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O PLANETÁRIO EM RUÍNAS1

"Porque há para todos nós um problema sério, tão sério que


nos leva às vezes a procurar meio afoitamente uma ‘solução’: a
buscar uma regra de conduta, custe o que custar. Este
problema é o do medo."
(Antonio Candido, Plataforma de uma geração.)

Cena única. Na paisagem de lixo, há um pássaro, seu canto nos detem e nos faz
corar. Há um relógio que não soa. Há uma catedral que desce e um córrego poluído
que sobe. Há uma pequena carroça abandonada nas moitas, ou que desce a vereda
às carreiras, descarrilhada. Há um grupo de pequenos comediantes disfarç ados,
vistos na estrada pela beira do mato. Há, por fim, quando se tem fome e sede, alguém
que nos expulse. Numa distância enorme acima da sala subterrânea, as casas se
implantam, as brumas se reúnem. A lama é vermelha ou negra. Cidade monstruosa,
noite sem fim. Menos acima, estão os esgotos. Dos lados, nada senão a espessura do
globo. Talvez os abismos de azul, poç os de fogo. É nesses planos que talvez se
encontrem luas e cometas, mares e fábulas. Indica-se que os personagens sejam
representados por coros de atores, formados por homens e mulheres. Cada fragmento
de texto que segue, em forma de aforismo (quando possui título) ou de poema em
prosa, pode ser encenado por um ou mais integrantes de cada coro, gerando vozes
coletivas dissonantes, que constituem a subjetividade fraturada do casal narrador.

Reparo que a capa deste livro que Nuno me deu está manchada. Na parede, por entre
os traços do meu autorretrato, que penduro de ponta-cabeça, persiste perante meus
olhos a imagem de uma figura masculina vestida de saudade. Nada faz, não se move,
no entanto avança para mim de rosto escondido, dá a impressão de ser só uma veste
privada de corpo, é um menino de dez anos agora, sou pura recordação. Finalmente,
mostra-me o seu corpo, que é também o meu corpo, que é o medo, Nada te separa de
mim, diz-me, Nós somos de vidro e vamos quebrar-nos para sempre. Persiste, ainda
no lugar de meus olhos. Compreendo que fizemos esforços para nos estilhaçar, há já
um tilintar de pedaços a preceder a fragmentação e a queda. Ele é meu planetário.
Uma outra personagem vem então para o centro da parede, sobrepõe-se à primeira
que se afasta para longe. Essa segunda personagem tem dez anos, sou eu, Nona, é
menina e precoce, veste-se com camisetas pretas de bandas de rock europeu, é só
branco e imensidão, é nada, é um vazio profundo que toma a forma encurralada de um
poço. Mas é um poço paralelo à terra, fendido no ar, de paredes indeterminadas e de
matéria desconhecida. Procuro penetrá-lo com os olhos, sei intuitivamente que é
longo e solitário, um perfeito caminho desconhecido. Fico adormecida à sua beira,
sem necessidade de contemplação, nem tão pouco de esperar o momento seguinte,
pois há uma coincidência entre os dois personagens, entre as infâncias de Nuno e a
minha, que não operam sem ser por intermédio do medo. Em verdade, temos medo,
nascemos no escuro. E fomos educados para o medo.

Minha mãe, amor e AI-5. Saio correndo da sala de aula, ainda chorando em silêncio.
Abro a porta do banheiro e vomito até a alma, em cima do vaso. Tudo o que Nona me

