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CAMPINAS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Estudos da Linguagem
Graduação em Letras
ii
DEDICATÓRIA
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço...
A meus pais, por sempre insistirem que tudo daria certo no final –
venha isso a ser verdade ou não.
iv
EPÍGRAFE
v
RESUMO
vi
ABSTRACT
KEY-WORDS: Lesebuch für Schule und Haus; national identity; cultural identity;
Applied Linguistics.
vii
SUMÁRIO
viii
4.2 O Brasil no Lesebuch ................................................................................ 45
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 58
ix
CAPÍTULO 1 – DELINEAMENTO DO ESTUDO
1
(Carnaval, Festas Juninas, etc.), eu não podia tomar parte: não era o tipo de
coisa considerada adequada para um cristão protestante. Em suma, aos
meus olhos, o que não era genérico, era pagão.
2
deseja criar 1 ; o dos educadores germânicos no Sul parecia ser o perfeito
teuto-brasileiro, um anfíbio que funcionaria perfeitamente tanto na sociedade
brasileira mais ampla quanto no seio da colônia. Como eles pensavam atingir
semelhante objetivo? Essas perguntas não me dariam descanso.
Desde o início, meu desejo foi trabalhar com fontes primárias. Tendo
buscado em várias bases de dados, constatei que existem, efetivamente,
exemplares desses livros preservados em arquivos e bibliotecas Brasil afora
– a indisponibilidade de livros assim havia sido encarada como uma
possibilidade real na fase de preparação do projeto. A ideia original era fazer
uma pesquisa de caráter transversal: escolher um tema e ver como ele é
tratado em diversos títulos. Esse plano, que envolveria diversos
deslocamentos geográficos até os lugares onde os livros estão preservados,
se revelaria impraticável devido às contingências financeiras que atingiram
tanto o pesquisador, quanto a Universidade. O projeto foi, então, alterado
1
A esse respeito, ver Silva, 1999.
2
Conferir, apenas a guisa de exemplos, Alencastro & Renaux (2006), Uphoff (2011), Kreutz
(2000), Arendt (2006), etc.
3
Destacamos, nesse sentido, o texto de Kreutz, 2008. O Professor Kreutz também
desenvolve um notável trabalho de levantamento de exemplares sobreviventes da literatura
didática dos imigrantes alemães.
3
para uma análise em profundidade de um único livro: a sexta edição do
Lesebuch für Schule und Haus, de Wilhelm Rotermund (1843-1925),
publicado pela editora que leva seu nome, em São Leopoldo, RS, no ano de
1927. Trata-se do único livro do gênero encontrado em uma biblioteca da
Unicamp – a saber, na Coleção Aristides Cândido de Mello e Souza, uma das
Coleções Especiais e de Obras Raras preservadas na Biblioteca Central
Cesar Lattes.
4
1.2 A pesquisa qualitativa-interpretativista e a Linguística Aplicada
Com base em todo o exposto até aqui, não deve surpreender que
este trabalho se filie ao campo da Linguística Aplicada (LA), interdisciplinar
por excelência. Nas palavras de Moita Lopes (2006, p. 99), “como linguistas
aplicados, nossa posição deve ser nos situar nas fronteiras onde diferentes
áreas de investigação se encontram”, e
Seria impossível fazer uma pesquisa que valesse alguma coisa sobre
esse material e esse tema sem apelar para a História, a Antropologia, a
Educação ou mesmo a Geografia Humana. O Lesebuch... não faz sentido se
não entendemos a escola alemã, que por sua vez não faz sentido se não
entendemos as dinâmicas da colonização teutônica, e mais especificamente
a do Sul, pois ela, devido a fatores geográficos e históricos que serão
comentados conforme seja oportuno, se distinguiu da ocorrida em estados
como São Paulo, Espirito Santo ou Minas Gerais. A “preservação” da cultura
alemã no Novo Mundo era um esforço para o qual o Lesebuch... foi
designado para contribuir. O que, porém, é cultura? Podemos obter uma
resposta que não seja superficial sem passar pela Antropologia?
5
algo ao mundo contemporâneo (...). Vivemos tempos de
hibridismo teórico e metodológico nas ciências sociais e
humanas, o que tem tornado as fronteiras disciplinares
tênues e sutis (MOITA LOPES, 2006, p.99).
Mas cabe observar aqui que o grande objetivo da LA, ainda segundo
Moita Lopes (2006, p. 102), é “a problematização da vida social na intenção
de compreender as práticas sociais nas quais a linguagem tem papel crucial”.
O projeto bicultural da escola alemã era, conforme detalharemos adiante, um
projeto bilíngue, e garantir a “sobrevivência” da cultura germânica num novo
ambiente passava, necessariamente, pela manutenção do alemão como
língua materna das gerações já nascidas brasileiras. Todas as outras
ciências que sejam empregadas aqui têm por finalidade iluminar uma prática
social centrada na linguagem. É ela a cintura que mantém unidos os corpos
desse Gerião.
Talvez seja mais difícil explicar como este trabalho poderia responder
à missão que a LA se auto impõe, de não somente analisar o mundo, mas de
alguma forma ajudar a mudá-lo – um conhecimento socialmente responsável.
