidiando pessoas por estarem desempregadas, mais desemprego (mau) será criado.
Subsidiando mães solteiras, haverá mais mães solteiras e mais nascimentos ilegítimos (mau), etc.
Obviamente, esse insight básico aplica-se ao chamado sistema de seguridade social inteiro que
foi implantado na Europa ocidental (dos anos 1880 em diante) e nos EUA (desde os anos 1930):
de “segurança” governamental compulsória contra velhice, doença, injúria ocupacional,
desemprego, indigência, etc. Em conjunto com o ainda mais velho sistema de educação pública
compulsório, essas instituições e práticas correspondem a um ataque massivo à instituição da
família e à responsabilidade pessoal.
Aliviando indivíduos da obrigação de garantir sua própria renda, saúde, segurança, velhice e a
educação dos filhos, o alcance e o horizonte temporal da garantia privada são diminuídos, e o
valor do casamento, da família, dos filhos e das relações de parentesco é reduzido.
Irresponsabilidade, imprevidência, negligência, doença e até destruicionismo (maus) são
promovidos, e responsabilidade, previdência, diligência, saúde e conservadorismo (bens) são
punidos.
O sistema compulsório de seguro de velhice em particular, pelo qual aposentados (os velhos) são
subsidiados por impostos tomados dos atuais assalariados (os jovens), tem enfraquecido
sistematicamente o vínculo intergeracional entre pais, avós e filhos. O idoso não mais precisa de
depender da assistência de seus filhos caso ele não tenha feito nenhuma provisão para sua
própria velhice; e o jovem (tipicamente com menos riqueza acumulada) deve sustentar o idoso
(tipicamente com mais riqueza acumulada) ao invés do contrário, como é típico dentro das
famílias.
Consequentemente, não apenas as pessoas querem ter menos filhos – e de fato as taxas de
natalidade caíram pela metade desde o começo das modernas políticas de seguridade social
(bem-estar social) – como também o respeito que os jovens tradicionalmente mantinham para
com os mais velhos diminuiu, e todos os indicadores de desintegração familiar e mau
funcionamento, como taxas de divórcio, bastardia, abuso infantil, abuso por parente, violência
conjugal, monoparentalidade, celibato, estilos de vida alternativos e aborto, aumentaram.
Além do mais, com a socialização do sistema de assistência médica por meio de instituições
como Medicaid e Medicare e a regulação da indústria de seguros (restringindo o direito da
seguradora de recusar: excluir qualquer indivíduo de risco como não segurável, e de discriminar
livremente, de acordo com métodos atuariais, entre diferentes grupos de risco), uma monstruosa
máquina de redistribuição de riqueza e renda às expensas de indivíduos responsáveis e grupos de
baixo risco em favor de agentes irresponsáveis e grupos de alto risco foi posta em ação.
Subsídios ao doente, ao de pouca saúde, ao herdeiro de deficiência de raça e ao incapacitado
enfraquece o desejo por trabalhar para ganhar a vida e manter uma vida saudável. Não se pode
fazer melhor que citar o “economista austríaco morto” Ludwig von Mises mais uma vez:
“Estar doente não é um fenômeno independente da vontade consciente. … A eficiência de um
homem não é meramente um resultado da sua condição física; ela depende largamente de sua
mente e vontade. … O aspecto desconstrucionista dos seguros de saúde e acidente encontra-se no
fato de que essas instituições promovem acidentes e doenças, prejudicam a recuperação e muito
frequentemente criam, ou pelo menos intensificam e fortalecem, as desordens funcionais que
acarretam doença e acidente. … Sentir-se saudável é muito diferente de estar saudável no sentido
médico. … Enfraquecendo ou destruindo completamente a vontade de estar bem e capaz de
trabalhar, a segurança social cria doença e incapacidade para o trabalho; ela produz o hábito de
se queixar – o que é em si mesmo uma neurose – e neuroses de outros tipos. … Como uma
instituição social ela torna as pessoas doentes física e mentalmente ou pelo menos ajuda a
multiplicar, prolongar e intensificar a doença. … Assim a segurança social fez da neurose do
assegurado uma perigosa doença pública. Caso a instituição se estenda e se desenvolva, a doença
vai se espalhar. Nenhuma reforça pode fornecer qualquer assistência. Nós não podemos destruir
a vontade de ser saudável sem produzir doença.”[4]
Não desejo explicar aqui o nonsense econômico de Buchanan e da ideia de políticas
protecionistas, de ainda maior alcance, de seus teóricos (de proteger os salários americanos). Se
eles estivessem certos, seu argumento em favor de proteção econômica iria corresponder a uma
acusação de toda troca e uma defesa da tese de que cada família seria melhor se não realizasse
trocas com ninguém mais. Certamente, nesse caso ninguém jamais perderia seu emprego, e
desemprego devido a competição “injusta” se reduziria a zero.
Porém essa sociedade com pleno emprego não seria próspera e forte; seria composta de pessoas
(famílias) que, embora trabalhando do amanhecer ao anoitecer, seria condenada à pobreza e
inanição. O protecionismo internacional de Buchanan, apesar de menos destrutivo que uma
política de protecionismo interpessoal e inter-regional, resultaria precisamente no mesmo efeito.
Isso não é conservadorismo (conservadores querem que as famílias sejam prósperas e fortes).
Isso é destruicionismo econômico.
Em qualquer caso, o que deve estar claro agora é que a maior parte da, senão toda, degeneração
moral e do declínio cultural – os sinais da descivilização – ao nosso redor são os inescapáveis e
inevitáveis resultados do estado de bem-estar social e seus instituições. Conservadores clássicos
ao estilo antigo sabiam disso, e eles se opuseram vigorosamente à educação pública e
previdência social. Eles sabiam que os estados, em todos os lugares, queriam depredar e por fim
destruir as famílias e as instituições e camadas e hierarquias de autoridade que são o produto
natural de comunidades baseadas na família para aumentar e fortalecer seu próprio poder. Eles
sabiam que, para fazê-lo, os estados teriam de tirar vantagem da revolta natural dos adolescentes
(juvenis) contra a autoridade dos pais. E eles sabiam que educação e responsabilidade
socializadas eram os meios de alcançar esses objetivos.
Educação social e previdência social fornecem uma abertura para a juventude rebelde escapar da
autoridade dos pais (para fugir com o contínuo mau-comportamento). Velhos conservadores
sabiam que essas políticas iriam emancipar o indivíduo da disciplina imposta pela família e pela
vida em comunidade para submetê-lo, em vez disso, ao controle direto e imediato do estado.
Além disso, eles sabiam, ou ao menos tinham o pressentimento, que isso levaria a uma
sistemática infantilização da sociedade – uma regressão emocional e mental da maturidade para a
adolescência para a infância.
Em contraste, o conservadorismo populista-proletário de Buchanan – social-nacionalismo –
mostra completa ignorância disso tudo. Combinar conservadorismo cultural e estatismo de bem-
estar social é impossível e, por isso, nonsense econômico. Estatismo de bem-estar social –
previdência social de qualquer tipo, maneira ou forma – gera declínio moral e cultural e
degeneração. Assim, se alguém com efeito está preocupado com a decadência da moral
americana e quer restaurar a normalidade à sociedade e à cultura, ele deve se opor a todos os
aspectos do moderno estado de bem-estar social. Um retorno à normalidade requer nada menos
que a completa eliminação do atual sistema de seguridade social: de seguro desemprego,
previdência social, Medicare, Medicaid, educação pública, etc. – e assim a quase completa
dissolução e desconstrução do aparato estatal vigente e do poder governamental. Se quer-se
restaurar a normalidade, os fundos e o poder do governo devem se reduzir ao seu nível do século
XIX, ou até menos ainda. Portanto, verdadeiros conservadores devem ser libertários de linha
dura (anti-estatistas). O conservadorismo de Buchanan é falso: quer um retorno da moralidade
tradicional mas, ao mesmo tempo, advoga pela manutenção das mesmas instituições que são
responsáveis pela destruição da moral tradicional. A maioria dos conservadores contemporâneos,
então, especialmente entre os queridinhos da mídia, não são conservadores, mas socialistas – do
tipo internacionalista (os novos e neoconservadores estatistas de estado de bem-estar social e
social-democratas globalistas) ou da variedade nacionalista (os populistas buchananistas).
Conservadores genuínos devem opor-se a ambos. Para restaurar as normas sociais e culturais,
verdadeiros conservadores só podem ser libertários radicais, e eles devem requer a demolição –
como uma distorção moral e econômica – da inteira estrutura do estado intervencionista.

Notas
[1] Sobre o conservadorismo americano contemporâneo veja em particular Paul Gottfried, The
Conservative Moviment, ed. rev. (New York: Twayne Publishers, 1993); George H. Nash, The
Conservative Intellectual Movement in America (New York: Basic Books, 1976) Justin
Raimondo, Reclaiming the American Right: The Lost Legacy of the Conservative Movement
(Burlingame, Calif.: Center for Libertarian Studies, 1993); veja também adiante o cap. 11.
[2] Samuel T. Francis, “From Household to Nation: The Middle American populism of Pat
Buchanan,” Chronicles (March 1996): 12-16; veja também idem, Beautiful Losers:Essays on the
Failure of American Conservatism (Columbia: University of Missouri Press, 1993);
idem,Revolution from the Middle (Raleigh, N.C.: Middle American Press, 1997).
[3] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics, Scholar’s Edition (Auburn,
Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1998), p. 67. “Príncipes e maiorias democráticas”, escreve
Mises, “são embriagadas com poder. Eles devem admitir relutantemente que estão submetidos às
leis da natureza. Mas eles rejeitam a própria noção de lei econômica. Não são eles os legisladores
supremos? Não possuem eles poder para esmagar qualquer oponente? Nenhum senhor da guerra
é propenso a reconhecer qualquer limite além daqueles impostos a ele por uma força armada
superior. Escritores servis estão sempre prontos para adotar tal complacência expondo as
doutrinas apropriadas. Eles chamam suas presunções confusas de “economia histórica.”
[4] Ludwig von Mises, Socialism: An Economic and Sociological Analysis (Indianapolis, md.:
Liberty Fund, 1981), pp. 43 1-32.
ARTIGO III

Por que não sou conservador


Por Friedrich A. Hayek
Nota!
Atualmente, existe uma diferença intransponível entre o conservadorismo genuíno e o
neoconservadorismo, este último uma aberração surgida nos EUA e capitaneada por ex-
trotskistas.
Genuínos conservadores nunca defenderam a intromissão na vida alheia. Eles, por exemplo, são
moralmente contra o uso de drogas e contra a homossexualidade, mas sempre se opuseram
veementemente a qualquer tentativa do governo de moldar a sociedade, pois sabem que as
consequências que isso gera são ainda piores do que qualquer vício (algo que, em última
instância, é um problema apenas individual).
Genuínos conservadores defendem que a melhor maneira de se resolver problemas é por meio do
voluntarismo, da responsabilidade própria, da família, dos amigos e da igreja, e não por meio de
um governo monolítico que miraculosamente fará com que o indivíduo passe a cuidar de si
próprio e se torne uma pessoa melhor. Conservadores genuínos sabem que o governo não pode
fazer com que o indivíduo se aprume e passe a seguir bons hábitos.
Similarmente, defender a invasão militar de países estrangeiros também nada tem de
conservador. Isso é uma plataforma dos neoconservadores, um movimento formado em sua
quase totalidade por indivíduos ex-trotskistas que nunca abandonaram sua sanha
intervencionista.
O problema é que esse genuíno conservadorismo possui uma de suas raízes na chamada "Old
Right" americana, a qual não era de raiz conservadora mas sim libertária. A "Old Right" era um
movimento liderado por pessoas que passaram a ser desdenhosamente chamadas de
isolacionistas, simplesmente porque se recusavam a aceitar que o estado se intrometesse em
outros países. Essas mesmas pessoas também nunca aceitaram que o estado se intrometesse na
vida do indivíduo dando-lhes ordens sobre como deveriam viver. Elas acreditavam que a família
e a religião é que deveriam ser o norte da vida de cada indivíduo, e não os burocratas do estado.
Sua base era o liberalismo clássico.
Neste seu clássico artigo, Hayek ataca o conservadorismo de estilo europeu, o qual, ao contrário
do americano, não tem raízes no liberalismo clássico. Pela luz da história, os legítimos
conservadores europeus foram os contra-revolucionários franceses, o antigo partido Tory inglês e
seu filhote, a conhecida "Democracia-cristã", tão representada pelos partidos de direita na
Europa. De um modo simplificado, suas defesas se baseiam razoavelmente em nacionalismo,
corporativismo, estado assistencialista, estado moralizador, e nuances do tipo. São posições que
vêm desde os fins das monarquias absolutistas.
Já o chamado "conservadorismo anglo-saxônico", em especial o surgido nos EUA com a "Old
Right", nada tem de conservador (sob a visão européia). Esse conservadorismo americano se
baseava na liberdade individual, na defesa da vida e da propriedade, na liberdade de
empreendimento e de comércio. Trata-se da essência da ideia de conservação da liberdade, ideia
essa oriunda diretamente do liberalismo clássico.
Em suma, ao contrário da Europa, nunca houve um conservadorismo de raiz nos EUA. Os
verdadeiros conservadores — no sentido americano, e não no europeu — sempre foram os
liberais clássicos.
Neste artigo, Hayek ataca o tipo de conservadorismo estatizante e nacionalista, muito em vigor
na Europa e que se tornou convencional nos EUA desde a tomada do Partido Republicano pelos
neoconservadores. No Brasil, infelizmente, o tipo de conservadorismo predominante é um
desdobramento desse neoconservadorismo americano.
Adicionalmente, o termo 'liberal' que aparece no texto abaixo — que é como Hayek se auto-
intitula — refere-se exatamente ao seguidor do liberalismo clássico.
Como disse Hans-Hermann Hoppe:
A Europa tem um passado feudal que é notável até mesmo hoje em dia, em particular na
forma de numerosas regulações que restringem o comércio, ao passo que os Estados
Unidos são marcadamente livres desde seu passado. Em conexão com isto há o fato de
que, por longos períodos durante os séculos XIX e XX, a Europa tem sido moldada, mais
que qualquer outra ideologia política, por políticas de partidos conservadores, ao passo
que um partido genuinamente conservador jamais existiu nos Estados Unidos.