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Texto de Nuno Torres Filho. Nuno Torres Filho ( 1974-2013) foi editor, filósofo e poeta paulistano.
Publicou, sempre de forma independente, textos acadêmicos e poéticos, bem como ficção nas áreas do
conto e do romance. O presente texto foi extraído de CORNAGO, Oscar (org).Dramaturgias en
América Latina. Piezas e autores de los años 90. México: Grijalbo, 1999.
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deu eu vomito até a alma, e ainda não acabou, tem mais e mais. Meu pai sempre
segura a minha testa quando vomito. É a primeira vez na vida que vomito sozinho.
Minha mãe está sentada no sofá da sala do apartamento em São Paulo, com uma pilha
de meias para remendar. O vizinho, com seu aparelho sempre atado à rádio Cidade,
inunda o ambiente como um mar, é Take my breath away, do Berlin, sucesso que
marcou aquele ano. Ela levanta um fio e mais um fio com a agulha, e depois de alguns
fios ela para, se esquece de si mesma, olha para o vazio, não olha para nada e não me
vê. Em que está pensando quando fica assim? Nunca perguntei. Mil vezes fiquei
sozinho com ela e não perguntei. Meus avós eram ricos, e sempre pássavamos as
férias no sobrado infinito do interior, onde eu tinha o meu cachorro Bug. E ela era
uma aluna excepcional na sua época, e tocava piano, e falava em recitais, mas acabou,
o AI-5 veio e quando ela tinha vinte e três anos esteve escondida num trem durante
seis meses, no tempo do Araguaia. Durante seis meses, três maquinistas amazonenses
esconderam minha mãe em algum cubículo num trem que percorria a mesma linha,
indo e vindo, Eles me vigiaram em turnos, ela me contou, e deu um sorriso torto que
eu nunca tinha visto. Acho que eu tinha dez anos - foi quando conheci Nona -, eu e
minha mãe estávamos sozinhos em casa, eu fazia um espetáculo para ela e ela de
repente me interrompeu, no meio da fala do Investigador, e contou isso, eu larguei
minha arma de brinquedo e sua boca saltou para um lado e durante alguns segundos
não conseguia voltar para o lugar, toda aquela parte do rosto fugiu para um lado. Seis
meses até que eles resolveram que estavam cheios dela, não sei porquê, não sei o que
aconteceu, mas um dia, quando o trem chegou na estação final, esses desgraçados
jogaram minha mãe sem hesitar dentro da plataforma. Meu pai a resgatou na fronteira
com a Bolívia e eles fugiram para Santiago. Nunca falaram, entre si, daqueles seis
meses, estavam separados quando seus nomes entraram na lista do DOI-CODI.

Meu pai, após a Constituição de 1988. Meu pai era um nefelibata com a cabeça de
profeta, que se transformou num grande caranguejo de tantos sonhos para tatear os
limites da existência humana. Meu pai, ao contato de quem todas as coisas como que
recuavam às raízes de sua existência. Meu pai, o poeta secreto, o homem obstinado
que lutava sozinho contra as forças do tédio e do mundo, meu pai, o ousado
pesquisador das vivências mutantes, que com sua força de vontade e visão
transformava-se em pássaro, inseto, caranguejo, meu pai, eterno morto-vivo, o
comedor de nuvens, cujos negócios desmoronavam diante de seus olhos errantes. Ele
me ensinou a ser, como ele, um daqueles a quem Deus passara a mão no rosto
enquanto dormiam, de modo que sabem o que não sabem, enchem-se de conjecturas e
adivinhações, e sobre suas pálpebras cerradas passam reflexos de mundos distantes.
Eu era sensível em demasia, sempre combatendo inimigos que ninguém conseguia
nem ao menos imaginar. Certa vez, em uma hora noturna obscura, melancólica, ele
entrou no meu quarto e me encontrou alimentando com açúcar as moscas que haviam
sobrevivido ao frio outono, Nuno?, sua voz forte me interrompeu, É para que tenham
forças no inverno, aleguei. Quando meu pai morreu, todas as moscas se despediram
de mim. Até hoje não consigo sonhar, e ainda não chorei.

Existe na minha rememoração alguém, alguém como ele que chora e tem mãos
decepadas, alguém com um barco dentro de cada olho, alguém cujos lábios tem o
gosto do sorriso do mar quando o sol o saúda, alguém de cuja fronte surgem canções
imemoriais, alguém com um coração mensageiro que leva cartas ao infinito, alguém,
em suma, igual a ele foi. Em meu amor tudo é perda. Mas eis aqui meus olhos
luzentes como cães raivosos. Eis aqui minhas mãos doces como a chuva. Em meu
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amor tudo é perda. (Hoje e sempre devo recordá-lo. Hoje e sempre procurá-lo). À
volta da palavra procura há uma falha. O cão procura...Procurar alguém é encontrar-
me...Tento rememorar, reconstituir, rememorar. “Morrer para viver”, foi a divisa de
nossa família, com exceção de minha avó, que me criou. Mas sua carga de vitalidade
foi insuficiente diante das estratégias de morte em vida executadas por meus pais.
Eles não foram perseguidos, torturados, exilados, como os pais de Nuno, apenas
morreram comigo, enquanto vivíamos. É a plataforma de nossa geração, viver a
morte, simbólica ou não, de nossos pais, reproduzindo-os infinitamente.
Procura...Estou na situação de um cão, erguendo os olhos, procuro uma mulher, uma
figura feminina passada, pois agora vejo que era eu nos tempos de Nuno que a
metáfora da felicidade continha. É uma figura que canta diferentes massas de água. É
noite e há Sol no lugar da Lua. Encontro o que procurava, sempre esquecida. A figura
percorre seu corpo e diz que me visita sem finalidade, à beira de calar-se e de
exprimir-se. Sigo seu rasto sem me mover, com a mão sobre os olhos, e os olhos
sobre a boca. Quem ousa, então, para que eu o desconheça, fazer-me procurar tão
longamente seu nome que é muralha, resplandecente sombra de coro? Tive tanta
raiva, quando criança, que interrompi nossa formação sentimental e fiz seu nome
desaparecer nas corcovas da morte.