Moita Lopes (2006) demonstra muita preocupação em discutir como a LA
pode responder aos desafios e questionamentos do mundo moderno. Meu
objeto de pesquisa, porém, é histórico. As colônias alemãs não funcionam
como nos dias do Lesebuch...., tampouco suas escolas. Se os resultados
desta pesquisa vierem a ajudar a pensar o mundo moderno de alguma
maneira, não deverá ser pela rota mais óbvia. Penso que, como tantas outras
incursões por tópicos históricos, a maior contribuição que podemos dar aqui é
a condução à reflexão; e a melhor reflexão que poderemos deixar ao final de
tudo é uma discussão sobre o mérito de certas crenças essencialistas acerca
de cultura e identidade que, apesar de questionáveis, seguem vivas e, em
escala global, ainda fortes. O debate sobre o que significa “ser brasileiro”
mudou desde uma época onde o contingente de imigrantes constituía uma
parcela apreciável da sociedade. Na última década, o Brasil ensaiou seu
retorno como polo de imigração. Tais ensaios devem ser pausados com
várias crises diminuindo nossa atratividade, mas ainda tivemos tempo de
questionar o mito de nossa xenofilia inata quando os estrangeiros voltaram a
aportar aqui em quantidade. Discursos sobre imigrantes africanos portadores
6
de doenças e de refugiados sírios trazendo na bagagem a sharia e a jihad
ganharam as redes sociais com uma retórica que não soaria estranha nos
anos em que o Lesebuch... era empregado. Ainda há muito a ser dito acerca
de culturas e identidades nacionais, sejam a nossa própria ou as daqueles
que aqui chegam e aqui terão de se integrar. E o que significa integração?
Wilhelm Rotermund e os outros que contribuíram com textos para o livro que
estudamos tinham suas ideias a respeito, e tenham elas algum mérito ou
não, conhecê-las pode lançar alguma luz sobre os debates – ainda que
possa ser, às vezes, como exemplo do que não fazer. Não seria a primeira
vez que alguém olha para o passado em busca de soluções para o presente.
7
E como cumpre interpretá-lo?
8
No terceiro capítulo, traçamos um panorama da imigração alemã no
Brasil, com foco na região Sul, até o ano de 1927 – data de publicação da
sexta edição do Lesebuch für Schule und Haus. Este capítulo tem por
objetivo apresentar o contexto maior no qual o livro aqui analisado foi, pela
primeira vez, colocado em funcionamento.
9
CAPÍTULO 2 – ARCABOUÇO TEÓRICO
10
heterogêneo de textos que se propõem a assumir diferentes funções no
trabalho cotidiano de sala de aula” (BATISTA 2009, p. 53). É nessa liga que
se encontra o Lesebuch..., com seu caráter antológico, misto de fábulas,
contos, meditações, poemas, aforismos, excertos sobre história, geografia,
etc. Como tantos outros livros didáticos, esse é “um produto cultural
composto, híbrido, que se encontrará no ‘cruzamento da cultura, da
pedagogia, da produção editorial e da sociedade’ (Stray, 1993, p. 77-8)”
(FREITAS & RODRIGUES, 2008, p. 2). É híbrido ainda no âmbito de sua
utilização: como o próprio título diz, é um livro “para a escola e para casa”.
11
fatores envolvidos que a simples vontade de transmitir conteúdos para alguns
pupilos (FREITAS & RODRIGUES, 2008, p. 6).
12
levantamento dos trabalhos produzidos sobre o tema entre 1957 (data do
mais antigo localizado) e 2010, Moreira (2012) aponta que 62,7% dos
mesmos foram feitos entre 2001 e 2009. Não obstante esse aumento, os
números absolutos ainda são proporcionalmente baixos. Para esse quadro,
além do pouco valor atribuído aos livros didáticos como fonte de pesquisa,
contribui pelo menos um outro obstáculo no caminho dos pesquisadores que
queiram explorar esse veio: a simples dificuldade de ter acesso às fontes.
13
parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma
norma de vinculações, necessariamente consciente, baseada
em oposições simbólicas (CUCHE, 2002, p. 176).
14
diferenciação que eles utilizam em suas relações (CUCHE
2002, p. 182).
15
Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto
a concepção que temos de nós mesmos. (...) As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com
os quais podemos nos identificar, constroem identidades.
Esses sentidos estão confundidos nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu
presente com seu passado e imagens que dela são
construídas (HALL, 2006, p. 50-1).
16
Em seu sentido estrito, só podem ser consideradas
performativas aquelas proposições cuja enunciação é
absolutamente necessária para a consecução do resultado
que anunciam. Entretanto, muitas sentenças descritivas
acabam funcionando como performativas. (...) A eficácia
produtiva dos enunciados performativos ligados à identidade
depende de sua incessante repetição (SILVA, 2000, p. 93-4).
17
CAPÍTULO 3 – PANORAMA DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL
4
Situada no então município de Vila Viçosa, extremo sul da Bahia, a Colônia Leopoldina,
fundada por colonos alemães e suíços, alcançou relativa prosperidade nos seus primórdios
devido à exportação do café. A insatisfação dos colonos com o tipo de contrato que tinham
que manter com o governo brasileiro, bem como com “a falta de braços estrangeiros para
cultivar a terra, e a falta de uma administração após a morte de um de seus fundadores, em
1825, fizeram com que os colonos empregassem escravos e repartissem a terra em lotes
particulares”, o que fez com que ela se descaracterizasse enquanto colônia por volta de 1850
(CARMO, 2010, p. 15-6).
