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Data de recepção: 25/06/2012. Data de aprovação: 20/Dez/2012.
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Graduada em Gastronomia pela UNIVALI. Gerente do Senac Bistro Johannastift - Restaurante Escola. E-mail: klara_kock@hotmail.com
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Mestre em Administração pela UFSC e Doutora em Engenharia de Produção pela UFSC. Doutorado Sanduíche na Universidade do Minho,
Portugal. Pós-Doutoranda pela Universidad Complutense de Madrid. Professora do Programa de Pós-Graduação da UNIVALI. E-mail: chriskg@
univali.br
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Mestre em Administração pela FURB. Doutor em Administração pela FEA-USP/SP. Professor Titular da UNIVALI. E- mail: lenzi@univali.br
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE
Para Tedlock (2000), a etnografia envolve um tersecção do passado (backward), futuro (forward),
avanço na tentativa de estabelecer encontros espe- entre o contexto interno e externo, entre a cultura
cíficos, acontecimentos e compreensões mais am- e a pessoa.
plas em um contexto mais significativo. Ela não é O termo autoetnografia deve-se a David Haya-
simplesmente a produção de nova informação ou no (apud TEDLOCK, 2000) e, apesar de pouco
pesquisa de dado, mas o modo em que tal informa- usual, já vem sendo utilizado há aproximadamen-
ção ou dado é transformado em uma forma visual te três décadas (atualizando o escrito de Tedlock).
ou escrita. Como resultado, combina projeto de pes- Hayano (apud TEDLOCK, 2000) limitou a utiliza-
quisa, trabalho de campo e vários métodos de inves- ção do termo a grupos culturais nativos a serem
tigação para produzir historicamente, politicamente estudados por antropólogos. Porém, muitos outros
e pessoalmente inúmeras situações, descrições, in- termos são utilizados por estudiosos das ciências
terpretações e representações da vida humana. Na sociais de forma direta ou indireta para represen-
prática, a etnografia é uma continuação do trabalho tar a autoetnografia, tais como: narrativas pessoais,
de campo, ou melhor, um registro transparente das narrativas do eu, narrativas da experiência pessoal,
experiências passadas no campo. O avanço natural etnografia pessoal, entre muitos outros termos.
do trabalho de campo conecta importantes experi- Os autoetnógrafos variam de estilo e ênfase em
ências pessoais com uma área do conhecimento e seus processos de pesquisa. O sentido da palavra já
está localizada entre a interioridade da autobiografia designa esta variação, auto (por si mesmo) – etno
e a exterioridade da análise cultural. (etnia, questões culturais) – gráficos (registros). As-
O trabalho etnográfico, no dizer de Fetterman sim, diferentes definições e aplicações de autoet-
(apud ROCK, 2007), não é sempre ordenado, mas nografia são encontradas. Pesquisadores discordam
envolve subjetividade, criatividade, estar no lugar entre si sobre quais os limites de cada categoria e
certo ou errado em determinado momento e uma definições precisas da etnografia (ELLIS; BOCH-
grande quantidade de trabalho. Para Andion e Ser- NER, 2000). Ainda segundo estes autores, é pos-
va (2006), a pesquisa etnográfica permite retratar sível encontrar em um mesmo artigo definições e
as dimensões objetivas e subjetivas dos fenômenos aplicações diferentes para este tema. No entanto,
analisados, a construção da “tecelagem etnográfi- as definições aproximam-se do mesmo foco: a re-
ca”, a “construção dos momentos” da cultura or- flexão do pesquisador como objeto de estudo.
ganizacional. Os autores ressaltam que a etnografia A autoetnografia, na explicação de Ellis; Boch-
sobrepõe a definição de técnica devido à grande ner (2000), permite o envolvimento do pesquisa-
representatividade e possibilidade de descobertas dor, assim como a narrativa de seus pensamentos e
através da decifração de seus significados. O mé- suas opiniões reflexivas, diante do estudo em que
todo estabelece relações que possibilitam compre- está inserido; possibilita ao autor transpor para seu
ender melhor a complexidade de determinados estudo todas essas experiências emocionais, reve-
fenômenos sociais. Godoy (2006) complementa lando detalhes ocultos da vida privada. Para tanto,
que a pesquisa etnográfica abrange a descrição dos a descrição da vida social e suas relações precisa
eventos que ocorrem na vida de um grupo (com ser o mais completa e envolvente possível.