O planetário está fechado para o almoço. Naquele dia, eu saí de casa levando a
mochila abarrotada com o meu lanche e o de Nona, tudo naquele planetário em
minhas costas era duplo: duas maçãs, dois pacotes de bolacha, dois chocolates, duas
garrafas com suco de laranja. Descobri o quanto Nona adorava suco de laranja quando
eu a vi suando muito, no sol, dentro do ônibus em combustão, e ofereci um gole do
que comprara na cantina, ela sorveu tudo como um filhote de tamanduá engole
formigas, O gostinho da laranja é a coisa mais deliciosa do mundo, ela disse,
entregando-me a garrafa e as minhas veias vazias, a partir dali meu sangue não me
pertenceu mais. Eu arrastei pela rua o universo duplo, com dificuldade, sonhando com
a alegria disfarçada com que Nona receberia os pequenos presentes, eu me
preocupava porque ela tinha um problema na coluna, sua mãe, que era professora de
Matemática na Escola, havia pedido a liberação da menina das aulas de Educação
Física, até que a cirurgia fosse realizada. Eu carregava nossa Via Láctea nas costas
porque não queria que Nona se curvasse ao mínimo peso, mesmo que fosse o de uma
lancheira cor-de-rosa cheia. Cheguei bem cedo ao ponto de ônibus, como fazia há seis
meses, tentando extrair da rocha, como uma Exalibur, o perdão de Nona, para libertar-
me da condenação perpétua, podendo então ser, finalmente, aceito como seu
namorado. Eu nunca obtinha sucesso, Nona não acreditava na minha possibilidade de
mudar e de crescer e, por isso, eu ouvia geralmente poucas palavras, sentindo sua
mágoa como balas de fuzil. Nona chegou com um fone de ouvido, de óculos escuros
e, assim que me olhou sentado, desviou o rosto e ficou de costas para mim. Tenho
certeza que ela me viu, mas por mais de meia hora fiquei admirando-a dançar,
imaginando que música tão bela seria aquela, capaz de movimentar suas mãos como
se domesticasse e acariciasse filhotinhos de nuvem. Eu deveria deixá-la livre mas,
antes do ônibus chegar, não segurei minha ânsia de perdão; aproximei-me devagar e
lhe ofereci o suco, como um pote de arco-íris, já que, para mim, tão distante dela, uma
palavra, uma respiração ou um nano olhar passara a valer como um pote de ouro . Ela
não disse nada, apenas pegou meu Graal, que eu já abrira, e tomou o suco, Está azedo,
avaliou, entregando-me a garrafa cheia de volta, Eu tenho outra aqui, respondi, Tenho
duas. Mas a conversa não se desenvolveu porque o ônibus chegou, inoportunamente,
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e Nona não quis se sentar do meu lado, explicando-me, com cansaço, que precisava se
concentrar para a aula que viria.

