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A ERA DOS CORPOS DISCIPLINADOS

LUIZ CELSO PINHO 1

1 – Doutor em Filosofia IFCS / UFRJ - Prof. Adjunto do DLCS / ICHS / UFRRJ

Resumo

As análises genealógicas de Michel Foucault sobre as relações de poder


nas sociedades ocidentais elegem o corpo como superfície de inscrição dos
acontecimentos. Assim, do ponto de vista foucaultiano, é preciso antes de tudo
investigar os mecanismos de controle político sobre os indivíduos a partir de
sua materialidade corporal e não em função das representações sociais
produzidas ou dos efeitos sobre a consciência dos sujeitos. Para tanto,
Foucault elabora uma concepção de poder na qual seja possível elucidar a
existência de mecanismos e estratégias que funcionam de modo “positivo”, ou
seja, que visam o treinamento e o aprimoramento das massas humanas
desorganizadas no intuito de “fabricar” individualidades saudáveis e produtivas.

Artigo

“O poder político, antes mesmo de agir sobre a ideologia, sobre a


consciência das pessoas, se exerce de modo muito mais físico sobre os
corpos” (FOUCAULT, M. “Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir”,
Dits et écrits, II, p. 523).

A frase acima retrata uma importante diretriz metodológica das pesquisas


genealógicas de Michel Foucault. Em vez de abordar os efeitos da atividade
política no cotidiano dos indivíduos tomando como fio condutor o que há neles
de mais profundo, isto é, seu psiquismo, sua alma, a analítica foucaultiana do
poder se detém exclusivamente na superfície corporal. Essa inversão de
perspectiva tem um propósito bastante claro: negar a existência de uma
interioridade psicológica concebida como originária e vulnerável ao aparato
repressivo de governos e instituições. O privilégio do corpo envolve, por um
lado, a recusa de essências metafísicas, ou ainda, de uma natureza humana
previamente dada; por outro lado, trata-se de considerá-lo o registro vivo da

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forma como o jogo de dominações atinge os indivíduos e modifica seus modos
de ser.

Daí podermos ler, em Vigiar e punir, que o corpo, além de ser objeto de
estudos de cunho demográfico e fisiológico, “também está diretamente imerso
num campo político; as relações de poder operam sobre ele uma posse
imediata; elas o investem, o marcam, o adestram, o supliciam, o obrigam a
trabalhar, o obrigam a cerimônias, exigem-lhe signos” (Surveiller et punir, p.
34). Já surgiram, certamente, diversas maneiras de martirizar o corpo. É o caso
da execução e do espetáculo sombrio de esquartejamento e redução dos
restos mortais a cinzas, da apropriação violenta e unilateral pela qual se impõe
a escravidão, da submissão do servo aos caprichos do patrão, dos rituais e
códigos de obediência aos quais o vassalo deve se manter fiel, das renúncias
voluntárias daquele que abraça uma vida ascética. Todos esses procedimentos
marcam profundamente, sem dúvida, os corpos, a ponto mesmo de, no limite,
por em risco sua própria integridade física.

No entanto, para dar conta da dinâmica do poder político, a genealogia


foucaultiana recorre a pressupostos metodológicos inovadores, notadamente a
noção de positividade. Através dela é possível explicar as relações de força em
termos de riqueza estratégica e eficácia produtiva, de modo que o poder deixe
de designar apenas uma instância repressora. Foucault abandona o modelo
jurídico da lei e da interdição, segundo o qual somos atingidos por um “poder
que só teria a potência do ‘não’; fora do estado de nada produzir, apto somente
a colocar limites, seria somente anti-energia; tal seria o paradoxo de sua
eficácia: nada poder, senão fazer com que aquele que ele submete nada possa
fazer, senão o que ele lhe deixa fazer” (La volonté de savoir, p. 113). Tem-se
aqui uma abordagem teórica pobre e insuficiente para esclarecer as lutas e
afrontamentos que ocorrem nas sociedades ocidentais.