especial atenção para as estruturas sociais e o com- A reflexão na autoetnografia contextualiza a voz
portamento dos indivíduos enquanto membros do indivíduo e do grupo na experiência vivida. O
do grupo) e a interpretação do significado desses olhar de cada envolvido gera forças para as vozes
eventos para a cultura do grupo. Um etnógrafo do coro. Reinharz (apud ELLIS; BOCHNER, 2000),
pode centrar seu trabalho sobre uma tribo indígena em seu sumário sobre estudos reflexivos, sugere
com pouco contato com a civilização, uma comu- para um bom trabalho, começar com a história do
nidade de alemães no estado de Santa Catarina, grupo, explicar o envolvimento de cada um com
ou determinada ocupação dentro de uma fábrica. o caso vivido, ou utilizar um conhecimento pes-
A autoetnografia, por sua vez, representa um soal para auxiliar no processo da pesquisa. Jacson
gênero da etnografia que aprofunda a pesquisa (apud ELLIS; BOCHNER, 2000) considera vital o
nas múltiplas lacunas da consciência do indivíduo envolvimento do etnógrafo com os outros partici-
relacionando-o com o meio em que está inserido pantes do grupo. Desta forma, a reflexão pessoal
através da experiência pessoal. O pesquisador ana- não se torna uma verdade única, mas sim a refle-
lisa os aspectos culturais e sociais ao seu redor, ou- xão sobre os discursos pessoais analisados como
tward, para em seguida realizar uma análise interna grupo. O problema construído gera questões sobre
do si mesmo, inward, tornando-se assim, vulnerá- a interpretação de como os outros irão analisá-lo,
vel à resistência cultural e às interpretações. Para o pesquisador. Visto que o pesquisador toma par-
Deck, Neumann e Reef-Danahay (apud ELLIS; BO- te em duas configurações, observador e observado
CHNER, 2000, p. 739), a análise é realizada na in- (por ele mesmo).
Para Ellis e Bochner (2000), ninguém melhor Também na autoetnografia a observação parti-
para analisar e refletir sobre o estudo que o próprio cipante tem papel fundamental. Acerca dessa téc-
envolvido. Usar a própria experiência vivida pode nica, Godoy (2006) afirma ser de suma importância
servir para generalizar um grupo ou toda uma cul- que o observador mantenha seus focos de interesse
tura. A riqueza da narrativa, por sua vez, está na para orientarem claramente sua observação para a
capacidade de introspecção. Conforme os autores, pesquisa. Dessa forma evita-se a coleta errônea
a introspecção é incrivelmente difícil. É certamen- ou de poucos significados para o estudo. O con-
te algo que a maioria das pessoas não consegue teúdo das observações é transcrito para um diário
fazer bem. A maioria dos cientistas sociais ou não de registros, principal característica de um estudo
são suficientemente introspectivos sobre os senti- etnográfico. Haguette (1987) define a observação
mentos e motivos, ou sobre as contradições que participante como um processo no qual o inves-
experimentam, ou simplesmente não observam o tigador se coloca face a face com os observados
suficiente do mundo ao seu redor. A demanda do colocando-se com eles em seu ambiente natural,
questionamento próprio autoetnográfico é extre- tornando-se, assim, parte do contexto. Para a auto-
mamente difícil, alertam os autores. A exploração ra, este processo reflete a interação entre a teoria
da autoetnografia de forma honesta gera muito e métodos dirigidos pelo pesquisador na sua busca
medo, dúvida e dores emocionais. Somente quan- de conhecimento, não só na perspectiva humana
do se pensa que não pode suportar mais a dor é como da própria sociedade. O envolvimento do
que o verdadeiro trabalho está apenas começando. pesquisador no cotidiano do grupo tem o intuito
Então há a vulnerabilidade de revelar-se, sem ser de envolvê-lo de tal forma a entender em profundi-
capaz de retomar o que foi escrito ou ter controle dade aquele ambiente em que está inserido.