Aragnosis. Não esqueço – e jamais conseguirei – o momento em que Nona, caída no


chão, tentava se levantar, presa ao meu abraço. Eu tentava me desculpar mas não
conseguia soltar a arma, presa nos meus dedos; entre Nona e a arma, eu escolhi a
arma porque tive medo da surra do meu pai, mas havia, no corpo pequeno e feminino
de Nona, algo que eu não sabia o que era, no início pensei que fosse o cheiro do seu
medo ou de meninas como ela, e só depois é que ficou claro para mim que era apenas
o cheiro do desespero, que ela possuía uma glândula do desespero, então eu ainda não
tinha tempo de pensar em nada, e só havia aquela ardência terrível-terrível, e um
rasgo longo em toda a minha extensão, na certa como num nascimento , e então me
encolhi todo à sua volta, enrosquei-me todo nela, galopei com fúria desembestada
sobre as ondas mais fortes que consegui agarrar então, chorando e tentando protegê-la
de mim mesmo. Pois desde aquele momento eu conheço Nona até a última fenda de
suas profundezas negras, e parece-me que tive sucesso naquilo em que muitos antes e
depois de mim fracassaram, aqueles que não ousaram como eu, ou seja, que não
foram obrigados a ousar se expor tanto como eu, porque aprendi em Nona o que não é
dado aprender, e juntei às minhas folhas um olhar colorido do caleidoscópio infinito
das combinações de forma e cor e campos de luz azul sonhadora, e resplendores de
amplidões, cujo grande encanto consiste em nunca existirem o suficiente para serem
lembrados, percebidos. Mas havia uma outra questão que eu deveria aprender a
responder, e era a questão da vida; a vida que vivera e a vida que não vivera devido às
minhas deficiências e ao meu medo. Reconheci que tinha vivido o meu amor por
Nona como um acrobata ousado nas alturas do andaime, e que sempre me cuidava
para não olhar para dentro, para baixo, pois se olhasse seria atacado pelo medo e pela
tristeza e saberia que não era trapezista mas carcereiro. Que em meu caminho, e por
força do medo, eu me tornara cúmplice daqueles que mantinham as mãos em torno de
mim, mesmo que fosse para me proteger. Das raízes da alma de Nona eu vi uma onda
ser arrancada para preencher a onda que faltava em mim. Esse amor era muito penoso
para nós dois. Havia nela agora uma revolta que baniria o seu próprio eu de dentro de
si. Suas lágrimas, enquanto eu tentava levantá-la do chão e era empurrado por seus
braços pequenos de criança assustada, pareciam me dizer, Preste atenção no mar,
Nuno: o mar cinzento que está junto de você sacode com força seus grandes
cobertores para a noite, enquanto isso, rompem-se em você botões de algas redondas
que sobem por um momento à luz da superfície e são outra vez engolfados pela
espuma da sua dor.

Idioma estrangeiro do abandono. Seis meses depois daquele dia no parque, eu ainda
tentava me perdoar, o que não consegui até hoje, data em que não sei mais o paradeiro
de Nona, talvez esteja casada, com filhos, em um sobrado em Perdizes, abrigada da
fúria das ondas e da minha lembrança. Durante aqueles seis meses de expiação, eu
entregara para Nona um envelope branco, com pedaços de textos que copiei dos livros
de meu pai, preenchendo um caderno inteiro. Queria que os pedaços ajudassem Nona
a compor o seu trabalho de história, eu não entendia o significado daquelas palavras
místicas, capitalismo, modernidade, mais-valia, mas acreditava que poderiam ser úteis
para ajudá-la a passar de ano. Assim que a professora pediu que formássemos duplas,
para responder às questões do livro de Física, Nona sentenciou, de passagem,
recusando o presente, Não precisava ter copiado tudo para mim, e arrastou sua
carteira, que estava ao lado da minha, até a outra extremidade da sala, e começou a
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conversar, em inglês, com outro menino. Ele era um recém-chegado no colégio