1. O conservadorismo não oferece nenhum objetivo alternativo


Numa época em que a maioria dos movimentos considerados progressistas advoga uma invasão
cada vez maior da esfera da liberdade individual (quase todos os projetos dos reformadores
sociais de hoje são realmente liberticidas), aqueles que prezam a liberdade tendem a resistir a
essa invasão com todas as suas energias.
Ao fazê-lo, geralmente se encontram lado a lado com os que costumam resistir às mudanças.
Em questões de política corrente, eles praticamente não têm outra escolha, hoje, senão apoiar os
partidos conservadores. Contudo, embora a posição que tentei definir também seja muitas vezes
tida como "conservadora", é bem diferente daquela à qual tradicionalmente se costuma atribuir o
termo.
Uma situação em que os defensores da liberdade se unem aos verdadeiros conservadores em sua
oposição comum a mudanças que ameaçam igualmente seus ideais diferentes é muito perigosa.
Por essa razão, é importante distinguir claramente a posição que tomamos aqui daquela que
sempre foi conhecida — talvez com maior propriedade — como conservadora.
O verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima, provavelmente necessária, e com certeza
bastante difundida, de oposição a mudanças drásticas. Desde a Revolução Francesa, representa
um papel importante na política européia. Até o surgimento do socialismo, o oposto do
conservadorismo era o liberalismo. Este conflito não encontra equivalente na história dos
Estados Unidos da América, porquanto o que na Europa se chamava "liberalismo", nos EUA
representava a tradição comum, sobre a qual fora constituído o estado americano: assim, o
defensor da tradição americana era um liberal no sentido europeu.[1]
A confusão piorou com a recente tentativa de transplantar para a América o tipo europeu de
conservadorismo, que, por ser alheio à tradição americana, assumiu caráter de certo modo
singular. Para piorar, os radicais e socialistas americanos já haviam começado a se denominar
"liberais". Não obstante, continuarei, por enquanto, a chamar de liberal a posição que defendo e
que, acredito, difere tanto do verdadeiro conservadorismo [europeu] quanto do socialismo.
Contudo, devo esclarecer, desde já, que o faço com crescente apreensão e que mais tarde terei de
considerar qual seria a denominação mais adequada para o partido da liberdade. Isto decorre não
apenas de o termo "liberal" nos Estados Unidos ser, hoje, causa de constantes equívocos, como
também de, na Europa, o tipo predominante de liberalismo racionalista vem abrindo caminho
para o socialismo.
Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria
natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos
seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como
não indica outro caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do
conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu.
A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos
acontecimentos contemporâneos. E, embora seja necessário frear o ritmo da evolução de
determinadas políticas, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Acima de
tudo, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde
iremos, mas para onde iremos.
Com efeito, o liberal difere muito mais do coletivista radical dos nossos dias do que o
conservador. Enquanto este geralmente representa uma versão moderada dos preconceitos de seu
tempo, o liberal dos nossos dias deve opor-se, de maneira muito mais positiva, a alguns dos
conceitos básicos que a maioria dos conservadores compartilha com os socialistas.
2. A relação triangular dos partidos
O quadro geralmente apresentado da posição relativa dos três partidos contribui muito mais para
confundir do que para esclarecer suas verdadeiras relações. Habitualmente, a representação é a
de posições diferentes numa linha imaginária, com os socialistas à esquerda, os conservadores à
direita e os liberais mais ou menos ao centro. Nada mais errôneo.
Se utilizássemos um diagrama, a figura mais apropriada seria a de um triângulo, com os
conservadores ocupando um ângulo, os socialistas puxando para o segundo e os liberais para o
terceiro. Contudo, como os socialistas há muito tempo exercem maior pressão, o que ocorreu foi
que os conservadores tenderam a ser arrastados pelo pólo socialista mais que pelo pólo liberal e,
sempre que lhes convinha, adotaram as idéias que a propaganda radical fazia parecer
respeitáveis.
Comumente, foram os conservadores que fizeram mais concessões ao socialismo, chegando
mesmo a empunhar suas bandeiras. Defensores da política de centro, desprovidos de objetivos
próprios, os conservadores sempre se pautaram pelo princípio de que a verdade está entre os
extremos — e, consequentemente, mudam sua posição toda vez que um movimento mais radical
surge em qualquer um dos lados.
A posição que em determinada época podemos definir corretamente como conservadora
depende, portanto, do rumo das tendências existentes no momento. Como, nessas últimas
décadas, a evolução tem seguido em geral o rumo do socialismo, pode parecer que tanto
conservadores quanto liberais se tenham preocupado basicamente em freá-la. Contudo, a verdade
é que, fundamentalmente, o liberalismo quer tomar outro caminho, e não permanecer parado.
Embora hoje possa, às vezes, subsistir a impressão contrária — porque houve uma época em que
o liberalismo era mais amplamente aceito e alguns de seus objetivos estavam mais próximos de
ser alcançados—, o liberalismo clássico nunca foi uma doutrina retrógrada. Jamais existiu
período em que os liberais tivessem encontrado sua realização plena e em que o liberalismo não
esperasse um aperfeiçoamento ainda maior das instituições.
O liberalismo clássico não é contrário à evolução e à mudança; e, nos casos em que
transformações espontâneas são asfixiadas pelo controle governamental, advoga profundas
reformas na política de governo. No que diz respeito à maioria das atividades governamentais, no
mundo de hoje, os liberais não têm por que preservar a situação como está.
Na verdade, o liberal clássico acredita que o mais urgente e necessário em quase todo o mundo
seja a eliminação completa dos obstáculos à evolução espontânea.
O fato de nos Estados Unidos ainda ser possível defender a liberdade individual defendendo as
instituições mais antigas não nos deve impedir de perceber a diferença entre liberalismo e
conservadorismo. Para o liberal estas instituições são preciosas não porque existem já muito
tempo, ou porque são americanas, mas porque correspondem aos ideais que tanto preza.
3. A diferença básica entre conservadorismo e liberalismo
Antes de considerar os pontos principais nos quais a atitude liberal se opõe de maneira definitiva
à atitude conservadora, devo salientar que os liberais poderiam ter aprendido e se beneficiado
muito com as obras de alguns pensadores conservadores. Devemos ao seu dedicado e reverente
estudo do valor de algumas instituições análises profundas (pelo menos fora da área econômica),
que constituem verdadeiras contribuições à nossa compreensão de uma sociedade livre.
Por mais reacionários que possam ter sido na política homens como Coleridge, Bonald, De
Maistre, Justus Möses ou Donoso Cortès, eles mostraram uma compreensão do significado das
instituições que evoluíram espontaneamente, como por exemplo, o idioma, o direito, a moral e as
convenções. Mas a admiração dos conservadores pela evolução espontânea geralmente se aplica
apenas ao passado. Em geral, falta-lhes a coragem de aceitar as mudanças não planejadas das
quais surgirão novos instrumentos da realização humana.
Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem
radicalmente. Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais
características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em
relação ao novo enquanto tal[2], ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na
confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não
podemos prever aonde nos levarão.
Não haveria por que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de
mudanças muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso, justifica-se
o cuidado e o lento progresso. Mas os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo
para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes mais tímidas.
Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os
liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se
efetivarão. Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo
econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários
ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como farão isso no caso
particular.
Talvez não exista um fator que contribui mais para as pessoas frequentemente se mostrarem
relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem
controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, entre as
importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito
quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças;
somente quando sabe que há uma autoridade encarregada de verificar que elas se dêem dentro da
"ordem".
Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras
características do conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das
forças econômicas.
Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais[3], não compreende as
forças espontâneas nas quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para
formular princípios de política de governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o
resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer
medida necessária em circunstâncias especificas, sem que se precise ater-se a uma norma rígida.
A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que coordenam as ações
humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da teoria do
mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi
completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social
consegue sustentar-se; e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase
sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais.
Macaulay, Tocqueville, Lord Acton e Lecky certamente se consideravam liberais e com justiça; e
mesmo Edmund Burke permaneceu um Whig da velha guarda até o fim e estremeceria à simples
idéia de ser considerado um Tory.
Voltemos, porém, ao assunto principal, que é a característica complacência dos conservadores
com os atos da autoridade estabelecida e sua preocupação primordial de que essa autoridade não
seja enfraquecida (e não de que seu poder seja mantido dentro de certos limites). Isto não se
concilia com a preservação da liberdade.
Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder
arbitrário, desde que utilizados para fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for
confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata
de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele espera que os bons e os
sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos queremos, mas por uma autoridade
a eles conferida e por eles exercida.[4]
Como o socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser
limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista,
também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita.
Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça
de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções
morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam
promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na
qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios o que
possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir
uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos
tolerar muitas situações com as quais não concordamos.
Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a
importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente
para obrigar outros a submeter-se a eles. Não conheço nenhum princípio geral ao qual recorrer
para persuadir os que têm opinião diferente de que determinadas medidas que eles defenderm são
inaceitáveis na sociedade que eu e eles desejamos. Para conviver com os outros é preciso muito
mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um comprometimento
intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que um indivíduo considera
fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes.
É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem
ser objeto de coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às
vezes, penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do
conservadorismo quanto do socialismo, é a idéia de que convicções morais quanto a questões de
conduta — que não interferem diretamente com a esfera individual protegida pela lei — não
justificam a coerção dos demais.
Isso também pode explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido
encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores [daí a ascensão do neoconservadorismo]
do que entre os liberais.
Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade,
há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições precisariam ser
protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do que os demais.
Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do
igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas
pessoas superiores. Enquanto os conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia
estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os liberais
acreditam que não há respeito por valores estabelecidos que justifique o recurso ao privilégio ou
ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do estado para proteger estas pessoas das forças da
transformação econômica.
Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites culturais e
intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem dar
provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os
outros.
Na esfera econômica, portanto, a oposição dos conservadores a um exagerado controle
governamental não constitui uma questão de princípio, mas visa aos objetivos específicos do
governo. Os conservadores geralmente se opõem às medidas coletivistas e dirigistas na área
industrial e, neste caso, os liberais frequentemente encontrarão neles aliados. Mas, ao mesmo
tempo, os conservadores adoram comumente uma atitude protecionista e já, muitas vezes,
apoiaram medidas socialistas na agricultura.
De fato, embora as restrições hoje feitas à indústria e ao comércio sejam principalmente
consequência de opiniões socialistas, as restrições igualmente importantes na área da agricultura
foram em geral introduzidas pelos conservadores, em época anterior. E, em sua tentativa de
desacreditar a livre iniciativa, muitos líderes conservadores rivalizaram com os socialistas.[5]
4. A fraqueza do conservadorismo
No campo puramente intelectual, há grandes diferenças entre o conservadorismo e o liberalismo.
A típica atitude do conservadorismo não apenas constitui uma séria fraqueza como também tende
a prejudicar qualquer movimento que a ele se alie.
Os conservadores instintivamente acreditam que, mais do que qualquer outro fator, são as novas
idéias que ocasionam as mudanças. Contudo, corretamente do seu ponto de vista, o
conservadorismo teme novas idéias porque não dispõe de princípios próprios para se opor a elas;
e, por desconfiar da teoria e faltar-lhe imaginação quanto a qualquer conceito que a experiência
ainda não tenha comprovado, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo conjunto de
idéias herdadas em dado momento.
Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em
relação ao avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um
progresso, ele encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço
humano e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os problemas e dificuldades
que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser novo, o liberal está consciente
de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver com
o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.
Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a
rejeitar novos conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das
conseqüências que aparentemente decorrem deles — ou, mais francamente, seu obscurantismo.
Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e
que devemos ser cautelosos em aceitar as conclusões às quais os levam suas teorias mais
recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser
condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras
convicções.
Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas
explicações "mecanicistas" dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas
consequências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente
com os que consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a
enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria posição.
Frequentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das novas interpretações
científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente se tomarmos parte da avaliação
das consequências das novas descobertas saberemos se elas se adaptam ou ao à nossa visão de
mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções
morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais convicções
recusando-nos a reconhecer os fatos.
Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua
hostilidade ao internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também
contribui para enfraquecer sua posição na luta das idéias, e não pode alterar o fato de as
concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras. Entretanto, a
recusa de estudar novas idéias acaba simplesmente privando o indivíduo do poder de opor-se
efetivamente a elas quando necessário.
A evolução das idéias é um processo universal e somente os que participam ativamente dos
debates poderão exercer uma influência significativa. Não é válido argumentar que uma idéia é
antiamericana, antibritânica ou antigermânica, tampouco um ideal errôneo ou perverso é melhor
somente por ter sido concebido por um de nossos compatriotas.
Muito mais poderia ser dito da estreita relação entre conservadorismo e nacionalismo, mas não
me deterei na questão porque pode parecer que minha posição me impede de simpatizar com
qualquer forma de nacionalismo. Acrescentarei apenas que normalmente é a tendência
nacionalista que leva o conservadorismo a se aproximar do coletivismo: é muito pequena a
distância que vai entre pensar em termos de "nossa" indústria ou "nossos" recursos e exigir que
esse patrimônio nacional seja administrado de acordo com o interesse nacional.
Contudo, quanto a esse aspecto, o liberalismo do continente europeu derivado da Revolução
Francesa praticamente não difere do conservadorismo. Não é necessário dizer que esse tipo de
nacionalismo é plenamente compatível com um profundo respeito pelas tradições nacionais.
Porém, o fato de eu preferir e mesmo reverenciar algumas tradições de minha sociedade não
precisa obrigar-me a ser hostil a tudo que seja incomum e diferente.
Somente à primeira vista pode parecer paradoxal que o anti-internacionalismo conservador seja
tão frequentemente associado ao imperialismo. Na verdade, quanto mais uma pessoa não gosta
do que é diferente e julga superiores os seus métodos, mais tenderá a considerar sua missão
"civilizar" os demais, não pelas relações livres e voluntárias preferidas pelos liberais, mas
proporcionando-lhes as graças de um governo eficiente.
É significativo que nesse aspecto habitualmente encontremos os conservadores de mãos dadas
com os socialistas, contra os liberais, não apenas na Inglaterra, onde os Webb e seus fabianos
eram francamente favoráveis ao imperialismo, ou na Alemanha, onde o socialismo de estado e o
expansionismo colonial caminhavam lado a lado e encontravam apoio do mesmo grupo de
"socialistas de cátedra", mas também nos Estados Unidos, onde, até durante o mandato de
Theodore Roosevelt, se observou que "os jingoístas e os reformadores sociais[6] se uniram e
formaram um partido político que ameaçou tomar o governo e utilizá-lo para seu programa de
paternalismo cesarista, perigo que agora parece ter sido conjurado somente pelo fato de que os
outros partidos adotaram seu programa abrandando seu conteúdo e forma".[7]
5. Racionalismo, anti-racionalismo e irracionalismo
Há um aspecto, porém, em que podemos afirmar que o liberal ocupa uma posição de centro, a
meio caminho entre o socialista e o conservador: ele está tão distante do racionalismo primitivo
do socialista, que pretende reconstruir todas as instituições de acordo com um padrão prescrito
por sua razão individual, quanto do misticismo ao qual o conservador frequentemente precisa
recorrer.
Aquilo que defini como sendo a "posição liberal" tem em comum com o conservadorismo uma
desconfiança em relação à razão, na medida em que o liberal está muito consciente de que não
sabemos todas as respostas e não tem certeza de que as respostas de que dispõe sejam de fato as
certas ou mesmo se poderemos ter respostas para tudo. Além disso, o liberal não se recusa a
buscar o apoio de quaisquer hábitos ou instituições não racionais que revelaram válidos.
O liberal difere do conservador na disposição de aceitar esta ignorância e de admitir que sabemos
muito pouco, sem reivindicar uma autoridade de origem supranatural do conhecimento sempre
que rua razão falhar. Deve-se admitir que o liberal, em alguns casos, é fundamentalmente um
cético[8] — mas aparentemente é necessário certo grau de desconfiança para deixar que os
outros busquem sua felicidade à sua maneira e para defender com coerência esta tolerância, que é
uma característica essencial do liberalismo.
Isto não significa necessariamente que um liberal não tenha uma convicção religiosa. Ao
contrário do racionalismo da Revolução Francesa, o verdadeiro liberalismo não é contrário à
religião, e apenas posso deplorar a militância anti-religiosa, essencialmente não-liberal, que
animou grande parte do liberalismo no continente europeu no século XIX.
No entanto, tal característica não é essencial ao liberalismo, como o demonstram claramente seus
ascendentes ingleses, os antigos Whigs, que, ao contrário, talvez simpatizem demais com uma
determinada crença religiosa. Nesse aspecto, o que distingue o liberal do conservador é que, por
mais profundas que sejam suas convicções espirituais, ele nunca se considerará no direito de
impô-las aos demais e o fato de, para ele, o espiritual e o temporal serem esferas distintas que
não devem ser confundidas.
6. A denominação do partido da liberdade
O que afirmei até agora deveria bastar para explicar por que não me considero um conservador.
Muitos pensarão, contudo, que essa posição dificilmente corresponde ao que costumavam
chamar de "liberal". Portanto, verificaremos agora se esta denominação ainda é adequada ao
partido da liberdade.
Já observei que, embora durante toda minha vida eu me tenha definido um liberal, nos últimos
tempos tenho feito isto com crescente apreensão — não apenas porque nos Estados Unidos o
termo liberal dá margem a constantes equívocos, mas também porque me venho tornando cada
vez mais consciente da grande distância existente entre a minha posição e a do liberalismo
racionalista do continente europeu ou mesmo a do liberalismo inglês dos utilitaristas.
Ficaria extremamente orgulhoso de me definir um liberal, se liberalismo ainda tivesse o
significado que lhe atribuiu um historiador inglês que, em 1827, falava da revolução de 1688
como o "triunfo dos princípios que, na linguagem de hoje, são chamados liberais ou
constitucionais"[9], ou se ainda pudéssemos, com Lord Acton, classificar Burke, Macaulay e
Gladstone como os três maiores liberais, ou se fosse ainda possível, com Harold Laski,
considerar Tocqueville e Lord Acton "os liberais mais autênticos do século XIX".[10]
Porém, por mais que me sinta tentado a julgar o liberalismo desses pensadores um verdadeiro
liberalismo, devo reconhecer que os liberais do continente europeu, em sua maioria, defenderam
idéias às quais aqueles pensadores se opuseram firmemente e que foram motivados mais pelo
desejo de impor ao mundo um padrão racional preconcebido do que pela vontade de favorecer
uma evolução espontânea. O mesmo ocorre como o movimento que se denominou liberalismo na
Inglaterra, pelo menos desde os tempos de Lloyd George.
É, portanto, necessário reconhecer que o que chamei de "liberalismo" pouca relação tem com
qualquer movimento político que hoje assim se denomina. Também se pode questionar se as
associações históricas evocadas atualmente por esse termo favorecem o êxito de qualquer
movimento. É possível discordar quanto à conveniência de, em tais circunstâncias, tentarmos
resgatar o termo daquilo que consideramos seu emprego incorreto. Pessoalmente, acredito cada
vez mais que utilizá-lo sem longas explicações gera enorme confusão e que, como rótulo, se
tornou mais obstáculo do que força motriz.
Nos Estados Unidos, onde se tornou quase impossível usar o termo "liberal" no sentido em que o
utilizei, emprega-se em seu lugar o termo "libertário". Talvez esteja aí a resposta; no entanto, de
minha parte, considero-a particularmente sem atrativo. Em minha opinião, tem um excessivo
sabor artificial, de sucedâneo. Eu preferiria um termo que definisse o partido da vida, o partido
que apóia o crescimento livre e a evolução espontânea. Mas, por mais que me esforçasse, não
consegui encontrar um termo descritivo e confiável.
7. Recorrendo aos velhos "Whigs"
Caberia recordar, entretanto, que, quando os ideais que venho tentando reafirmar se difundiram
pela primeira vez no mundo ocidental, o partido que os representava tinha um nome famoso.
Foram os ideais dos Whigs ingleses que inspiraram o que mais tarde ficou sendo conhecido em
toda a Europa como o movimento liberal[11] e deram origem aos conceitos que os colonizadores
americanos levaram consigo e que os guiaram em sua luta pela independência e no
estabelecimento de sua Constituição.[12]
De fato, até o momento em que o caráter desta tradição foi alterado pelas idéias oriundas da
Revolução Francesa, com sua democracia totalitária e suas inclinações socialistas, o partido da
liberdade era conhecido pelo nome Whig.
Esse termo morreu no país em que nasceu, em parte porque, durante algum tempo, os princípios
que ele representava deixaram de ser distintivos de apenas um partido e, em parte, porque os
homens que se denominavam Whigs não permaneceram fiéis a seus princípios. Os próprios
partidos Whig do século XIX, tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, acabaram
fazendo cair em descrédito o nome do partido entre os radicais.
Todavia, ainda é verdade que, como o liberalismo tomou o lugar do whighismo somente depois
que o movimento pela liberdade absorveu o racionalismo grosseiro e militante da Revolução
Francesa, e como nossa tarefa em grande parte é libertar essa tradição das influências de um
exagerado racionalismo, nacionalismo e socialismo que nela penetraram, whighismo é
historicamente o nome correto para designar as idéias nas quais acredito. Quanto mais aprendo a
respeito da evolução das idéias, mais tenho consciência de que sou um impenitente Whig da
velha guarda.
O fato de me confessar um velho Whig obviamente não significa que pretendo voltar à situação
em que nos encontrávamos no fim do século XVII. As doutrinas, formuladas pela primeira vez
naquela época, continuaram a crescer e a se desenvolver até os finais do século XIX, embora já
tivessem deixado de constituir o objetivo principal de um partido específico. Desde então,
aprendemos muitas noções que nos deveriam permitir reafirmar aquelas doutrinas de maneira
mais satisfatória e eficaz.
Entretanto, embora exijam uma reformulação à luz de nosso conhecimento atual, os princípios
básicos permanecem os mesmos dos velhos Whigs. Indubitavelmente, a história mais recente do
partido com esta denominação levou alguns historiadores a se perguntar se de fato existiu um
corpo de princípios Whig; no entanto, só posso concordar com Lord Acton em que, embora
alguns "patriarcas da doutrina gozassem de péssima fama, o conceito de uma lei superior, acima
dos códigos municipais, com a qual se iniciou o whighismo, constitui o feito supremo dos
ingleses e seu grande legado para a nação"[13] — e, podemos acrescentar, para o mundo.
Trata-se da doutrina sobre a qual se assenta a tradição comum dos países anglo-saxônios. É a
doutrina da qual o liberalismo do continente europeu absorve tudo que ela tem de mais valioso. É
a doutrina em que se fundamenta o sistema americano de governo. Em sua mais pura forma, é
representada nos Estados Unidos não pelo radicalismo de Jefferson, nem pelo conservadorismo
de Hamilton ou mesmo de John Adams, mas pelas idéias de James Madison, o "pai da
Constituição".
Não sei se ressuscitar esse velho nome será uma medida prática. O fato de que para o povo, tanto
nos países anglo-saxônios como nos demais, hoje, o termo não possui conotações definidas
talvez seja mais uma vantagem do que uma desvantagem. Para as pessoas que conhecem a
história das idéias, é certamente a única denominação que expressa o significado da tradição. E,
se whighismo define o que os verdadeiros conservadores e mais ainda os inúmeros socialistas
que se tornaram conservadores mais cordialmente odeiam, isto revela um instinto sadio de sua
parte. De fato, esta palavra define o único conjunto de ideais que sempre se opôs a todo poder
arbitrário.
8. Princípios e possibilidades práticas
Pode-se indagar se o nome do partido da liberdade é realmente tão importante. Em um país como
os Estados Unidos, que de modo geral ainda tem instituições livres e onde, portanto, a defesa
daquilo que existe é quase sempre a defesa da liberdade, talvez não seja prejudicial os defensores
da liberdade se intitularem conservadores — embora, mesmo no país, sua associação com
indivíduos de natureza conservadora muitas vezes represente motivo de constrangimento.
Até quando indivíduos apóiam as mesmas medidas ou instituições, deve-se perguntar se eles as
aprovam simplesmente porque existem ou porque são intrinsecamente boas. Não se deve
permitir que sua resistência comum à tendência coletivista nos impeça de compreender que a
crença na liberdade integral se baseia essencialmente numa atitude de corajosa aceitação do
futuro e não em uma atitude nostálgica em relação ao passado, tampouco em uma admiração
romântica por aquilo que foi.
É, porém, absolutamente imperativa a necessidade de uma distinção clara quando, como ocorre
em vários países da Europa, os conservadores já aceitaram em grande parte o credo coletivista —
que já tanto tempo domina a política, que muitas de suas instituições já são aceitas como um fato
consumado, constituindo motivo de orgulho para os partidos "conservadores" que as criaram.
Nesse caso, os que acreditam na liberdade não podem evitar o conflito com os conservadores e
são obrigados a adotar uma atitude basicamente radical contra os preconceitos populares, as
posições de poder estabelecidas e os privilégios profundamente arraigados. Tolices e abusos não
mudam sua essência apenas porque se tornaram princípios de política de governo consagrados
pelo tempo.
Embora a máxima quieta non movere possa, em algumas ocasiões, conter muita sabedoria para o
estadista, não pode satisfazer um filósofo político. O filósofo pode desejar que certa medida seja
com cautela, e não antes que a opinião pública esteja preparada a apoiá-la; mas não pode aceitar
medidas apenas porque sancionadas pela opinião pública corrente.
Em um mundo em que a necessidade básica se tornou — como no início do século XIX — a de
libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela
insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na
obtenção do apoio daqueles que por natureza são "progressistas", aqueles que, embora
atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar
criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário.
A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública, e não organizar o povo para a ação.
E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas sim
defender com firmeza "os princípios gerais duradouros", nas palavras de Adam Smith.
Nesse sentido, duvido que possa existir uma filosofia política conservadora. O conservadorismo
pode muitas vezes representar um conceito útil e prático, mas não nos proporciona nenhum
princípio orientador capaz de influenciar a evolução futura.

[1] B. Crick, "The Strange Quest for na American Conservatism", Review of Politics, XVII
(1955), 365, afirma com razão que "o americano normal que se intitula 'conservador' é na
verdade liberal". Parece que a relutância desses conservadores em recorrer a essa denominação,
mais adequada, só começou com o abuso do termo durante a época do "New Deal", quando o
termo [i]liberal[/i] foi desvirtuado e passou a significar "progressista".
[2] Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism ("Home University Library" [Londres, 1912]), página 9:
"O conservadorismo natural [...] é uma atitude contrária à mudança, que decorre em parte de
certa desconfiança em relação ao desconhecido".
[3] Ver a reveladora descrição que o conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches in
Nineteenth Century Biography (Londres, 1930), página 174: "A direita, como um todo, tem
horror a idéias, pois não é o homem prático, nas palavras de Disraeli, 'aquele que põe em uso os
erros de seus predecessores'? Por longos períodos de sua história, os direitistas
indiscriminadamente resistiram a todos os avanços e, ao reclamar o respeito pelos antepassados,
muitas vezes costumam reduzir a opinião ao preconceito individual do passado. Sua posição se
tornará ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que esta
direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante inoculação de idéias
liberais e desta forma sofre as conseqüências de uma situação de compromisso que nunca chega
a ser definida."
[4] Espero que me desculpem por estar repetindo aqui as palavras com as quais, em outra
situação, defini uma importante questão: "O principal mérito do individualismo que [Adam
Smith] e seus contemporâneos defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os homens
maus podem ocasionar um mínimo de prejuízo. Trata-se de um sistema social que não depende
para seu funcionamento de encontrarmos bons homens para dirigi-lo, nem de que todos os
homens se tornem melhores do que são, mas de um sistema que utiliza homens em toda a sua
variedade e complexidade, algumas vezes bons e algumas vezes maus, algumas vezes
inteligentes e muitas vezes imbecis" (Individualism and Economic Order [Londres e Chicago,
1948], página 11).
[5] J. R. Hicks falou com propriedade, quanto a esse assunto, da semelhança entre as "caricaturas
do jovem Disraeli, de Marx e de Goebbels" ("The Pursuit of Economic Freedom", What We
Defend, Ed. E. F. Jacob (Oxford [Oxford University Press, 1942], página 96). Sobre o papel dos
conservadores a esse respeito ver também a minha Introdução à obra Capitalism and the
Historians, por mim editada (Chicago: University of Chicago Press, 1954), páginas 19 e
seguintes.
[6] N.T. – Referência ao "movimento progressista", que se iniciou em 1910 e se cristalizou em
1911, com a fundação da Liga Nacional Republicana Progressista, base de sustentação da
candidatura do ex-presidente Theodore Roosevelt, dissidente republicano e líder dos
progressistas, à presidência dos Estados Unidos na campanha de 1912.
[7] J. W. Burgess, The Reconciliation of Government with Liberty (Nova Iorque, 1915), página
380.
[8] Cf. Learned Hand, The Spirit of Liberty, Ed I. Dilliard (Nova Iorque, 1923), página 190: "O
espírito da liberdade é aquele que não tem total convicção de estar certo". Ver também a famosa
frase de Oliver Cromwell em sua Letter to the Gerneral Assembly of the Church of Scotland, 3
de agosto de 1650: "Eu vos suplico, pelas entranhas de Cristo, pensai se não estaríeis errados". É
significativo que essa seja provavelmente a frase mais conhecida do único "ditador" da história
britânica!
[9] H. Hallam, Constitutional History, 1827 (ed. "Everyman"), III, 90. Segundo se afirma
frequentemente, o termo "liberal" deriva do nome do partido dos liberales espanhóis no início do
século XIX. No entanto, estou mais inclinado a acreditar que derive do termo utilizado por Adam
Smith, por exemplo, em A Riqueza das Nações, II, 41: "o sistema liberal de livre exportação e
livre importação" e página 216: "permitir que cada homem persiga seu interesse pessoal à sua
maneira, baseado na idéia liberal de igualdade, liberdade e justiça."
[10] Lord Acton em Letters to Mary Gladstone, página 44. Ver também sua opinião a respeito de
Tocqueville em Lectures on the French Revolution (Londres, 1910), página 357: "Tocqueville
era um Liberal da mais pura cepa — um liberal e nada mais, profundamente desconfiado da
democracia e seus congêneres, igualdade, centralização e utilitarismo". Também em Nineteenth
Century, XXXIII (1893), 885. A afirmação de H. J. Laski ocorre em "Alexis de Tocqueville and
Democracy", em The Social and Political Ideas of Some Representative Thinkers of the Victorian
Age, ed. F. J. C. Hearnshaw (Londres, 1933), página 100, onde ele diz: "Penso que é possível
entender sua posição (Tocqueville) e a de Lord Acton a respeito do poder total considerando que
eram os liberais mais autênticos do século XIX".
[11] Já no começo do século XVIII, um observador inglês afirmava: "Praticamente nunca vi um
estrangeiro vivendo na Inglaterra, fosse ele de origem holandesa, alemã, francesa, italiana ou
turca, que não se tornasse Whig em pouco tempo, depois de conviver conosco" (Citado por G. H.
Guttridge, English Wiggism and the American Revolution [Berkeley: University of California
Press, 1942], página 3).
[12] Nos Estados Unidos, no século XIX, o uso do termo Whig infelizmente apagou da memória
o fato de que este mesmo termo, no século XVIII, representava os princípios básicos que
pautaram a revolução, conquistaram a independência e moldaram a Constituição. Foi nas
sociedades Whig que o jovem James Madison e John Adams desenvolveram seus ideais
políticos. (cf. E. M. Burns, James Madison [New Brunswick, N. J.: Rutgers University Press,
1938], página 4); foram os princípios Whig que, como Jefferson diz, orientaram todos os juristas
que constituíam a grande maioria dos signatários da Declaração da Independência e dos
membros da Comissão Constitucional (ver Writings of Thomas Jefferson ["Memorial Ed."
(Washington, 1905)], XVI, 156). A defesa dos princípios Whig foi levada a tal ponto que mesmo
os soldados de Washington se vestiam com o tradicional "azul e ocre", as cores dos Whigs, assim
como os foxites (N. T.: seguidores de Charles James Fox [1749-1806], político britânico que se
tornou um dos mais destacados membros do grupo Whig, liderado por Edmund Burke) do
Parlamento britânico, que foram preservadas até nossos dias nas capas da Edinburgh Review. Se
uma geração socialista fez do whiguismo seu alvo principal, esta é mais uma razão para os
adversários do socialismo defenderem esta denominação, hoje a única que define corretamente
os princípios dos liberais gladstonianos, dos homens da geração de Maitland, Acton e Bryce, a
última geração cujo objetivo principal era a liberdade e não a igualdade ou a democracia.
[13] Lord Acton, Lectures on Modern History (Londres, 1906), página 218.

ARTIGO IV

Os Filósofos São Ignorantes no que Tange a Politica?