de como os leitores vão interpretá-lo. É difícil e es- A observação participante possibilita a interpre-
tranho sentir que a própria vida está sendo critica- tação da cultura de um grupo através da observa-
da, assim como seu trabalho. Ellis e Bochner (2000) ção e participação durante a investigação. Por meio
alertam que isso pode parecer humilhante. do envolvimento, os códigos simbólicos criados são
Por meio da autoetnografia, o indivíduo, ora decifrados e compreendidos ao longo do processo
pesquisador, ora objeto pesquisado, compreende a de estudo. Alguns autores (TEDLOCK, 1986; CRA-
si mesmo por meio do aprofundamento intrínseco PANZANO, 1991; RABINOW, 1992; CLIFFORD,
e de seu ambiente vivido. Assim, quando compre- 1998) inclusive sugerem a possibilidade de descar-
ender a si, compreenderá o meio, os outros en- tar a nomenclatura de observação participante e
volvidos. Ellis e Bochner (2000) acreditam que a elegem a pesquisa como um “encontro etnográfi-
autoetnografia possibilita uma série de reflexões co”. Os autores defendem uma relação dialógica
significativas para o autor e o mundo. Por exem- entre o pesquisador-antropólogo e o interlocutor
plo, Butler e Rosenblums (apud ELLIS; BOCHNER, (não mais informante). Desta forma, a construção
2000) co-construiram uma narrativa autoetnográ- da teia etnográfica dar-se-á não mais pela simples
fica sobre uma mulher com câncer e sua parceira “voz do outro”, mas pela compreensão e análise
lésbica. Esse estudo, sob a perspectiva de duas pes- reflexiva própria do pesquisador através do “olhar
soas através de suas vozes, possibilitou a compre- do outro”. Isso significa a aceitação da interferên-
ensão do fato pelos envolvidos servindo de base cia reflexiva e subjetiva do pesquisador. Para es-
para outros casos similares. ses autores, o pesquisador não irá apenas enxergar
Apesar de contrária a grande parte dos méto- através das lentes do pesquisado, mas sim através
dos de estudos em ciências sociais, a autoetnogra- da sua própria lente analisando a lente do pesqui-
fia torna-se envolvente e desafiadora instigando o sado. Tal situação não necessariamente refuta a
conhecimento. O leitor é convidado a entrar no qualidade da pesquisa, pelo contrário, enriquece
mundo do pesquisador a partir do momento que a discussão por meio da construção de significa-
se envolve com o evento narrado diretamente dos entre mais sujeitos de dois mundos negociando
pelo envolvido. Emoções e detalhes estimulam suas diferenças.
a reflexão sobre o assunto abordado gerando o A principal técnica na pesquisa autoetnográfica
desenvolvimento do conhecimento e a compre- é o diário de campo – também característico da
ensão sobre o estudo. Para Shelton (apud ELLIS; pesquisa etnográfica – composto de fatos registra-
BOCHNER, 2000), o ponto certo está em escrever dos e reflexões do pesquisador. Trata-se de um ins-
magnificamente sobre tópicos subjetivos inseridos trumento fundamental no qual devem constar pecu-
no contexto que façam a diferença e possam ser liaridades, pensamentos, impressões pessoais sobre
transcritos de através da emoção e sensibilidade do os envolvidos, do cenário, enfim, trazer à tona a sub-
pesquisador. jetividade do contexto através da percepção do pes-
Eu não sabia o que fazer, levantar o que? Tudo! Não sensação de não saber o que iríamos encontrar e
dava. Mas era um absurdo a água entrar ali. Era tudo como estaria a equipe. Não sabia quem iria, como
tão lindo, tínhamos uma Primeira Comunhão agen- estavam, o que tinham vivenciado, o sentimento
dada para aquele domingo, estava tudo decorado, de culpa por eu estar bem ainda me assombrava.
montadinho, tudo lilás, a mesa do bolo, docinhos... A casa já estava aberta, três funcionários já tinham
que desperdício! Não! Que indecisão, levantamos conseguido chegar. A Carla levou o pai para ajudar,
os equipamentos de informática, os computadores, a Vanderléia chegou com o irmão e o Charles (mes-
as coisas mais caras e só, apenas 20% de tudo que mo com a casa em risco) levou a esposa. Todos esta-
havia. vam firmes na limpeza, trabalhando sem parar com
Chegou a hora, precisávamos ir embora. Foi muito esforço, armados de rodos e esfregões com
muito difícil sair e fechar a porta. Muito triste, além grande motivação para deixar tudo aquilo, que não
do sentimento de culpa e incapacidade, eu tinha era deles e sim da empresa, em ordem. Foram 40
a sensação de estar concordando em deixar que a cm de água que entrou e se transformou em lodo,
água ali entrasse. Fomos para casa, voltamos para não era o suficiente para dizer “perdi tudo!”, mas
a “redoma”. Quando chegamos, a energia havia mais do que o suficiente para estragar, sujar e im-
voltado e ligamos a TV. Para surpresa, o Centro Co- pregnar muita coisa. Claro, todos estavam abalados
mercial que o meu namorado havia acabado de com o que aconteceu, mas o espírito de: “pronto!
inaugurar, com 30 lojas, uma grande infraestrutura Vamos lá! A tragédia já passou, temos que reer-
estava submerso pelas águas. Que choque! Lá as guer!” estava nítido.