Palmares, filho de empresários, que meu pai insistia em classificar, quando cruzava
com eles na saída da escola, de “os canalhas da UDN”. Edgard - era esse o nome do
garoto, pronunciando-se o “d”no final – era completamente diferente de mim: loiro,
de olhos azuis, bonito, bastante atlético e dizia “ter feito sexo muitas vezes”, o que,
aos dez anos, me assustava, já que tinha medo de que ele realizasse esta misteriosa
atividade com Nona, ferindo-a, ou trapaceando para vencer, ou simplesmente não
tratando-a como ela me parecia ser na realidade, como uma bailarina daqueles bolos
grandes de aniversário, com uma das pernas com um osso oco por dentro, amarrada
por cicatrizes, mas capaz de dançar abrigada do vento, de modo mais doce do que a
própria cobertura de suspiros. Eu não sabia o significado do sexo que Edgard fizera
muitas vezes, mas suspeitava que Nona, independente do sentido, não gostaria de
exercitar palavras desse tipo comigo, aliás, se comparado a Edgard, ela falava pouco
comigo. Ele, além de tudo, não usava óculos, e falava inglês fluentemente, porque
havia vindo de um “College” norte-americano do Morumbi. Nona, que também tinha
estudado em uma escola bilíngue, passava horas a fio conversando, em um idioma
que eu não compreendia, com o meu antagonista, ao vivo ou por telefone, e desde o
momento em que ele apareceu, a minha pequena amada deixou-me muito clara a sua
escolha: dizia que o Edgard nunca lhe fizera nenhum mal, ao contrário de mim, e que
por isso os dois podiam “ter intimidade”. Eu não compreendia que espécie de
intimidade era aquela, mas percebia, nos espasmos doídos que percorriam o meu
coração sempre nu, que eu nunca mais seria a escolha de Nona e que, na sua doçura
inconstante de cata-vento, eu já fora substituído. Não consegui terminar a lição
naquele dia: quando vi os dois juntos, levantei-me, fui até o banheiro e vomitei meu
puro medo e minha agônica raiva. Perdi o restante da aula, mas fiquei, como fazia
todos os dias, esperando Nona no portão, para acompanhá-la até o ponto de ônibus:
sempre ela voltava direto para casa mas, naquele dia, contou-me que iria para a
Paulista, sem me dizer o que faria lá, já que não tínhamos intimidade para esse tipo de
informação. No caminho, Nona parava a cada orelhão, discando sempre o mesmo
número, com quem conversava tensa e apressada, explicando, em inglês, algo que eu
não entendia, O que está acontecendo, Nona?, eu tentei compreender, mas ela me
disse que Você pergunta demais, isso é controle, Você pode contar comigo Nona, eu
posso te ajudar, respondi de volta, como se mastigasse pedras, olhando para o nó de
sua blusa amarrada na cintura, vivendo em mim um nó ainda mais apertado, no meio
do silêncio sem fim. Mas o que mais me torceu por dentro, como um pano sujo, foi a
palavra controle, controle para mim existia apenas nas histórias do meu pai, quando
ele distribuía a Voz da Unidade nas fábricas da Zona Leste, sem saber que todos os
seus passos eram controlados por policiais à paisana. Hoje percebo que meu amor
genuíno e infantil está muito distante de qualquer autoritarismo, mas sei que Nona
não me via assim porque sempre fora amada quando invadida e algemada, e que nós
todos somos controlados e revistados, há tantos séculos, que o medo nos contamina
como uma doença genética e, por isso, o amor sempre nos parece uma forma de
opressão, quando é, na verdade, uma maneira marginal de resistir aos sapatos que nos
esmagam, como baratas. Depois de recusar-se a responder minhas perguntas, Nona
olhou-me com uma careta de desprezo, rasgada por um ódio militar, que parecia
julgar-me e condenar-me de maneira estalinista, acentuando minha própria culpa, por
tudo o que eu fizera de errado naquele dia, há mais de seis meses, Não estou te
castigando por aquele dia, mas você merecia: por quando pagou o lanche da Luciana
Carla e não o meu, ou pelo dia em que eu passei mal com pressão baixa e você riu e
disse que eu parecia uma galinha; você me negou por várias vezes, porque você não
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tem Síntese". Eu não sabia o que era síntese, mas ela me repetia essa mesma sentença,
sempre que eu balbuciava alguma tentativa de diálogo ou esmolava por um farrapo de
perdão. Quando Nona subiu no ônibus e se foi, sem ter dito nenhuma palavra ou
condenação durante todo o caminho, eu chorei compulsivamente.

Uma memória feminina quer entrar, um espírito de esperança e mansetude. É um


espírito sorridente, soube dançar como quem sorri. Mas quando me vê, precisa por no
rosto uma máscara, e seu corpo articulado na madeira, costurado por cicarizes, parece
ser destinado ao lançamento nas chamas. Agora, dentro de suas pupilas, voam
passarinhos cindidos que se afastam, subindo para um céu com luzes
esplendorosamente brancas. Era uma árvore, antes, e ao cair inteira, a queda separa-
lhe o tronco dos ramos, fraturada; os ramos incendeiam-se, recolhem os verdes na
chama, o fogo não tem fumo, apenas grita (Por que eu sempre o ouvia gritando
comigo, mesmo quando ele sussurrava palavras desesperadas, pedindo ajuda?).
Abrindo as páginas dos livros, que guardo sobre uma placa de metal no meio da sala,
aquele eu que eu era procurava ideias e desenhos para suas coreografias e
experimentava, com suspiros, o sopro de suas mãos. Nona, a criança que fui antes de
tudo acontecer, era uma doçura que abria as portas sem ruído, e trazia consigo o
silêncio como um véu de ideário. Senta-se agora com vastas escritas sobre os joelhos,
e sonha com a morte que a trará aqui. Sento-me ao seu lado quase chorando de tépida
alegria, peço-lhe que me deixe ler suas anotações, que me empreste suas mãos onde
se acolhem cães - um deles se chama Bóris -, animais e plantas. Há dias, encontrou-
me num sonho, estava eu num quarto baixo e aberto, a olhar um lobo e um tigre, e ao
encontrar sua voz disse, Se eu pudesse, você viveria sempre aqui, sem encontrar
violenta morte, nem maus tratos da hora seguinte. Eu só consigo lembrar-me do que
me aconteceu de dor, e talvez por isso ela tenha voltado para me confortar, quis
encontrar-me hoje por absoluta necessidade do espírito, junto com a lembrança de
Nuno, por mais que eu só me recorde do trauma que ele me ofertou, naqueles dias do
desastre, Nós somos o desastre, não somos?