18
imigrantes ainda aportarão e fundarão colônias como a de Guarapuava, no
Paraná, composta por alemães étnicos expulsos da então Iugoslávia.
Quando é publicada a sexta edição do Lesebuch..., em 1927, as portas ainda
seguem abertas e as feridas mal cicatrizadas da Primeira Guerra Mundial e
do Tratado de Versalhes ainda incomodavam a Alemanha, garantindo que
ainda houvesse um contingente apreciável que sonhasse em reconstruir a
vida na América.
19
Estados independentes que tinham certas afinidades linguísticas e culturais –
mas também marcadas diferenças. “Tal heterogeneidade, às vezes, levava
os alemães a julgarem a si próprios estrangeiros” (ALENCASTRO &
RENAUX 2006, p. 317).
20
O Sul do Brasil na época era uma área de fronteiras em
disputa, povoado por luso-brasileiros, mestiços, castelhanos
e tribos dispersas de índios, cujas línguas e costumes nada
tinham a ver com as dos imigrantes. A região encontrava-se
mergulhada em permanentes escaramuças em guerras de
fronteira entre lusos e castelhanos (RAMBO, 2005, p. 75).
3.3.1 Autonomia
21
no fim do século XIX e publica a narrativa de suas andanças em 1895. Ele
observa que os alemães tomavam as rédeas da administração pública,
mantendo suas próprias escolas, fazendo o policiamento, entre outras
funções que normalmente estariam na alçada do Estado. O poder deste,
porém, pouco se fazia sentir nas periferias do país (certas coisas nunca
mudam...).
22
Os primeiros respondiam por cerca de dois terços dos imigrantes,
embora num primeiro momento houvesse resistência das autoridades
brasileiras a permitir a entrada de amplos contingentes que praticassem outra
religião que não a do Estado (ALENCASTRO & RENAUX, 2006, p. 292). Até
o reconhecimento legal do Protestantismo, em 1870, haveria muitas disputas
quanto aos limites de sua liberdade religiosa, como no concernente à
construção de igrejas, ou à validade legal de suas cerimônias de casamento.
Os católicos, apesar de em minoria na colônia, estavam alinhados com a
maioria da população do país, e não sofriam os constrangimentos legais que
seus compatriotas protestantes amargavam. Assim como as diferenças entre
os diferentes grupos regionais, as diferenças religiosas também apareciam
como causa de tensão no seio das colônias.
23
& Renaux (2006, p. 321), escreve: “Todo imigrante, sem ser doente, nem
mendigo, três ou quatro anos após a sua chegada assume status social
médio da concepção alemã”. Em outra, ele celebra a ausência nas colônias
dos parasitas que perturbavam a vida no país de origem, a saber: condes,
barões, mendigos e vagabundos.
6
A esse respeito, ver Huber (2010).
7
A esse respeito, ver Souza Mendes (2010).
24
3.3.4 Imprensa
3.3.5 Escola
25
Esperava-se de qualquer teuto-brasileiro que soubesse ler,
escrever, fazer contas, ter noções sólidas de religião,
conhecimento da história sagrada, conhecimento de
elementos de geografia, de história, estar informado sobre os
acontecimentos locais, regionais e o quanto possível
nacionais e internacionais (RAMBO, 2003, p. 57).
8
Exame aplicado ao fim do Ensino Médio que dá acesso ao Ensino Superior na Alemanha.
26
Uma última questão que vale a pena comentar para montar o cenário
onde o Lesebuch... foi usado é a relação entre eventos como a unificação da
Alemanha e a então ainda recente Primeira Guerra Mundial9.
Até 1871 os alemães eram entendidos como tal basicamente por um
critério linguístico. Com a proclamação do novo império, capitaneado pela
Prússia (cujo rei se tornaria imperador, ou kaiser), a maioria dos alemães no
Brasil passou a ter um único país para identificar como velha pátria
(Urheimat). Austríacos e suíços – que, até então, eram tão alemães quanto
um prussiano, um saxão ou um suábio – ficaram de fora.
9
O grosso desta subseção se baseia em Souza Moraes (2010), cuja leitura recomendo para
quem se interessar pelas questões aqui tratadas.
27
debates quanto ao reconhecimento da República de Weimar como legítima
representante do povo alemão, ou ao uso da nova bandeira preta, vermelha e
dourada em lugar da preta, branca e vermelha do império caído. Pela década
de 1920 adentro, a bandeira velha seria preferida à nova entre os teuto-
brasileiros. O aniversário da proclamação do Reich, 18 de janeiro, também
seguiria sendo observado como feriado em comemoração à nacionalidade
alemã.
10
Junção de Ausland (exterior, estrangeiro) com Deutschtum (povo alemão, nação alemã,
qualidade de ser alemão); denominação para o conjunto dos alemães no estrangeiro.
11
Trecho extraído de Arendt (2005, p. 114).