águas não atingiriam nem com 17 metros, e o rio Era impressionante a dedicação de todos à em-
estava em 11 metros, mas vimos as imagens com presa, não era deles, nem minha, sou apenas a dire-
todo o investimento com água no luminoso, Pare- tora da unidade, mas a sensação de posse, de pro-
cia realmente o fim do mundo. O sentimento de priedade, estava nítida nas ações e empenho de cada
impotência persistia. Como a energia ia e voltava um. Independente do cargo ocupado, todos iam
eu conseguia carregar meu notebook e acompanhar aparecendo com preocupações referentes a “nossa
as notícias pela internet. Comecei a receber mui- casa”, a “nossa empresa”. Por mais que no dia-a-dia
tas mensagens no celular e por email das pessoas alguns funcionários tenham atitudes e posicionamen-
querendo saber como estávamos e se precisávamos tos que os fazem indiferentes com o local em que
de ajuda. Recebi e-mails do estado todo, das ou- eles trabalham, naquele momento todos estavam
tras unidades da empresa, todos com um espírito realmente preocupados com a estrutura “da sua”
de solidariedade impressionante. Todos querendo empresa. Estava clara a preocupação de responsa-
notícias e oferecendo ajuda. A solidariedade emo- bilidade de cada um para com o estabelecimento.
cionava, mas não havia no momento o que fazer, Os funcionários foram chegando ao longo do dia,
apenas esperar. conforme podiam chegar, trazendo amigos, esposas,
maridos, enfim, quem tivesse como colaborar.
A tarefa de limpeza foi árdua. Não tínhamos
abastecimento de água e tínhamos que limpar com
a própria água da rua, da enchente, água contami-
nada e com muito lodo. A minha primeira ação foi
uniformizar e equipar os envolvidos, pois o risco de
contaminação e doenças era muito grande. Tínha-
mos que por aquele lodo para fora, caso contrário
o risco de proliferação de pragas poderia aumentar.
Colocamos toda nossa energia no que foi possível
limpar e ao final do dia fomos embora. Ficamos de
retornar na quinta quando o reabastecimento de
água voltaria ao normal.
Blumenau, 27 de novembro de 2008: Retorna-
mos à empresa, agora para a limpeza de verdade,
FIGURA 1. Desmoronamento na Rua Hermann Hus-
com água limpa! Todos estavam presentes, Joinville
cher, Blumenau. 24/11/2008.
mandou 4 funcionários para ajudar. Foi até engra-
FONTE: JORNAL DE SANTA CATARINA, ano XXXVII, n.
çado, pois, quando eles chegaram pareciam que
11.448, Blumenau, 25 nov. 2008.
estavam indo para uma guerra! Pensando bem, o
cenário era este, de guerra! Literalmente! Nas ruas
Blumenau, 25 de novembro de 2008: Finalmen-
só víamos soldados do exército, carros anfíbios, ca-
te a chuva cessou e as águas baixaram; na primeira
minhões camuflados e muitos helicópteros, um ce-
oportunidade fomos direto para a empresa, com a
nário de filme de guerra. Aos poucos todos foram germânica não permitia. Escutei de um rapaz na rua
chegando, não demorou muito para que começas- dizendo: “sabe quem é mais teimoso? Aquele que
sem os serviços. Não teve diferenciação de cargo teima com um alemão!” O alemão teima que é aqui
ou nível hierárquico, mas havia união na realização que vai ficar, é aqui e pronto! Não tem catástro-
dos mais diversos tipos de trabalho de limpeza, to- fe que nos tire daqui. A natureza levou? Não havia
dos estavam ali para o que fosse necessário, até as problema, construiríamos de novo! Haja pensamen-
pessoas não habituadas ao trabalho pesado de lim- to positivo! Bom, retornamos aos trabalhos, cance-
peza estavam lá agarradas no rodo. Era uma energia lamos os cursos, eventos e os serviços da empresa e
de “vamos lá, vamos limpar, organizar”; “queremos os atendimentos foram restabelecidos somente no
nossa casa de volta, nosso empresa!”. Estavam mui- dia 08 de dezembro (uma semana depois).