Jogo de espelhos. Minha mãe costumava me bater tão cotidianamente que desenvolvi
uma estratégia de fuga. Eu fechava os olhos. E então simplesmente eu não estou mais
lá. Não estou em lugar nenhum. Eu me proibí de estar em qualquer lugar. Tenho mil
truques para não estar, mas de repente não consigo me lembrar de nenhum desses
truques. Quando ela me batia, eu treinava em como fazer as batidas do meu coração
pararem, baixava para vinte ou trinta por minuto, como se estivesse hibernando, era a
isso que queria chegar, a um sonho e, fora isso, eu também me treinava, para espalhar
a dor do lugar da pancada para outros pontos do corpo, dividir a dor entre todos, como
se fosse uma divisão igualitária do ônus. No meio dos golpes, eu imaginava que vinha
uma caravana de formigas para apagar a dor do rosto ou da barriga, e, num segundo,
as formigas esfarelam a dor e levam a lugares do corpo mais indiferentes. Eu também
tinha nojo de comer salada, e meus pais ficavam irritados comigo e diziam que eu
tinha que comer, que minha saúde futura dependia daquelas folhas, e havia gritos e
tapas. E no fim, quando nada adiantava, e eu já estava roxo de tanto apanhar, eles
diziam que se eu não comesse a salada imediatamente eles iriam embora de casa e não
voltariam nunca mais. E eu não comia. E eles vestiam os casacos, pegavam as chaves
e me diziam da porta, Adeus. E eu, por mais medo que tivesse de ficar sozinho, não
comia, não sei de onde tirava a coragem para enfrentar o meu pai e a minha mãe, e
ainda discutia com eles, ganhava tempo, só queria que isso continuasse para sempre,
eles de pé, e um ao lado do outro, me dizendo as mesmas coisas... Com Nona, eu
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percebi que sempre criava motivos para novas discussões, seja porque ela estava
quieta, seja porque o gira-gira estava rápido demais, seja porque ela mudava de
assunto repentinamente; no fundo eu acreditava que assim me manteria sempre a seu
lado, enquanto discutiam comigo, nenhum deles morreria. O trauma que irrompeu em
mim, quando Nona acelerou o gira-gira, e me apavorou tanto, até que fiz o mundo
parar, sacando a arma de meu pai, revelou uma cesura da minha própria memória:
quando eu tinha por volta de cinco anos, minha mãe ainda dirigia carros. Saímos uma
vez, com o Gol vermelho do meu avô, ela, eu e o meu pai, para dar uma volta na
cidade pequena. Ela nos conduzia enquanto eu estava no banco de trás, brincando de
Che Guevara e ajoelhado. Por algum motivo, ela e meu pai começaram a brigar,
lembro – hoje com a exatidão de um radar - que minha mãe se descontrolou e
começou a gritar e a acelerar, de propósito, Pare, ou eu vou bater o carro, o Nuno está
aí, eu vou desistir de tudo e bater o carro! E meu pai respondia, também aos berros,
Bate, bate, então! É só com ele que você se importa? Bate, então, sua assassina! E eu,
eu não te importo? Recordo, hoje, as ondas de palavras com clareza, sem espuma,
meu pai tinha ciúmes de mim, isso sempre acontecia e só terminava quando eu
apanhava. O que a deixou muda e perdida, a ponto de suspender e frear o motor do
tempo, fora o fato de que minha mãe era, na acepção jurídica do termo, uma
assassina: participara, pessoalmente, da execução de um companheiro - um integrante
da chamada coordenação nacional da Ação Libertadora Nacional (ALN), que caíra
em desgraça junto ao comando da organização. Minha mãe sempre admitia que tinha
participado da reunião do Tribunal Revolucionário que selara a execução, que foi feita
a tiros, numa rua, nos Jardins, em São Paulo, no dia 23 de março de 1971, Tomamos
aquela decisão coletivamente, era uma decisão de organização, não assumo sozinha,
não sou maluca, não sou louca de decidir uma coisa dessa sozinha, minha mãe foi
anistiada como foram todos, mas meu pai, que era do PCB, da via democrática, nunca
perdoou as ações guerrilheiras da esposa. Acusada e culpada, ela parou o carro,
freando bruscamente, e foi embora para a casa de minha avó a pé. Meu pai dirigiu de
volta, me explicando, Ela quase matou você, ela quase matou você, como fez com
aquele coitado. Depois desse dia, minha mãe nunca mais dirigiu carro algum. Durante
minha briga infantil com Nona, o horror que senti, e que contribuiu para eu sair de
mim e ameaçar – engasgado como um revólver de pólvora molhada - que iria matá-la,
sem nunca sentir esse desejo, veio dessa lembrança e trauma familiar escondido,
ativados, anos depois, pelo gira-gira em disparada, naquele parque noturno. Às vezes
eu penso que aquela porcaria de trem em que minha mãe se escondeu não se
decompôs no meu sangue até hoje. Nem pode se decompor. Como é que vai se
decompor? Uma imundície como essa, radioativa. Uma Tchernobyl particular. Meses
que valem por vidas e gerações inteiras, em que se transmite a violência como um
trauma que pode se alastrar por todo um país. Durante muito tempo, essa violência
envenenou tudo, tudo por onde passei. Todas as pessoas que eu toquei. Meus pais
refletiam os torturadores, quando batiam em mim, e eu era o reflexo de meus pais
quando agredia Nona. Todos nós, eu, Nona, seus pais, sua vovó, Edgard, todos
perdidos no labirinto de espelhos do buraco coletivo do Golpe. Se eu pudesse
reencontrá-la hoje, amadurecido e crescido, eu diria que aprendi sobre o amor capaz
de curar o trauma e, como um antídoto, capaz também de curar a própria revolução,
que ainda não fizemos, de seus vestígios autoritários, de suas falas enviesadas ou
agressivas, de seu egoísmo ausente de escuta, de sua insegurança e incapacidade de se
olhar no espelho, de sua dificuldade de sair de casa, de seu espírito carcerário e
punitivo. E gostaria de ouvir a resposta de Nona naquela voz cheia de importância, ao
longo da qual pequenas ondas de risinhos corriam como crianças que brincam sob um
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cobertor; e, quando eu estiver tentado a desenvolver uma discussão lógica, vê-la