28
Semelhantes questões ainda eram assuntos relevantes quando a
sexta edição de Lesebuch... chegou às mãos dos pupilos teuto-brasileiros.
Não creio estar longe da verdade ao supor que os professores que
invocavam seu auxílio na sala de aula esperassem que os textos da
coletânea fornecessem aos alunos lastro para sustentar seu germanismo no
momento tempestuoso de redefinição e questionamento que a Alemanha e
seus filhos espalhados pelo mundo atravessavam durante os anos 1920.
29
CAPÍTULO 4 – DESTRINCHANDO O LESEBUCH...
12
No livro de leitura se espelha a alma do povo. Uma olhada na produção alemã mais
recente de livros de leitura nos mostra os ricos tesouros das mentes e corações alemães.
Dificilmente outro povo poderá oferecer às crianças e ao povo tais pérolas da literatura em
tamanha profusão; a língua e a literatura portuguesas, por exemplo, não podem nem de
longe se comparar às alemãs. Os mais novos livros de leitura alemães combinam a beleza
da língua com tudo que educa e enobrece o coração e a mente. Eles erguem perante o povo
o espelho, no qual este se vê refletido em seus elevados pensamentos, suas calorosas
emoções e profundos sentimentos; eles lhe oferecem alimento espiritual saudável, de modo
que o espírito e a mentalidade dos alemães de outrora sejam fixados e fortalecidos. (Todas
as traduções do Lesebuch..., tanto de títulos, quanto de extratos, são de minha
responsabilidade. Sua versão final contou com a revisão de Norma Wucherpfennig).
30
exercícios, ilustrações ou outros recursos para tornar o livro mais atraente e
(supostamente) auxiliar o aprendizado. Não existem indicações no próprio
livro de como cumpria usá-lo em sala de aula, fosse pelos alunos, fosse pelo
professor.
Começaremos por explorar aquilo que parece ser mais caro a Wilhelm
Rotermund: o Deutschtum. No que consistiria ser alemão? Que
13
Termo difícil de traduzir precisamente; aproximadamente, o lugar de origem, o lugar onde
se sente em casa, local do qual se sente parte, etc.
31
características o fariam distinto dos demais povos (ou unificariam os muitos
povos reunidos sobre a ampla tenda do germanismo)? Certamente
determinado a evitar que o espírito alemão fenecesse no novo ambiente (que
certamente requereu algum grau de adaptação), como estrategista, Wilhelm
Rotermund terá traçado sua linha de defesa: quais seriam os marcos
inamovíveis que cumpriria defender a fim de garantir que o hífen de “teuto-
brasileiro” não se rompesse?
14
Bem-aventurado é o homem que pode se orgulhar de sua família: ser-lhe-á de grande
valia caso ele deixe que as qualidades, aspirações e sucessos de seus pais e ancestrais lhe
sirvam de incentivo. Ele se esforçará para acrescentar à história familiar uma nova página da
qual as futuras gerações possam se orgulhar. De maneira semelhante se dá com o
pertencimento de um homem a um povo.
32
Embora muitos povos europeus buscassem suas referências
ancestrais na antiguidade clássica (como os portugueses alegando
descendência de Ulisses, ou os britânicos apontando para o príncipe troiano
Brutus como fundador de sua nação), Rotermund procurou se reportar a uma
época ainda mais longínqua em seu texto sobre o tema. Na busca de seu
mito fundador, cavou fundo, chegando até o leito rochoso da história sagrada,
o próprio Gênesis. Partindo daí ele ergue uma narrativa que, à maneira da
casa da parábola de Jesus, poderia atravessar inabalável toda sorte de
calamidade que ameaçasse derrubá-la. O resultado se encontra no ensaio
histórico Die Herkunft der Deutschen [A origem dos alemães], um dos mais
longos do Lesebuch...
33
essencialistas ou julgamentos morais sobre a natureza dos povos, como o
exemplo abaixo:
Die Geschichte lehrt uns, daß die Hamiten mehr als Zerstörer
denn als Förderer der Kultur aufgetreten sind, und daß die
Semiten sich fast darauf beschränkten, die Kultur zu
übernehmen, die sie vorfanden, daß dagegen die
indogermanischen Volksstäme oder die Arier sich als
Kulturschöpfer erwiesen haben. Daß unter diesen die
germanischen Völker eine bevorzugte Stellung einnehmen
und in Ackerbau, Gewerbe, Handel, Kunst und
Wissenschaften der ganzen Menschheit neue Wege des
Wohlstandes und der Ausbildung eröffnet haben, ist ebenfalls
aus der Geschichte bekannt (p. 225)15
15
A História nos ensina que os camitas se destacaram mais como destruidores que como
patronos da cultura, e que os semitas quase sempre se limitaram a se apropriar das culturas
com que entravam em contato, enquanto que os povos indo-germânicos, ou arianos, se
apresentaram como criadores de cultura. Sabe-se, igualmente, que os povos germânicos
ocupam entre eles uma posição destacada, tendo aberto a toda a humanidade novos
caminhos para a prosperidade e a educação por meio da agricultura, da indústria, do
comércio, da arte e da ciência.
16
(...) percorre, como um fio vermelho, a gênese e a evolução da consciência nacional
alemã; ela a acompanha tanto durante as crises graves como durante as fases de reflexão.