to claras a força e a união presentes nos funcioná- Nosso diretor regional veio de Florianópolis para
rios e amigos que aqui colaboravam. Mesmo diante conversar conosco e dividir sua solidariedade. Com
de uma cidade destruída, a equipe não se deixou ele vieram alguns funcionários técnicos para auxiliar
desanimar. O mais incrível foi a integração, a força, na reinstalação do sistema da unidade. Nos reuni-
a vontade de trabalhar. Trabalhamos braçalmente mos com o diretor por aproximadamente 1 hora, foi
até umas 18h, acredito que a empresa nunca re- um momento emocionante que levou alguns fun-
cebeu uma faxina tão caprichada, nunca ficou tão cionários (quase todos, inclusive o próprio diretor)
limpa e esterilizada, foi incrível! às lágrimas. Cada um contou um pouco do que pas-
À noite estávamos destruídos, mas um ar de sa- sou e todos ficaram muito agradecidos pelo apoio
tisfação no rosto inexplicável. Foi gratificante ver a que a empresa estava proporcionando para cada
minha equipe assim, tão unida e batalhadora. Fi- um de nós. Eles trouxeram consigo cestas básicas,
camos de voltar para as nossas casas, descansar e produtos de higiene, roupas, donativos e muitas
retornarmos na segunda, dia 01 de dezembro, para coisas que puderam ser aproveitadas pelos funcio-
atividades internas de organização. nários, principalmente pelos mais necessitados.
ruim para transformar um ambiente? Que contra- da pesquisadora com a equipe e com situação, ou
ditório! Mas que bom que foi para melhor, desta seja, o fato de já ser insider e precisar justamente
forma, só tínhamos que seguir procurando melhorar desenvolver um olhar outsider constituiu um dife-
a cada dia o que já havíamos conquistado e não rencial em relação a um estudo etnográfico tradi-
deixar a motivação desacelerar. cional.
lização do afeto e da estrutura cognitiva do sujeito Quadro 1: Categoria afetiva da motivação para a
para aprender, para restabelecer o equilíbrio. O aprendizagem: medo e suas emoções secundárias
estudo de Godoi, Freitas e Carvalho (2008) identi-
fica que as mudanças relacionadas à aprendizagem MEDO E SUAS EMOÇÕES SECUNDÁRIAS
são geradas partir da motivação individual, ou seja, (desespero, aflição e culpa)
que a aprendizagem organizacional é impulsiona- “Quando consegui chegar à empresa e abri a porta da
da pela motivação intrínseca do indivíduo. O nível cozinha e vi aquele mar de lama fiquei desesperada, aí
de análise utilizado para a categorização teórica, veio o medo. [...] Foi quando resolvi dar uma volta e
nesse estudo foi, portanto, prioritariamente indivi- ver como estava a Alameda, foi aí que percebi o risco
dual, ou seja, considerou os indivíduos, suas cren- que estava correndo fora de casa. A rua completamen-
ças, valores, vivências externas e, principalmente, te alagada e a defesa civil alertando que cairia mais
motivações como estopins para as mudanças rela- chuva. Fiquei desnorteada e não sabia o que fazer”.
tivas à aprendizagem organizacional. (E4)
O estudo de Godoi (2003) desenvolveu, de “[...] minha mãe estava em prantos, agoniada por não
forma entrelaçada, três categorias constitutivas ter notícias minhas, mas com medo de me ligar e não
do fenômeno da motivação para aprendizagem: conseguir falar comigo (ela passou pela enchente de
categorias afetiva, cognitiva e social. A categoria 1984 em Tubarão/SC e ficou muito traumatizada). [...]
cognitiva é relacionada a funções intelectuais que A família da empregada dos meus pais já estava lá
abrangem aspectos muito diversos, como percep- em casa, pois tinham perdido tudo! Sim, tudo, o mor-
ção, conhecimento, conceito, juízo, raciocínio, ro veio abaixo e eles só conseguiram sair correndo”.