submeter-se às ondas de riso; então parecerá de novo que suas poucas gorduras
absorvem o riso de acordo com seu mecanismo complexo e admirável; de início, o
riso ficava oculto nela como um novelo encolhido, mas aos poucos se estendia em
ondulações amplas e crescentes para o ventre pequeno e macio, para seus pés, para
seus braços, que começavam a balançar antes do corpo em vibrações rápidas, e só
depois disso, no final, o tremor bom começava a ativar seu rosto grande, e como era
estranho que naquela hora já não lhe restasse riso bastante para povoar os olhos um
pouco oblíquos, que sempre permaneciam muito tranquilos, sóbrios e tristes.

Da polifonia, do um ao dois. Hoje lembro que minha voz se confundia, se misturava à


de Nuno, como agora eu falo, e isso não significava silêncio, era sinfonia; polifônica,
atonal, música, música. Sempre escrevendo, sempre caminhando e divagando, está
alguém para entrar. Repleto de inocência, me olha sem me ver, e nem pés estão no seu
caminho. Quem vem não é ser conhecido, nem homem, nem animal, nem palavra,
nem planta, nem ser que se exprima. É deus mortal e desconhecido como eu, é criança
de crescimento negado, em silêcio me pede que o encontre e lhe faça companhia na
espera e no medo. Mas este medo é constante e viaja, rodeado de areia encontra o
deserto, precipita-se nele e procura o meu mundo até a água. Uma toalha de
recordação reúne as mil areias do deserto, e danço na inconstância da vela ao vento,
onde este ser repousa, sem sono nem indolência, sorrindo de amor abrupto e doce.
Pode um amor durar a vida inteira e nunca acabar, corroendo feito areia de lâmina?
Quem ele é me ama, e não está habituado à presença humana, se não for a de homem
que cheire a besta num campo de neve e terra, ele foi ensinado a ser fúria e vingança e
tanque de guerra, o codinome da mãe dele na ALN era Guerra, procurem nos registros
do DOPS pela Guerra, eu procurei e encontrei a origem de Nuno, de mim mesma e de
todos, todos nós forjados nas indústrias de aço do Golpe, nosso Vulcano. Nuno ficou
apenas assustado naquele dia, só hoje eu entendo, em que tornei o gira-gira uma roda
infantil de tortura, acelerando e acelerando porque ele ousara reclamar que eu havia
mudado de assunto. Eu o puni, e gritei, batendo com as duas mãos sobre o gira-gira,
até que ele ficou enjoado e implorou para que eu parasse, mas eu girava, girava, até
que ficamos exaustos. Eu o vi cair no chão e levantar, as luzes do parque no início não
revelaram o objeto que estava em sua mão, era uma arma voltada para o alto, e ele
começou a gritar que iria me matar, que iria fazer justiça, foi quando apertou o gatilho
e o ruído da bala saindo rápida do cano velho da arma fez do universo um silêncio
cósmico, tudo era limiar intergaláctico, anãs brancas esquecidas habitavam a
catástrofe nos nossos olhos. A bala subiu e fez uma pequena cratera nos anéis de
Saturno, meu arcanjo e planeta; os pais dos outros meninos gritavam e abandonavam
as embarcações, enquanto minha mãe corria até o atirador, que fugiu, pés de luz, e se
agarrou a mim, como uma corrente ou uma focinheira. Nuno tremia de medo,
abraçado e abrigado no meu corpo, enroscado e com a arma ainda na mão, dizendo
que não sabia que o pai guardara o revólver carregado durante tantos anos, era o