Para dizer a verdade, parece que a visão deles a respeito de si mesmos, que – para os
alemães – está ligada a este texto, não pode ser dissociada de uma visão “de fora”, e que
estas duas perspectivas se condicionam mutuamente.
34
Die Herkunft der Deutschen não é o único texto do Lesebuch... a
respeito dos germanos: há também Die Kultur der alten Germanen [A cultura
dos antigos germanos], também de Wilhelm Rotermund, e Die alten
Deutschen [Os antigos alemães], de Jakob Karl Andrä, além de poemas e
fragmentos que tratam de batalhas importantes em que eles haviam
defendido sua liberdade frente aos conquistadores romanos.
35
costumes – sobretudo no concernente à cultura guerreira, que está
entranhada nos ideais de justiça e liberdade que norteariam as supracitadas
instituições comuns que mantinham a coesão da pletora de povos agrupados
debaixo da denominação “germano”. Andrä escreve que seus homens
andavam sempre armados, pois as armas eram a marca dos homens livres.
Porém, estas não eram usadas só por sua força simbólica: “Wehrhaft und
kriegslustig waren die Deutschen wie kein anderes. (...) Mit unglaublicher
Tapferkeit wurde gekämpft” (p. 161)19, escreve Andrä.
19
Os alemães eram inexpugnáveis e belicosos como nenhum outro [povo]. Lutava-se com
inacreditável bravura.
36
Guilherme II, último kaiser da Alemanha, tem somente um texto
dedicado a si: Wilhelm II., deutscher Kaiser, que ou antecede a Primeira
Guerra ou escolhe ignorá-la. Notavelmente fascinado pelo militarismo, o
kaiser é retratado principalmente como um marido apaixonado, um pai de
família responsável e um líder que se considera o primeiro servo da nação, a
exemplo de seu notável ancestral, Frederico, o Grande. Até seu pai,
Frederico III, que só reinou 99 dias antes de ser ceifado por um câncer na
garganta, tem três textos dedicados a si. O relativo silêncio acerca de uma
figura tão dramática e determinante na história alemã recente intriga –
especialmente quando se tem em mente que Wilhelm Rotermund era,
conforme observado anteriormente, um simpatizante do trono perdido. Talvez
isso se dê porque Guilherme II, ao contrário das outras figuras marciais a que
o Lesebuch… recorre com frequência, não tenha tido um destino heroico: não
tombou em campanha como Barbarossa, nem foi um vencedor como
Frederico, o Grande. Antes, foi derrotado pelos seus inimigos, destronado por
seu povo e forçado ao exílio. Ao contar sua história, é difícil dar-lhe uma
guinada que faça parecer que ele, ainda que simbolicamente, conquistou
alguma coisa, mesmo que fosse glória e fama. A pouca ênfase dada no
kaiser também poderia ser uma estratégia de negociação da identidade. Com
a narrativa do “perigo alemão” sendo constante no Brasil ainda havia poucos
anos, não deixaria de ser prudente para um material teuto-brasileiro
economizar elogios àquele que, por força da propaganda em tempo de
guerra, fora transformado em epítome do mal por alguns anos. Guilherme II
não é totalmente omitido – e os alemães não renegam sua história; porém,
sua figura é minimizada – e se reduzem os riscos de causar atrito com um
conjunto mais amplo da sociedade brasileira que se identificava com os
inimigos do kaiser. É difícil honrar figuras da história recente...
37
por não ser Reichsdeutsch [alemão originário do Império Alemão] que alguém
seria menos Deutsch.
38
gerações em outros países europeus, principalmente no Leste, “from the
Baltic to the Black Sea, from the Rhine to the Volga”, que não deixariam
essas regiões até as expulsões em massa que ocorreram após a Segunda
Guerra Mundial, inundando a Alemanha de refugiados.
20
Os alemães estabelecidos no Brasil pertencem a diversas comunidades e não vieram
somente da Alemanha, mas também da Suíça, da Áustria e da Rússia. (...) Destes, poucos
são nascidos n Império Alemão; quase todos são cidadãos brasileiros.
39
Semelhantemente faria o teuto-americano para com os Estados Unidos, o
teuto-argentino para com a Argentina, e assim por diante.
4.1.3 Língua
A língua foi, por muito tempo, o elemento de ligação mais forte entre
os diversos povos alemães; e ainda assim, sua força era questionável, visto o
estranhamento mútuo entre os diversos dialetos que convivem com o alemão
padrão (Hochdeutsch). Problematizações à parte, no que concerne ao
pensamento nacionalista, “o ‘Deutschtum’ está em primeiro lugar a língua,
traço fundamental da identidade alemã, a raça, o sangue ou origem étnica"
(HUBER, 2010, p. 74).
