Você está na página 1de 14

DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM

ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL


EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE1
AUTOETHNOGRAPHY DISCUSSION AND PRACTICE: A STUDY ABOUT
ORGANIZATIONAL LEARNING IN A CATASTROPHIC SITUATION
Klara Friederike Kock2|Christiane Kleinübing Godoi 3|
Fernando César Lenzi 4
RESUMO ABSTRACT
Após a catástrofe de novembro de 2008 que After the disaster of November 2008 which struck in
assolou a Blumenau (SC), foi possível vivenciar Blumenau (SC), it was possible to experience several
diversas mudanças comportamentais na organização behavioral changes in the studied organization. Aiming
estudada. Com o objetivo de compreender as reações to understand the organizational reactions in the face
organizacionais frente a situação de catástrofe, o of the disaster situation, from the theoretical field of
estudo foi conduzido por: 1) revisão da literatura organizational learning, the study was conducted as
sobre aprendizagem organizacional; 2) estudo follows: 1) review the literature on organizational
metodológico – a autoetnografia; 3) continuidade e learning, 2) deepening the methodological study
aprofundamento da imersão no campo de estudo, of the method chosen - the autoethnography,
com o uso de técnicas interiores à autoetnografia; 3) continuing and deepening immersion in the
4) encontro entre as categorias encontradas no field of study, using techniques comprehended in
material empírico e aspectos específicos da teoria da autoethnography, 4) meeting between the categories
aprendizagem organizacional. A análise foi realizada found in empirical data and specific aspects of the
na intersecção do passado, futuro, envolvendo organizational learning theory. The analysis was
o contexto interno e externo da organização. A conducted at the intersection of past, future, involving
categoria mais significativa evidenciada nesse estudo internal and external context of the organization. The
foi a afetiva, em suas diversas manifestações: a) medo most significant category evidenced in this study was
e suas emoções secundárias; b) sofrimento e emoções the affective, in its various manifestations: a) fear and
suas secundárias; c) tristeza-alegria; d) tristeza como secondary emotions, b) suffering and their secondary
geradora de união. A interpretação dessas categorias emotions, c) sadness-joy; d) sadness as union
conduziu à percepção de que a experiência de generator. The interpretation of these categories led
emoções primárias contraditórias contribuiu para to the perception that the contradictory experience
a aprendizagem dos indivíduos e os resultados do of primary emotions contributed to the learning of
estudo foram situados em contextos também trágicos individuals, since learning is a profoundly emotional
semelhantes, produzindo a conclusão última de process.
que eventos impactantes exigem aprendizagem
instantânea. Keywords: Autoethnography. Organizational
learning. Environmental disaster.
Palavras-chave: Autoetnografia. Aprendizagem
organizacional. Catástrofe ambiental.

1
Data de recepção: 25/06/2012. Data de aprovação: 20/Dez/2012.
2
Graduada em Gastronomia pela UNIVALI. Gerente do Senac Bistro Johannastift - Restaurante Escola. E-mail: klara_kock@hotmail.com
3
Mestre em Administração pela UFSC e Doutora em Engenharia de Produção pela UFSC. Doutorado Sanduíche na Universidade do Minho,
Portugal. Pós-Doutoranda pela Universidad Complutense de Madrid. Professora do Programa de Pós-Graduação da UNIVALI. E-mail: chriskg@
univali.br
4
Mestre em Administração pela FURB. Doutor em Administração pela FEA-USP/SP. Professor Titular da UNIVALI. E- mail: lenzi@univali.br
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