Por Stephen Hicks
Esclarecimento inicial: eu sou um filósofo e essa nova coluna no site The Good Life tratará de
tópicos como a natureza humana, o conhecimento, o sentido da vida e, é claro, a política.
Permitam-me começar citando algumas das opiniões de meus colegas sobre a política.
O jogo favorito dos filósofos é discutir qual foi o filósofo mais influente do século 21. Três
nomes estão sempre no topo da lista de todo mundo:
 Jean-Paul Sartre – filósofo existencialista francês: fumante inveterado, viciado em
café e mulherengo.
 Martin Heidegger, pensador metafisico alemão, famoso também por seu caso com
Hannah Arendt enquanto ela era sua aluna.
 Nos países de língua inglesa, Bertrand Russell, lógico e ensaísta, também
conhecido pelos seus muitos casos extraconjugais.
Um padrão começa a surgir: inteligente e sexy – que descreve os filósofos perfeitamente.
Agora, no entanto, considere as suas visões políticas:
Sartre defendeu o marxismo-stalinismo muito antes da revelação de quão homicida tal regime
tinha sido.
Heidegger era membro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães no ano que
Adolf Hitler assumiu o poder e nunca renegou sua crença na teoria e na prática do Nazismo (ele
viveu até 1976).
Russell, ao longo de sua carreira, culpou repetidamente os Estados Unidos pela maioria dos
problemas do mundo e, em uma palestra, sugeriu que poderia ter sido melhor se os nazistas
tivessem vencido a 2ª Guerra Mundial.
Então, surge uma questão natural: existe algo de errado com os filósofos?
A filosofia tem a fama de atrair pensadores profundos cuja busca por sabedoria pode servir como
um modelo para todos nós. Sócrates ensinou que uma vida sem reflexão não merece ser vivida. E
quando nos comprometemos com valores elevados na esfera particular, e políticas efetivas na
esfera pública, deveríamos ser capazes de recorrer às mentes mais brilhantes para orientação. E
como a política é um componente fundamental da vida bem vivida, qual influência a filosofia (e
sua sabedoria) pode exercer sobre a política?
Colocando o problema em perspectiva: pessoas que vivem em repúblicas democráticas
majoritariamente livres têm divergências políticas. Por exemplo, discutimos i) sobre quem
deveria pagar por contraceptivos, ii) se o seguro desemprego deveria ser estendido, iii) qual o
nível de tolerância permissível a suspeitos de terrorismo e iv) qual é o melhor tipo de ensino
escolar (publico ou privado). O linguajar normalmente é ríspido, portanto amizades e relações
familiares são frequentemente afetadas.
Contudo, percebam que estamos todos comprometidos com o mesmo conjunto geral de valores:
planejamento familiar racional, apoio à recuperação das pessoas em dificuldades, tolerância e
segurança, além de educação de qualidade. Pessoas decentes e inteligentes podem discordar
sobre a melhor forma de alcançar esses objetivos.
Compare agora esses debates de repúblicas democráticas livres com a teoria e a prática de
regimes políticos alternativos – várias versões de socialismo, teocracias, ditaduras tribais e assim
por diante. Nações como a ex-União Soviética, China, Irã, Uganda, entre outras, servem como
exemplos recentes de experimentação política em grande escala.
E os resultados desses experimentos são claros. Cientistas sociais estimam que os comunistas da
União Soviética assassinaram 47 milhões de seus próprios cidadãos. Os chineses sob Mao
Zedong aproximadamente 38 milhões. Hitler e os nazistas, 21 milhões. E tantas outras pessoas
definharam, expostas ao medo e à deprivação material.
Esses números não contabilizam as pessoas mortas em guerras nas quais aquelas nações se
envolveram, chamados de números do “democídio” – isto é, o assassinato a mando de líderes
políticos. Para maiores informações, recomendo a obra do professor R. J. Rummel.
Hoje, todavia, a questão importante é: o que representa para a filosofia que seus representantes
mais famosos tenham concedido grande prestígio aos regimes mais sanguinários na história
recente? (Ou talvez em toda a história, dependendo de como um individuo estima o número de
mortes do Regime Mongol de Gengis Khan, do Império Napoleônico ou das Cruzadas e assim
por diante).
Por que Sartre defendeu o marxismo desde o princípio, e como ele pode negar os fatos, não
mudando de opinião? O que levou Heidegger a se tornar um nazista, e porque não se manifestou
por três décadas sobre seus horrores? Por que Russell se opôs tão ferozmente aos Estados Unidos
enquanto parecia despreocupado com uma vitória de Hitler?
Deveríamos ter padrões mais elevados para nossos filósofos. Eles devotam suas vidas a pensar
sobre questões difíceis. Então, nós podemos e devemos esperar que sejam i) mais espertos, ii)
mais bem informados e aprofundados em suas reflexões, além de iii) menos propensos a
excentricidades.
E vivemos em uma sociedade complicada, que respeita a divisão do trabalho, na qual não
conseguimos ser oniscientes. Esperamos, assim, que os especialistas em diversas áreas acertem e
ofereçam orientação para o resto de nós.
Justiça seja feita: houve diversos filósofos no século XX – Karl Popper, Friedrich Hayek, Ayn
Rand, John Searle e outros – que nos advertiram sobre esses regimes. E nós podemos ser gratos
às gerações anteriores de filósofos – John Locke, Adam Smith, John Stuart Mill e outros – que
desenvolveram e defenderam os princípios políticos que permitem a tantos de nós viver livres e
prósperos.
Os filósofos podem acertar, mas também podem errar. Então, já no início dessa série de artigos
no The Good Life, vale a pena refletirmos sobre os riscos inerentes à prática da filosofia.
 A filosofia é tão abstrata e teórica que torna os filósofos incapazes de estabelecer
conexões com a realidade prática?
 Os filósofos, assim como outros “sabichões”, são tão cheios de si que pensam que
podem facilmente resolver os problemas do mundo?
 Ou o problema é outro – que muitos filósofos têm egos frágeis e não podem
admitir seus erros, mesmo quando suas teorias levam ao desastre?
 Pode ser que, como Russell sugeriu, as questões filosóficas sejam simplesmente
muito difíceis para nós, então uma dose cavalar de modéstia é necessária antes de
pronunciamentos filosóficos?
 Ou talvez seja somente uma peculiaridade do século XX, quando tantos
intelectuais se voltaram contra a democracia liberal e se apaixonaram pelo autoritarismo?
Nessas e noutras questões, sintam-se a vontade para comentar. Importante, é claro, a civilidade e
a argumentação de qualidade. Desafie meus argumentos, mas se prepare para ser desafiado. Essa
é a única forma de buscarmos respostas convincentes.
A filosofia é parte fundamental de nossas vidas. Somos uma espécie inteligente, sobrevivendo e
florescendo na medida em que exercemos nossa inteligência na verificação de princípios de
sobrevivência verdadeiros, de longo prazo. Não obstante, inteligência para aprender duras lições
de nossos erros, incluindo erros desastrosos dos filósofos mais brilhantes.

ARTIGO V

Conservadores Contra o Capitalismo de Livre Mercado


Por Stephen Hicks
O vocabulário político norte-americano tende a dividir as pessoas entre liberais (na esquerda) e
conservadores (na direita). Todas essas definições são generalizantes, e a grande questão é como
classificar libertários, democratas, socialistas, teocratas e outros. Contudo, uma alegação comum
nas discussões é a de que os conservadores favorecem o capitalismo de livre mercado.
Progressistas e socialistas são hostis ao capitalismo, e estão “à esquerda”, de forma que os
capitalistas devem estar “à direita”, junto com os conservadores.
É uma alegação com um traço de verdade jornalística. No entanto, apresenta um grande defeito:
por séculos, os grandes pensadores do lado conservador têm argumentado, praticamente sem
exceção, que os conservadores não podem ser capitalistas. E os grandes pensadores do
capitalismo de livre mercado têm buscado, quase sem exceção, explicar o porquê de não serem
conservadores. Ambos os lados estão corretos.
Começaremos com os grandes nomes do conservadorismo. No contexto norte-americano,
existem diversas subespécies – conservadores religiosos, neoconservadores, conservadores
tradicionais e conservadores moderados. Então, veremos o que os representantes de cada
subespécie dizem sobre o capitalismo de livre mercado.
Vou começar com Robert Bork, representante do conservadorismo religioso. Bork foi o jurista a
quem o Senado norte-americano negou um assento na Suprema Corte. O que segue é uma
citação do seu livro Slouching Towards Gomorrahhttp://ir-na.amazon-adsystem.com/e/ir?
t=wwwdefymediac-20&l=as2&o=1&a=0060573112: “Como os libertários e os progressistas
estão alheios à realidade social, ambos demandam autonomia pessoal radical de expressão. Essa
é uma razão pela qual os libertários não devem ser confundidos, como frequentemente o são,
com conservadores”. Bork prossegue, argumentando que: “os economistas de livre mercado são
particularmente vulneráveis ao vírus libertário” e cita erros no campo da ética e da natureza
humana como a causa raiz – frequentemente, o economista de livre mercado “ignora a questão de
quais desejos são moralmente justificáveis” e falham em reconhecer que “a natureza humana
irrestrita buscará a decadência com tal frequência que criará uma sociedade perigosa, hedonística
e desordenada”.
Note a linguagem agressiva: o livre mercado desencadeia a decadência e é como um vírus.
Agora, considere Irving Kristol. O “padrinho” dos neoconservadores, na sua contribuição ao
Capitalism Today: “o caos espiritual intrínseco aos nossos tempos, tão poderosamente criado
pelas dinâmicas do próprio capitalismo, é tão forte que torna o niilismo uma tentação fácil. Uma
‘sociedade livre’, na concepção hayekiana, dá origem ao grande número de ‘espíritos livres’ –
vazios de substância moral”.
Novamente, linguagem agressiva: o capitalismo leva ao caos, ao niilismo e ao vazio moral.
Agora, como representante do conservadorismo tradicional, temos Russell Kirk. Como um
articulista do website conservador Heritage Foundation coloca: “Para Russell Kirk, ‘o verdadeiro
conservadorismo’ – o conservadorismo de [Edmund] Burke – foi totalmente contrário ao
capitalismo irrestrito e à ideologia egoísta do individualismo”. O próprio Kirk, na crítica à defesa
de Ayn Rand ao livre mercado, escreveu “nós, seres humanos imperfeitos, já somos
suficientemente egoístas, sem sermos exortados a buscar o egoísmo como princípio”. Sob o
capitalismo implacável, Kirk argumentou, um homem se torna “um átomo social, faminto por
emoções exceto a inveja e o tédio, separado da verdadeira vida familiar e reduzido a um mero
ente doméstico, seus velhos pontos de referência, mortos; sua antiga fé, dissipada”.
Logo, um conservador deve opor-se ao individualismo, ao atomismo e ao egoísmo capitalistas.
No coração de todos esses conservadores está o reconhecimento de que o capitalismo ameaça a
moralidade tradicional. Como o colunista conservador George Will claramente expôs, temos uma
dura escolha a fazer: “Ou o conservantismo cultural. Ou o dinamismo capitalista. O último anula
o primeiro”.
Do lado capitalista, os expoentes mais importantes do livre mercado retornaram o favor e
criticaram ferozmente o conservadorismo.
Economista vencedor do prêmio Nobel e poderoso defensor do livre mercado, Milton Friedman
favorecia tanto a legalização das drogas quanto o casamento gay, assim ganhando a inimizade de
muitos conservadores. Friedman também era ferozmente contrário ao alistamento militar
obrigatório, uma causa frequentemente defendida pelos conservadores. (Recentemente, o
conservador moderado David Brooks, escrevendo no New York Times, argumentou em prol do
restabelecimento do alistamento civil).
Friedrich Hayek, outro economista de livre mercado vencedor do prêmio Nobel, escreveu um
ensaio intitulado “Por que não sou conservador”, no qual se descreve como um liberal de
princípios. O problema com os conservadores, argumentava Hayek, é que como seu rótulo
sugere, eles tem se preocupado em manter o status quo e evitar os extremos da liberdade e do
autoritarismo. Como resultado, Hayek destacou, “normalmente têm sido os conservadores que
fizeram concessões ao socialismo”.
E a romancista e filósofa Ayn Rand, no seu estilo guerreiro, caracterizou o conservadorismo
como intelectualmente morto e atacou seus princípios centrais na obra “Conservatism: An
Obituary” (tradução livre, Conservadorismo: um obituário). Rand se definiu como uma radical
pró-capitalismo e argumentou que necessitamos uma moralidade racional e moderna em
substituição às moralidades antigas e obsoletas de obediência e fé defendidas por muitos
conservadores. É surpreendente que mesmo tendo recebido pesadas críticas da esquerda, as
piores vieram da direita conservadora.
Então, identificamos um padrão: os principais conservadores opõem-se ao capitalismo e os
principais capitalistas opõem-se ao conservadorismo. E estamos frente a um dilema: na
linguagem popular, o conservadorismo e o capitalismo são frequentemente confundidos.
A questão da linguagem popular é facilmente explicável. Existe uma tendência geral à busca de
dualidades ideológicas – democratas versus conservadores, esquerda versus direita. Nos Estados
Unidos, essa tendência é reforçada pelo sistema bipartidário, o qual parece resumir a política a
duas opções possíveis. E dentro do sistema bipartidário, os esforços generalizantes atuais podem
levar facções a omitir ou ignorar diferenças significativas.
O problema mais desafiador é de ordem filosófica, enquanto o debate conservadores contra
capitalistas revelava duas concepções conflitantes de moralidade – uma mais otimista e moderna,
a outra mais pessimista e tradicional.
Indivíduos são fracos, argumentam os conservadores, eles irão destruir a si e aos outros se forem
deixados livres. Legalizar as drogas e o álcool significa intoxicação em massa, liberdade sexual
significa promiscuidade, e escolha do estilo de vida significa que indivíduos não irão pertencer a
unidades socialmente significativas, a não ser que sejam coagidos indiretamente, ou até mesmo
abertamente, a participar delas. Seres humanos necessitam de estrutura – não a estrutura que eles
escolhem, mas aquela que é imposta a eles pelo condicionamento familiar, pelo valor da tradição
e apoiado pela lei.
Indivíduos são competentes, provavelmente diria o capitalista em resposta. Eles podem lidar com
a liberdade e utilizá-la de modo produtivo. Sim, alguns indivíduos irão abusar dela e irão se
viciar e isolar, contudo, a maioria busca relações familiares e amorosas verdadeiras e com
significado, e ainda aprendem a utilizar entorpecentes de maneira responsável. Através de livre
experimentação e exploração, todos os indivíduos poderão melhorar as suas vidas de maneira
racional. Porém, para aproveitar o dinamismo das sociedades liberais modernas, precisamos estar
dispostos a modificar ou até mesmo rejeitar as velhas tradições.
A política é dependente da filosofia – outra maneira de demonstrar o argumento. Os grandes
debates sobre política contemporânea são, em sua origem, debates sobre a natureza humana e
moralidade.
ARTIGO VI

Por Que Os Conservadores Religiosos Deveriam Defender


Direitos Seculares?
Por Craig Biddle
Os conservadores, bem como os pais fundadores, reconhecem a necessidade de direitos objetivos
- direitos derivados não de governos, mas de fatos imutáveis – direitos anteriores à existência de
governos, cuja formação se dá, justamente, para protegê-los. Eles reconhecem que a noção
esquerdista de que os direitos emanam (provêm) dos governos implica que os governos podem
dispor de referidos "direitos" quando e como acharem conveniente (por exemplo, veja Hillary
Clinton: “vamos tirar tudo de você em nome do bem comum”). Não há dúvida: para protegê-los
dos ataques da esquerda, é precisa defendê-los por meio de uma base sólida.
Contudo, a posição conservadora amplamente defendida de que os direitos provêm de "Deus"
não preenche tal requisito, e é por isso que a esquerda está vencendo - como evidenciado (entre
outras coisas) pelo aumento da popularidade e do poder de socialistas e pragmáticos.
Embora a noção de que os direitos venham de Deus tenha servido para estabelecer os Estados
Unidos, ela não serviu e nem pode servir para manter o que foi conquistado. O fato é que não
importa quantas pessoas acreditem nessa noção, não há evidência de tal ser e, muito menos,
evidências de que os direitos emanem de Sua vontade.
Desde a fundação dos Estados Unidos, positivistas, utilitaristas e "progressistas" se aproveitam
desse fato: já argumentaram que a ideia de "direitos anteriores ao estabelecimento do governo" é
"uma besteira sem tamanho" (Jeremy Bentham), e que a ideia de direitos absolutos e inalienáveis
?? é "produto da fantasia, como bruxas e unicórnios" (Alasdair MacIntyre). Por quê? Pois, dizem
eles, não há evidências para apoiar tais direitos. Consequentemente, professam que os direitos
não precedem as leis políticas, mas seguem delas: os governos criam leis; e as leis, por sua vez,
ditam os direitos das pessoas que vivem sob esses governos. "Na ausência de um governo",
escreve EJ Dionne, "não há direitos". Na medida em que os direitos existem, dizem Stephen
Holmes e Cass Sunstein, são "concedidos pela comunidade política" e existem apenas na medida
em que o sistema legal os protege.
Para defender os direitos inalienáveis ??contra os ataques da esquerda, precisamos de uma
concepção de direitos demonstravelmente verdadeira, baseada em evidências. Isso nunca ficou
mais claro que é hoje.
Se os conservadores querem proteger esses direitos e, por conseguinte, defender a liberdade,
devem reconhecer dois fatos:
1. Como não há evidências para a existência de Deus, o esforço para defender
direitos por referência à ideia de que os direitos provêm de Deus é pior que inútil - é
desastroso.
2. Se existe uma fundação secular, baseada em evidências e demonstravelmente
verdadeira para os direitos, os defensores da liberdade precisam entender essa base e
utilizá-la em seus esforços para defendê-los - mesmo que, em um nível pessoal, escolham
crer que esses advêm de Deus.
Você já viu este comentário nas redes sociais, "queremos fotos, ou não aconteceu". No que tange
a direitos, o fato é: "queremos provas, ou não pode defendê-los".
Felizmente para os conservadores que realmente querem defender os direitos, a prova de sua
existência existe. E embora a prova seja complexa e difícil de se investigar (agradecemos a Ayn
Rand por fornecê-la), não é difícil entendê-la.
Para uma compreensão do argumento baseado em evidências para os direitos inalienáveis,
considere as conexões fundamentais entre esses direitos e os fatos observáveis.
Os direitos fundamentais que devemos defender caso pretendamos preservar a liberdade e os
Estados Unidos são (não coincidentemente) os próprios direitos presentes na fundação da nação:
 O direito à vida, que é a prerrogativa de tomar todas as ações necessárias para
sustentar e promover a própria vida;
 O direito à liberdade, que é a prerrogativa de ser livre da força física (incluindo
a força indireta, como a fraude), de modo que se possa agir de acordo com o próprio
julgamento;
 O direito à propriedade, que é a prerrogativa de manter e usar os produtos de
seus esforços;
 O direito à busca da felicidade, que é a prerrogativa de perseguir os objetivos e
os valores de sua própria escolha.
Para apreciar as conexões essenciais entre esses direitos e a realidade perceptiva, é necessário
apenas responder a pergunta: por que precisamos desses direitos?
Precisamos deles ou não? Caso não, não temos motivo para preocupação. No entanto, se
precisamos deles, entender o motivo disso nos fornecerá os fatos essenciais de sua origem,
ancorando-os na realidade, enfim, demonstrando quais fatos os tornam fatos.
Vamos entendê-los, um de cada vez.
Por que precisamos do direito à vida?
Por que precisamos de liberdade para agir como queremos? A resposta é: para viver. Se
quisermos viver, devemos agir como a nossa vida exige - e, para fazer isso, devemos ser livres
para fazê-lo. Esses são fatos baseados em observação. Nenhuma fé ou crença em Deus é
necessária para compreendê-los. Precisamos tão somente olhar para a realidade e pensar.
Se você não agir como a sua vida exige, se você não pensar racionalmente e agir de acordo, em
breve, morrerá. Por exemplo, se você não identificar os bens necessários para sustentar sua vida
e produzi-los você mesmo, ou produzir algo para negociar com outros produtores para adquiri-
los, você não viverá por muito tempo (a menos que você sobreviva parasitariamente dos
pensamentos e ações dos outros).
Da mesma forma, se uma pessoa ou um governo o impedem de agir como sua vida exige - por
exemplo, se alguém atirar em você, mandá-lo a um campo de concentração ou gastar o dinheiro
de sua aposentadoria - você não poderia agir conforme sua vida exige.
Existem, é claro, níveis de força e, portanto, níveis pelos quais sua vida pode ser sufocada pela
força. Ser alvo de um tiro na cabeça é um caso extremo que, provavelmente, acabaria com sua
vida. Ser jogado num campo de concentração é um nível ligeiramente menor de força, que pode
deixá-lo vivo por algum tempo, embora o incapacite de viver uma vida humana. Ter suas
economias roubadas é um nível substancialmente menor de força, que pode deixá-lo livre para
agir como sua vida exige de muitas outras maneiras, mas que, não obstante, o impede de fazê-lo
quando de sua aposentadoria.
Então, embora a força seja imposta em níveis, qualquer nível impede uma pessoa de atuar como
sua vida exige. Se, e na medida em que as pessoas ou os governos impedem um indivíduo de agir
como a sua vida exige, ele não pode agir como sua vida exige. Nenhuma crença (fé) ou
referência a Deus é necessária para entender tal ponto: é um fato observável.
A razão porque precisamos do direito à vida é que é uma exigência factual da vida humana num
contexto social. Na medida em que as pessoas ou os governos usam a força contra você, estão
impedindo-o de agir como sua vida exige; logo, violam seu direito à vida. Ter uma compreensão
firme, lógica e baseada na observação do direito à vida, permite que você saiba e diga àqueles
que usam ou tentam usar a força contra você, que estão totalmente errados ao fazê-lo - e que
você (ou um agente em seu nome) estão objetivamente justificados a usar qualquer força
retaliatória necessária para impedir que opressores violem seu direito à vida.
Agora, um esquerdista (ou qualquer outro irracionalista) pode perguntar: "por que importa se
você pode ou não viver?" E a resposta mais breve (se você se dignar a responder) é: porque se
você não pode viver, então nada importa. A vida é a condição fundamental para a possibilidade
de qualquer coisa importar ou não importar, para a possibilidade de qualquer conceito avaliador -
seja "bom" ou "ruim", "certo" ou "errado", "deve" ou "não deve", "importa" ou "não importa".
Essas ideias têm significado apenas em relação à vida.
É por isso que o direito à vida é o direito fundamental, pois é dele que se origina a necessidade
de escolhas, ações, valores, princípios ou políticas.
Estes são fatos observáveis por quem escolhe olhar para a realidade e pensar: não é necessário fé
ou crença em Deus. E esses fatos e outros relacionados é o que dá origem ao direito à vida: o fato
observável que você deve ser livre para tomar todas as medidas necessárias para sustentar e
promover sua vida (desde que não viole o mesmo direito de outros).
Por que precisamos do direito à liberdade?
Por que precisamos de liberdade para agir com base em nosso julgamento? A resposta é: porque
nosso julgamento racional é o nosso meio básico de sobrevivência.
Embora possamos discordar sobre o que constitui um julgamento racional num caso específico,
podemos observar que os seres humanos vivem por meio de seu julgamento racional - isto é,
pensando racionalmente e agindo em conformidade.
Por que olhamos para os dois lados antes de atravessar a rua? Porque é racional fazê-lo. Por que
não tentamos viver com uma dieta à base de pizza e sorvete, excluindo todos os outros
alimentos? Porque seria irracional fazê-lo. Por que procuramos um bom médico em caso de
doença? Porque é racional fazê-lo. Por que pensamos em nosso futuro, decidimos o que
queremos ser, fazemos planos para alcançar nossos objetivos e agimos de acordo com o nosso
julgamento? Porque é racional fazê-lo. Por que ensinamos nossos filhos a pensar antes de agir?
Porque sabemos que agir de acordo com o julgamento racional é o meio básico de sobrevivência
de alguém. Tais fatos são claros para qualquer um que opte por observar a realidade e pensar.
E assim como podemos observar o fato de que nosso julgamento racional é nosso meio básico de
sobrevivência, observamos que, se não somos livres para agir de acordo com nosso julgamento,
não podemos viver plenamente como seres humanos.
Se o seu julgamento racional lhe diz que você deve poupar para eventuais problemas de saúde - e
se o governo obrigá-lo a depositar esse dinheiro em um fundo de "cuidados médicos" aprovado
pela política governamental, então você não pode agir de acordo com seu julgamento. Você não
pode depositar seu dinheiro onde pensa que deveria. Você não pode agir de acordo com o seu
meio básico de sobrevivência: o julgamento de sua mente. Da mesma forma, se o seu juízo
racional lhe disser que você deve negar que a "mudança climática" é um problema, ou que você
deve se pronunciar contra a religião assassina do Islã, ou que você deve se casar com seu amante
gay ou que deve testar uma droga experimental que pode salvar a sua vida - se o governo proibi-
lo de fazê-lo, então você não pode agir de acordo com o julgamento da sua mente.
Como seres humanos, nossa mente é nosso meio básico de sobrevivência. Se somos totalmente
livres para agir em nosso julgamento racional, somos livres para viver plenamente como seres
humanos. Na medida em que não somos livres para agir em nosso julgamento - na medida em
que outras pessoas ou governos nos forçam a agir em contradição com o nosso julgamento - não
podemos viver como seres humanos: somos obrigados a viver como propriedade ou servos do
Estado.
Uma vida humana é uma vida guiada pelo julgamento da própria mente. É por isso que a
escravidão está errada. É por isso que a servidão está errada. É por isso que a violação está
errada. E é por isso que é errado o governo forçar as pessoas a agir contra o seu julgamento de
qualquer maneira - seja forçando-nos a comprar Obamacare, a nos alistarmos ao exército, a rezar
ou a assar um bolo. Forçar as pessoas a agir contra o próprio julgamento é factualmente incorreto
e totalmente ilegal, haja vista que as impede de atuar conforme os requisitos de sua vida.
Declarado positivamente: as pessoas têm o direito de agir sobre o seu julgamento (desde que não
violem os mesmos direitos dos outros) porque agir em seu julgamento é um requisito factual de
sua vida como seres humanos.
O direito à liberdade, tal qual o direito à vida, é derivado de fatos observáveis ??com respeito aos
requisitos da vida humana. E todos que estão dispostos a olhar para a realidade e a pensar podem
ver isso. Nenhuma fé é necessária. Nenhum Deus é necessário. Tudo o que é necessário é a
observação e a lógica.
Por que precisamos do direito à propriedade?
Por que precisamos de liberdade para manter e usar os produtos dos nossos esforços? A resposta
é: porque os seres humanos sobrevivem transformando as matérias-primas da natureza em bens
que podem sustentar e promover a vida humana – consumindo-os de acordo. Se somos
totalmente livres para fazê-lo, podemos viver plenamente como seres humanos; na medida em
que não somos livres para fazê-lo, não podemos viver como seres humanos.
Para viver, convertemos elementos da natureza em valores para a vida. Por exemplo, tiramos
peixes, mirtilos e espargos da natureza, transformando-os em alimentos que sustentam e
promovem nossa vida; extraímos árvores, argila e alcatrão da natureza e produzimos madeira,
tijolos e telhas; logo, utilizamos esses produtos para construir casas, fábricas e estádios que
sustentam e aprimoram nossas vidas; extraímos ferro, alumínio e níquel da natureza,
transformando-os em automóveis, aviões e aparelhos de ar condicionado, os quais são
alimentados pelo combustível que criamos a partir de petróleo, carvão e gás natural. E assim por
diante.
Para viver, devemos transformar as matérias-primas da natureza em bens que podem suportar
nossas vidas - e devemos ser livres para consumi-las ou usá-las. Se as pessoas ou os governos
impedem que você mantenha ou use os produtos do seu esforço - seja blueberries ou tijolos ou
qualquer outra coisa -, então, você não pode usar o produto do seu esforço; assim, você não pode
viver plenamente como ser humano.
Aqui, também, existem níveis, e eles importam. Mas a existência de níveis não altera os fatos
relevantes - o que, nesse caso, inclui o fato de que impedir a pessoa de manter ou usar o produto
de seu esforço é contrário aos requisitos de sua vida como ser humano.
Se você produz alimentos, mas é proibido de comê-lo, você morrerá de fome. Se você produz um
abrigo, mas é forçosamente proibido de usá-lo, você morrerá de frio. Se você é dono de uma
padaria, mas é forçosamente proibido de geri-la de acordo com seu julgamento, você não
morrerá devido a essa coerção, mas você não pode viver plenamente como ser humano, porque
você não pode agir completamente sobre o seu meio de sobrevivência: o julgamento da seu
mente. Esses são os tipos de fatos e observações que dão origem ao direito à propriedade. E uma
vez que esses fatos são enunciados, qualquer pessoa que opte por olhar para a realidade e pensar
pode verificá-los. Nem fé, nem Deus são necessários.
Por que precisamos do direito à busca da felicidade?
Por que precisamos de liberdade para atingir os valores e metas que escolhemos? A resposta é:
porque o propósito da vida é perseguir os valores e os objetivos que traçamos.
A vida consiste em perseguir os valores que lhe darão sentido. Se não podemos perseguir as
coisas que nos farão felizes, não tem sentido viver. Isso é verdade não só para você e para mim,
mas para cada indivíduo.
Enquanto a vida é o que dá origem à possibilidade de qualquer coisa que importe ou tenha valor,
a busca da felicidade - isto é, a busca do indivíduo por valores que lhe interessam - é o objetivo
da vida. É por isso que os Fundadores procuraram proteger o direito à busca da felicidade:
perseguir a felicidade é o propósito da vida.
Se você quiser perseguir uma carreira como músico, porque você acha que isso o fará feliz, mas
o Estado o obriga, em vez disso, a ser cobrador de impostos porque "isso é melhor para o bem
comum", então você não pode perseguir sua felicidade. Da mesma forma, se uma garota quer
perseguir uma educação porque ela vê isso como essencial para sua felicidade, mas o Estado
proíbe-a de fazê-lo porque "as mulheres não devem ser educadas", então, ela não pode perseguir
sua felicidade. Da mesma forma, se um homem quer comparecer à igreja, porque sente que isso
o fará feliz, mas o estado proíbe-o de fazê-lo porque "isso é contrário aos valores da
comunidade", então ele não consegue perseguir sua felicidade.
Novamente, a existência de níveis não altera os fatos relevantes, que neste caso incluem:
precisamos de liberdade para perseguir a felicidade porque precisamos buscar a felicidade para
viver uma vida humana plena. E precisamos do direito à busca da felicidade para que possamos
saber e dizer àqueles que interferem forçosamente em nossa busca que estão totalmente errados
em fazê-lo - e que estamos devidamente justificados a usar a força retaliatória necessária para
garantir nossa liberdade.
O que podemos ver por meio dos fatos e exemplos supracitados é que cada um dos principais
direitos sobre os quais a América foi fundada é, em última instância, fundamentado em fatos
percebíveis na realidade. As razões pelas quais precisamos desses direitos são os próprios fatos
que dão origem e apoiam esses direitos. E todos que estão dispostos a olhar para a realidade e
pensar podem ver isso.
Claro, algumas pessoas não estão dispostas a olhar para a realidade e pensar. Eles incluem
esquerdistas, "progressistas", jihadistas e teóricos. Mas todos os que se preocupam genuinamente
com a liberdade e estão dispostos a olhar para a realidade e pensam que os direitos à vida, à
liberdade, à propriedade e à busca da felicidade são baseados em fatos, ou seja, os requisitos
factuais da vida humana em um contexto social.
Se os conservadores querem manter a crença em Deus - e mesmo que eles desejem manter a
crença de que os direitos de alguma forma vêm de Deus - essa é sua prerrogativa. Mas se os
conservadores querem defender com sucesso os direitos e, assim, defender a liberdade e a
América, eles devem reconhecer que um argumento livre de evidências para os direitos é
problematicamente inferior a um argumento baseado em evidências. Eles devem reconhecer e
abraçar o fato de que existe uma base sólida baseada em evidências para esses direitos tão
valiosos, e que é essencial para a proteção dos direitos.
Frente ao exposto, não há motivo para um verdadeiro defensor da liberdade não abraçar os
fundamentos seculares dos direitos. E há um mundo inteiro de razões para todos os defensores da
liberdade abraçá-los.
Uma base/fundação secular dos direitos é a única coisa que pode unificar e fortalecer o direito
contra a esquerda. Todo mundo à direita que se preocupa em defender nossos direitos à vida, à
liberdade, à propriedade e à busca da felicidade deve reconhecer esse fato e agir em
conformidade. Falhar ao fazê-lo é renunciar a uma reivindicação de estar à direita.