Ohne alle Frage wäre es für uns ein großer Fehler, ja ein
Vergehen, wenn wir in der Schule und im Familienkreise die
Muttersprache nicht pflegen wollten. Und dazu soll das
Lesebuch helfen. Daß wir daneben auch diejenige lehren und
treiben müssen, welche, wenn auch nicht Landessprache im
eigentlichsten Sinne, so doch die Sprache der Behörden und
Gerichte des Landes ist, versteht sich von selbst. Es kann
aber keinem Zweifel unterliegen, daß diejenige Sprache, in
welcher ein deutsches Kind, wo auch immer seine Wiege
stehen mag, denken und seine Gedanken und Gefühle
äußern lernt, keine andere sein darf als die deutsche
Muttersprache. Und gerade so hoffen wir es zu einem
tüchtigen Bürger seines Vaterlades zu erziehen, wenn wir es
21
Para uma discussão mais aprofundada dessa questão, ver Alencastro & Renaux (2006) e
Huber (2010).
40
in der Armen der Mutter lassen. Möge das vorliegende
Lesebuch dazu dienen, die Liebe zur Mutter zu erwärmen
und Geisteshunger nach ihrer kräftigen Nahrung zu wecken!
(p. IV)22.
4.1.4 Religião
22
Sem dúvida, seria um grande erro, um verdadeiro crime, se não quiséssemos preservar
nossa língua materna na escola e no seio da família. E o livro de leitura ajudará neste
sentido. É óbvio que também devemos ensinar e cultivar aquela que é a língua das
autoridades e das cortes deste país, ainda que não seja verdadeiramente a língua local.
Porém não deve restar dúvida alguma de que a língua em que uma criança alemã aprenda a
pensar e a expressar seus pensamentos e sentimentos não deverá ser outra além da língua
materna alemã, não importa onde esteja seu berço. É justamente assim que esperamos criar
um cidadão responsável de sua Pátria, se o deixarmos nos braços da mãe. Possa o presente
livro servir para avivar o amor pela mãe e atiçar a fome do espírito por sua substanciosa
comida!
41
Poemas e canções de cunho religioso abundam. Um dos textos, intitulado Ein
gutes Lied in Herz und Mund, ein treuer Schatz zu jeder Stund [Uma boa
canção no coração e na boca, um verdadeiro tesouro para toda hora], tem
por único objetivo falar de alguns hinos considerados especialmente caros ao
coração alemão, normalmente acompanhando-lhe a letra com o relato de
alguma situação em que dito hino se achou associado a algum momento
dramático de algum povo alemão – normalmente alguma batalha.
42
Até a imigração poderia se transformar num ato de piedade. Rambo
(2005, p. 71) reproduz a seguinte canção de imigrantes do Hunsrück:
43
a Deus – esperando, talvez, a partir das ações extrair princípios que elucidem
o caráter do Criador.
Isso não quer dizer que todo ensino de virtudes esteja explicitamente
associado ao ensino religioso mesmo nacional. Tome-se o exemplo do
poema Frisch auf! [Vamos lá!]:
23
Mãos à obra e sem demora!/ O que estiver no seu caminho, remova!/O que te faltar,
procure rápido!/Aprenda cedo a ser organizado, meu filho!/Fora da cama e sem
demora!/Nada de ficar sonhando em plena luz do dia!/Primeiro o trabalho, daí a
brincadeira!/Depois da viagem se chega ao destino!/Lembre-se bem do que você quer!/O
que fizer, nunca faça mal!/Preste atenção no que vê!/Tudo faça com consideração.
44
A dupla de virtudes mais enfatizada é, provavelmente, o trabalho e a
modéstia. O valor do trabalho é exaltado tanto nas narrativas moralizantes
quanto nas históricas, onde é dado como traço fundamental dos imigrantes,
especialmente dos primeiros, que enfrentaram por primeiro as condições
adversas dos primeiros anos, lançando as bases para a prosperidade de que
as colônias já desfrutavam nos dias de Rotermund e de seu Lesebuch...
24
“Um pardal na mão é melhor que uma pomba no teto” e “não é pobre quem tem pouco,
mas sim quem muito deseja”.
45
4.2.1 A terra: natureza e lugares
25
O Rio de Janeiro é a cidade mais bonita que eu já tive a felicidade de ver neste mundo, e
eu vi bastante destas. (...) O adjetivo paradisíaco lhe é bem aplicável. (...) Quando penso no
Rio, esqueço facilmente toda sorte de inconveniente que lá encontrei, e para mim é como a
lembrança de um conto de fadas dos sonhos, todo cores e beleza. A bem da verdade, a
América do Sul já seria invejável se não tivesse nada além desta única cidade.
46
sobre os imigrantes: “Es war gerade kein sehr freundliches Gesicht, das die
atlantische Seite des Landes dem neuen Ankömmling zeigte, der von der bald
lieblichen, bald wilden Schönheit der Landschaft nicht satt werden konnte”26
(p. 219).
26
Não foi um rosto amigável que a face atlântica destas terras mostrou ao novo recém-
chegado, que não conseguia se cansar da ora amável, ora selvagem beleza da paisagem.
47
dann würdest du ein Eden sein! –27
Nessa veia temos textos como Der Sertão (descrito como “weite
Hochebenen, in welche die menschliche Kultur noch nicht vorgedrungen
ist“28) Am Amazonenstrom [No rio Amazonas], Die Überschwemmungen des
Rio S. Francisco [As Enchentes do Rio São Francisco] e Die Iguassú-Falle
[As Quedas do Iguaçu] (saudadas por seu autor, Max Josef von Vorano,
como “Wunder Südamerikas ”29 e “die gewaltige Sprache der Natur, wie ich
sie in all ihrer Allmacht nirgends voller und tiefer empfunden habe!” 30 ). Em
todos os casos, não é difícil notar uma fascinação com os extremos na
natureza indomável – como se a imaginação de pioneiros e herdeiros de
pioneiros se nutrisse do conceito com paisagens naturais que ainda
resistissem bravamente aos melhores esforços do homem para civilizá-las.