solução do problema, desenvolvimento de habi- (DC)
lidades, desenvolvimento de atitudes; a categoria “[...] a gente ficou com muito medo. Daí eu e o meu
social relaciona-se aos fatores extrínsecos, que aca- marido pegamos as crianças e fomos lá pra minha
bam tornando-se interiorizados e permanecem na irmã na Água Verde”. (E6)
dimensão heterônoma do indivíduo, tais como, afi- “A sensação de impotência e o desespero diante de tudo
liação, participação nos grupos, reconhecimento, o que víamos era realmente desanimador, mas também
aceitação pessoal, prazer de estar com os outros, uma grande lição de vida. Durante aquelas duas semanas
condescendência, suporte familiar, percepção dos de caos, foi necessário arregaçar as mangas e tentar de
pares, percepção do líder, influência da instituição; todas as formas limpar tudo, colocar tudo em ordem.
e a categoria afetiva, associada ao envolvimento Neste momento percebi como é importante o apoio dos
emocional, especificamente a fatores como preser- amigos, dos familiares e até mesmo daqueles que não
vação do eu, autoconfiança, desejo de autonomia, conhecemos, mas, que possuem um grande coração.[...]
desafio, desejo de exploração das situações. Abrir a porta do prédio e ver tudo aquilo foi realmente
Dentre as principais categorias definidas por assustador, tudo que foi organizado com tanto carinho e
Godoi (2003), aquela que emergiu de forma mais esmero, em alguns instantes a água tomou. (DC)
significativa no contexto desse estudo foi a catego- “[...] A aflição [...] Dificuldades maiores, pois, além
ria afetiva. No interior dessa categoria, foram iden- das águas, os desmoronamentos aconteciam em toda
tificadas as seguintes emoções primárias e secun- parte. A aflição foi muito além do seu “mundinho”. Da
dárias (DAMÁSIO, 1996) como sendo os principais sala, do trabalho, da cidade para toda Santa Catarina”.
fatores motivadores, propulsores, da aprendizagem (E4)
na situação da catástrofe: a) medo, e suas emoções “[...] A sensação de onde eu estava era muito estranha
derivadas, tais como, desespero, aflição e culpa; b) [...] numa cobertura com uma área externa toda fecha-
sofrimento, e suas emoções derivadas, como triste- da com vidro, em um prédio altíssimo com uma plena
za, angústia e solidariedade; c) alegria. visão da cidade, com conforto, estrutura e segurança.
Os quadros a seguir demonstram trechos da ca- Eu tinha a impressão de estar dentro de uma cúpula
tegorização das emoções a partir de fragmentos de de vidro, num mundinho encantado, vendo tudo de-
discursos: sabar ao meu redor e eu sem nada que pudeste fazer,
era uma sensação de culpa com impotência. Sim, me
sentia culpada de estar bem. Olhar para baixo e ver fa-
mílias inteiras, com crianças, idosos, cães sobre uma
simples moto, buscando um lugar para se abrigar. E
eu? Protegida na minha redoma de vidro”. (DC)
Como seria esperado em uma situação de ca- “Já a angústia, era gerada pelo fato que a empresa se-
tástrofe, as emoções associadas ao medo foram as ria atingida e ela precisava fazer algo. “Tentei chegar
mais fortemente evidenciadas (exemplos no Qua- até a Alameda [...], não tinha por onde passar. Voltei
dro 1). É interessante ressaltar o sentimento de cul- para casa com um nó na garganta, muita vontade de
pa narrado pela pesquisadora por diversas vezes chorar, um sentimento sem explicação”. (E4)
durante o estudo. Posteriormente, o encontro com “[...] Comecei a receber muitas mensagens no celular
a teoria permitiu compreender, em diversas classifi- e por e-mail das pessoas querendo saber como
cações das emoções (ver, por exemplo, DAMÁSIO, estávamos e se precisávamos de ajuda. Recebi e-mails
1996), o significado da emoção culpa. Trata-se de do estado todo, das outras unidades da empresa, todos
uma emoção secundária, derivada da combinação com um espírito de solidariedade impressionante.
entre duas emoções primárias: medo e alegria. A Todos querendo notícias e oferecendo ajuda. A
relevância dessas emoções contraditórias como solidariedade emocionava, mas não havia no momento
propulsoras de aprendizagem será retomada nos o que fazer, apenas esperar”. (DC)
últimos quadros.