AULA 2
O QUE É LIBERALISMO
Liberalismo é uma filosofia política ou ideologia fundada sobre ideais que pretendem ser da
liberdade individual e do igualitarismo. Os liberais defendem uma ampla gama de pontos de
vista, dependendo de sua compreensão desses princípios, mas em geral, apoiam ideias como
eleições democráticas, liberdade de expressão, direitos civis, liberdade de imprensa, liberdade
religiosa, livre-comércio, igualdade de gênero, estado laico, liberdade econômica e propriedade
privada.
O liberalismo transformou-se primeiramente em um movimento político durante o iluminismo,
quando se tornou popular entre filósofos e economistas no mundo ocidental. O liberalismo
rejeitou as normas sociais e políticas prevalecentes de privilégio hereditário, religião estatal,
monarquia absoluta e direito divino dos reis. O filósofo John Locke, do século XVII, é muitas
vezes creditado como fundador do liberalismo como uma tradição filosófica distinta. Locke
argumentou que cada homem tem um direito natural à vida, liberdade e propriedade,
acrescentando que os governos não devem violar esses direitos com base no contrato social. Os
liberais opuseram-se ao conservadorismo tradicional e procuraram substituir o absolutismo no
governo pela democracia representativa e pelo Estado de direito.
Prominentes revolucionários na Revolução Gloriosa, Revolução Americana e na Revolução
Francesa, usaram a filosofia liberal para justificar a derrubada armada do que eles viam como
tirania. O liberalismo começou a se espalhar rapidamente, especialmente depois da Revolução
Francesa. No século XIX, foram estabelecidos governos liberais em nações da Europa, América
do Sul e América do Norte. Nesse período, o opositor ideológico dominante do liberalismo
clássico foi o conservadorismo, mas o liberalismo sobreviveu aos grandes desafios ideológicos
de novos adversários, como o fascismo e o comunismo.

ARTIGO I

O que é Liberalismo Clássico?


Por Lew Rockwell
A cada quatro anos, à medida que a eleição presidencial se aproxima, eu tenho o mesmo sonho:
eu não sei ou não me importo em saber quem seja o presidente. Mais importante: eu não preciso
saber, nem me preocupar com isso. Eu não tenho que votar ou prestar atenção em debates. Eu
posso ignorar todas as propagandas políticas. Não existem riscos em jogo, seja para o meu país
ou para minha família. Minha liberdade e minha propriedade estão tão asseguradas que,
francamente, não faz diferença quem vença. Eu nem preciso saber seu nome.
Nesse meu devaneio, o presidente é apenas uma figura representativa, sem autoridade real; um
símbolo, que é quase invisível para mim e para minha comunidade. Ele não tem a riqueza
pública à sua disposição. Ele não administra ministérios reguladores. Ele não pode nos taxar,
nem mandar nossos filhos para guerras no estrangeiro, nem dar subsídios aos ricos ou aos
pobres, nem indicar juízes que irão retirar nosso direito à autonomia, nem controlar um banco
central que inflaciona a oferta monetária e provoca os ciclos econômicos, e nem mudar as leis
autoritariamente — seja para agradar aos interesses especiais daqueles de quem ele gosta, seja
para punir aqueles que o desagradam.
A Função do Presidente
Sua função é simplesmente supervisionar um governo minúsculo, virtualmente sem poder,
exceto para arbitrar disputas entre estados, que são as principais unidades governamentais. Ele é
o líder do estado, mas nunca o líder do governo. Sua posição, na verdade, é de constante
subordinação aos funcionários ao redor dele e aos milhares de políticos em nível estadual e
municipal. Ele adere às rigorosas regras da lei e está sempre ciente de que, no momento em que
ele cometer uma transgressão e tentar expandir seu poder, será impedido e deposto como um
criminoso.
Mas um impeachment não é algo provável, pois a sua simples ameaça basta para lembrar o
presidente de qual é o seu lugar. Esse presidente é também um homem de caráter excepcional,
bem respeitado pelas elites naturais da sociedade, uma pessoa cuja integridade é inquestionável e
confiada por todos que o conhecem, uma pessoa que representa o melhor daquilo que o país é.
O presidente pode ser um herdeiro rico, um empresário de sucesso, um intelectual altamente
preparado, ou um fazendeiro proeminente. Independente disso, seus poderes são mínimos. A sua
equipe é minúscula, e está quase sempre ocupada com assuntos cerimoniais, como a assinatura
de proclamações e o agendamento de encontros com outros chefes de estado.
A presidência não é uma posição a ser avidamente perseguida, mas, sim, concedida como
honorária e temporária. Para garantir que isso ocorra, a pessoa escolhida para vice-presidente é o
principal adversário político do presidente. O vice-presidente, portanto, serve como uma
lembrança constante de que o presidente é eminentemente substituível. Dessa maneira, o cargo
de vice-presidente é muito poderoso — não em relação ao povo, mas para manter o executivo
sob estrita vigilância.
Mas para pessoas como eu, que têm outras preocupações que não políticas, pouco importa quem
seja o presidente. Ele e toda a sua equipe não afetam minha vida de maneira alguma. Sua
autoridade é principalmente social, e deriva da respeitabilidade que ele tem perante as elites
naturais da sociedade. Essa autoridade se perde tão facilmente quanto se ganha, portanto é
improvável que ela seja abusada.
Esse homem é eleito indiretamente, sendo os membros dos colégios eleitorais escolhidos de
acordo com critérios estaduais, com uma única ressalva: nenhum desses membros pode ser
funcionário público federal. Nos estados que escolhem seus membros através do voto
majoritário, não são todos os cidadão ou residentes que podem participar. Os que podem
realmente votar, uma pequena porcentagem da população, são aqueles que verdadeiramente têm
em mente os melhores interesses da sociedade. Esses indivíduos são aqueles que são donos de
propriedades, chefes de famílias, e os realmente instruídos. Eles escolherão um homem cuja
função é pensar somente na segurança, na estabilidade e na liberdade desse país.
O Governo Invisível
Aqueles que não votam e não ligam para política têm sua liberdade garantida. Eles não têm
direitos especiais, contudo seus direitos à individualidade, à propriedade e à autonomia nunca
são postos em dúvida. Por essa razão, e por todos os propósitos práticos, eles podem se esquecer
do presidente e, consequentemente, do resto do governo federal. Não faz diferença se ele existe
ou não. As pessoas não pagam impostos diretamente a ele. Ele não diz às pessoas como elas
devem conduzir suas vidas. Ele não as manda para guerras, não controla suas escolas, não paga
suas aposentadorias, e muito menos as emprega para espionar e extorquir seus concidadãos. O
governo é praticamente invisível.
As controvérsias políticas que me envolvem tendem a ser em nível comunitário, municipal ou,
no máximo, estadual. E isso ocorre para todos os assuntos, incluindo impostos, educação, crime,
assistencialismo, e até imigração. A única exceção é a defesa geral da nação, embora o exército
de prontidão seja bem pequeno e com várias milícias baseadas nos estados, em caso de
necessidade. O presidente é o comandante-em-chefe das forças armadas federais, mas essa é uma
posição secundária a menos que o congresso declare guerra. Essa função requer não mais do que
garantir a impenetrabilidade das fronteiras por agressores estrangeiros, uma tarefa relativamente
fácil considerando a nossa geografia e o oceano que nos separa daquele mundo velho e em
incessante animosidade.
No meu sonho, há dois tipos de representantes públicos em Washington: membros da Câmara
dos Deputados, um enorme corpo de políticos que cresce junto com a população, e um Senado
eleito por legislaturas estaduais. A Câmara trabalha para manter o Senado federal sob controle, e
o Senado trabalha para manter o executivo sob controle.
O poder legislativo sobre o público praticamente não existe. Os congressistas têm poucos
incentivos para aumentar seu poder porque eles próprios são cidadãos reais. Meu deputado mora
a menos de um quilômetro da minha casa. Ele é meu vizinho e meu amigo. Eu não conheço meu
senador federal, e não preciso conhecer, porque ele se reporta aos legisladores estaduais que eu
conheço.
Assim, no meu sonho, não há praticamente nada em jogo na próxima eleição presidencial. Não
importa qual seja o resultado, eu mantenho minha liberdade e minha propriedade.
Extrema Descentralização
A política desse país é extremamente descentralizada, mas a população é unida por uma
economia que é perfeitamente livre e por um sistema de comércio que permite às pessoas se
associarem voluntariamente, inovarem, pouparem, e trabalharem baseando-se em benefícios
mútuos. A economia não é controlada, estorvada ou mesmo influenciada por qualquer comando
central.
As pessoas são permitidas de ficar com aquilo que ganham. A moeda que elas usam para
comerciar é sólida, estável, e lastreada por ouro. Capitalistas podem abrir e fechar seus negócios
à vontade. Trabalhadores são livres para aceitar qualquer trabalho que quiserem, sob qualquer
salário e na idade que quiserem. Os negócios têm apenas dois objetivos: servir o consumidor e
obter lucros.
Não existem controles trabalhistas, benefícios compulsórios, impostos sobre folhas de
pagamento, ou outras regulamentações. Por essa razão, cada um se especializa naquilo em que é
melhor, e as trocas pacíficas entre os empreendimentos voluntários causam crescentes ondas de
prosperidade por todo o país.
O formato que a economia vai tomar -- seja agrícola, industrial, ou de alta tecnologia — não
interessa ao governo federal. Permite-se que o comércio aconteça livre e naturalmente, e todos
compreendem que ele deve ser gerenciado por proprietários, não por funcionários públicos. O
governo federal não poderia criar impostos quando quisesse, muito menos taxar a renda, e o
comércio com nações estrangeiras seria competitivo e livre.
Se por algum motivo esse sistema de liberdade começar a se decompor, a minha própria
comunidade — o estado no qual eu moro — tem uma opção: se separar do governo federal,
formar um novo governo, e se juntar a outros estados nesse esforço. A constituição, como é do
conhecimento pleno, permite a secessão. Essa foi parte da garantia requerida para tornar possível
que o país fosse uma federação. E, de tempos em tempos, os estados ameaçam uma secessão,
apenas como forma de mostrar ao governo federal quem está no comando.
Esse sistema reforça o fato de que o presidente não é o presidente do povo americano, muito
menos seu comandante-em-chefe, mas meramente o presidente dos Estados Unidos. Ele serve
apenas com sua permissão e somente como líder simbólico dessa união voluntária de
comunidades políticas mais importantes. Esse presidente jamais poderia fazer pouco caso dos
direitos dos estados, muito menos violá-los na prática, porque assim ele estaria traindo seu
juramento e arriscando ser expelido do cargo.
Nessa sociedade sem administração central, uma vasta rede de associações privadas serve como
a autoridade social dominante. Comunidades religiosas exercem vasta influência sobre a vida
pública e privada, assim como o fazem também entidades civis e líderes comunitários de todos
os tipos. Eles criam uma enorme miscelânea de associações e uma verdadeira diversidade na
qual cada indivíduo e grupo encontra um lugar.
Essa combinação de descentralização política, liberdade econômica, livre comércio, e autonomia
cria, dia após dia, a mais próspera, diversa, pacífica e justa sociedade que o mundo jamais
conheceu.
Sem Utopia
Seria isso uma utopia? Na verdade, nada mais é do que o resultado da minha premissa inicial:
que o presidente dos EUA é tão restringido que não é nem importante saber quem ele é. Isso
significa uma sociedade livre que não é controlada por ninguém, exceto por seus membros em
suas qualidades de cidadãos, pais, trabalhadores e empreendedores.
Como vocês já devem ter percebido, meu devaneio consiste naquilo que nosso sistema foi
concebido para ser em cada detalhe. Ele foi criado pela Constituição dos EUA, ou, pelo menos,
pelo sistema que a vasta maioria dos americanos acreditava que teria com a Constituição
americana. Esta era a mais grandiosa e mais livre república do mundo, por mais irreconhecível
que isso seja hoje.
Esse era o país onde as pessoas deveriam governar a si mesmo e a planejar sua própria economia,
e não tê-la planejada por Washington, D.C. O presidente nunca se interessaria pelo bem-estar do
povo americano porque o governo federal não teria voz nesse assunto. Isso seria deixado para as
comunidades políticas populares decidirem.
Antes de a Constituição ser ratificada, havia alguns céticos chamados de anti-federalistas. Eles
estavam insatisfeitos com qualquer movimento que se afastasse da extrema descentralização
proposta pelos Artigos da Confederação. Para aplacar seus temores, e para garantir que o
governo federal fosse mantido sob controle, os autores restringiram ainda mais seus poderes com
a Declaração de Direitos (Bill of Rights). Essa lista não foi feita para restringir os direitos dos
estados. Ela nem mesmo se aplicava a eles. Ela limitava ao máximo tudo aquilo que o governo
central poderia fazer aos indivíduos e às suas comunidades.
Como Tocqueville havia observado a respeito da América, mesmo já nos idos de 1830, "em
alguns países existe um poder que, mesmo que ele esteja em um grau externo ao corpo social,
ainda assim é capaz de dirigi-lo e forçá-lo a se manter em uma certa conduta. Em outros, a força
dominante está dividida, estando parcialmente dentro e parcialmente fora do grupo do povo. Mas
nada desse tipo é observado nos EUA; lá, a sociedade governa a si própria e para si própria" e
"raramente se encontra um indivíduo que se aventuraria a conceber, ou, menos ainda, expressar a
idéia" de qualquer outro sistema.
Quanto à presidência, Tocqueville escreveu que, "o poder daquele ofício é temporário, limitado e
subordinado" e "nenhum candidato foi ainda capaz de incitar o perigoso entusiasmo ou a
simpatia passional do povo a seu favor, pela simples razão de que quando ele está na chefia do
governo, ele tem pouco poder, pouca riqueza, e pouca glória para compartilhar com seus amigos;
e sua influência no estado é muito pequena para que o sucesso ou a ruína de uma facção dependa
de sua elevação ao poder".
Aquela América jamais teria tolerado uma atrocidade como o Americans With Disabilities Act —
ADA (ato em prol dos americanos deficientes). Eis uma lei que governa o modo como cada
prédio nos EUA deve ser estruturado. Ela tem um poder de veto sobre cada decisão de emprego
no país. Ela ordena que as pessoas não levem em consideração as habilidades das outras pessoas
nas relações econômicas diárias. Tudo isso é impingido arbitrariamente por um exército de
burocratas permanente trabalhando conjuntamente com advogados que se enriquecem
rapidamente se souberem manipular o sistema.
A ADA é meramente um exemplo, dentre dezenas de milhares, que teria sido considerado
pavoroso e, de fato, inimaginável, pelos autores. Não é porque eles não gostassem de pessoas
deficientes ou que pensassem que as pessoas devessem ser discriminadas a favor ou contra. É
porque eles se apegaram a uma filosofia de governo e de vida pública que excluía até mesmo a
possibilidade de tal lei. Essa filosofia era chamada de liberalismo.
Liberalismo
Nos séculos XVIII e XIX, o termo liberalismo geralmente se referia a uma filosofia de vida
pública que afirmava o seguinte princípio: sociedades e todas as suas partes não necessitam de
um controle central administrador porque as sociedades normalmente se administram através da
interação voluntária de seus membros para seus benefícios mútuos. Hoje não podemos chamar de
liberalismo essa filosofia porque esse termo foi apropriado por democratas totalitários. Em uma
tentativa de recuperar essa filosofia ainda em nosso tempo, damos a ela um novo nome:
liberalismo clássico.
Liberalismo clássico significa uma sociedade na qual meu sonho é uma realidade. Não
precisamos saber o nome do presidente. O resultado das eleições é altamente irrelevante porque a
sociedade é regida por leis e não por homens. Não tememos o governo porque ele não nos tira
nada, não nos dá nada, e nos deixa em paz para moldarmos nossas vidas, comunidades e futuros.
Essa visão do governo e da vida pública foi destruída em nosso século e em quase todos os
países do mundo. No nosso caso, o presidente dos EUA não é apenas extremamente poderoso,
especialmente se levarmos em conta todas as agências executivas que ele controla; ele é
provavelmente o homem mais poderoso da terra — excetuando-se, é claro, o presidente do
conselho do Federal Reserve. (O presidente do Banco Central).
Há um mito popular nesse país de que o cargo de presidente santifica o homem. Apesar de toda a
intimidação e severidade com a qual Richard Nixon foi tratado durante sua presidência, e da
humilhação de sua renúncia, os testemunhos e tributos em seu funeral falavam de um homem
que havia ascendido a um status divino, como algum imperador romano. Mesmo com todos os
problemas de Clinton, não tenho dúvidas de que ele teria sido tratado da mesma maneira. Esse
processo de santificação se aplica até mesmo a nomeados para cargos públicos: Ron Brown, um
corrupto "solucionador de problemas", ascendeu a um status divino apesar do fato de que seus
problemas legais estavam prontos para varrê-lo pra cadeia.
Anti-Governo?
Claro, meus comentários podem ser denunciados como anti-governo. Dizem-nos diariamente que
as pessoas que são anti-governo são uma ameaça pública. Mas, como Jefferson escreveu nas
Resoluções de Kentucky (Kentucky Resolutions), um governo livre é fundamentado na
desconfiança, e não na confiança. "Em questões de poder, portanto, não mais deixemos que se
ouça sobre confiança no homem, mas retenha-o da injúria usando as correntes da Constituição".
Ou como Madison disse no Federalist, "Todos os homens que têm poder devem ser desconfiados
até um certo grau". Podemos adicionar dizendo que qualquer governo que empregue três milhões
de pessoas, a maioria delas armadas até os dentes, deve ser desconfiado até um enorme grau.
Essa é uma atitude cultivada pela mente liberal-clássica, que premia e incentiva a liberdade dos
indivíduos e das comunidades para controlarem suas próprias vidas.
Poderíamos multiplicar infinitamente as declarações "anti-governo" feitas pelos autores. Eles
tiveram que explicar nos mínimos detalhes a sua teoria a respeito dos negócios públicos — a
teoria do liberalismo clássico — porque em meados e fins do século XVIII essa teoria estava sob
fogo cerrado, sendo atacada por um novo tipo de absolutismo, e Rousseau era seu profeta. Em
sua visão, um governo democrático incorporava a vontade geral do povo, essa vontade era
sempre certa, e, assim, o governo deveria ter poder centralizado e absoluto sobre uma nação-
estado militarizada, unificada e igualitária.
O século XX foi o século de Rousseau. E com a ajuda das doutrinas estatistas de Marx e Keynes
este foi também o mais sanguinário dos séculos da história humana. A idéia de governo que esses
autores tinham era exatamente oposta à do pensamento liberal-clássico. Eles alegam que a
sociedade não pode governar a si mesma; ao invés da vontade geral, os interesses do proletariado
ou os planos econômicos das pessoas precisam ser organizados e incorporados na nação e
naqueles que a controlam. Essa é uma visão de governo que os autores corretamente viram como
despótica, e tentaram impedir que criassem raízes por aqui.