27
Como és bela todo o tempo/na imponência de tua selva/no verde vicejante de teus
campos/onde pela abundante benção do trabalho/florescem as alegrias da prosperidade em
cada casa/em todos os caminhos/em cada casa, em todos os caminhos/floresce a alegria da
prosperidade!/ Oh! Quando por essa extrema beleza/O raio luminoso do progresso
espiritual/flameje no coração de seus filhos/então serás um Éden!
28
amplos planaltos onde a cultura humana ainda não penetrou.
29
Maravilha da América do Sul
30
A poderosa língua da natureza, tão forte e profunda em toda sua onipotência quanto eu
jamais senti!
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do trabalho um do outro. O primeiro teria sido o espanhol Vicente Yanez
Pinzón, seguido por seu compatriota Diego de Lepe, e só então seria a vez
de Cabral, que reivindicou a terra para o rei de Portugal.
Numa nota diferente, Ein Besuch bei den Bacahirys, de Karl von den
Steinen, o autor relata em primeira pessoa sua viagem ao vale do Xingu no
ano de 1887 para entrar em contato com um povo isolado. A visita é pacífica,
marcada pela curiosidade dos índios em relação aos apetrechos e aos
conhecimentos científicos do alemão, e deste em relação à extraordinária
adaptação daqueles à vida na mata.
49
aparece quase como uma concessão à ainda jovem República, mostrando
como seu herói mais simbólico foi martirizado em nome da liberdade – valor
que a lenda nacional alemã tem em alta estima. Dom Pedro II é focalizado
mais sob as luzes de filantropo que de estadista. Rotermund deixa escapar
alguma simpatia pelo soberano destronado e exilado a despeito de seu bom
caráter.
31
Tudo isto é muito bonito e divertido, mas não entendo o que tem a ver com a religião, o dia
de Pentecostes ou o divino Espírito Santo.
50
palavras. Em Rodeio, um alemão chamado Franz aparecerá ao final para
visitar o dono da fazenda onde está acontecendo o rodeio do título e
terminará nele tomando parte. Existe um nível diferente de envolvimento e
afetividade entre os indivíduos, mas as relações são apresentadas em geral
como amistosas.
51
espaço no quadro mais amplo da sociedade brasileira, como brasileiros
plenos, apesar de cultivarem tradições alheias à herança cultural da maioria
de seus compatriotas. As duas pedras de toque deste projeto eram os
começos difíceis e a prosperidade presente; em suma, a narrativa construída
era uma de progresso por meio do trabalho duro, ainda mais notável por
todos os obstáculos e embaraços que se apresentaram logo de início.
52
Nos textos que tratam da região Sul não faltam enumerações dos
efeitos benéficos da presença alemã sobre a paisagem. O exemplo abaixo foi
extraído de Der Staat Santa Catarina:
32
O antes hostil cinturão de bosques entre a costa e o planalto foi convertido, por meio do
trabalho dos alemães, em um bolsão de civilização, com graciosas cidadezinhas (...),
construídas à maneira das cidades-jardim e frequentemente com aconchegante estilo
alemão. Belas propriedades coloniais, sóbrios edifícios comerciais, e até fábricas e
instalações elétricas ilustram a herança comercial de seus habitantes, que cultivam sua vida
espiritua,l religiosa e social em escolas, igrejas e associações que eles próprios fundaram,
usando a língua de sua pátria. Existe nisto algum perigo para Santa Catarina, ou até para o
Brasil, como se diz com frequência? Claramente não.
33
Porto Alegre deve sua presente condição a seu comércio. E o que conduziu este comércio
a sua significância atual é, na maior parte, trabalho alemão.
34
Os alemães do Brasil não demonstraram seu patriotismo somente por meio de sua
diligência e respeito para com as autoridades e para com as leis, mas também o
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Nesse particular, talvez ele desconheça a resistência das primeiras
gerações de alemães aqui radicados em servir nas guerras brasileiras
(PICCOLO, 2005, p. 93-6), ou talvez dela convenientemente se esqueça – a
rigor, muitos alemães do Volga vieram ao Brasil para fugir ao serviço militar
obrigatório na Rússia, e não estavam exatamente entusiasmados com a
perspectiva de pegar em armas por um país no qual haviam acabado de
pisar (RAMBO, 2005). Porém não importa se ele tinha conhecimento desta
página da história alemã no Brasil: ele provavelmente não a mencionaria de
qualquer forma. O tom argumentativo que frequentemente aflora nestes
textos trai uma necessidade recorrente de se defender de ataques e
acusações vindos de fora da colônia – necessidade relevante o bastante para
que tenha se considerado adequado incluir em um livro de leitura escolar
argumentos para rebater essas alegações. Era importante criar a imagem de
perfeita harmonia entre as dimensões brasileira e alemã do cidadão teuto-
brasileiro: qualquer indicação de que o lado teutônico atrapalhasse o
desempenho do lado brasileiro tinha o potencial de virar munição nas mãos
do adversário.