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista-
Quadro 2: Categoria afetiva da motivação para a dos (E1, E2, E3 etc.)
aprendizagem: sofrimento e suas emoções secundárias
Dentre as emoções associadas ao sofrimento,
SOFRIMENTO E EMOÇÕES SUAS SECUNDÁ-
aquela que emergiu com mais ênfase nos discursos
RIAS (tristeza, angústia, solidariedade) da pesquisadora e dos participantes não foi a tris-
teza, como talvez fosse o esperado, mas sim o sen-
“[...] Eu perdi a minha casa. Toda aquela chuva já vi-
timento de solidariedade (exemplos no Quadro 2).
nha acontecendo, daí chegou aquele sábado e parece
Essa interpretação acerca da capacidade dos indi-
que aumentou tudo, caiu toda água que tinha pra caí
víduos de transformarem emoções “negativas” em
do céu de uma vez só. Começou desabando as coisas
em volta daí caiu o muro da minha casa e ficamos, “positivas” já aponta para o surgimento dos pares
assim, praticamente trancados, tivemos, eu e o meu opositivos dependentes construídos a seguir.
menino, sair trepando pelo barro que tomo conta da
minha área. [...] Estava feio, tudo caindo, todo mundo Quadro 3: Categoria afetiva da motivação para
sofrendo, foi triste”. (E10) a aprendizagem: tristeza-alegria: emoções contra-
“Não gosto nem de lembrar, foi muito triste, vê aquilo ditórias
tudo [...] Lá em casa não pegou água, mas faltou
pouco, na vizinhança toda pegou, ficou tudo lama, TRISTEZA – ALEGRIA: O SURGIMENTO DE
uma nojeira só tudo caindo sem ter pra onde ir [...] EMOÇÕES CONTRADITÓRIAS
A Maria sofreu muito ela perdeu a casa, a casa dela “O que mais me marcou com tudo isso o que aconteceu
ficou pendurada e ela não queria sair. Foi bem ruim, o foi a solidariedade. Por parte de todo o povo, que
Edson levou ela lá pra casa e ela ficou lá com a gente. mesmo sem conhecer a cidade e muito menos as
Eu nunca tinha visto nada daquilo e olha, eu vim do pessoas atingidas, muito contribuíram com donativos,
interior, mas bem do interior de pobreza, dormi em dinheiro, orações e trabalho voluntário. Muitos
cima de papelão e eu nunca tinha visto coisa como voluntários foram pessoas atingidas que, sabendo das
essa, foi muito ruim. Não tem ser humano que aguen- pessoas em situação pior, preferiram neste momento
ta, pensei em ir embora da cidade, mas não dá, tem o difícil ajudar o próximo. [...] A ajuda não foi só
bar do meu marido”. (E1) com donativos, é incrível como neste momento nos
“As intrigas passadas acabaram, passaram. O fato do tornamos mais unidos. Foi uma alegria no meio da
sofrimento fez as pessoas sentirem na pele o que a tristeza”. (E4)
outra estava passando, este sofrimento fez com que fi- “[...] coisa estava feia [...] desmoronamentos de casas,
cássemos mais unidos e compreendesse o outro”. (E5) quedas de barreiras, árvores, postes, então o rádio a
“Como eu não tenho nenhum bem, não tive nada a pilhas nos trouxe notícias reais do que se passava em
perder, mas fiquei muito triste com tudo que eu vi, nossa volta. [...] Estava sendo muito triste ouvir as
com as perdas materiais das outras pessoas, tudo con- notícias no rádio, [...] pessoas isoladas, sem poder ter
quistado indo por água abaixo, isso é muito triste”. ou dar notícias para acalmar os corações de outros,
(E8) sem água, comida, e vendo pessoas morrer, tudo isso
causado por imensos blocos de terra que começaram a
cair. [...] Mas, o que nos alegra é que esses são poucos
e a maioria está lutando, formando uma enorme
corrente de solidariedade”. (E7)
“Foram passando os dias e tudo de horrível acontecia, “Deu para perceber como uma situação dessas,
eram helicópteros sobrevoando, eram lares se de ajuda de todos, fez com que muitas briguinhas
desmoronando, eram militares por toda a parte internas melhorassem, rapidamente. De inimigas a
tentando socorrer pessoas, os fatos me faziam lembrar grandes amigas! Foi surpreendente”. (E5).
de filmes, filmes tristes, justamente os que eu evitava “[...] Minha vontade era de ajudar todos! [...] por
assistir, mesmo sendo de ficção. Naqueles dias não mais cansativo que tenha sido, acho que ficamos
tinha como evitar, estava tudo diante dos meus olhos. (nossa equipe) mais unidos do que já éramos. Todos
Eu estava triste pelo que via, mas feliz em saber que ajudando, todos se importando com cada detalhe! [...]