É óbvio, eles não obtiveram um sucesso completo. Dois séculos de guerras, crises econômicas,
emendas constitucionais despropositadas, usurpações feitas pelo executivo, rendição do
congresso, e imperialismo judicial suscitaram uma forma de governo que é exatamente o
contrário da imaginada pelos autores, e oposta ao liberalismo clássico. A habilidade do governo
federal, com o presidente como seu chefe principal, de taxar, regulamentar, controlar e dominar
completamente a vida nacional está praticamente sem limite nos dias atuais.
O Presidente Não-Liberal
Quando a constituição foi escrita, Washington, D.C, era um pantanoso pasto para vacas com
apenas algumas construções, e a sociedade americana era a mais livre do mundo. Hoje, a área
metropolitana de D.C é a mais rica da face da terra porque é a sede do maior governo do mundo.
O governo dos EUA tem mais pessoas, recursos e poder à sua disposição do que qualquer outro.
Ele regulamenta mais, e com maior fineza de detalhes, do que qualquer governo no planeta. Seu
império militar é o mais vasto e de maior presença internacional da história do mundo. Sua carga
tributária anual faz com que a produção total da velha União Soviética seja insignificante.
Quanto ao sistema federal, trata-se mais de um slogan do que de uma realidade. De tempos em
tempos, ouvimos algo sobre retornar o poder aos estados ou banir ordens judiciárias infundadas.
Bob Dole[1] diz carregar em seu bolso uma cópia da décima emenda[2]. Mas não leve sua
retórica muito a sério. Os estados são meros anexos do poder nacional, em virtude dos mandados
aos quais são submetidos, das propinas que aceitam, e dos programas que gerenciam.
O indivíduo, a família, e a comunidade — as unidades essenciais da sociedade na era pré-
estatista — não só foram reduzidos a servos federais, tendo apenas a liberdade que o governo os
permite ter, como também foram obrigados a agir como parte de uma ordem nacional coletivista
que está por toda parte. Nenhuma grande figura política nacional propõe mudar isso.
Descontentamento Público
A realidade, no entanto, é que as pessoas não estão satisfeitas com esse arranjo. Durante a Guerra
Fria, o público foi persuadido a ceder uma quantidade surpreendente de sua liberdade pelo bem
da missão maior de afastar o comunismo. Antes disso, foi a Segunda Guerra Mundial, e antes foi
a Depressão, e antes a Primeira Guerra Mundial. Pela — e apenas — segunda vez nesse século,
vivemos na ausência de qualquer crise que o governo possa usar para suprimir os direitos que os
autores quiseram garantir [3].
Como resultado, a opinião pública hoje é esmagadoramente a favor de reduções no poder
governamental. Praticamente todo político desse país que vence uma eleição promete fazer algo
a respeito. Isso vale para os dois maiores partidos. Este ano, tanto Clinton quanto Dole irão
concorrer com programas que prometem, de um jeito ou de outro, reduzir o tamanho e o alcance
do poder federal.
Se relembrarmos novembro de 1994, ouvimos naquela época uma das mais radicais retóricas
anti-Washington vinda dos políticos desde 1776. Diferentemente da mídia, achei que isso foi
uma coisa maravilhosa. Os resultados, no entanto, foram menos do que impressivos. Impostos e
gastos estão maiores desde que os Republicanos conquistaram a maioria no Congresso. O
orçamento para ajudas ao exterior está maior. O estado regulador está mais invasivo do que
nunca. As peças centrais da agenda legislativa republicana — incluindo os projetos de lei para a
agricultura, adoção e áreas médicas — expandem o tamanho do governo, ao invés de encolhê-lo.
Existem muitas razões para isso, sendo as principais a duplicidade da liderança do Congresso e o
talento de seus aliados na imprensa conservadora, que dá a eles uma cobertura ideológica. Não
obstante, os novatos que foram eleitos — a quem a mídia descreve como agitadores políticos e
ativistas ideológicos -- merecem parte da culpa, pois careceram de uma lógica filosófica
consistente para se opor ao monstro que encontraram.
Considere por exemplo a questão do equilíbrio orçamentário. Todo político alega que quer um.
Todos os novatos prometeram que votariam por um. Mas eles foram imediatamente ludibriados
pela classe política. Quando eles quiseram cortar impostos, as elites se atiraram sobre eles
dizendo que isso iria aumentar o déficit. Imediatamente, eles foram confrontados com um
problema: como conciliar seu conservadorismo fiscal com seu desejo por menos impostos?
Essa confusão resulta de um erro intelectual. A prioridade é encolher o governo. Isso significa
que os impostos devem ser cortados em todo e qualquer lugar. E liberais clássicos bem escolados
sabem que os governos podem usar o embuste do equilíbrio orçamentário para se manter
inchados e em expansão contínua. Sabemos que impostos maiores tipicamente não diminuem o
déficit, e, mesmo que o fizessem, essa não seria uma maneira honrosa de proceder. O orçamento
federal não é um orçamento doméstico em maior escala; ele é uma gigantesca extorsão
redistributivista.
Esse fato suscita uma compreensão central da tradição intelectual liberal-clássica. O governo não
tem nenhum poder ou recurso que antes não tenha tomado das pessoas. Ao contrário das
empresas privadas, ele não pode produzir nada. O que quer que ele tenha, ele deve extrair da
iniciativa privada. Embora isso tenha sido bem compreendido no século XVIII, bem como em
grande parte do século XIX, tudo foi quase que totalmente esquecido no século do socialismo e
do estatismo, do Nazismo, do Comunismo, do New Deal, do assistencialismo, e das guerras.
Lições Aprendidas
À medida que nos aproximamos do século XXI, quais as lições que aprendemos do século que
fica? A mais importante refutação do socialismo veio de Ludwig von Mises, em 1922. Seu
tratado chamado Socialismo afastou pessoas boas de doutrinas ruins, e jamais foi refutado por
qualquer um dos milhares de marxistas e estatistas que o atacaram. Por causa desse livro, hoje
ele é reverenciado como um profeta, mesmo por social-democratas vitalícios que passaram anos
atacando e difamando-o.
Bem menos conhecido é um outro tratado que surgiu três anos depois. Era seu grande livro
Liberalismo. Tendo já atacado por completo o estatismo, ele viu ser necessário explicar
detalhadamente a alternativa. Foi o primeiro renascimento maciço do programa liberal-clássico
em muitas décadas, dessa vez vindo do principal economista político do continente.
Em sua introdução, Mises observava que a versão do liberalismo dos séculos XVIII e XIX havia
cometido um erro. Ela havia tentado falar não apenas de coisas materiais, mas também de
assuntos espirituais. Tipicamente, os liberais haviam se posicionado contra a igreja, o que teve o
desastroso efeito de influenciar e jogar a igreja contra o livre mercado e o livre comércio.
Para tentar evitar esse efeito polarizador, Mises deixou claro que o liberalismo "é uma doutrina
que se dirige inteiramente ao comportamento dos homens nesse mundo. Ela não tem nada mais
em vista que não a promoção do bem-estar material deles, e não se preocupa com suas
necessidades interiores, espirituais e metafísicas".
É claro que a vida dos homens é mais importante do que comer, beber e obter avanços materiais.
É por isso que o liberalismo não pretende ser uma teoria completamente desenvolvida sobre a
vida. Assim, a teoria liberal não pode ser repreendida por teólogos e conservadores como sendo
uma teoria puramente secular. Ela é secular apenas no sentido em que ela lida com assuntos que
são próprios do mundo político, e nada mais. Não há nada no liberalismo de Mises que alguma
pessoa religiosa deva contestar, desde que ela concorde que o avanço material da sociedade não é
moralmente censurável.
Outra mudança que Mises fez na tradicional doutrina liberal foi vinculá-la diretamente à ordem
econômica capitalista. Com bastante freqüência o liberalismo mais antigo oferecia uma
magnífica defesa da liberdade de expressão e de imprensa, mas negligenciava a dimensão
econômica, que é de total importância.
Esse vínculo direto que Mises fez entre o liberalismo e o capitalismo também ajudou a separar a
posição liberal das outras formas fraudulentas que estavam emergindo na Europa e nas Américas.
Esse falso liberalismo alegava que havia uma maneira de favorecer tanto a liberdade civil quanto
o socialismo, assim como a ACLU[4] dizia ontem e hoje.
Mas como Mises argumentava, a liberdade é uma peça única. Se o governo é grande e poderoso
o suficiente para aniquilar a liberdade de comércio, para inflacionar a moeda, ou para financiar
serviços públicos maciços, não se precisa de muito mais para também se controlar a imprensa e
todas as formas de expressão, e para se envolver em aventuras militares no estrangeiro.
Propriedade
Daí surge a mais famosa frase de Mises deste livro, a frase que alarmou e inspirou intelectuais
por todo o mundo: "O programa do liberalismo", se "condensado em uma única palavra, seria:
propriedade." Por propriedade, Mises se referia não apenas à propriedade privada em todos os
níveis da sociedade, mas também ao controle da mesma por seus próprios proprietários.
Com essa única demanda, que a propriedade e seu controle sejam mantidos em mãos privadas,
podemos ver como o estado deve necessariamente ser radicalmente limitado. Se o governo pode
somente trabalhar com os recursos que ele toma de outros, e se todos os recursos pertencem e são
controlados por entidades privadas, o governo está restringido.
Se a propriedade privada está segura, podemos contar com todos os outros aspectos da sociedade
para sermos livres e prósperos. A sociedade não pode se administrar a si própria a menos que
seus membros sejam donos da sua propriedade e controlem-na; inversamente, se a propriedade
está nas mãos do estado, ele vai controlar a sociedade originando os resultados catastróficos que
conhecemos tão bem.
Se os direitos de propriedades são estritamente protegidos, o estado não pode usar crises sociais
para obter vantagens e, consequentemente, poder — como fez durante guerras, depressões e
desastres naturais. Os limites sobre o governo se aplicam, independentemente de ocorrências.
Não há exceções. Assim, uma sociedade liberal-clássica não teria construído uma TVA[5], não
salvaria — utilizando dinheiro do contribuinte — fazendeiros texanos durante uma seca, não
mandaria homens em missões espaciais, e não teria taxado os americanos em seis trilhões de
dólares e despejado tudo em uma fracassada guerra contra a pobreza.
Liberdade
O segundo pilar de uma sociedade liberal, Mises dizia, é a liberdade. Isso significa que as
pessoas não são escravas umas das outras, e nem do governo; mas, sim, donas de si próprias,
sendo livres para perseguirem livremente seus interesses, contanto que não violem os direitos de
propriedades de outros. Mais importante, todos os trabalhadores são livres para trabalhar na
profissão de sua escolha, estabelecendo contratos livres e voluntários com seus empregadores, ou
se tornando empregadores eles próprios.
A combinação de liberdade e propriedade torna as pessoas capazes de exercitar o
importantíssimo direito da exclusão. Eu posso manter você fora da minha propriedade. Você
pode me manter fora da sua. Você não tem que comerciar comigo. Eu não tenho que comerciar
com você. O direito a exclusão, juntamente com o direito de comerciar largamente, é a chave de
uma sociedade pacífica. Se não podemos escolher a forma e o estilo das nossas associações,
então não somos livres em qualquer sentido.
O colapso da liberdade de associação, especialmente na forma de leis anti-discriminação, é uma
das principais razões de a acrimônia social ter aumentado tanto em nossa época. Apesar de serem
raramente questionadas, as leis anti-discriminação não podem se harmonizar com uma visão
liberal-clássica da sociedade. Uma associação que é forçada jamais pode ser boa para as partes
envolvidas, e nem para a sociedade em geral.
Qualquer discussão sobre esse assunto invariavelmente levanta a questão da igualdade. E aqui
encontramos outro aperfeiçoamento que Mises fez sobre modelos anteriores de liberalismo. Eles
estavam excessivamente apaixonados pela idéia de igualdade: não apenas como uma construção
legítima, mas também como algo a ser atingido pela criação de uma sociedade sem classes, o que
é totalmente ilógico.
Como Mises disse, "todo o poder humano seria insuficiente para tornar todos os homens iguais.
Os homens são e para sempre permanecerão desiguais". Ele argumentava que às pessoas não
poderia ser dada uma quantidade igual de riqueza ou mesmo oportunidades iguais para se
tornarem ricas. O melhor que a sociedade pode fazer para seus membros é estabelecer regras que
se apliquem a todos, de todas as classes. Essas regras não isentariam ninguém, incluindo os
regentes que estão no governo.
Os muito ricos estarão sempre com a gente, ainda bem, assim como também estarão os muito
pobres. Esses conceitos estão estreitamente ligados a sociedades e arranjos particulares, é claro,
mas do ponto de vista da política, é melhor que sejam ignorados. É função da caridade particular,
e não do governo, cuidar dos pobres, e protegê-los de serem arrastados para campanhas políticas
demagógicas que ameacem as liberdades essenciais.
Em uma sociedade liberal o governo não protege os indivíduos contra eles mesmos, não luta por
algum tipo de distribuição de riqueza, não promove uma região em particular, ou uma tecnologia,
ou um grupo, e não determina a distinção entre vícios pacíficos e virtudes. O governo central não
controla a sociedade ou a economia sob qualquer aspecto.
Paz
O terceiro pilar do liberalismo clássico é a paz. Isso significa que não pode haver amor à guerra,
e, quando ela ocorrer, não pode ser vista como algo heróico, mas apenas como uma tragédia para
todos. Ainda assim, continuamos a ouvir que guerras são boas para a economia, mesmo que elas,
sempre e em todo lugar, desviem recursos, alocando-os mal e destruindo-os. Mesmo o vitorioso,
Mises mostrou, perde. A guerra, disse Randolph Bourne, "é o alimento do estado".
O mesmo vale para o império. Os americanos se opuseram a uma presença hostil soviética em
nosso hemisfério. Entretanto, nunca consideramos como as pessoas no Japão, para ficar com
apenas um exemplo, podem se sentir a respeito do grande número de tropas americanas em seu
país. De longe, a maior causa de ocorrências criminais em Okinawa e no resto do Japão são as
tropas americanas. Mas será que as nossas tropas, nossos aviões, nossos navios e armas nucleares
"defendem" o Japão? Contra quem? Não, continuamos a ocupar o país 51 anos após o fim da
Segunda Guerra Mundial com o propósito único de controlar.
Se você quer descobrir o verdadeiro caráter de um homem, esqueça o que ele diz sobre si
mesmo, e veja como ele lida com outras pessoas. O mesmo se aplica ao governo. Podemos
esquecer suas afirmações; simplesmente observe como ele trata os outros. O estado liberal-
clássico é aquele que protege os direitos dos cidadãos comercializarem com povos estrangeiros.
Ele não anseia por conflitos externos de qualquer tipo. Ele não demanda, por exemplo, que
outros países comprem produtos produzidos por indústrias americanas influentes, da maneira que
a Kodak está exigindo, apoiada pelo poderio militar americano, que o Japão compre seus filmes.
Tampouco uma sociedade verdadeiramente liberal envia ajuda governamental para países
estrangeiros, suborna, prende ou mata seus regentes, diz a outros governos que tipo de país eles
devem ter, ou se envolve em esquemas globais para impor direitos assistencialistas sobre o
mundo. Entretanto, essas são atitudes que os EUA têm empreendido como sua política padrão
desde os anos 1930. Nossos dirigentes parecem pensar que eles sempre têm que estar subornando
alguém, bombardeando alguém, ou ambos. De outra maneira, corremos o risco de cairmos no
temível "isolacionismo".
Jonathan Kwitney[6] ilustrou a política externa americana da seguinte maneira: imaginemos que,
em intervalos mensais regulares, damos uma volta pelo quarteirão, batendo de porta em porta.
Em uma casa, anunciamos para nosso vizinho: "Eu gosto de você, eu aprovo você, aqui estão
$1.000". Na próxima casa, fazemos a mesma coisa. Mas na terceira casa, dizemos: "Eu não gosto
de você, eu não aprovo você". Então levamos a mão para baixo do casaco, sacamos uma
espingarda serrada calibre 12, e o trucidamos, junto com toda sua família.
E assim vamos nós, andando pelo quarteirão, de tempos em tempos, dando dinheiro para alguns,
matando outros, e tomando decisões baseadas em interesses que temos naquele momento, sem
regras claras.
Meu palpite é que não seríamos muito populares. Pense nisso na próxima vez que vir um
comício "anti-EUA" na televisão. Essas pessoas podem estar recebendo nossa ajuda externa, mas
elas também podem estar pensando que serão o próximo Iraque, Haiti, Somália, ou Panamá.
Uma política externa liberal-clássica não é política externa alguma, exceto, como George
Washington disse, se for para comercializar com todos e não ser beligerante com ninguém.
Restauração
Esses três elementos — propriedade, liberdade, e paz — são a base do programa liberal. Eles são
o âmago de uma filosofia que pode restaurar nossa prosperidade perdida e nossa estabilidade
social. Contudo, apenas comecei a arranhar a superfície do programa liberal. Ainda há muito a
ser dito sobre política monetária, tratados de comércio, esquemas de seguridade social, e muito
mais. No entanto, se nossa classe política pudesse entender esse núcleo de liberdade,
propriedade, e paz, estaríamos muito melhores, e eu me sentiria mais confiante de que a próxima
leva de novatos que mandarmos para Washington iria ficar de olho no prêmio, que não é a
redistribuição ou a concessão de direitos especiais, mas a liberdade.
"O liberalismo", escreveu Mises, "procura dar aos homens apenas uma coisa: o desenvolvimento
pacífico e imperturbável do bem-estar material para todos, para que, por meio disso, possa
protegê-los das causas externas de dor e sofrimento, desde que essas causas estejam apenas em
poder de instituições sociais, e não do estado. Diminuir o sofrimento, aumentar a felicidade: esse
é o objetivo".
O liberalismo clássico funcionaria nos dias de hoje? Pense nas questões litigiosas da sociedade
atual. Cada uma certamente envolve uma área que está relacionada com alguma forma de
intervenção governamental. Os conflitos atuais giram em torno do desejo de apoderar-se da
propriedade de terceiros usando para esse fim o aparato político de coerção que é o estado. A
nossa sociedade seria mais pacífica e próspera se tivesse seguido o programa liberal? A pergunta
carrega sua própria resposta.
Agora, de volta ao meu devaneio. Eu não conheço e nem me preocupo em conhecer as políticas
presidenciais porque elas não importam de maneira alguma. Minha liberdade e propriedade estão
tão asseguradas que, francamente, não faz diferença quem vença as eleições. Mas, para atingir
esse objetivo, nenhum de nós pode abster-se das batalhas políticas e intelectuais de nossa época.
Mesmo quando a visão liberal-clássica tiver sido restaurada nesse país, como acredito que pode e
será, não podemos nos dar ao luxo de descansar.
O Prometeus, de Goethe, brada:
Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?
E Fausto responde com sua "última palavra de sabedoria":
Só merece a liberdade e a vida
aquele que tem de conquistá-las todos os dias.

[1] Candidato republicano à presidência dos EUA em 1996. [N. do T.]


[2] A décima emenda da Constituição americana diz que os estados e o seu povo são soberanos,
independentes e livres para criar seus próprios poderes quando a Constituição não os proibir de
fazer isso. [N. do T.]
[3] Ausência essa que já se foi com o advento do 11 de setembro e a "guerra ao terror" que se
originou ali. [N. do T.]
[4] A American Civil Liberties Union (União Americana pelas Liberdades Civis) é uma ONG
cuja função auto-arrogada seria a de defender as liberdades individuais dos cidadãos. No entanto,
o que ela faz mesmo é defender apenas causas politicamente corretíssimas. [N. do T.]
[5] Tennessee Valley Authority — estatal criada em 1933, durante o New Deal, para controlar a
geração de eletricidade, a navegação no rio Tennessee, a manufatura de fertilizantes, e fomentar
o desenvolvimento econômico do Vale do Tennessee, uma região que foi mais fortemente
impactada durante a Grande Depressão. A intenção era ter a TVA como uma agência de
desenvolvimento, utilizando verbas federais e a geração de eletricidade para modernizar
rapidamente a economia da região. [N. do T.]
[6] Ex-jornalista do Wall Street Journal. [N. do T.]