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A grande dúvida seria se valia a pena deixar amplas terras brasileiras nas
mãos de gente que parecia determinada a reproduzir tão fielmente quanto
possível os usos e costumes de sua terra de origem por gerações a fio. Seria
esta gente realmente brasileira? Seria possível contar com sua lealdade
quando a Pátria precisasse deles? Se os interesses do Brasil se chocassem
com os da Alemanha, com quem essa massa de gente se alinharia?
Convinha permitir que tantos cidadãos brasileiros priorizassem o uso de
língua estrangeira em quase todos os negócios da vida?
35
Feliz terra esta que possui cidadãos tão diligentes, pacíficos e alegres!
36
Primeiramente, no correr de séculos e milênios se tem demonstrado que os alemães, tanto
por sua diligência quanto por sua compreensiva mentalidade progressista e seu amor pela
paz e pela ordem, são mais adequados que os demais povos para contribuir para o
desenvolvimento de um país. Também as colônias por eles recentemente estabelecidas na
Áustria, na Rússia e na América do Norte falavam por eles.
55
escola, a imprensa, a igreja, as associações, etc. Logo, seria interessante
que o Estado brasileiro deixasse sua população alemã em paz, pois esta não
lhe queria mal; muito pelo contrário: embora tivessem um vínculo imperecível
com a cultura alemã, não tinham outra Pátria que não o Brasil37, e com ele
estaria sua lealdade.
Mas Rotermund ainda não sabia disso. Para ele, a principal linha de
defesa da condição teuto-brasileira era insistir que eram as virtudes alemãs
que permitiam aos imigrantes e a seus descendentes serem tão honoráveis
cidadãos brasileiros: “Weil wir Brasilien als unser Vaterland lieben, so wollen
wir ihm wie bisher in deutscher Weise und mit deutscher Kraft dienen” (p.
233)38.
37
No Lesebuch..., tanto a palavra Heimat quanto Vaterland são usadas para se referir ao
Brasil.
38
Justamente porque amamos o Brasil como nossa pátria, queremos servi-lo de modo
alemão e com força alemã, como temos feito até agora.
56
57
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando decidi pesquisar o Lesebuch für Schule und Haus, sabia que
ele teria algum tipo de agenda: é simplesmente essa a maneira como os
livros didáticos funcionam. Perguntava-me o que era, para esse livro, ser
brasileiro – assim como o que era ser alemão. Tendo chegado até aqui, estou
convencido de que para os autores representados no Lesebuch... o Brasil é,
antes de mais nada, um lugar. É um país (Land) sem povo (Volk); pode ser
que tivesse uma população, mas ainda não teria um povo propriamente seu.
É uma entidade jurídica que administra um vasto, belo, impressionante e
selvagem território. Seus habitantes originais – pelo menos os que restaram –
vivem à margem da sociedade, muitas vezes sem sequer saber que o Brasil
existe ou que habitam seu território. A maior parte da população tem raízes
em Portugal, em Angola, na Itália, na Alemanha, etc. A língua oficial é
emprestada de seus antigos senhores coloniais. Poderia ser que uma
legitima brasilidade viesse a surgir um dia, mas por ora era mais um objetivo
a ser atingido que uma realidade já efetiva e atuante no mundo. Ser brasileiro
seria, portanto, ser habitante e cidadão do Brasil.
Ser alemão, por outro lado, pouco tem a ver com um lugar. A
Alemanha é a terra de origem do povo alemão, e por isso merece estima de
quantos pertençam à raça germânica. Friedrich Strothmann escreveu no
Allgemeine Lehrerzeitung que “o vínculo ao povo alemão permanece, ‘seja
sob carvalhos, seja sob palmeiras’” (Grützmann 2003a, apud Arendt 2006, p.
114). Se consideramos o carvalho como símbolo da Alemanha e a palmeira
como representação do Brasil, não é difícil entender sua mensagem: é
possível ser alemão qualquer ambiente, sob qualquer clima, em qualquer
continente. Há que se considerar que, enquanto país, a Alemanha é mais
nova que o Brasil – não obstante, o povo antecedia a existência do país.
Enquanto que para ser brasileiro bastava nascer no país ou nele se
estabelecer, para ser alemão era preciso nascer como tal, trazer no sangue a
história dos guerreiros que detiveram o avanço romano. Era preciso falar
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alemão, expressar seu verdadeiro ser nessa língua, e por meio dela ter
acesso à fé, aos versos e às canções em que habitava o espírito do povo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONSECA, M. A. P.; TAMBARA, E. O gorjeio das aves: alle vögel sind schon
da... Cadernos de Educação, nº 53, 143-159, 2012.
60
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Tradução de
Guacira Lopes Louro e Tomaz Tadeu Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
61
RODRIGUES, J. H.; SEITENFUS, R. A. S. Uma História Diplomática do
Brasil: 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
VALENTIN, V. The German People: their History and Civilization from the
Holy Roman Empire to the Third Reich. Tradução de Olga Marx. Nova York:
Alfred A. Knopf, 1946.
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