O caráter opressor da prática política certamente se verifica em diversas


situações (Vigiar e punir inclusive o considera uma marca característica das
monarquias européias); mas ao nos determos na especificidade da Era
Moderna, fica patente que as representações tradicionais do poder
desconhecem sua força criativa, sua capacidade de agir de forma
transformadora sobre os corpos, no intuito de circunscrever, cada vez mais
fortemente, individualidades. Mas, como adverte Roberto Machado, “não é,
certamente, todo poder que individualiza, mas um tipo específico que, seguindo
uma denominação que aparece freqüentemente em médicos, psiquiatras,
militares, políticos etc. do século XIX, Foucault intitulou disciplina” (“Por uma
genealogia do poder”, p. xx).

A função positiva dos mecanismos disciplinares desponta na chamada


Batalha de Steinkerque, travada no final do século XVII. Independente do
contexto histórico no qual ela ocorre, trata-se de um acontecimento que poderia
servir como data de nascimento da Era dos Corpos Disciplinados. Nesse
conflito, pela primeira vez, os habituais mosquetes são suprimidos e o conjunto
inteiro de soldados é armado com fuzis. Produz-se, assim, uma importante
mudança em relação aos corpos: em vez de a tropa se comportar “seja como
um projétil, seja como um muro ou uma fortaleza” (Surveiller et punir, p. 191),

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passa a ser tratada, pelos estrategistas militares, como “uma maquinaria cujo
princípio não é mais a massa móvel ou imóvel, mas uma geometria de
segmentos divisíveis, cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil; e,
provavelmente, acima do próprio soldado, os gestos mínimos, os tempos de
ação elementares, os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos” (Idem,
p. 192). O funcionamento adequado desse conjunto indissociável homem-
objeto requer, como Foucault assinala, a elaboração de toda uma tecnologia
disciplinar inédita, na qual os indivíduos se deparam com “engrenagens
cuidadosamente subordinadas de uma máquina”, “coerções permanentes” e
“adestramentos indefinidamente progressivos” que reforçam, a cada momento,
a “docilidade automática” (Idem, p. 198).

Com o passar do tempo, essa “tática militar” começa a ser implementada


de forma generalizada através de procedimentos ao mesmo tempo mesquinhos
e detalhistas, nos quais impera uma “atenta ‘malevolência’ que de tudo se
alimenta”, mais exatamente de “pequenas astúcias dotadas de um grande
poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente
suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que
procuram coerções sem grandeza” (Idem, p. 163). O controle disciplinar
emerge — gradativamente — como um elemento comum a toda a sociedade
ocidental, tornando-se imprescindível para o funcionamento de instituições com
finalidades as mais díspares possíveis, como linhas de montagem, salas de
aula, ambulatórios, reformatórios etc. E tudo isso sem que seja preciso recorrer
a algum tipo de excesso ou mesmo à violência explícita.

Num primeiro momento, o controle disciplinar se justifica por proporcionar


uma racionalização das tarefas do ponto de vista operacional e organizacional,
pois permite incrementar fatores como aptidão, capacidade, eficiência. Mas, do
ponto de vista foucaultiano, ele tem uma dimensão ao mesmo tempo política,
econômica, moral e epistemológica. Política, na medida em que pretende
tornar os corpos dóceis, diminuindo, ao máximo, a capacidade de
insubordinação. Econômica, por visar, acima de tudo, a geração de bens, de
riquezas, de lucro (como nos ensina Marx). Moral, ao atribuir grande
importância às pequenas ações, pois a observação de cada detalhe permite
manter “o controle das menores parcelas da vida e do corpo” (Idem, p. 165).
Por fim, epistemológica, já que funda uma racionalidade obcecada por separar,
classificar, hierarquizar, descrever, extrair informações, anotar.

