Você está na página 1de 15
CAPITULO A PSICOLOGIA OU AS PSICOLOGIAS samos 0 termo psicologia no cotidiano com varios sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasio de um vendedor, dizemos que ele usa de psicologia para vender seu produto; quando nos referimos a jovem estudan- te que usa seu poder de seducio para atrair o rapaz, falamos que ela usa de psicologia; e quando procuramos aquele amigo, que est sempre disposto a ouvir nossos problemas, dizemos que ele tem psicologia para entender as pessoas. Ser essa a psicologia dos psicélogos? Certamente nao. Essa psicologia, usada no co- tidiano pelas pessoas, em geral, ¢ denominada de psicologia do senso comum. Mas | nem por isso deixa de ser uma psicologia. © que estamos querendo dizer & que as pes- soas, em geral, tem um dominio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia cientifica, o que lhes permite explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vista psicolégico. O SENSO COMUM: CONHECIMENTO DA REALIDADE Existe um dominio da vida que pode ser entendido como vida por exceléncia: é 0 cotidiano. E no cotidiano que tudo flui, que as coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que viverios a realidade, Nesse instante estou lendo um livro de Psicologia, Jogo mais estarei em uma sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto isso, sinto sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um sono irresistivel e preciso de muita forca de vontade para nio dormir em plena aula; lem- bro-me de que havia prometido chegar cedo para o almoco. Todos esses aconteci- mentos denunciam que estamos vivos. Jé a ciéncia é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistematico. Quando fazemos ciéncia, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. ‘Afastamo-nos dela para refletr e conhecer além de suas aparéncias. O cotidiano e 0 co- nnhecimento cientifico que temos da realidade aproximam-se e se afastam. Aproximam- se porque a ciéncia se refere ao real; afastam-se porque a ciéncia abstrai a realidade para ‘Asnossas refegses sio exemplos da realidad cotidlana, Breakfast in Suuk-su (1918). de Konstantin Chebocarew compreende-la melhor, ou seja a ciéncia afasta-se da realidade, transformando-a em obje- to-de investigacao ~ 0 que permite a construcao do conhecimento cientifico sobre o real Para compreender isso melhor, pense na abstracio (no distanciamento e no trabalho mental) que Newton teve de fazer para, partindo da fruta que caia da arvore (fato do cotidiano), formular a lei da gravidade (explicagao cienttfica). Ocorre que, mesmo 0 mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboraté- Tio, esta submetido a dindmica do cotidiano, que cria suas préprias tegras de sociabilida- dee funcionamento, Nessa dimensio do conhecimento, o que importa é praticidade e a solucao rapida para os problemas que se apresentam no dia a dia. Por vezes, usamos a tradigao de nossos antepassados e o fazemos muitas vezes esquecendo sua origem. Em outros momentos, agimos baseados em teorias cientificas, mas a usamos de forma sim. Plificada e improvisada. Também utilizamos frequentemente 0 ensaio eo erro, que nesse éestigio funciona muito bem. O fato é que o conhecimento construtido no cotidiano usa ‘muitos recursos (algumas vezes sofisticados) e a0 mesmo tempo é um conhecimento improvisado, que depende da acio imediata, Todos nés ~ estudantes, psicélogos, ape- Tiros, fisicos, moradores de rua, tedlogos, artistas — vivemos boa parte do nosso tempo esse cotidiano e suas regras. 18 | psicotocias Realidade Seconsultarmoso diciondrio, veremos ‘que realidade é qualidade do que éreak um fato, acontecimento, coisa Entretanto, atribuir essa qualidade é uma caracterstica humana e sempre dependers do citério que usaremos para defini. Do ponto de vista das Cigncias Humanas, discutem-se ‘0s pressupostos para a definicao desses ctiteios CO fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para manter 0 café quente, sabe por quanto tempo ele permaneceré razoavelmente quente, sem fazer nenhum c4 culo complicado e, muitas vezes, desconhecendo completamente as leis da termodina- mica. Quando alguém em casa reclama de um problema digestivo, ela faz um cha de bol- do ~ que é uma planta medicinal jé usada pelos avés de nossos avs ~ sem, no entanto, conhecer o principio ativo de suas folhas nas doengas hepaticas e sem nenhum estudo farmacolégico. Nés mesmos, quando precisamos atravessar uma avenida movimentada, ‘como trafego de veiculos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distancia ea velocidade do automével que vem em nossa directo. Até hoje no conhecemos nin- guém que usasse méquina de calcular ou fita meétrica para essa tarefa Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando em nosso cotidiano é chamado de senso comum, Sem esse conhecimento intuitivo, espontaneo, de tentativas ¢ err0s, a nossa vida diaria seria muito complicada. ‘A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento espontaneo parece-nos ébvia. Imagine termos de descobrir diariamente que as coisas tendem a cais, gragas 20 efeito da gravidade; termos de descobrir diariamente que algo atirado pela janela vai cait fe no subir; que um automével em velocidade vai se aproximar rapidamente de nds: € aque, para fazer um aparelho eletrodoméstico funciona, precisamos de eletricidade. senso comum, na producao desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que vai do habito & tradiglo, a qual, quando estabelecida, passa de geracao para geracio. ‘Assim, aprendemos com nossos pais a atravessar uma rua, a fazer 0 liquidificador fun- Cionar, a plantar alimentos na época certa e de maneira correta e assim por diante. E nessa tentativa de facilitar o dia a dia que 0 senso comum produz suas proprias “teorias’; na realidade, um conhecimento que, em uma interpretacio livre, poderiamos chamar de teorias médicas, fisicas, psicolégicas etc. O tema que trata da definigao do que é ou nio éa realidade vem sendo discutido hha muitos séculos, desde os fildsofos gregos, ¢ até hoje ¢ um tema polémico. Berger & Luckmann, do ponto de vista fenomenolégico, ¢ John Searle, do ponto de vista do pés-racionalismo, fazem uma discussdo bem contempordnea do assunto, O fato é que nao ¢ tio simples para qualquer um de nés definir o que é a realidade. Pense sobre 0 assunto, trata-se de um bom tema para uma pesquisa SENSO COMUM: UMA VISAO-DE-MUNDO Esse conhecimento do senso comum, além de sua produgio caracteristica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros setores do saber humano, O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito ais especializados, eos reduz.a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma deter- minada visdo-de-mundo. (que estamos querendo mostrar a vocé é que o senso comum integra, de um modo precirio (mas & esse 0 seu modo), 0 conhecimento humano. E claro que isso nao ocorte ‘muito rapidamente. Leva certo tempo para que o conhecimento mais sofisticado e espe~ cializado seja absorvido pelo senso comum, e nunca 0 é totalmente. Quando uatilizamos termos como “rapaz. complexado’ “menina histérical “ficar neurdtico’, estamos usando termos definidos pela Psicologia cientifica. Nao nos preocupamos em definir as palavras A EVOLUGAO DA CIENCIA PSICOLOGICA | 15. usadas e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito proximos do conceito cientifico, mas, na maioria das vezes, nem o sabemos. Esses S30, exemplos da apropriacao que o senso comum faz da ciéncia, AREAS DE CONHECIMENTO Somente esse tipo de conhecimento, porém, nao seria suficiente para as exigéncias de desenvolvimento da humanidade. © ser humano, desde os tempos primitivos, foi ‘ocupando cada vez mais espaco no planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria ‘muito pouco para que ele dominasse a Natureza em seu proprio proveito. Os gregos, por volta do século TV a.C,, ja dominavam complicados célculos matemisicos, que ain- da hoje sio considerados dificeis por qualquer jovem colegial. Os gregos precisavam entender esses calculos para resolver seus problemas agricolas, arquiteténicos, navais etc. Era uma questao de sobrevivéncia. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se especializando cada vez mais, até atingir 0 nivel de sofisticago que permitiu ao ser hu- mano conquistar o espaco sideral. A esse tipo de conhecimento chamamos de eiéncia Mas o senso comum ea ciéncia nao sio as ini cas formas de conhecimento que o homem apre- senta para descobrire interpretar a realidade Povos antigos, e entre eles cabe sempre men- cionar os gregos, preocuparam-se com a origem com o significado da existéncia humana. As es peculacées em torno desse tema formaram um corpo de conhecimentos denominado filosofia. A formulagio de um conjunto de pensamentos sobre a origem do ser humano, seus mistérios, principios morais, forma outro corpo de conhe- cimento humano conhecido como religiao. No Ocidente, um livro muito conhecido traz as crengas ¢ tradigdes de nossos antepassados e & para muitos um modelo de conduta: a Biblia, que é © registro do conhecimento religioso judaico-cris tio, Outro livro semelhante € 0 livro sagrado dos hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sdnscrito (antiga lingua classica da India), significa conhecimento. Por fim, desde a sua pré-historia, 0 ser hu- mano deixou marcas de sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua propria figura e a figura da caga, criando uma expressio do conhecimento que traduz a emo- 0 e a sensibilidade. Denominamos esse tipo de conhecimento de arte 7 7 . Arquimedes matemitico gego (287 aC a212 aC} formulou o principio Arte, religido,filosofia,ciéncia e senso comum [endo oqualeodo corpo-merpuhadoem um gui ecebe pu io dominios do conhecimento humano. cde baxo para cma gual ao volume do Fido deslocado 20 | PSICOLOGIAS Umnove conhecimento é produzido sempre appartirde algo anteriormente desenvolvide. A PSICOLOGIA CIENTIFICA ‘Apesar de reconhecermos a existéncia de uma psicologia do senso comum e, de certo ‘modo, estarimos preocupados em defini-la, é com a outra psicologia que este livro devers se ocupar a Psicologia cientifica. Foi preciso definir 0 senso comum para que o leitor pudesse demarcar 0 campo de atuagao de cada uma, sem confundi-las. Entretanto, a tarefa de definir a Psicologia como ciéncia é bem mais érdua e complica- da. Comecemos por definir o que entendemos por ciéncia (que também nao é simples), para depois explicarmos por que a Psicologia ¢ hoje considerada uma de suas areas. O Que E CIENCIA A ciéncia compde-se de um conjunto de conhecimentos sobre fatos ou aspectos da realidade (que chamamos de objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa, Esses conhecimentos dlevem ser obtidos de maneira programada, sis- tematica e controlada, para que se permita a verificacao de sta validade. Assim podemos apontar 0 objeto dos diversos ramos da ciéncia e saber exatamente como determinado conteiido foi construido, possibilitando a reproducao da experiencia. Dessa forma, o sa ber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido. Essa caracteristica da produgao cientifica possibilita sua continuidade: um novo co- hecimento € produzido sempre a partir de algo anteriormente desenvolvido, Negam- -se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e assim a ciéncia avanga, Nesse senti- do, a ciencia caracteriza-se como um processo. Pense no desenvolvimento do motor flex, que utiliza mais de um tipo de combustivel. Fle nasceu de uma necessidade concreta ~ a crise do petréleo e 0 desenvolvimento do biocombustivel no Brasil - e reine a tecnologia do motor movido a alcool, a gasolina e, eventualmente, a gis natural, Foi uma forma que engenheiros ¢ cientistas brasileiros encontraram para resolver 0 problema relativo & economia do petroleo, a sazonalida- de da safra da cana-de-acutcar (utilizada na fabricacao do alcool) e & dificuldade com o abastecimento de gis natural no pais. Antes do motor flex, foi necessério criar 0 motor ‘movido a alcool. Veja como a tecnologia responde aos problemas que se apresentam em nosso dia a dia. ‘A ciéncia tem ainda uma caracteristica fundamental: ela aspira & objetividade. Suas conclusdes devem ser passiveis de verificacao e isentas de emogao, para, assim, torna- rem-se vilidas para todos. Objeto especifico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas especificas, pro- cesso cumulativo do conhecimento e objetividade fazem da ciéncia uma forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontineo do senso comum. Esse conjunto de caracteristicas é 0 que permite que denominemos de cient conjunto de conhecimentos. OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA Como dissemos anteriormente, um conhecimento, para ser considerado cientifico, requer um objeto especifico de estudo. O objeto da Astronomia