revólver que usara durante as ações do partido, pequeno e enferrujado, calibre 32, que
mesmo durante o combate à ditadura nunca funcionara, e quem poderia saber que iria
disparar justo agora, nas mãos de uma criança desamparada e perdida, que me
agarrava como um pequeno chimpanzé sem pêlos e chorava no meu colo, pedindo
desculpas. Minha mãe o afastou de mim com violência e me pegou com força pelos
dois braços, tirando-me dali, arrastando-me por metros e metros pela grama rala,
afogando-me na sua proteção insistente. Em seguida fomos até a delegacia, prestamos
queixa, mas não houve maiores consequências práticas, a não ser o fato de que Nuno
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foi suspenso na escola e eu, a amedrontada em todos os nervos, decidi jogar fora,
junto com o boletim de ocorrência, o meu amor por aquele menino que dera um tiro
para o alto, redesenhando a constelação que eu, ainda pequena, planejara para o futuro
de nós dois. Por seis meses, mesmo que eu o maltratasse e o pisasse, Nuno percorreu
minhas trilhas, pés e rastros, silencioso e culpado, tentando pedir desculpas e um
pouco de ar. Mas eu desapareci, nebulosa e ferida de bala. Eu o castigava não por
aquele dia, de fato, mas por todos os dias em que apanhei com violência de meu pai;
por todos os dias em que escravas foram bonecas eróticas de seus senhores, que as
rasgavam pelo prazer de perfurar uma fruta podre; pelos dias em que as índias foram
estupradas e depois mortas quando inutilizadas pelas doenças venéreas e
colonizadoras; pelos dias obscuros quando mulheres foram torturadas com choques
elétricos em suas genitálias, nos subsolos da polícia, para confessar pecados que
remontavam à Eva e não à Marx; eu o pisoteei por todos os dias futuros em que outros
homens iriam me enganar, manipular e me invadir. Sei que também homens escravos
foram explorados, homens índios massacrados, e tantos e tantos homens, inocentes,
torturados; portanto, hoje eu sei que foi agido pela nossa memória, lava acumulada de
todos esses dias de erupção histórica, que Nuno atirou contra Saturno, para depois
ensopar o ombro do meu agasalho com lágrimas de chuva. Mas naqueles dias em que
Nuno me pediu perdão eu não compreendia as razões maiúsculas que transformam o
amor em fracasso, eu apenas fracassava. Hoje, quem Nuno é se submete a este quarto,
e trespassa o espaço na sua pequenez de pena. Não procuro decifrá-lo para que evolua
em paz, aproxima-se e deixa-me sobre o abismo deste abismo onde esplendem as
portas intermináveis que, um ao outro, vamos abrindo. Estranho espírito, assim
navega, entre o amor e as portas fechadas. Nuno desaparece lentamente, no raio de
meus olhos. Sem pressa me deixa, mas fica sempre. Quase te vejo, cada vez te torna
mais desconhecido, no jardim neva, há comida para os pássaros na soleira da porta.
Teus passos se afastam, te evadem da casa, que não consegue deixar, e afinal deixa.
Já não é meu pai, nem meu patrão, nem torturador, é uma estação ausente. Meus olhos
te seguem sempre, e neles você brilha, não sabia que teu afastamento era tão de
chumbo. Assim penetra em minha casa, qualquer peito de pássaro, cintilação de
estrela onde te esperam. Sem o tempo entre nós, os anos irradiam uma luz sempre
presente.

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