ARTIGO II

Vamos erradicar a pobreza, e não destruir a riqueza


Por Daniel Lacalle
O enfoque na desigualdade serve apenas para enriquecer os redistributivistas
Quando você terminar de ler este artigo, aproximadamente 600 pessoas ao redor do mundo terão
saído da pobreza.
Em 1990, 35% da população mundial viviam na pobreza extrema. Hoje, essa cifra caiu para
10,7%, segundo o Banco Mundial.
Em 1987, havia 660 milhões de pobres na China. Após o país abrir sua economia, essa cifra caiu
para apenas 25 milhões. No mesmo período, na Índia, o número de cidadãos pobres foi reduzido
em mais de 100 milhões de pessoas.
Adicionalmente, 140 milhões de pessoas se juntam à classe média a cada ano.
Apesar destas conquistas, estamos vivendo em uma época em que estas excelentes notícias são
ignoradas em prol de discursos raivosos e intervencionistas sobre a riqueza. Diariamente, você lê
nos jornais coisas como "1% do mundo controla 87% da riqueza", e se depara com afirmações
incrivelmente asininas do tipo "se os 10% mais ricos do mundo abrissem mão de toda a sua
riqueza, não haveria mais pobreza". (Uma falácia econômica tão auto-evidente, que é incrível
que ela ainda seja vocalizada por um indivíduo dotado da razão.)
Os 635 milhões de chineses que saíram da pobreza nos últimos 30 anos discordam. Eles
certamente se alegram com o fato de a China ser o país onde surge o maior número de
milionários por ano, e onde a classe média mais cresce. E, graças à prosperidade, há uma
"crescente desigualdade" que nada tem de negativo, mas sim de positivo. (Afinal, como mostra a
história, é a desigualdade de riqueza o que acaba reduzindo a pobreza).
A desigualdade na China era de 0,30 quando o país estava passando fome. Hoje, ela é de 0,50, e
a vasta maioria dos cidadãos chineses está mais rica e com um padrão de vida muito maior. Ao
longo dos últimos 30 anos, a renda per capita urbana disponível cresceu a uma impressionante
taxa de 13,2% ao ano, ao passo que a fatia da população que vive em áreas urbanas aumentou de
22 para 53%.
Graças a uma maior liberalização econômica, à abertura da economia, e a um maior grau de
capitalismo, milhões de pessoas pobres saíram da pobreza, outros milhões se juntaram à classe
média, e alguns poucos, graças ao progresso, se tornaram milionários. O que exatamente há de
ruim nisso?
No entanto, os intervencionistas não se concentram nos modelos bem-sucedidos que geraram
essa queda sem precedentes na pobreza. Não, eles se concentram apenas na "desigualdade" (a
qual, de novo, é tanto a causa quanto a consequência do progresso). Mas é até compreensível
essa mudança de foco: afinal, se o mundo erradicar a pobreza, acabou o trabalho do burocrata.
Capitalismo e mercados mais livres não apenas são o melhor e mais eficaz arranjo para reduzir a
pobreza, como também as sociedades capitalistas prosperam exatamente ao reduzir a pobreza e
aumentar a classe média. Menos pobreza e mais classe média significam mais e melhores
consumidores, mais e melhores produtos ofertados, e mais desenvolvimento. E, com tudo isso,
mais lucros e melhores serviços públicos.
Os únicos prejudicados por essa efetiva redução da pobreza que vem ocorrendo ao redor do
mundo são os burocratas cujas carreiras dependem exatamente da existência de pobres, pois só
assim eles podem defender suas políticas intervencionistas (quase sempre em benefício próprio).
Esses são os "pobristas", os reais defensores da pobreza, os "redistributivistas do nada".
Ao contrário do que os defensores da repressão fiscal dizem, o capitalismo não se beneficia da
pobreza. São a burocracia e o intervencionismo que se "beneficiam" da existência de pobres, os
quais se tornam reféns de uma involuntária relação em que os burocratas controlam a faca que irá
"repartir o bolo" ao mesmo tempo em que enriquecem e se regozijam desta "solidariedade" com
o dinheiro alheio. (Para se ter uma ideia, os burocratas da Oxfam são mais ricos que 99,7% da
população mundial).
Problema de lógica básica
Acreditar que confiscar a riqueza dos ricos irá acabar com a pobreza é um pensamento ignaro.
Parece incrível que, em pleno 2018, seja necessário relembrar as pessoas de todos os desastres e
do exponencial aumento da pobreza que se seguiram a todos os episódios de expropriação dos
ricos, desde os assignats após a Revolução Francesa, passando por todas as experiências
socialistas da China, da URSS, de Cuba e da Coreia do Norte, até os recentes exemplos da
Grécia, da Argentina, do Zimbábue, da Venezuela etc. A lista não acaba.
A expropriação de riqueza consegue apenas gerar pobres e piores condições para todos. Ademais,
trata-se de uma grande mentira. Tão logo você expropria a riqueza dos cidadãos mais ricos de
uma economia, além de destruir o emprego de milhares de pessoas, você não irá retirar os pobres
da pobreza. Afinal, o que irá acontecer já no ano seguinte? Não haverá mais ricos a serem
espoliados.
Assim, após esta renda espoliada ter sido distribuída e consumida, não haverá como ocorrer
novas redistribuições. Afinal, de onde viria a nova renda a ser redistribuída? Vale lembrar que
não há mais ricos e pobres. Todos estão em igual situação. Consequentemente, não haverá mais
de quem tirar.
Logo, e por definição, uma redistribuição de renda é algo que só pode ser feito uma única vez. E,
após a redistribuição, os contemplados estarão em melhor situação apenas enquanto estiverem
gastando o dinheiro recebido. Tão logo tudo seja consumido, tais pessoas voltarão ao estado de
pobreza anterior. E pior: com os empreendedores mais pobres, será muito mais difícil para tais
pessoas melhorarem de vida.
O número de pobres irá aumentar e a miséria irá se multiplicar, evidenciando que, se você
penalizar o sucesso, você redistribuirá o fracasso.
E as consequências de uma política redistributivista, mesmo que em menor escala, podem ser
surpreendentes. Recentemente, foi divulgado que as políticas redistributivas da Califórnia
resultaram em uma desigualdade de renda pior que a do México, e a maior taxa de pobreza dos
EUA. No final, exatamente por não haver como espoliar os ricos continuamente, foi a classe
média quem acabou bancando o assistencialismo estatal por meio de maiores impostos.
Conclusão
Desigualdade não é o mesmo que injustiça, como salientou o Prêmio Nobel Angus Deaton, e não
é nada surpreendente que os intervencionistas insistam em ressaltar a desigualdade como o maior
problema de todos, em vez de abordarem a pobreza absoluta e maneiras de permitir um maior
crescimento de classe média.
O debate sobre pobreza e desigualdade se tornou uma desculpa para novas intervenções, e não
um meio para debater como continuar o processo de enriquecimento das pessoas.
Intervencionistas não querem que os pobres sejam menos pobres; querem apenas que os ricos
sejam menos ricos. Para o burocrata, o objetivo é manter o aparato estatal plenamente operante, e
não torná-lo desnecessário.
O intervencionismo assume que a desigualdade é um efeito negativo, e não uma consequência
natural da prosperidade. E, com efeito, alguma desigualdade sempre será positiva. Se meus
colegas de trabalho são mais bem-sucedidos do que eu, isso será um incentivo para eu me
aprimorar. Somente quando há uma desigualdade gerada pelo sucesso é que as sociedades
progridem, e o bem-estar de todos aumenta.
Não há maior desigualdade e injustiça do que o igualitarismo, o qual elimina os incentivos para o
aprimoramento próprio. O igualitarismo, longe de reduzir a pobreza, acaba por intensificá-la.
Há oito anos, a Oxfam elogiou a Venezuela, dizendo que a "desigualdade foi reduzida". E
realmente foi. Só que a redução se deu tornando todos os venezuelanos mais pobres, exceto os
redistribuidores. Esses ficaram milionários.
No final, a redução da pobreza é uma consequência da prosperidade, do crescimento e do
emprego, e não de políticas. O capitalismo e o livre comércio fizeram muito mais para reduzir a
pobreza do que todos os comitês governamentais combinados.

ARTIGO III

Por Que as Nações Fracassam


A busca pela origem do desenvolvimento econômico é um dos inquéritos fundamentais das
Ciências Sociais, particularmente da Economia. Em 1776, Adam Smith se debruçou sobre o
tema, em “A Riqueza das Nações”, e concluiu que a prosperidade dos Estados deriva de sua
capacidade produtiva, não do acumulo de metais preciosos. A noção de que boas políticas –
como baixas tarifas aduaneiras – podem acelerar o desenvolvimento permeia o tratado clássico
de Smith. Já no século XX, Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”,
enfatizou os aspectos culturais que favorecem a abundância material. Recentemente, Why the
West Rules, de Ian Morris, argumentou que a geografia é o principal determinante das diferenças
econômicas entre as nações. As três explicações – cultural, geográfica e política – possuem
diversos defensores e permanecem relevantes atualmente. “Por Que as Nações Fracassam”, obra
de Daron Acemoglu e James Robinson, no entanto, refuta as explicações anteriores e argumenta
que o desenvolvimento econômico é derivado da qualidade das instituições políticas e
econômicas das nações.
O argumento central de “Por que as Nações Fracassam” reside na diferença entre instituições
econômicas inclusivas e extrativistas. Segundo os autores, instituições econômicas inclusivas são
aquelas que permitem que a riqueza seja disseminada pela sociedade, enquanto instituições
econômicas extrativistas são aquelas que concentram a renda em uma elite privilegiada. Embora
breves surtos de crescimento econômico sejam possíveis na vigência de instituições extrativistas,
o desenvolvimento só será sustentável na presença de instituições econômicas inclusivas.
Acemoglu e Robinson ilustram as diferenças entre os dois tipos de instituição ao comparar o
Norte e o Sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão: o Sul era relativamente mais
pobre porque era organizado economicamente em latifúndios e empregava mão-de-obra escrava
– instituições altamente extrativistas -, a economia do Norte, por outro lado, era caracterizada
pela indústria e pelo trabalho assalariado, instituições mais inclusivas.
O desenvolvimento de instituições econômicas inclusivas, no entanto, depende do surgimento de
instituições políticas igualmente inclusivas. Os autores definem instituições políticas inclusivas
como aquelas que promovem a pluralidade e a centralização política. Em síntese, as instituições
políticas serão inclusivas se atenderem a um conjunto amplo de diferentes interesses e
representarem uma grande diversidade de atores políticos. Em contrates, instituições políticas
extrativistas são erigidas para proteger os interesses de um elite privilegiada e para restringir a
participação política a um grupo seleto de atores. A Inglaterra do Século XIX é um exemplo de
organização institucional política relativamente inclusiva, uma vez que o Estado conferia direitos
a uma ampla gama de indivíduos e várias coalizões estavam envolvidas no jogo político. A China
de Mao Tsé-Tung, por outro lado, era caracterizada por instituições políticas intensamente
extrativistas, uma vez que o poder era concentrado em um pequeno grupo (ou mesmo em apenas
um indivíduo) e a ação do Estado não era limitada por direitos individuais de qualquer espécie.
Na construção teórica de Acemoglu e Robinson, a política determina a economia. Os autores
rejeitam a “teoria da modernização”, que advoga que o crescimento econômico eventualmente
resulta em instituições políticas democráticas. Apontam que, na primeira metade do século XX,
países ricos e com sistemas educacionais eficientes – como Japão, Alemanha e Argentina –
sucumbiram a ditaduras repressivas, fato que demonstra que as instituições econômicas não
determinam as instituições políticas. Organizações inclusivas, por outro lado, promovem
instituições econômicas inclusivas porque estimulam a inovação, asseguram os direitos de
propriedade e protegem os trabalhadores da exploração e da miséria. Instituições políticas
extrativistas, por sua vez, temem a inovação econômica e a “destruição criativa” provocada pelas
instituições econômicas inclusivas, uma vez que a riqueza disseminada pela sociedade pode
solapar as bases do poder político concentrado na mão de poucos. Os autores argumentam que o
crescimento econômico no contexto de instituições políticas extrativistas é baseado na alocação
forçada de recursos em atividades rentáveis, não na inovação e na “destruição criativa” (o
colapso de alguns setores defasados para que outros mais eficientes possam surgir). Nesse
sentido, o crescimento sustentável e o desenvolvimento econômico são possíveis apenas na
presença de instituições políticas inclusivas.
“Por Que as Nações Fracassam” argumenta que as bases para o desenvolvimento econômico são
a tecnologia, a educação e a estabilidade política. A inovação tecnológica só é viável na presença
de instituições políticas inclusivas, uma vez que as autocracias temem a inovação e o impacto
desestabilizador da “destruição criativa”. De forma análoga, um sistema educacional de
qualidade depende da liberdade de expressão e da livre circulação de informações, ausentes em
instituições políticas extrativistas. Por fim, instituições políticas extrativista são, por definição,
instáveis, uma vez que o poder concentrado gera riquezas extraordinárias e grandes incentivos
para violentas disputas oligárquicas. A natureza instável da política no contexto das instituições
políticas extrativista é expressa pela “lei de ferro da oligarquia”, que articula que disputas de
poder entre oligarquias quase sempre resultam na manutenção de regimes extrativistas, mesmo
que uma nova elite tome o lugar dos antigos oligarcas.
Após estabelecer que a organização política é central para o desenvolvimento econômico,
Acemoglu e Robinson procuram demonstrar como as instituições inclusivas surgem. Segundo os
autores, o processo histórico, eventos críticos e pequenas diferenças institucionais são
fundamentais para alimentar o ciclo virtuoso inclusivo. Por vezes, acontecimentos fortuitos são
fundamentais, como no papel desempenhado pela peste negra no processo de extinção do
feudalismo. O feudalismo – uma instituição política substancialmente extrativista – era baseado
na exploração de um amplo contingente de trabalhadores pelos senhores feudais, cujo poder
derivava da posse de escassos suprimentos de terra. Com a peste negra, a mão-de-obra se tornou
o fator de produção escasso e a terra abundante, fato que solapou o poder dos barões feudais.
Regiões que não foram tão atingidas pela peste negra, como a Europa Oriental e o Japão,
seguiram dominadas pelo feudalismo, enquanto a Europa Ocidental, bastante acometida pela
doença, se tornou mais livre. O processo histórico também é fundamental, uma vez que pequenas
diferenças institucionais geram uma grande diferenciação organizacional ao longo do tempo. Na
Inglaterra, por exemplo, a presença de um parlamento e de parcos diretos de propriedade da terra
geraram as condições críticas para a disseminação de poder político e para a criação da revolução
industrial.
A conclusão é que o desenvolvimento da economia de uma nação é diretamente proporcional à
qualidade de sua democracia. As nações fracassam porque são autárquicas, porque não
superaram um modelo político que monopoliza o poder e porque quando a política é um jogo de
poucos participantes, a riqueza se concentra. Acemoglu e Robinson avaliam que suas conclusões
têm três implicações fundamentais para o mundo contemporâneo. Em primeiro lugar, a ajuda
humanitária internacional dificilmente tem o poder de mudar a realidade econômica dos países
em desenvolvimento, uma vez que não altera o desenho institucional dessas nações. Em segundo
lugar, a percepção de que o autoritarismo pode ser eficiente na promoção do desenvolvimento é
ilusória. Embora regimes autoritários possam gerar surtos de crescimento, são incapazes de
promover o desenvolvimento econômico sustentável. Por fim, os autores avaliam, de forma
controversa, que o crescimento econômico da China eventualmente será solapado pela natureza
extrativista das instituições políticas chinesas. Segundo Acemoglu e Robinson, a China tem
logrado uma expansão econômica acelerada devido a um modelo que aloca compulsoriamente a
mão-de-obra em setores rentáveis, notadamente indústrias voltadas para a exportação.
Eventualmente, o déficit educacional e de inovação irá reduzir o crescimento econômico chinês e
frustar a jornada do país rumo ao desenvolvimento.
A construção teórica de Acemoglu e Robinson tem a grande vantagem de escapar do
determinismo cultural e do paternalismo das prescrições de políticas públicas. A obra também é
permeada por um grande eruditismo, uma vez que o espectro de exemplos citados pelos autores
abrange desde reinos pré-coloniais da África sub-saariana até o Brasil contemporâneo. “Por Que
as Nações Fracassam” também ignora fórmulas eurocêntricas e reconhece que o
desenvolvimento é um fenômeno singular e marcado por particularidades específicas às
diferentes realidades nacionais.

AULA 7
ARTIGO I

Como Discriminar de Forma Apropriada


Discriminação injusta e irracional no ambiente de trabalho merece denúncia e condenação. Mas e
o que dizer da discriminação racional? Considere os seguintes casos.
Você é gestor do comitê responsável pela contratação do novo presidente de uma faculdade
historicamente composta por estudantes negros. Então, você discrimina em favor de candidatos
negros e contra candidatos não negros.
Você é proprietário de uma academia, e deseja contratar uma auxiliar para o vestiário
feminino. No processo de seleção, você discrimina com base no sexo: não são considerados
homens.
Você é o chefe dos detetives de uma cidade onde ocorreu uma série de crimes sem solução em
um bairro latino. Você decide enviar um dos seus detetives disfarçado para investigar. Então,
você discrimina com base na etnia, enviando um detetive latino.
A discriminação é uma função cognitiva essencial, e como todas as funções cognitivas, pode ser
bem ou mal utilizada. Nós somos uma espécie inteligente, e nossa inteligência funciona pela
identificação de similaridades e diferenças, categorização das coisas de acordo com essas
similaridades e diferenças, e ação correspondente.
Nossos sentidos funcionam pela discriminação de padrões de energia luminosa (visão), ondas
sonoras (audição), composição química (olfato e sabor), e densidade e textura (tato). Falamos
daqueles com um paladar diferenciado em questões culinárias e daqueles com um ouvido para
música, e o objetivo constante dos aprendizes é maior proficiência na discriminação perceptiva.
Nossa faculdade perceptiva funciona pela categorização abstrata baseada na discriminação de
similaridades e diferenças. Uma característica de uma pessoa educada é sua habilidade de definir
e utilizar um grande repertório de conceitos abstratos, incluindo a habilidade de exercer
julgamentos discriminatórios em situações complexas. O que, por exemplo, distingue com
precisão democratas de conservadores, eruptivos de sedimentares, invejosos de ciumentos, vírus
de bactérias e assim por diante?
E, se não bastasse, nossa inteligência funciona formando e aplicando distinções avaliativo-
qualitativas. Necessitamos discriminar o nutritivo do venenoso, amigos de inimigos, competentes
de incompetentes, inocentes de culpados.
Então, em nosso esforço para reduzir a discriminação irracional e injusta, é importante não
perdermos o que é bom ao eliminar o que é mau. Dizer, por exemplo, que ninguém nunca
deveria discriminar no ambiente de trabalho ou pedir a eliminação de todas as discriminações é,
na melhor hipótese, desleixo intelectual. Na pior das hipóteses, usar discriminação como um
termo puramente negativo mina nossa habilidade de fazer distinções frequentemente necessárias
no caso da lei e do ambiente de trabalho. (E no caso do amor, devemos adicionar: no namoro, a
maioria de nós discrimina cruelmente com base no sexo). Devemos discriminar; todavia,
devemos discriminar da forma correta, e para isso necessitamos de padrões claros que nos
auxiliem a distinguir entre discriminação racional e irracional.
Vamos retomar os três exemplos iniciais, focados no ambiente de trabalho – o presidente negro
da faculdade, a auxiliar de vestiário, e o detetive latino – e identificar o que os tornam casos de
discriminação racional com base na raça, sexo e etnia.
Em cada caso, a raça, sexo ou etnia da pessoa é relevante para a execução da tarefa. Então,
vamos testar essa afirmação por meio de padrões avaliativos em cada um dos casos:
1. O presidente da faculdade cumpre diversas funções executivas – estratégia,
administração, angariação de fundos – mas também um papel de autoridade como
representante simbólico da missão educacional daquela instituição. Uma faculdade
historicamente negra tem, como missão principal, a educação de jovens negros. Assim,
considerar a raça do candidato à presidência é relevante, julgando sua habilidade para ser
um verdadeiro líder para aquele tipo de faculdade.
2. No vestiário de uma academia, os clientes trocam de roupa e tomam banho. Para o
conforto psicológico da maioria das clientes que usam o vestiário, a auxiliar do sexo
feminino é importante. Portanto, o proprietário da academia é racional na contratação de
auxiliares com base no sexo.
3. As características étnicas do detetive latino permitem que ele passe a fazer parte
da comunidade latina de forma que seria quase impossível para um não latino. Então, a
afiliação étnica é diretamente relevante para o desempenho dessa operação sigilosa, e é
aconselhável que o chefe dos detetives respeite tal fato.
Por outro lado, a discriminação no ambiente de trabalho não é correta se a característica utilizada
no julgamento não tem nenhuma relevância para a habilidade da pessoa executar determinada
tarefa.
Aqui estão outros três casos. Você acha a discriminação nesses casos apropriada ou
inapropriada?
Você é diretor de um teatro dedicado a performances autenticamente históricas das obras de
Shakespeare. Nessa temporada, você apresentará Otelo, então você contrata um ator negro para
ser Otelo. Você também está apresentando Romeo e Julieta, e você contrata uma jovem para ser
Julieta – não é Romeo e Davi, certo?).
Você é uma empresária que trabalha sozinha em seu home office. Os negócios vão bem e você
deseja contratar uma assistente para trabalhar com você. Ter um assistente sozinho com você em
sua casa gera riscos a sua segurança (do ponto de vista moral e sexual). Então, no anúncio da
vaga de emprego, você indica que somente aceitará currículos de mulheres.
Você é proprietário de um restaurante de comida chinesa em Nova York. Mas não qualquer
restaurante chinês: você quer que os seus clientes tenham uma autêntica experiência cultural
chinesa. Então, você gasta milhões de dólares em decoração, tecidos de linho, louças, talheres e
obras de arte diretamente da China. Você contrata um chefe de cozinha de Xangai e uma
recepcionista de Hong Kong. Agora, você está contratando uma ajudante de cozinha – e um
candidato é um homem alto, loiro e de descendência escandinava com um forte sotaque do
Bronx. Você não o contrata.
Hoje, nossa questão não é política. Governos deveriam proteger os direitos do cidadão à vida, à
liberdade e à propriedade independentemente de raça, sexo ou etnia. Um desses direitos é a
liberdade de associação, e isso significa que, da perspectiva do governo, ele deve proteger o
direito individual de se associar ou não com base na raça, sexo ou etnia.
Nossa questão é moral: quando é apropriada a discriminação por parte dos indivíduos?
Julgamentos relacionados às pessoas com quem nos associamos são frequentemente complexos.
Nós precisamos discriminar tendo em vista todos os fatores relevantes aos nossos atuais e
potenciais associados, e definir padrões para o julgamento de tais fatores. No ambiente de
trabalho, pessoas decentes desejam julgar e serem julgadas pelos seus méritos e qualificações
relevantes – isto é, de acordo com sua habilidade de fazer o que tem que ser feito – e pessoas
decentes ficam horrorizadas com a discriminação irracional.
Às vezes, todavia, a discriminação é racional: se raça, sexo ou etnia podem frequentemente ser
relevantes para o desempenho laboral, então pessoas decentes também devem se esforçar para
exercitar o julgamento discriminatório na determinação de quando os fatores são relevantes,
quando não são, e como agir de acordo.