sio os astros, 0 objeto da Biologia sao os seres vivos. Essa classificagao bem geral demonstra que ¢ possivel tratar [A EVOLUGAO DA CIENCIA PSICOLAGICA © objeto dessas ciéncias com certa distancia, ou seja, possivelisolar 0 objeto de estudo. No caso da Astronomia, 0 cientista-observador esta, por exemplo, em um observatério, eo astro observado, a anos-luz de distancia de seu telescopio, Esse cientista ndo corre o :inimo risco de confundir-se com o fendmeno que esté estudando. O mesmo nao ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a Economia, a Sociologia e todas as ciéncias humanas, estuda o ser humano. Certamente, essa divisio é ampla e apenas coloca a Psicologia entre as ciéncias huma- nas. Qual é, entao, 0 objeto especifico de estudo da Psicologia? Se dermos a palavra a um psicélogo comportamentalista, ele dita: "O objeto de es- tudo da Psicologia é 0 comportamento humano! Se a palavra for dada a um psicélogo Psicanalista, ele dira: “O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente’ Outros dirao que éa consciéncia humana, ¢ outros, ainda, a personalidade. Diversidade de objetos da Psicologia Muito se fala sobre a diversidade de objetos da Psicologia e muitos atribuem essa diversidade a0 fato de a Psicologia ter se desenvolvido como ciéncia muito recen- temente (final do século XIX), quando comparada com as ciéncias exatas. Muitos argumentam que nao foi possivel ainda a construcao de paradigmas confiaveis € convincentes que pudessem ser adotados sem receios por todos 0s psicélogos. Mas 0 problema é de outra ordem! Provavelmente, a Psicologia jamais tera um Ginico paradigma confidvel que possa ser adotado por todos sem questionamentos (20 menos por um dado periodo). Isso porque a Psicologia ¢ uma ciéncia humana, eas ciéncias humanas sao caracterizadas pela con- taminacao que sofrem por estudar 0 que estudam: o prdprio ser humano. Isso significa estudar um ser que ¢ hist6rico e est em permanente mudanga. Como seria possivel transformar toda riqueza do ser humano em um objeto natural, com regularidade e repeticao suficientes para que sejam descobertas verdades definitivas sobre ele? As di ferentes formas de pensar a Psicologia representam a propria riqueza do ser humano e sua capacidade miltipla de pensar sobre si mesmo, O mesmo ocorre com as ciéncias sociais (Sociologia, Antropologia, Ciéncia Politica), com Economia, com Histéria, com Geografia. A Filosofia, que nao pretende ser um conhecimento cientifico, mas que est na base de toda ciéncia, também apresenta essa caracteristica. E nio devemos nos es quecer que a Psicologia tem sua origem na propria Filosofia e, em funcao disso, mantém. algumas de suas caracteristicas. Saiba que. =O conhecido estudioso das ciéncias, Thomas Khun, afirma que as ciéncias duras (hards sciences), ‘como a Fisica e a Quimica, definem paradigmas ao decorrer de longos periodos. Fol o caso da ‘mecénicanewtoniana, que foi superada pela Teoria da Relatividade. Um novo paradigm incorpo a0 conhecimento do paradigma anterior, mas ¢ superior a ele. Ha pleno reconhecimento dessa superaco pela comunidade cientifica. Ha também expectativa de quanto tempo duraré 0 novo paradigma e é vital trabalhar para a sua superacao. Khun considera as ciéncias humanas pré-pa- radigmiticas isto é, ainda ndo so capazes de construir um paradigma confidvel. Provavelmente, pelo que as caracteriza, nunca chegardo a definir um paradigma, Outro motivo que contribui para dificultar uma clara definigao de objeto da Psicolo: gia €o fato de o cientista — o pesquisador — confundir-se com 0 objeto a ser pesquisado. Paradigma Pardo; que serve ‘como modelo, 22 | PsICOLoGiAs aigalmente born mas se crrompeu, Fores todos "pons selagens mas pare siver em sociedad precisa rmosde secon 6 0serhumano- “corpo, ser humano- -pensamento, ser humano-afeto, ser hhumano-acio e tudo Isso est sintetizado no termo subjetividade. No sentido mais amplo, 0 objeto de estudo da Psicologia é 0 ser humano, e nesse caso 0 pesquisador est’ inserido na categoria a ser estudada, Assim, a concepgao humana que 0 pesquisador traz consigo contamina inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso “ocorre porque ha diferentes concepgdes entre os cientistas, na medida em que estudos filoséficos e teologicos e mesmo