as pessoas que eu tanto gostava estavam bem de Sempre tive essa imagem da equipe quando ainda
saúde[...]”. (E8) estava de fora e passei a me sentir muito mais “da
“O sentimento de perda era muito grande, mas a casa” depois disso. [...] [...] Sinto-me orgulhosa de
esperança que norteava o trabalho de toda a equipe foi fazer parte deste time!”. (E2)
gratificante. [...] Acredito que além da triste lembrança, “As pessoas ficam mais solidárias, tinha colegas que
nos restou um sentimento de união, confiança e também haviam sido prejudicados diretamente com a chuva,
alegria, por saber que juntos conseguimos enfrentar então tínhamos que dar força, de alguma forma, para
esta grande tragédia”. (DC) verem que tudo se resolveria. Senti que ficamos mais
unidos, não que não éramos, mas foi um acréscimo
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista- para a nossa amizade”. (E8)
dos (E1, E2, E3 etc.)
“Eu me lembro que tinha algumas desavenças entre
uns e outros e tudo passou, tudo isso criou uma união.
As emoções primárias aparentemente contradi- Foi bem forte e causou uma mudança porque durou
tórias foram aproximadas nos discursos dos sujei- de verdade fez com que todos nós ficássemos muito
tos pela intermediação da solidariedade, tal como unidos.
aparecem principalmente nos fragmentos anterio- “Esses momentos difíceis que passamos juntos
res. A percepção da solidariedade do outro parece foram, de uma certa forma, bom para a empresa. Sem
tornar possível a convivência simultânea de tristeza nenhuma intenção e planejamento aconteceu uma
e alegria diante da mesma situação. mudança na cultura da organização. Nós, gestores,
com essa proximidade com os colaboradores, tivemos
a oportunidade de conhecer um pouco mais os valores,
Quadro 4: Categoria afetiva da motivação para a a qualidade de vida e as crenças de cada um. Ficou
aprendizagem: tristeza como geradora de união mais fácil a relação interpessoal, a administração de
conflitos e a coordenação interna dos trabalhos. “ ( E4).
TRISTEZA COMO GERADORA DE UNIÃO: A
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista-
CAMINHO DA APRENDIZAGEM NA ORGANI-
dos (E1, E2, E3 etc.)
ZAÇÃO
“Toda esta tragédia serviu para unir ainda mais nossa Os trechos anteriores revelam a relação, que à
equipe de trabalho, a perceber o quanto podemos ser primeira vista poderia ser paradoxal, entre tristeza
úteis com pequenos gestos de solidariedade ou até
e união. Novamente aqui aparece a capacidade
com algumas palavras de conforto”. (E4)
do indivíduo de retirar de uma emoção “negati-
“Ah! Parece assim que a tristeza nos une, ah! Sei lá, va” a energia propulsora para uma ação “positi-
acho que é a tristeza, quando acontece uma coisa mui- va”. O quadro 4 mostra também a consolidação
to ruim a gente olha pro outro de outro jeito. Não sei de relações de permanência e manutenção desses
explicar (++)”. (E10)
sentimentos engendrados a partir da catástrofe.
“Bonito foi ver como todos se ajudaram. [...] Até que Somente a partir de então, podemos suspeitar da
foi bom ter acontecido isso tudo, quer dizer, bom não! ocorrência de aprendizagem na organização.
Pra cidade não! Mas para a união da equipe, ficou todo Essa dialógica entre a emoção e a aprendizagem
mundo muito amigo, da tristeza brotou amizade”. (E12) vai ao encontro do pensamento de Antonacopou-
“Parecia que estava todo mundo mais unido do que já lou e Gabriel (2001), segundo o qual a aprendi-
era, estava todo mundo lá igual, sem diferença, pegan- zagem é um processo profundamente emocional,
do junto e querendo limpar tudo de uma vez assim, dirigido, inibido e guiado por diferentes emoções,
estava todo mundo unido. O neguinho pegava azulejo incluindo medo e esperança, excitamento e deses-
por azulejo e até gastava de tanto esfregar, e ainda fa- pero, curiosidade e ansiedade.
zia sorrindo, era até engraçado. Parece que tudo isso Ao estudar também os fenômenos da apren-
deixou as pessoas mais tolerantes e compreensivas
dizagem em situações de catástrofe, Kayes (2002;
com o colega, com o outro. Foi nítido que a equipe se
2003) entende que, em se tratando de casos ines-
uniu mais ainda. [...]”. (E2)
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