AULA 6
ARTIGO I

BREVE RELATO DA VIDA DE AYN RAND


Por Stephen Hicks
A vida de Ayn Rand foi tão intensa quanto a dos heróis de seus romances A Nascente e A Revolta
de Atlas. Rand primeiro se destacou como romancista, publicando We The Living (1936), A
Nascente (1943) e sua obra-prima, A Revolta de Atlas. Esses romances filosóficos incorporaram
temas que foram desenvolvidos por ela sob a forma de não ficção numa série de livros e ensaios
publicados durante as décadas de 1960 e 1970.
Nascida em São Petersburgo, Rússia, em 2 de fevereiro de 1905, Rand foi criada numa família de
classe média. Quando criança, amava contar histórias; aos 9 anos, decidiu se tornar escritora. Na
escola, mostrava potencial acadêmico, particularmente, em matemática. Sua família passou por
dificuldades devido à convulsão social e à guerra civil que se seguiram à Revolução Comunista
de 1917, sendo o golpe final o confisco da farmácia de seu pai pelos soviéticos. Pouco depois,
sua família se mudou para a Crimeia com o propósito de se recuperar financeiramente, bem
como escapar da brutalidade vivida em São Petersburgo. Após alguns anos, sua família retornou
à Petrogrado (como São Petersburgo era chamada pelos soviéticos), onde Rand cursou a
universidade.
Na Universidade de Petrogrado, Rand concentrou seus estudos em História, com foco secundário
em Filosofia e Literatura. Na universidade, foi rejeitada pelo predomínio dos ideais comunistas e
de táticas violentas que suprimiam a liberdade de investigação e o debate de ideias. Se na
juventude já tinha sido contrária ao programa político soviético, quando adulta, tinha certeza dos
efeitos destrutivos mais amplos impostos pela Revolução à sociedade russa.
Na universidade, estudou história e política dos Estados Unidos. Por admirar peças teatrais,
músicas e filmes americanos, acabou se tornando admiradora do individualismo, vigor e
otimismo americanos, vendo neles o oposto do coletivismo, decadência e pessimismo soviéticos.
Por não acreditar que, sob o regime soviético, seria livre para escrever os tipos de livros que
desejava escrever, resolveu deixar a Rússia, migrando para os Estados Unidos.
Ayn Rand se formou na Universidade de Petrogrado em 1924. Logo depois, se matriculou no
State Institute for Cinema Arts para se tornar roteirista. Em 1925, finalmente teve permissão das
autoridades soviéticas para sair do país sob a desculpa de visitar parentes nos Estados Unidos.
Oficialmente, sua visita seria breve; Rand, todavia, já tinha decidido não retornar à União
Soviética.
Após diversas paradas em cidades da Europa Ocidental, Rand chegou em Nova York em
fevereiro de 1926. De Nova York, viajou para Chicago, no estado de Illinois, onde passou os seis
meses seguintes morando com parentes, aprendendo inglês, e desenvolvendo ideias para historias
e filmes. Ela tinha decidido se tornar uma roteirista de cinema e, tendo recebido uma extensão de
seu visto, partiu para Hollywood, no estado da Califórnia.
No segundo dia de Rand em Hollywood, ocorreu um evento digno de sua ficção. Ela foi vista por
Cecil B. DeMille, na época, um dos principais diretores de Hollywood, enquanto estava parada
no portão de seu estúdio. Ele parou com seu carro para pedir o porquê ela estava fitando-o, e
Rand explicou que tinha chegado há pouco tempo da Rússia, era fã dos filmes de Hollywood e
que seu sonho era se tornar uma grande roteirista. Naqueles dias, DeMille estava trabalhando no
filme “O Rei dos Reis”, e a contratou como figurante. Durante a segunda semana no estúdio de
DeMille, outro evento significativo: Rand conheceu Frank O´Connor, um jovem ator também
figurante no mesmo filme. Rand e O´Connor se casaram em 1929, permanecendo casados até a
morte dele em 1979.
Rand trabalhou para DeMille como revisora de roteiros, e teve problemas financeiros enquanto
finalizava suas primeiras obras. Para sobreviver, teve vários empregos temporários até que, em
1932, conseguiu vender seu primeiro roteiro, Red Pawn, para a Universal Studios. Também em
1932, sua primeira peça de teatro, A Noite de 16 de Janeiro foi produzida em Hollywood e,
posteriormente, exibida na Broadway.
Rand trabalhou anos em seu primeiro romance, We the Living, finalizando-o em 1933. Todavia,
por muitos anos, foi rejeitado por várias editoras, até que, em 1936, foi publicado pela
Macmillan, nos Estados Unidos, e a Cassell, na Inglaterra. Rand descreveu We the Living como
o seu romance autobiográfico, cujo tema era a brutalidade da vida sob o regime comunista na
Rússia. We the Living não obteve uma reação positiva de críticos e intelectuais americanos. Foi
publicado na década de 1930, normalmente chamada de Década Vermelha, durante a qual muitos
intelectuais americanos eram pró-comunistas, admiradores seletos do experimento soviético.
O projeto seguinte de Rand foi A Nascente, em que tinha começado a trabalhar em 1935. Embora
o tema de We the Living fosse político, o tema de A Nascente era ético, focando em temas
individualistas de independência e integridade. O herói do romance, o arquiteto Howard Roark, é
a primeira personificação do homem ideal de Rand, que vive numa escala heroica de realização.
Da mesma forma que com We the Living, Rand teve dificuldades para publicar A Nascente.
Doze editoras rejeitaram-no antes de ser publicado pela Bobbs-Merrill em 1943. Embora,
novamente, não tenha sido bem-recebido por críticos e intelectuais, o romance se tornou um
bestseller, principalmente, por recomendação boca a boca. A Nascente tornou-a famosa como
expoente de ideais individualistas e as vendas dele lhe deram alguma segurança financeira. A
Warner Brothers produziu uma versão cinematográfica do romance em 1949, estrelando Gary
Cooper e Patrícia Neal, para o qual Rand escreveu o roteiro.
Em 1946, Rand começou a trabalhar em seu romance mais ambicioso, A Revolta de Atlas. Na
época, ela estava trabalhando meio turno como roteirista para o produtor Hal Wallis. Em 1951,
seu marido e ela se mudaram para Nova York, onde ela começou a trabalhar em tempo integral
em A Revolta de Atlas. Publicado pela Random House em 1957, A Revolta de Atlas é a
expressão mais completa de sua visão literária e filosófica. Dramatizado sob a forma de um
suspense sobre um homem que parou o motor do mundo, o enredo e as personagens incorporam
os temas políticos e éticos primeiro desenvolvidos em We the Living e A Nascente, integrando-os
numa filosofia abrangente que incluía metafisica, epistemologia, economia e psicologia de amor
e sexo.
A Revolta de Atlas foi um bestseller imediato, e o seu último trabalho de ficção. Seus romances
tinham expressado temas filosóficos, embora Rand se considerasse primeiramente uma
romancista e, em segundo momento, uma filósofa. A criação de enredos, personagens e
dramatização de realizações e conflitos é o propósito central de sua ficção, e não a apresentação
de um conjunto abstrato e didático de teses filosóficas. Todavia, A Nascente e A Revolta de Atlas
tinham atraído para Rand muitos leitores com grande interesse nas ideias filosóficas tratadas nos
romances. Entre os primeiros com quem Rand se associou estão o psicólogo Nathaniel Branden e
o economista Alan Greenspan, depois presidente do FED. Suas interações com esses e outros
indivíduos foram responsáveis, parcialmente, pela transição de Rand da ficção para a não ficção
com vistas ao desenvolvimento sistemático de sua filosofia.
De 1962 a 1976, Rand escreveu e palestrou sobre sua filosofia, hoje chamada “Objetivismo”.
Seus ensaios durante esse período foram publicados numa série de periódicos: The Objectivist
Newsletter, publicado de 1962 a 1965; The Objectivist, publicado de 1966 a 1971; e The Ayn
Rand Letter, publicado de 1971 a 1976. Os ensaios escritos nesses periódicos formam o material
central de uma série de nove livros de não ficção publicados durante a vida de Rand. Esses livros
desenvolvem a filosofia de Rand em suas principais categorias, aplicando-a a questões culturais.
Talvez os mais importantes desses livros sejam Capitalism: The Unknown Ideal, dedicado à
teoria política e economia, Introduction to Objectivist Epistemology, apresentação sistemática da
teoria dos conceitos e o The Romantic Manifesto, uma teoria da Estética.
Rand continuou a escrever e palestrar até o final de 1976. Depois disso, a saúde de seu esposo
piorou, vindo a falecer em 1979. Rand faleceu em 6 de março de 1982 na cidade de Nova York.

ARTIGO II

REFLEXÕES SOBRE A ÉTICA DO EGOÍSMO RACIONAL


Por Stephen Hicks
O que é egoísmo racional
O título provocador da obra A Virtude do Egoísmo de Ayn Rand coincide com sua tese
igualmente provocadora sobre ética. A ética tradicional sempre suspeitou do autointeresse,
prezando atos que são abnegados (altruístas) em intenção, acusando de amoral ou imoral
qualquer ato motivado pelo autointeresse. Na visão tradicional, uma pessoa autointeressada não
levará em conta os interesses dos outros e, pior, atacá-los-á – se necessário – na busca do seu
próprio interesse.
A visão de Rand é que o exato oposto é verdadeiro: o autointeresse, corretamente entendido, é o
padrão de moralidade; e o altruísmo, a imoralidade mais profunda.
De acordo com Rand, o autointeresse significa que o indivíduo deve se considerar um fim em si
mesmo, tendo sua vida e sua felicidade como valores mais elevados: isto é, tal indivíduo não
pode existir como servo ou escravo dos interesses dos outros e, tampouco, esses existem como
servos ou escravos dos interesses dele. A vida e a felicidade de cada indivíduo são seus objetivos
últimos. O autointeresse também implica autorresponsabilidade: a vida do indivíduo é dele, isto
é, é responsabilidade dele mantê-la e maximizá-la. Depende de cada um de nós determinar quais
valores requeridos por nossa vida – e como melhor alcançá-los – bem como agir para realizá-los.
A ética do autointeresse racional (egoísmo racional) de Rand é integral para a sua defesa do
liberalismo clássico. O liberalismo clássico, normalmente chamado libertarianismo no século
XX, é a visão de que os indivíduos deveriam ser livres para perseguir seus próprios interesses.
Do ponto de vista político, isso implica que os governos deveriam ser limitados à proteção da
liberdade de cada indivíduo para tal. Em outras palavras, a legitimidade moral do autointeresse
implica que os indivíduos têm direito à vida, à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade, e
que o propósito de governo é justamente proteger tais direitos. Do ponto de vista econômico,
deixar indivíduos livres para perseguir seus próprios interesses implica que apenas um sistema
capitalista de livre mercado é moral: indivíduos livres disporão de seu tempo, dinheiro e
propriedades como julgarem melhor, interagindo voluntariamente com os outros para benefício
mútuo.
Razão e ética
De modo fundamental, a razão é a única meio de que dispõem os seres humanos. Nossa
capacidade de razão (raciocínio) é o que nos permite sobreviver e prosperar. Não nascemos
sabendo o que é bom para nós: isso é aprendido. Não nascemos sabendo como alcançar o que é
bom para nós: isso também é aprendido. É por meio da razão que, por exemplo, (i)
diferenciamos comida e veneno, (ii) entendemos quais animais são úteis ou perigosos, (iii)
produzimos ferramentas, (iv) julgamos quais formas de organização social são válidas, e assim
por diante.
Assim, Rand defende o autointeresse racional: o interesse do indivíduo não é qualquer coisa que
ele acha que seja; pelo contrário, é através da razão (e não da emoção) que um indivíduo
identifica o que está ou não está, de fato, em seu interesse. Pelo uso da razão, um indivíduo leva
em conta todos os fatores que pode identificar, projeta as consequências dos cursos potenciais de
ação, e age de acordo com princípios claros e objetivos.
Os princípios que uma pessoa deveria adotar são chamados de virtudes. Uma virtude é um
atributo de caráter adquirido que resulta da identificação racional de um princípio como bom, e
de sua aplicação consistente na prática.
Uma dessas virtudes é a racionalidade: tendo identificado o uso da razão como
fundamentalmente bom, a virtude da racionalidade diz respeito a estar comprometido a agir de
acordo com a razão. Outra virtude é a produtividade: dado que os valores necessários para
sobreviver devem ser produzidos, a virtude da produtividade diz respeito a estar comprometido
com a produção desses valores. Outra é a honestidade: dado que os fatos são fatos (A=A), e que
a vida de um indivíduo depende de conhecer e agir de acordo com os fatos, a virtude da
honestidade diz respeito a estar comprometido com a identificação dos fatos.
Independência e integridade são também virtudes centrais da definição de autointeresse de Ayn
Rand. Posto que um indivíduo deve pensar e agir por seus próprios esforços, estar comprometido
com uma política de ação independente é uma virtude. E dado que o indivíduo tanto identificar o
que está em seu interesse e agir para alcançá-lo, a virtude da integridade diz respeito a estar
comprometido a agir com base em suas próprias crenças. A política oposta de acreditar numa
coisa e fazer outra é, obviamente, o vício da hipocrisia; e a hipocrisia é a política de
autodestruição, na visão de Rand.
Justiça é a outra virtude central do autointeresse: justiça, na interpretação de Rand, significa a
política de julgar pessoas, incluindo a si próprio, de acordo com seus valores – agindo de acordo.
A política oposta – de dar aos outros mais ou menos do que merecem – é a injustiça. A virtude
final na lista de Rand é o orgulho, a política de “ambição moral”, nas palavras de Rand. Isso
significa estar comprometido em se tornar a melhor versão de si mesmo, de moldar o seu caráter
da forma mais elevada possível.
Na interpretação de Rand, uma pessoa moral é alguém que age e está comprometido a agir em
seu autointeresse. É vivendo a moralidade do autointeresse que alguém sobrevive, progride e
conquista a felicidade.
Críticas à ética de Ayn Rand
Todos os aspectos da filosofia de Rand estão sujeitos à crítica e debate, contudo, o alvo mais
comum de ataque são suas visões normativas.
Da direita conservadora, as principais críticas são (a) que o naturalismo metafísico de Rand
envolve um ateísmo que destrói a metafísica religiosa, (b) que sua forte ênfase em dados
empíricos e razão destrói epistemologias baseadas na fé e na tradição, e (c) que seu
individualismo normativo destrói os mandamentos do dever, obrigação e altruísmo necessários
para a realização de valores sociais. Da esquerda progressista, as principais críticas são (a) que o
individualismo de Rand isola atomisticamente cada um de nós do convívio social genuíno, (b)
que sua defesa do livre mercado permite a exploração dos fracos pelos fortes e (c) na crítica pós-
moderna, que seus fundamentos filosóficos a prendem a um fundacionismo e absolutismo
inalcançáveis.
Nesse ensaio, focaremos apenas nos argumentos contrários ao autointeresse racional de Rand. É
um ponto de ataque comum tanto à esquerda como à direita.
A visão contrária de autointeresse normalmente o coloca contra a moralidade, defendendo que o
indivíduo é moral na medida em que sacrifica o seu autointeresse em prol dos outros ou na
medida em que age, primeiramente, com os interesses dos outros em mente. Por exemplo,
propostas padrão de moralidade defenderá que um indivíduo é moral na medida em que deixa de
lado os próprios interesses para servir a Deus, aos fracos e oprimidos ou à sociedade. Nessas
interpretações, os interesses de Deus, dos pobres ou da sociedade são dotados de significância
moral mais elevada do que os seus, logo, o indivíduo deveria se sacrificar quando necessário.
Essas éticas de sacrifício defendem que um indivíduo deveria ser ele próprio um servo, para
servir os interesses dos outros, não o seu próprio. “Serviço altruísta” ou “sacrifício altruísta” são
frases de efeito que dão suporte a visão de mundo.
Uma diferença central entre a visão de autointeresse de Rand e a altruísta pode ser entendida na
razão por que a maioria dos defensores do altruísmo pensam que o autointeresse é perigoso:
conflitos de interesse.
Conflitos de interesse
As teorias éticas mais tradicionais consideram os conflitos de interesse como regra da condição
humana, buscando na ética a sua solução: os princípios éticos básicos devem nos dizer quais
interesses deveriam ser sacrificados para resolver os conflitos em questão. Se existe, por
exemplo, um conflito fundamental entre o que Deus quer e o que os humanos naturalmente
querem, então, a ética religiosa tornará regra o princípio de que os desejos humanos deveriam ser
sacrificados pelos desejos de Deus. Se existe um conflito fundamental entre a necessidade da
sociedade, e o que o indivíduo deseja, então, algumas versões da ética secular tornarão regra o
princípio de que os desejos individuais deveriam ser sacrificados pelas necessidades da
sociedade.
A ação de tomar os conflitos de interesse como fundamentais quase sempre se origina de uma de
duas crenças: que a natureza humana é fundamentalmente destrutiva ou que os recursos
econômicos são escassos. Se a natureza humana é fundamentalmente destrutiva, então, os
humanos estão sempre em conflito. Muitas filosofias éticas partem dessa premissa – por
exemplo, o mito de Giges de Platão, descrições judaicas e cristãs do pecado original, e o id de
Freud. Se, por natureza, o que os indivíduos querem fazer é estuprar, roubar e matar, então, para
se ter uma sociedade, esses desejos individuais precisam ser sacrificados. Consequentemente, o
princípio básico da ética seria instruir os indivíduos a suprimir seus desejos naturais de modo que
a sociedade possa existir. Em outras palavras, o autointeresse é o inimigo - e deve ser sacrificado
pelos outros.
Se recursos econômicos são escassos, então, não há o suficiente para todos. Logo, essa escassez
coloca os seres humanos em conflito fundamental uns com os outros: pois, para que a
necessidade de um indivíduo seja satisfeita, a de outro deve ser sacrificada. Muitas filosofias
éticas partem de tal premissa. Por exemplo, a teoria malthusiana de que o crescimento
populacional supera o crescimento na oferta de alimentos se enquadra nessa categoria. A
descrição da sociedade capitalista por Karl Marx é que a concorrência brutal leva à exploração
de alguns por outros. O famoso uso de Garrett Hardin da analogia do bote salva-vidas nos pede
para imaginar que a sociedade é como um bote salva- vidas com mais pessoas que seus recursos
podem atender. Então, para resolver o problema da concorrência destrutiva a qual a escassez de
recursos nos leva, um princípio básico de ética será instar os indivíduos a sacrificar os seus
interesses de obter mais ou, pelo menos, um pouco para que os outros possam obter mais ou
algo, e a sociedade pode existir pacificamente. Em outras palavras, numa situação de escassez, o
autointeresse é o inimigo e deve ser sacrificado pelos outros.
Rand rejeita tanto a premissa dos recursos escassos como a da natureza humana destrutiva. Seres
humanos não nascem em pecado ou com desejos destrutivos; tampouco os adquirem no processo
de amadurecimento. Em vez disso, você nasce moralmente tabula rasa e molda seu caráter e
hábitos através de suas escolhas e ações. Como Rand fraseou, “homem é um ser de alma que se
faz sozinha.” Ter desejos crônicos de roubar, estuprar ou matar os outros é o resultado de
desenvolvimento problemático e aquisição de hábitos ruins, assim como o são a preguiça crônica
ou o hábito de comer muitas guloseimas. E assim como ninguém nasce preguiçoso, mas pode,
por suas próprias escolhas, se tornar uma pessoa vigorosa ou morosa, um indivíduo não nasce
antissocial e pode, por suas escolhas, desenvolver-se como uma pessoa cooperativa ou
conflituosa.
De acordo com Rand, por natureza, recursos não são escassos. Pelo uso da razão, humanos
podem descobrir novos recursos e como usar recursos existentes de forma mais eficiente,
incluindo reciclar quando apropriado ou adotar processos produtivos mais eficientes. Os
humanos têm, por exemplo, descoberto e desenvolvido novos recursos energéticos, de animais a
madeira, de carvão a petróleo, de fissão nuclear a painéis solares; e não há fim à vista nesse
processo. Em qualquer momento, os recursos disponíveis é uma quantidade fixa, mas, ao longo
do tempo, o estoque de recursos é, e tem sido constantemente expandido.
Por serem racionais, os seres humanos podem produzir um número cada vez maior de bens, logo,
os interesses humanos não estão em conflito fundamental. Em vez disso, Rand defende que o
exato oposto se aplica: como humanos podem e deveriam ser produtivos, os interesses humanos
estão profundamente em harmonia entre si. Por exemplo, eu ser produtor de milho está em
harmonia com você ser produtor de ervilhas, pois ambos estão sendo produtivos e
comercializando entre si, melhorando a situação geral. É do seu interesse que eu tenha êxito na
produção de mais milho, assim como é de meu interesse que você tenha sucesso na produção de
ervilhas.
Sim, conflitos de interesse existem em um contexto mais estreito. Por exemplo, no presente
imediato, os recursos disponíveis são mais estáveis e existe concorrência que produz vencedores
e perdedores. A concorrência econômica, todavia, é uma forma mais ampla de cooperação, uma
forma social para alocar recursos sem recorrer à força física e violência. Por meio da
concorrência, recursos são alocados eficiente e pacificamente; no longo prazo, mais recursos
serão produzidos. Assim, um sistema econômico competitivo é do interesse de todos nós.
Dessa forma, Rand argumenta que sua ética de autointeresse é a base da felicidade pessoal e de
uma sociedade livre e próspera.
ARTIGO III
AYN RAND CONTINUA OU ROMPE COM A TRADIÇÃO DO LIBERALISMO CLÁSSICO
DE SMITH, HUME E SAY?
Por Stephen Hicks

GC: um debate crucial foca na questão de se Ayn Rand continua ou rompe com a tradição do
liberalismo clássico, notavelmente representado por autores como David Hume, Adam Smith ou
Jean-Baptiste Say. Qual sua opinião nessa questão?
SH: o liberalismo de Rand é poderoso e sistemático, e aprendi muito com ele. Contudo, não
acredito que ela tenha sido particularmente original em economia política. Se fôssemos listar,
digamos, 100 políticas defendidas por liberais clássicos, Rand estaria de acordo com a maioria
delas.
A tese distinta de Rand [em economia política] é a sua insistência de que a melhor defesa do
liberalismo é filosófica – isto é, na defesa da metafísica, epistemologia e, especialmente, ética
corretas. Errar nelas prejudica o caso em prol de uma sociedade livre. Em filosofia, as conclusões
de Rand frequentemente conflitam com as de Smith (em especial, na psicologia moral) e com as
de Hume (em especial, na epistemologia).
Curiosamente, Rand tem menos em comum filosoficamente com os liberais do Iluminismo
Escocês (por exemplo, Hume e Smith) e mais em comum com os liberais do Iluminismo Inglês
(por exemplo, Locke e Mill).
Embora haja pontos comuns entre Rand e Locke/Mill, o liberalismo de Rand é baseado no
egoísmo racional, e isso a distingue na tradição do liberalismo clássico.

ARTIGO PARA SER CATEGORIZADO


ARTIGO V

Voce nao Pode Amar o Governo e Odiar a Politica


Por SandFord Ikeda
A política é inseparável do governo. Na verdade, ela é o governo.
Oliver Stone, cineasta iconoclasta e ativista político, discursou na Conferência Internacional do
Estudantes pela Liberdade em fevereiro passado em Washington, D.C. O ponto comum entre
Stone e a maioria dos libertários é sua conhecida crítica ao militarismo norte-americano no
exterior, não somente da parte dos republicanos conservadores, como também da de democratas
de esquerda como o Presidente Obama.
Entretanto, onde os libertários diferem de Stone, e diferem profundamente, é o que me parece
mais interessante e instrutivo. Stone parece um homem desencantado com a política, todavia,
ainda apaixonado pelo governo. Assim, ele condena o intervencionismo no exterior, mas aprova
as intervenções violentas do regime de Chávez (agora, de Maduro) em seu próprio país. Ele
parece acreditar que a política, particularmente a política suja, pode ser separada do governo.
Mas intervir é o que um estado forte faz, interna e externamente.
Admiração, desencanto e traição
Stone era, como mencionei, duramente crítico ao presidente Obama. Stone disse que sentia que o
presidente estava recuando nas suas promessas de campanha. Ao mesmo tempo, Stone expressou
forte apoio ao atual regime na Venezuela e a violenta opressão governamental do Partido da
União Socialista aos manifestantes da oposição, referindo-se a eles como “de má índole” por
tentar derrubar o que ele considera um governo democraticamente eleito. (Contudo, veja essa
carta aberta a Oliver Stone, entregue durante a conferência).
Condenar a intervenção violenta do governo dos Estados Unidos nas relações exteriores e, ao
mesmo tempo, apoiar a intervenção violenta do governo da Venezuela em seus assuntos
domésticos é uma inconsistência óbvia para muitos libertários. O tamanho relativo do governo
dos Estados Unidos e sua autodenominada função como polícia do mundo comparado ao
tamanho modesto da Venezuela e seu papel limitado na América Latina podem ser parte da razão
pela qual Stone opõe-se a um enquanto aprova o outro.
No entanto, por trás do desgosto de Stone pelo presidente Obama, quem ele apoiou por duas
eleições, estava um sentimento de traição oriunda do desejo de que Obama/presidente deveria
viver em um mundo diferente do Obama/candidato.
Iluda pelo bem da tarefa
Stone não está sozinho no seu desencanto pelo presidente Obama. O índice de aprovação do
presidente alcançou o seu menor nível, e os Democratas estão preocupados com relação à
influência desse fato nas eleições legislativas. O candidato iluminado e político valente perdeu
seu brilho, especialmente para aqueles que acreditaram na sua retórica progressista – não
somente na política externa, mas também na imigração, saúde e espionagem. Vamos ser justos:
quase todo presidente perde popularidade no seu segundo mandato. As pessoas eventualmente
percebem que a realidade não combina com a retórica. Mas é exatamente essa a questão: é mera
retórica. Ou, para ser mais preciso, retórica política.
O que é retórica política? É o discurso persuasivo que tem como foco a obtenção do controle do
uso da força. Foi Carl von Clausewitz quem disse que “a guerra é uma continuação da política
por outros meios”. Portanto, a guerra e a política são somente formas distintas de se alcançar o
controle físico. Enquanto a política normalmente não envolve violência aberta (pelo menos não
nos países mais ricos nas últimas décadas), a retórica a serviço da política inclui o uso da
mentira. Se a iniciação da força física é um meio aceitável – na verdade, o único meio – para que
se possa declarar uma guerra, a mentira e a distorção dos fatos são seus parceiros relativamente
pacíficos.
É por isso que o Estado é frequentemente definido como a agência que detém o monopólio
legítimo da agressão e da fraude. Assim como a violência física, algumas pessoas argumentam
que a mentira e a distorção dos fatos podem servir ao bem comum: por exemplo, dizendo às
pessoas: “se você gosta do seu plano de saúde, pode mantê-lo” de forma a obter a aprovação do
Obamacare. Platão afirmou que uma “nobre mentira” sobre as origens de uma nação, por
exemplo, pode ser necessária para manter a harmonia social. No entanto, tais mentiras – diz ele –
são mais eficazes junto às elites do que ao cidadão comum”.
Omitir a verdade de inimigos potenciais é tão importante quanto impedir seu acesso a armas. A
política, de acordo com o dicionário online Merriam-Webster, envolve “atividades que visam
influenciar as ações e políticas de um governo ou obter e manter o poder em um governo”. A
mentira e a fraude são essenciais à política e a política é inseparável do governo. Ou, como Jane
Jacobs escreveu em seu brilhante livro Systems of Survival, uma das regras básicas do governo é
“iludir pelo bem da tarefa”.
House of Cards
Quando o governo é limitado a algumas tarefas, a necessidade e o escopo da fraude também são
limitados. Por outro lado, quanto mais o governo faz, maior é o papel que a fraude tem nas
atividades diárias. Como o escândalo da NSA ilustra, o governo espiona seus cidadãos e depois
desmente. Embora o governo norte-americano ainda não tenha atingido o nível de planejamento
central coletivista que F. A. Hayek expôs no Caminho da Servidão, muito do que escreveu se
aplica a ele, mutatis mutandis.
Eu me recordo especialmente do seu famoso capítulo 10, “Por que os piores chegam ao poder”,
do qual o argumento central é que quanto mais detalhado o plano que o Estado pretende impor
aos seus cidadãos, mais desumanos e frios seus executores devem ser para que tenha sucesso. É
por isso que os mais desumanos e sem princípios tem vantagem na luta pelo poder político. O
que separa o presidente Obama, ou qualquer outro presidente recente dos Estados Unidos, de
alguém como o presidente Vladimir Putin da Rússia é uma questão de grau, não de tipo.
Parafraseando Lord Acton, não somente o poder tende a corromper, mas também o poder
absoluto tende a atrair os totalmente corruptos. Frank Underwood, protagonista do drama
televisivo House of Cards, é uma ilustração excelente, embora ficcional, de tal tendência.
A política é inseparável do governo, na verdade, ela é o governo. Quanto maior o governo, maior
o papel da política. Como dizem, a política é uma característica, não um erro.