doutrinas politicas acabam definindo o homem a sua ‘maneira, € 0 cientista acaba necessariamente se vinculando a uma dessas crengas. E 0 caso da concepcao de homem natural, formulada pelo filésofo francés Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que pensou que o ser humano era puro e foi corrompido pela sociedade, cabendo entao ao fildsofo reencontrar essa pureza perdida. Outros o vem como ser abstrato, com caracteristicas definidas e que nao mudam, a despeito das condi- bes sociais a que esteja submetido, Nos, autores deste livro, vemos o ser humano como ser datado, determinado pelas condigdes histéricas e sociais que 0 cercam, Na realidade, esse é um problema enfrentado por todas as ciéncias humanas, muito discutido pelos cientistas de cada area e até agora sem perspectiva de solu¢a0. Conforme a definicdo adotada, teremos uma concepgio de objeto que combine com ela, Como, reste momento, ha uma riqueza de valores sociais que permitem varias concepgbes de ser humano, dirfamos simplificadamente que, no caso da Psicologia, essa ciéncia estuda iversos setes humanos” concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo. Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os fendmenos psico- légicos sio tao diversos que nao podem ser acessiveis ao mesmo nivel de observagao e, portanto, nao podem ser submetidos aos mesmos padr6es de descricio, medida, controle einterpretacio. O objeto da Psicologia, considerando suas caracteristicas, deve ser aquele que retina as condigdes de aglutinar uma ampla variedade de fendmenos psicologicos. A subjetividade como objeto da Psicologia Considerando toda essa dificuldade na conceituagao tinica do objeto de estudo da Psi- cologia, optamos por apresentar uma definigao que sirva como referéncia para os proxi- ‘mos capitulos, uma vez que voce ira se deparar com diversos enfoques que trazem defini- des especificas desse objeto — 0 comportamento, 0 inconsciente, a consciéncia etc. ‘Aidentidade da Psicologia ¢ 0 que a diferencia dos demais ramos das ciéncias huma- nas e pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca 0 ser humano de maneira particular. Assim, cada especialidade — a Economia, a Politica, a Historia etc. ~ trabalha essa matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos distintos e especificos a respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetivi- dade — & essa a sua forma particular, especifica de contribuigao para a compreensio da totalidade da vida humana, Nossa matéria-prima, portanto, é ser humano em todas as suas expressdes, as vie siveis (0 comportamento) e as invisiveis (os sentimentos), as singulares (porque somos 6 que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) - ¢ o ser humano-corpo, ser humano-pensamento, ser humano-afeto, ser humano-acdo e tudo isso esta sintetizado no termo subjetividade. A subjetividade é a sintese singular e individual que cada um de nés vai constituin- do conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiéncias da vida social ¢ cultural; é uma sintese que de um lado nos identifica, por ser tinica; e de outro lado nos iguala, na medida em que os elementos que a constituem sio experienciados no campo A EVOLUGAO DA CIENCIA PSICOLOGICA | 23 comum da objetividade social, Essa sintese — a subjetividade - é 0 mundo de ideias, significados e emocoes construido internamente pelo sujeito a partir de suas relacbes sociais, de suas vivencias e de sua constituigao bioldgica; é, também, fonte de suas mani- festagdes afetivas e comportamentais. © mundo sociale cultural, conforme vai sendo experienciado por nés, possibilita-nos a construgio de um mundo pessoal e singular. Sao diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivéncia muito particular. Nés atribuimos sentido a essas experiéncias e vamos nos constituindo a cada dia. A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, se comportar, sonhar, amar de cada um. £ 0 que constitui o nosso modo de ser: sou filho de japoneses e militante de tum grupo ecolégico, detesto Matematica, adoro samba e rap, pratico ioga, tenho von: tade mas nao consigo ter uma namorada, Meu melhor amigo ¢ filho de descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemitica, trabalha e estuda, é corinthiano fanatico, adora comer sushi e conversa pelo Messenger. Ou seja, cada um tem sua sin- gularidade Entretanto, a sintese que a subjetividade representa nao é inata ao individuo. Ele a constréi aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural (a ex- pressio subjetiva coletiva), e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre o mundo, ou seja, € ativo na sua construcio. Criando e transfor mando o mundo (externo), o homem constréi e transforma a si préprio. Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos 0 movimentam per- ‘manentemente com suas intervenc6es; um mundo subjetivo em movimento, porque 05 individuos esto permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituir a subjetividade. De certo modo, podemos dizer que a subjetividade nao s6 é produzida, moldada, mas também é automoldavel, ou seja, o homem pode promover novas formas de sub- jetividade, recusando-se ao assujeitamento e & perda de meméria imposta pela fugaci- dade da informagio; recusando a massificagao que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitacdo social condicionada ao consumo, a medicalizagao do sofrimento. Nesse sen- tido, retomamos a utopia de que cada ser humano pode participar na construcao de seu destino e de sua coletividade. Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, étentar com- preender a producio de novos modos dle ser, isto 6, as subjetividades emergentes, cuja produgio é social e histérica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando as relacdes do cultural, do politico, do econdmico e do histérico na produgao do mai timo e do mais observavel no ser humano — aquilo que o captura, submete ou mobiliza para pensar e agir sobre os efeitos das formas de submissio da subjetividade O movimento e a transformagao sio os elementos basicos de toda essa historia E aproveitamos para citar Guimaraes Rosa, que em Grande sertdo: veredas consegue expressar, de modo muito adequado e rico, o que aqui vale a pena registrar: in- “0 importante e bonito do mundo ¢ isso: que as pessoas ndo esto sempre iguais, ainda nnéo foram terminadas. mas que elas vio sempre mudando. Afinam e desafinam. Convidamos voce a refletir um pouco sobre esse pensamento de Guimaries Rosa. {As pessoas néo estio sempre iguais. Ainda nao foram terminadas. Mas por qué? Como? Simplesmente porque a subjetividade nao cessara de se modifica, pois as experiéncias sempre trario novos elementos para renova-la, Gtiandoe transformando 0 ‘mundo externa}, 0 homer constréie transforma a si proprio. 4 ‘As pessoas estio sempre se modifcanda, PSICOLOGIAS Talvez voce esteja pensando: Mas eu acho que sou o que sempre fui, eu nao me modifico! Por acompanhar de perto suas préprias transformagées (nio poderia ser diferente'), vocé pode no percebé-Ias e tera impressio de ser como sempre foi. Vocé € 0 construtor da sua transformagao e, por isso, ela pode passar despercebida, fazendo-o pensar que nao se transformou. Mas vocé cresceu, mudou de corpo, de von- tades, de gostos, de amigos, de ativida- des, afinoue desafinou, enfim, tudo em. sua vida muda e, com ela, suas vivén- Cias subjetivas, seu contetido psicol6- ico, sua subjetividade. Isso acontece com todos nés. Bem, esperamos que voce jé tenha uma nogio do que seja subjetividade e possamos, entao, voltar a nossa discus- sio sobre o objeto da Psicologia A Psicologia, como dissemos anteriormente, é um ramo das Ciéncias Humanas, ea sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de maneira particular o objeto humano, construindo conheci- mentos distintos e especificos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a Psicologia contribui para a compreensio da totalidade da vida humana E claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de concebé-la, de. penderi da concepgio de ser humano adotada pelas diferentes escolas psicologicas. No momento, pelas caracteristicas do desenvolvimento historico da Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento fragmentario de uma tinica e mesma totalidade — 0 ser humano: sua subjetividade e suas manifestacbes. A superacao do atual impasse levara a uma Psicologia que compreenda esse individuo como ser concreto e multideterminado. Esse o papel de uma ciéncia critica, da compreensio, da comunicagio edo encontro do ser humano como mundo