Graças à disseminação do Poder Disciplinar é que percebemos uma


inquietante semelhança entre a Escola e o Quartel, entre a Fábrica e o
Presídio. Na Era dos Corpos Disciplinados ocorre a imposição generalizada da
Ordem. Daí o diagnóstico foucaultiano da modernidade concluir que vivemos
um momento de “ortopedia generalizada” (A verdade e as formas jurídicas,
primeira conferência, p. 86). Marx entendeu esse momento em função da
necessidade de capitalizar o tempo dos indivíduos, extraindo deles a mais-
valia. Foucault, por sua vez, considera que “o momento histórico das disciplinas
é o momento em que nasce uma arte do corpo humano que visa não apenas o
aumento de suas habilidades, nem, tampouco, do peso de sua sujeição, mas a
formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais
obediente quanto é mais útil, e inversamente”. (Idem, p. 162).

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A noção foucaultiana de disciplina, como salienta Roberto Machado,
permite explicitar como se “fabrica o tipo de homem necessário ao
funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista” (Foucault, a
ciência, o saber, p. 173). Num caminho inverso ao seguido pelo pensamento
marxista, que explica o controle das massas humanas através da instauração
de uma dinâmica de trabalho opressora e alienante, Foucault descobre uma
série de pequenos, porém eficientes, mecanismos normatizadores que não
apenas se estendem por toda a superfície do tecido social como também estão
presentes em todos os momentos de nossas vidas. Através deles dá-se a
“invenção” de um tipo de corpo capaz de suprir as necessidades do aparelho
produtivo instaurado pela Revolução Industrial. O sucesso do capitalismo é
diretamente proporcional à disseminação da ordem disciplinar. Deste modo,
podemos supor que em outro regime político dos corpos isso não seria
possível. Apenas a título de ilustração, e mesmo assim correndo o risco de
fazer transposições histórico-políticas inadequadas, a chamada “preguiça”
indígena descoberta pelos portugueses no Brasil pode fornecer um paralelo ao
assunto aqui tratado. Mais do que um choque de culturas que ensejou
preconceitos, o que essa situação retrata é justamente a inadequação de uma
atitude corporal à rotina extrativista imposta pelos colonizadores.

Para concluir, a dominação política na Era Moderna não precisa recorrer a


alguma astúcia ideológica capaz de apartar os indivíduos de sua realidade ou
mesmo de lhes incutir erros e ilusões. O poder, entendido numa perspectiva
disciplinar, não se exerce sobre uma subjetividade constituída já há muito
tempo; ao contrário, cria uma forma singular de existência: o homem moderno.
Daí Foucault diagnosticar que “o problema não é mudar a consciência das
pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico,
institucional, de produção da verdade” (“Entretien avec Michel Foucault”, Dits et
écrits, III, p. 160). O ideal de conhecimento verdadeiro que se tornou
hegemônico em nossa sociedade, desde o início do século XIX, está na base
do projeto moderno de moldar discursos e comportamentos. Sendo que a
produção de corpos disciplinados representa um de seus efeitos mais
insidiosos. Neste sentido, o trabalho do filósofo genealogista consiste em
problematizar as modalidades de dominação resultantes da busca obstinada
pela verdade.

BIBLIOGRAFIA CITADA

FOUCAULT, Michel. La volonté de savoir (Histoire de la sexualité, t. I). Paris:


Gallimard, 1976.

__________. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975


(Coleção Tel, edição de bolso).

__________. A verdade e as formas jurídicas – conferências de Michel


Foucault na PUC-RJ. Rio de janeiro: Nau, 1996 [1974].

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__________. “Entretien avec Michel Foucault” (a A. Fontana e P. Pasquino) in
__________. Dits et écrits, III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994, p. 140-160.

MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência, o saber. 3a ed. revista e ampliada.


Rio de Janeiro: Zahar, 2006 (capítulo “As genealogias”, p. 167-181).

__________. “Por uma genealogia do poder” in FOUCAULT, M. Microfísica do


poder. 6ª ed. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. vii-xxiii.

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