AULA 7
ECONOMIA NUMA UNICA LIÇÃO

O termo economia vem do grego οικονομία (de οἶκος, translit. oikos, 'casa' + νόμος ,
translit. nomos, 'costume ou lei', ou também 'gerir, administrar': daí "regras da casa" ou
"administração doméstica".
A economia é, geralmente, dividida em dois grandes ramos: a microeconomia, que
estuda os comportamentos individuais, e a macroeconomia, que estuda o resultado
agregado dos vários comportamentos individuais. Atualmente, a economia aplica o seu
corpo de conhecimento para análise e gestão dos mais variados tipos de organizações
humanas (entidades públicas, empresas privadas, cooperativas etc.) e domínios
(internacional, finanças, desenvolvimento dos países, ambiente, mercado de trabalho,
cultura, agricultura, etc.).
ARTIGO I

As dez leis fundamentais da economia


Sociedades que as respeitam e não tentam revogá-las enriquecem
Por Antony Mueller
Em meio a tantas falácias econômicas sendo repetidas de maneira aparentemente incessante pela
mídia e pelos comentaristas, a função do economista intelectualmente honesto é desfazer essa
cortina de fumaça para o público e reafirmar algumas das mais básicas leis da economia.
Este Instituto já apresentou uma lista extremamente sucinta das dez leis fundamentais da
economia. Vários leitores pediram para que ela fosse aprofundada. Eis, portanto, as dez leis
fundamentais da economia que sempre devem ser repetidas para jamais serem esquecidas.
1. Para consumir é necessário antes produzir
A produção necessariamente vem antes do consumo. Para consumir algo, esse algo deve antes
existir. É impossível consumir algo que ainda não foi criado.
Embora essa seja uma constatação lógica e óbvia, ela é recorrentemente ignorada. A ideia de que
o governo deve estimular o consumo da população para que isso então impulsione a produção e
toda a economia é predominante na mídia e nos meios acadêmicos. Trata-se de uma perfeita
inversão de causa e consequência.
Bens de consumo não simplesmente caem do céu. Bens de consumo são o resultado final de uma
longa cadeia que envolve vários processos de produção interligados. Essa cadeia é chamada de
"estrutura de produção".
Mesmo a produção de um item aparentemente simples, como um lápis ou um sanduíche, requer
uma intrincada rede de processos produtivos que levam tempo para ser concluídos e que
envolvem vários países e continentes.
Estimular o consumo, por definição, não pode gerar crescimento econômico.
2. O consumo é o objetivo final da produção
As pessoas produzem aquilo que outras pessoas querem consumir. Não faz sentido econômico
produzir algo que ninguém irá consumir.
Por isso, o consumo é o objetivo de toda a atividade econômica. E a produção é o seu meio.
Defensores de políticas governamentais voltadas a "criar empregos" violam esta óbvia ideia.
Programas voltados para a criação artificial de empregos transformam a produção no objetivo
final, e não o consumo dessa produção. Criar empregos artificialmente significa estimular a
produção de algo que não está sendo demandado voluntariamente pelos consumidores.
São os consumidores que atribuem valor aos bens de consumo final. Ao atribuírem valor aos
bens de consumo, eles indiretamente também atribuem valor aos fatores de produção (mão-de-
obra e maquinário) utilizados no processo de produção destes bens de consumo.
São os consumidores, portanto, que determinam o valor da mão-de-obra, da matéria-prima e de
todos os maquinários e equipamentos utilizados em todos os processos de produção.
Ignorar as reais demandas do consumidor e querer criar empregos artificiais e processos de
produção que não estão em linha com os desejos do consumidor é uma medida que tenta revogar
toda essa realidade. Tal medida é economicamente destrutiva, pois imobiliza mão-de-obra e
recursos escassos em atividades que não estão sendo demandadas pela população. Isso significa
destruição de capital e de riqueza.
3. Nada é realmente gratuito; tudo tem custos
Não existe almoço grátis. Receber algo aparentemente gratuito significa apenas que há outra
pessoa pagando por tudo.
Por trás de cada universidade pública, de serviços de saúde "gratuitos", de bolsas estudantis e de
toda e qualquer forma de assistencialismo jaz o dinheiro de impostos de pessoas que trabalham e
produzem.
Embora os pagadores de impostos saibam que é o governo quem confisca parte de sua renda,
eles não sabem para quem ou para onde vai esse dinheiro. E embora os recebedores desse
dinheiro e dos serviços custeados por esse dinheiro saibam que é o governo quem está por trás de
tudo, eles não sabem de quem o governo tomou esse dinheiro.
4. O valor das coisas é subjetivo
A maneira como cada indivíduo atribui valor a um bem é subjetiva, e varia de acordo com a
situação e com os gostos deste indivíduo. Um mesmo bem físico possui diferentes valores para
diferentes pessoas.
A utilidade de cada bem é subjetiva, individual, situacional e marginal. Por isso, não pode haver
algo como "consumo coletivo". Mesmo a temperatura de uma sala traz sensações distintas para
cada pessoa ali presente. A mesma partida de futebol possui diferentes valores subjetivos para
espectador, como é facilmente perceptível no momento que um dos times faz um gol.
5. É a produtividade o que determina os salários
A produção de um indivíduo durante um determinado período de tempo determina o quanto ele
pode ganhar durante esse período de tempo.
Quanto mais esse indivíduo produzir um bem ou serviço voluntariamente demandado pelos
consumidores em um determinado intervalo de tempo, maior poderá ser a sua remuneração.
Em um mercado de trabalho genuinamente livre, empresas contratarão mão-de-obra adicional
sempre que a produtividade marginal de cada um desses trabalhadores for maior que o seu
salário (custo). Em outras palavras, sempre que um trabalhador adicional for capaz de gerar mais
receitas do que despesas, ele será contratado.
A concorrência entre as empresas irá elevar os salários até o ponto em que ele se equiparar à
produtividade.
O poder dos sindicatos pode alterar a distribuição dos salários entre os diferentes grupos de
trabalhadores, mas não pode elevar o valor total dos salários de todos esses trabalhadores. Estes
dependem inteiramente da produtividade.
E o que aumenta a produtividade da mão-de-obra? Poupança, investimentos e acumulação de
capital. Sem poupança não há investimento. E sem investimento não há acumulação de capital.
Sem acumulação de capital não há maior produtividade. E sem mais produtividade não há
aumento da renda.
6. Gastos representam, ao mesmo tempo, renda para uns e custo para outros
Keynesianos dizem que todo gasto gera renda. Eles apenas se esquecem de que todo gasto é
também um custo. O gasto é um custo para o comprador e uma renda para o vendedor. A renda é
igual ao custo.
O mecanismo do multiplicador de renda keynesiano diz que, quanto mais se gasta, mais se
enriquece. Quanto mais todos gastam, mais ricos todos ficam. Tal lógica obviamente ignora os
custos. O multiplicador fiscal, por definição, implica que os custos aumentam junto com a renda.
Se a renda se multiplica, os custos também se multiplicam. O modelo do multiplicador
keynesiano ignora esse efeito do custo.
Graves erros de política econômica ocorrem quando as políticas governamentais contabilizam os
gastos públicos apenas pela ótica da renda, ignorando completamente o efeito dos custos.
Gastos, portanto, são custos. O multiplicador da renda implica a multiplicação dos custos.
7. Dinheiro não é riqueza
O valor do dinheiro consiste em seu poder de compra. O dinheiro serve como um instrumento
para se efetuar trocas. Quanto maior o poder de compra do dinheiro, maior sua capacidade de
efetuar trocas.
Mas o dinheiro, por si só, não é riqueza. É apenas um meio de troca. Riqueza é abundância de
bens e serviços e bem-estar. A riqueza de um indivíduo está, portanto, em sua capacidade de ter
acesso aos bens e serviços que ele deseja
O governo criar mais dinheiro não significa criar mais riqueza. Uma nação não pode aumentar
sua riqueza ao aumentar a quantidade de dinheiro existente.
Robinson Crusoé não estaria um centavo mais rico caso encontrasse uma mina de ouro ou uma
valise repleta de dinheiro em sua ilha isolada.
8. O trabalho, por si só, não cria valor
O trabalho, quando combinado com outros fatores de produção (matéria-prima, ferramentas e
infraestrutura), cria produtos. Mas o valor desses produtos depende do quanto ele é útil para o
consumidor.
A utilidade desse produto depende da valoração subjetiva feita por cada indivíduo (ver item 4).
Por isso, criar empregos apenas para que haja mais empregos é algo economicamente insensato
(ver item 2).
O que realmente importa é a criação de valor, e não o quão duro um indivíduo trabalha. Para ser
útil, um produto ou serviço tem de gerar benefícios ao consumidor. O valor de um bem ou
serviço não está diretamente ligado ao esforço necessário para produzi-lo.
Um homem pode gastar centenas de horas fazendo sorvetes de lama ou cavando buracos, mas se
ninguém atribuir qualquer serventia a estes sorvetes de lama ou a estes buracos — e, portanto,
não os valorizar o suficiente para pagar alguma coisa por eles —, tais produtos não terão nenhum
valor, não obstante as centenas de horas gastas em sua fabricação.
9. O lucro é o bônus do empreendedor bem-sucedido
No capitalismo de livre concorrência, o lucro econômico é o bônus extra que uma empresa ganha
por ter sabido alocar corretamente recursos escassos e ter sabido satisfazer as demandas dos
consumidores.
Em uma economia estacionária, na qual não ocorre nenhuma mudança, não haveria nem lucros
nem prejuízos, e todas as empresas teriam a mesma taxa de retorno. Já em uma economia
dinâmica e crescente, ocorrem mudanças diariamente nos desejos dos consumidores. E aqueles
mais capazes de antecipar essas mudanças nos desejos dos consumidores e que souberem como
direcionar recursos escassos — mão-de-obra, matéria-prima e bens de capital — para satisfazer
esses consumidores irão colher os lucros econômicos.
Empreendedores capazes de antecipar as demandas futuras dos consumidores irão auferir as
maiores taxas de lucro e irão crescer. Empreendedores que não tiverem essa capacidade de
antecipar os desejos dos consumidores irão encolher até finalmente serem expulsos do mercado.
10. Todas as verdadeiras leis econômicas são puramente lógicas
As leis econômicas são aprioristas, o que significa que elas não precisam ser previamente
verificadas e nem podem ser empiricamente falsificadas.
Ninguém pode falsificar tais leis empiricamente porque elas são verdadeiras em si mesmas.
Como tal, as leis fundamentais da economia não requerem verificação empírica. Referências a
fatos empíricos servem meramente como exemplos ilustrativos; elas não representam uma
declaração de princípios. (Veja exemplos práticos aqui.)
É possível ignorar e violar as leis fundamentais da economia, mas não é possível alterá-las.
Sociedades que entenderem e respeitarem essas 10 leis econômicas — sem tentar revogá-las —
irão prosperar.

AULA 8
LIBERDADE PARA ESCOLHER

ARTIGO I

A fórmula para um mundo mais rico? Liberdade, justiça e


virtudes burguesas
Idéias e uma profunda mudança de atitude geraram nosso enriquecimento
Por Deirdre McCloskey
O mundo é rico e irá se tornar ainda mais rico. Pare de se preocupar.
Nem todos já estão ricos, é claro. Aproximadamente um bilhão de pessoas no planeta ainda
sobrevive com a equivalente a US$ 3 por dia ou menos. No entanto, no ano de 1800,
praticamente todas as pessoas sobreviviam com US$ 3 ao dia (em valores de hoje).
O Grande Enriquecimento começou na Holanda do século XVII. No século XVIII, o fenômeno
já havia se espalhado para Inglaterra, Escócia e as colônias americanas. Hoje, ele é praticamente
universal.
Economistas e historiadores concordam quanto à sua espantosa e surpreendente magnitude: em
2010, a renda média diária de uma grande variedade de países, incluindo Japão, EUA, Botsuana
e Brasil, havia crescido de 1.000 a 3.000% em relação aos níveis de 1800. As pessoas deixaram
de viver em tendas e cabanas de lama e foram morar em casas de dois andares e apartamentos em
condomínios. Saíram de uma realidade marcada por doenças causadas por água suja e infectada
e alcançaram uma expectativa de vida de 80 anos. Saíram da ignorância plena para a
alfabetização e o conhecimento.
Ainda há quem diga que os ricos se tornaram mais ricos e os pobres, mais pobres. Nada mais
errado. A se julgar pelo padrão de conforto básico trazido por itens essenciais, as pessoas mais
pobres do planeta foram as que mais ganharam. Em locais como Irlanda, Cingapura, Finlândia e
Itália, mesmo as pessoas que são relativamente pobres têm acesso a alimentação adequada,
educação, alojamento e cuidados médicos. Seus ancestrais não tinham nada disso. Nem mesmo
remotamente.
Desigualdade de riqueza financeira é algo que varia intensamente ao longo do tempo; no entanto,
no longo prazo, esta se reduziu. A desigualdade financeira era maior em 1800 e em 1900 do que
é hoje, como até mesmo o economista francês Thomas Piketty reconheceu. E quando se toma
como base o conforto trazido pelo consumo de itens básicos — que é o padrão mais importante
de mensuração —, a desigualdade dentro de um país, e também entre países, caiu quase que
continuamente.
[N. do E.: a este respeito, vale repetir um trecho deste artigo:
Diferenças na propriedade de ativos não significam uma igual diferença no padrão de vida, muito
embora várias pessoas tenham esse fetiche. Por exemplo, a riqueza de Bill Gates deve ser
100.000 vezes maior do que a minha. Mas será que ele ingere 100.000 vezes mais calorias,
proteínas, carboidratos e gordura saturada do que eu? Será que as refeições dele são 100.000
vezes mais saborosas que as minhas? Será que seus filhos são 100.000 vezes mais cultos que os
meus? Será que ele pode viajar para a Europa ou para a Ásia 100.000 vezes mais rápido ou mais
seguro? Será que ele pode viver 100.000 vezes mais do que eu?
O capitalismo que gerou essa desigualdade é o mesmo que hoje permite com que boa parte do
mundo possa viver com uma qualidade de vida muito melhor que a dos reis de antigamente.
Hoje vivemos em condições melhores do que praticamente qualquer pessoa do século XVIII.]
Em todo caso, o problema sempre foi a pobreza, e não a desigualdade em si. O problema não é
quantos iates possui a herdeira da L'Oreal Liliane Bettencourt, mas sim se a francesa média
possui o suficiente para se alimentar. À época em que se passa a história de "Les Misérables",
ela não tinha. Nos últimos 40 anos, estima o Banco Mundial, a proporção da população mundial
vivendo com apavorantes US$ 1 ou US$ 2 por dia caiu 50%.
Paul Collier, economista da Universidade de Oxford, nos exorta a ajudar aquele "1 bilhão de
pessoas mais pobres do mundo" entre as mais de 7 bilhões de pessoas que habitam a terra.
Claro, esse é nosso dever moral. Mas ele também observa que, 50 anos atrás, de cinco bilhões de
pessoas, quatro bilhões (80%) viviam em condições miseráveis. Em 1800, eram 95% de um
bilhão.
Podemos melhorar as condições da classe operária. Aumentar a produtividade — o que permite
aumentos salariais — por meio de engenhos possibilitados pela criatividade humana é o que
sempre funcionou. Em contraste, tomar dos ricos para dar aos pobres é um truque que fornece
alívio apenas momentâneo. Por definição, a expropriação é sempre um truque efêmero, sem
qualquer efeito benéfico de longo prazo. Já o enriquecimento trazido por aprimoramentos
testados e aprovados pelo mercado é algo perene e que pode se perpetuar por séculos. Mais
ainda: é o que trará ainda mais conforto em termos de acesso a itens básicos e essenciais a
praticamente qualquer pessoa do planeta.
As causas deste Grande Enriquecimento
Mas o que então gerou este grande enriquecimento iniciado ainda na Holanda do século XVII?
Em termos simplificados, houve uma mudança radical na mentalidade das pessoas. Houve uma
mudança na atitude das pessoas em relação ao empreendedorismo, ao sucesso empresarial e à
riqueza em geral
Antes de os holandeses, por volta de 1600, ou de os ingleses, por volta de 1700, mudarem o seu
modo de pensar, havia honra em apenas duas opções: ser soldado ou ser sacerdote. A honra
estava apenas em estar ou no castelo ou na igreja. As pessoas que meramente compravam e
revendiam coisas para sobreviver, ou mesmo as que inovavam, eram desprezadas e escarnecidas
como trapaceiras pecaminosas.
Um carcereiro, no ano de 1200, rejeitou apelos de misericórdia de um homem rico: "Ora, Mestre
Arnaud Teisseire, o senhor chafurdava na opulência! Como poderia não ser um pecador?"
E então algo mudou. Primeiro na Holanda, quando a população se revoltou contra o controle
espanhol do país. Depois na Inglaterra, com sua revolução, a qual é considerada a primeira
revolução burguesa da história. As revoluções e reformas da Europa, de 1517 a 1789, deram voz
a pessoas comuns fora das hierarquias de bispos e aristocratas. As pessoas passaram a admirar
empreendedores como Benjamin Franklin, Andrew Carnegie e, atualmente, Bill Gates. A classe
média, a burguesia, passou a ser vista como boa e ganhou a autorização para enriquecer.
De certa forma, as pessoas assinaram o 'Tratado da Burguesia', o qual se tornou uma
característica dos lugares que hoje são ricos, como a Inglaterra, a Suécia ou Hong Kong: "Deixe-
me inovar e ganhar dinheiro no curto prazo como resultado dessa inovação, e eu o tornarei rico
no longo prazo".
E foi isso que aconteceu. Começou no século XVIII com o pára-raios de Franklin e a máquina a
vapor de James Watt. Isso foi expandido, nos anos 1820 (século XIX), para uma nova invenção:
as ferrovias com locomotivas a vapor. E então vieram as estradas macadamizadas, assim
chamadas em homenagem ao engenheiro escocês John Loudon McAdam. Depois surgiram as
ceifadeiras, criadas por Cyrus McCormick, e as siderúrgicas, criadas por Andrew Carnegie.
Ambos eram escoceses que viviam nos EUA.
Tudo se intensificaria ainda mais no restante do século XIX e aceleraria fortemente no início do
século XX. Consequentemente, o Ocidente, que durante séculos havia ficado atrás da China e da
civilização islâmica, se tornou incrivelmente inovador. As pessoas simplesmente passaram a ver
com bons olhos a economia de mercado e a destruição criativa gerada por suas lucrativas e
rápidas inovações.
Deu-se dignidade e liberdade à classe média pela primeira vez na história da humanidade e esse
foi o resultado: o motor a vapor, o tear têxtil automático, a linha de montagem, a orquestra
sinfônica, a ferrovia, a empresa, o abolicionismo, a imprensa a vapor, o papel barato, a
alfabetização universal, o aço barato, a placa de vidro barata, a universidade moderna, o jornal
moderno, a água limpa, o concreto armado, os direitos das mulheres, a luz elétrica, o elevador, o
automóvel, o petróleo, as férias, o plástico, meio milhão de novos livros em inglês por ano, o
milho híbrido, a penicilina, o avião, o ar urbano limpo, direitos civis, o transplante cardíaco e o
computador.
O resultado foi que, pela primeira vez na história, as pessoas comuns e, especialmente os mais
pobres, tiveram sua vida melhorada.
Será que o mundo enriqueceu, como diz a esquerda, por meio da exploração de escravos ou de
trabalhadores? Ou por meio do imperialismo? Não. Os números são grandes demais para ser
explicados por um roubo de soma zero.
Não foi a exploração dos pobres, nem investimentos, nem instituições já existentes. O que
causou o Grande Enriquecimento foi uma mera mudança de mentalidade, uma mera mudança de
atitude. Ou, para simplificar, uma mera ideia, a qual o filósofo e economista Adam Smith
rotulou de "o plano liberal para a igualdade, a liberdade e a justiça". Em uma palavra, foi o
liberalismo. Dê às massas de pessoas comuns igualdade perante a lei e igualdade de dignidade
social, e então deixe-as em paz. Faça isso e elas se tornam extraordinariamente criativas e
energéticas.
A ideia liberal foi gerada por uma feliz coincidência de acontecimentos no noroeste europeu de
1517 a 1789: a Reforma, a Revolta Holandesa, as revoluções na Inglaterra e na França, e a
proliferação da leitura. Estes acontecimentos, conjuntamente, libertaram as pessoas comuns,
dentre elas a burguesia e sua livre iniciativa.
Em termos sucintos, o Tratado da Burguesia é este: primeiramente, deixe-me tentar este ou
aquele aprimoramento. Ficarei com os lucros, muito obrigado. Porém, em um segundo ato,
estes lucros servirão de chamariz para aqueles importunos concorrentes, os quais irão também
entrar no mercado, aumentar a oferta de bens e serviços, pegar parte da minha clientela e,
consequentemente, erodir esses meus lucros (como a Uber fez com a indústria de táxi). Já no
terceiro ato, após todos os aprimoramentos e melhorias que criei terem se espalhado, eles farão
com que você melhore de vida substantivamente e fique rico.
E foi isso o que ocorreu.
Você pode discordar e dizer que idéias são coisas corriqueiras e nada especiais, sendo que, para
torná-las realidade, é necessário termos um capital físico e humano adequado, bem como boas
instituições. Esta é uma ideia muito popular, principalmente à direita, mas é errada. Sim, é
necessário ter capital e instituições para implantar e incorporar as idéias. Mas capital e
instituições são causas intermediárias e dependentes, e não a raiz.
A causa básica do enriquecimento foi, e ainda é, a ideia liberal, a qual originou a universidade, a
ferrovia, as edificações, a internet e, mais importante de tudo, nossas liberdades. A acumulação
de capital é extremamente importante, mas não é a causa precípua do enriquecimento. Qual foi a
acumulação de capital que inflamou as mentes de William Lloyd Garrison e Sojourner Truth?
Desde Karl Marx, a humanidade criou o hábito de buscar explicações materiais para o progresso
humano. Depender exclusivamente do materialismo para explicar o mundo moderno — seja o
materialismo histórico da esquerda ou o economicismo da direita — é um erro. Idéias sobre a
dignidade humana e a liberdade foram as grandes responsáveis. O mundo moderno surgiu
quando se começou a tratar as pessoas com mais respeito, concedendo a elas mais liberdade.
Mudanças econômicas em todo e qualquer período da história dependem — muito mais do que
os economistas acreditam — da mentalidade das pessoas. Dependem daquilo em que elas
acreditam. Foram idéias e mudanças de atitude o que geraram o nosso enriquecimento.
É claro que nem todas as idéias são doces. Fascismo, racismo, eugenia e nacionalismo são idéias
que, recentemente, estão adquirindo um alarmante índice de popularidade. Mas idéias práticas e
agradáveis a respeito de tecnologias lucrativas e de instituições libertadoras, bem como a ideia
liberal que permitiu que pessoas comuns, pela primeira vez na história, tivessem liberdade para
empreender e enriquecer, geraram o Grande Enriquecimento. Por isso é importante inspirar,
estimular e encorajar as massas. As elites não precisam desse empurrão, pois já são plenamente
inspiradas. Igualdade perante a lei e igualdade de dignidade ainda são a raiz do desenvolvimento
econômico e espiritual.
Por fim, a grande ameaça à nossa prosperidade não são as recessões econômicas temporárias,
mas sim a adoção de atitudes contrárias ao lucro e ao progresso. Quando o ato de empreender e
ganhar dinheiro passa a ser demonizado, e quando a inovação é obstaculizada, perdemos aquilo
que Adam Smith rotulou de "o óbvio e simples sistema da liberdade natural". Aceitar e respeitar
o capitalismo é uma ideia que funcionou muito bem para as pessoas ao longo dos dois últimos
séculos. Sugiro que a aceitação e o respeito devem continuar.

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