em que vive, jé que o individuo que compreende a Histéria (0 mun- do externo) também compreendea si mesmo (sua subjetividade), e aquele que compreende a simesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias, Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo das Ciéncias do Comportamento, e outras, das Ciencias Sociais. Acreditamos que o campo das Cién- cias Humanas é mais abrangente e condizente com a nossa proposta, que vincula a Psi- cologia & Histéria, 4 Antropologia, a Economia etc. A PsicOLoGiA E 0 MISTICISMO A Psicologia, como area da ciéncia, vem se desenvolvendo na historia desde 1879, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro Laboratorio de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, Alemanha. Esse marco historico significou 0 desligamento A evoLUGAO DA CIENCIA PSICOLOGICA | 25 das ideias psicoldgicas de ideias abstratas e espiritu- alistas, que defendiam a existéncia de uma alma nos seres humanos, a qual seria a sede da vida psiquica, A partir dai, a historia da Psicologia é de fortale- imento de seu vinculo com os principios e métodos cientificos. A ideia de um ser autonome, capaz de ‘¢ responsabilizar por seu proprio desenvolvimento € por sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento. Hoje, a Psicologia ainda nao consegue explicar muitas coisas sobre 0 ser humano. Sabe-se que a Wihei und: nov oprmeto bestia ciéncia nao esgotard o que ha para conhecer, pois a deexperimentos em Prcoisologea, realidade esté em permanente movimento, novas perguntas surgem a cada dia, 0 ser humano est em movimento e em transformacao, colocando também novas perguntas para a Psicologia. A invengao dos computadores, por exemplo, trouxe e trard mudancas is formas de pensamento, a inteligéncia, e a Psi: cologia precisaré estudar essas transformacdes em seu quadro tedrico. Alguns dos desconhecimentos da Psicologia tém levado os psicélogos a buscarem respostas em outros campos do saber humano, Com isso, algumas priticas nao psicolé- gicas tém sido associadas as priticas psicol6gicas. O tard, a astrologia, a quiromancia, a ‘umerologia, entre outras priticas adivinhatorias e/ou misticas, tém sido associados 20 fazer e a0 saber psicolégico. Essas nao sao praticas da Psicologia. Sao outras formas de saber ~ de saber sobre ‘© humano ~ que no podem ser confundidas com a Psicologia, pois: * no sao construidas no campo da ciéncia, a partir do método e dos principios cien- tificos; * estio em oposigao aos principios da Psicologia, que vé nio s6 0 ser humano como ser auténomo, que se desenvolve e se constitui a partir de sua relacao com mundo social e cultural, mas também 0 vé sem destino pronto, que constr6i seu futuro a0 agir sobre 0 mundo. As praticas misticas tém pressupostos opostos, pois nelas hé a concepgao de destino, da existéncia de forcas que nao esto no campo do humano e do mundo material A Psicologia, a0 relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz de enfrenté-los sem preconceitos, reconhecendo que o ser humano construiu muitos “saberes” em busca de sua felicidade. Mas ¢ preciso demarcar nossos campos. Esses saberes nao esto no cam- po da Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo. E possivel estudar as priticas adivinhatérias e descobrir 0 que elas tem de efi- ciente, de acordo com os critérios cientificos, ¢ aprimorar tais aspectos para um uso eficiente e racional. Nem sempre esses critérios cientificos tém sido observados, e alguns psicélogos acabam usando tais praticas sem o devido cuidado e observacio. Esses casos, seja do psicdlogo que usa a pratica mistica como acompanhamento psi- coldgico, seja daquele que usa desse expediente sem critério cientifico comprovado, sio previstos pelo cédigo de ética dos psicdlogos e, por isso, passiveis de punicao No primeiro caso, como pratica de charlatanismo e, no segundo, como desempenho inadequado da profissao. H : i a Esses saberes no estdono campo da Psicologia, mas podem se tomar seu objeto de estudo, 26 | PSICOLOGIAS Santa Inquisigao Tribunal religioso Insttuido para investigare punir crimes contra afé catia, Ainquiigio, quese iniciou no século XI, foiinstiuida Calica para julgar os hereges 0 caso mas famaso do periodo ‘medieval foi oda fran cesaloana DA que foi

Você também pode gostar