INTRODUÇÃO Um dos locais atingidos foi a organização es-


tudada, localizada em um dos principais patrimô-
Blumenau, 22 de novembro de 2008, o início nios históricos da cidade. Apesar do prédio já ter
da catástrofe. Mais uma vez Blumenau é oprimida sofrido com grandes enchentes passadas, após a
por uma grande amargura. Chuvas torrenciais, a recuperação arquitetônica e revitalização da casa,
força das águas derretendo morros e engrossando o tal ocorrência não havia mais sido registrada. A
leito do rio com lodo. Enchente, desmoronamento organização é formada por uma equipe de 13
e enxurrada foram os três componentes geradores funcionários do corpo técnico-administrativo, sen-
da última tragédia. do a essa pesquisadora a diretora dessa unidade
O ano de 2008 seguiu atípico em relação aos operativa. Com a catástrofe, além da organização,
anteriores na questão de precipitações pluviomé- muitos funcionários foram direta ou indiretamente
tricas. Chuvas intensas e torrenciais tornaram-se atingidos. No retorno ao trabalho, foram visíveis as
constantes desde a metade do primeiro semestre. mudanças comportamentais e de relacionamento
De acordo com os registros de cheias no municí- entre a equipe.
pio de Blumenau, a enchente de 2008 não foi a Com o objetivo de compreender as reações
de maior metragem, mas surpreendeu devido ao organizacionais frente à situação de catástrofe, o
volume, rapidez e eventos inesperados. Entre as estudo foi conduzido da seguinte forma: 1) revisão
7h de sábado (22 de novembro de 2008, início da da literatura sobre aprendizagem organizacional,
catástrofe) e 16h de domingo (23 de novembro de com a finalidade de proporcionar maior sensibili-
2008) o céu derramou sobre Blumenau 348,9 mi- dade conceitual e delimitação temática provisória;
lilitros de chuva por metro quadrado, isto é, em 2) aprofundamento do estudo metodológico do
pouco mais de um dia choveu 124% a mais do que método escolhido – a autoetnografia (HAYANO,
o esperado para o mês de novembro inteiro. Com 1979; BAKHTIN, 1981; TEDLOCK, 1991, 2000;
a velocidade inesperada dos fatos, a modernidade ELLIS, BOCHNER, 2000; ATKINSON; COFFEY;
do sistema de telemetria tornou-se obsoleta. DELAMONT; LOFLAND; LOFLAND, 2007) - elei-
As chuvas e deslizamentos venceram a Defesa ção devida à complexidade do tema, à escassez de
Civil do Estado, ocasionaram muitas mortes, pro- teorização específica e à necessidade imersão em
vocaram colapso dos serviços essenciais, isolaram um campo no qual uma das pesquisadoras já es-
uma das mais ricas e prósperas regiões do Brasil, tava previamente inserida; 3) continuidade e apro-
desabrigaram milhares de pessoas, interromperam fundamento da imersão no campo de estudo, com
comunicações rodoviárias e provocaram uma das o uso de técnicas interiores à autoetnografia (diá-
mais graves catástrofes sociais e econômicas da rios de campo, análise de documentos, entrevistas
história de Santa Catarina. As principais rodovias em profundidade); 4) reencontro com aspectos es-
estaduais e federais que servem ao Estado entra- pecíficos da teoria da aprendizagem organizacional
ram em colapso, o principal porto catarinense foi – aqueles cujo encaixe foi possível em virtude da
fechado, o gasoduto Brasil-Bolívia foi interditado emergência das categorias encontradas no material
com suas funções completamente desativadas. A empírico.
população do Estado, mesmo já tendo vivenciado Esse artigo foi elaborado após o estudo com a
outras enchentes, não estava preparada para reagir finalidade de, a partir da experiência com o uso
com tamanha rapidez e eficácia. do método, contribuir para a abertura de possibili-
Acontecimentos de grande porte como esse, dades de utilização da autoetnografia nos estudos
que desolaram um grupo específico ou generaliza- organizacionais.
do causando desastres, destruição e morte podem
ser chamados, de acordo com Rossin (1986), de DA ETNOGRAFIA À AUTOETNOGRAFIA
catástrofe. Especificamente, os acidentes ambien-
tais, podem ser divididos em dois grupos: os desas- A pesquisa etnográfica, ainda pouco utiliza-
tres tecnológicos, gerados por atividades desenvol- da no campo organizacional brasileiro (ver, por
vidas pelo homem tais como acidentes nucleares, exemplo: CAVEDON, 2003; FERTAZ; CAVEDON,
vazamentos de substâncias químicas, entre outros 2004; ANDION; SERVA, 2006; PEREIRA; DA-
que podem ser prevenidos; e os desastres naturais VEL; CAVEDON, 2007; MEDEIROS; CAVEDON;
causados por fenômenos da natureza sem a inter- FIGUEIREDO, 2008; CAVEDON, 2009), tem por
venção do homem e que dificilmente podem ser pressuposto fundamental descrever o ponto de
prevenidos. Para o autor, a magnitude do alcance vista nativo sobre seus valores, sua experiência de
desses acidentes gera inevitavelmente alguma mu- vida, pensamentos, emoções, sentimentos e práti-
dança de comportamento e aprendizagem para os cas que constituem sua própria realidade existen-
indivíduos, grupos e organizações envolvidas. cial, sua cultura.

94 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

Para Tedlock (2000), a etnografia envolve um tersecção do passado (backward), futuro (forward),
avanço na tentativa de estabelecer encontros espe- entre o contexto interno e externo, entre a cultura
cíficos, acontecimentos e compreensões mais am- e a pessoa.
plas em um contexto mais significativo. Ela não é O termo autoetnografia deve-se a David Haya-
simplesmente a produção de nova informação ou no (apud TEDLOCK, 2000) e, apesar de pouco
pesquisa de dado, mas o modo em que tal informa- usual, já vem sendo utilizado há aproximadamen-
ção ou dado é transformado em uma forma visual te três décadas (atualizando o escrito de Tedlock).
ou escrita. Como resultado, combina projeto de pes- Hayano (apud TEDLOCK, 2000) limitou a utiliza-
quisa, trabalho de campo e vários métodos de inves- ção do termo a grupos culturais nativos a serem
tigação para produzir historicamente, politicamente estudados por antropólogos. Porém, muitos outros
e pessoalmente inúmeras situações, descrições, in- termos são utilizados por estudiosos das ciências
terpretações e representações da vida humana. Na sociais de forma direta ou indireta para represen-
prática, a etnografia é uma continuação do trabalho tar a autoetnografia, tais como: narrativas pessoais,
de campo, ou melhor, um registro transparente das narrativas do eu, narrativas da experiência pessoal,
experiências passadas no campo. O avanço natural etnografia pessoal, entre muitos outros termos.
do trabalho de campo conecta importantes experi- Os autoetnógrafos variam de estilo e ênfase em
ências pessoais com uma área do conhecimento e seus processos de pesquisa. O sentido da palavra já
está localizada entre a interioridade da autobiografia designa esta variação, auto (por si mesmo) – etno
e a exterioridade da análise cultural. (etnia, questões culturais) – gráficos (registros). As-
O trabalho etnográfico, no dizer de Fetterman sim, diferentes definições e aplicações de autoet-
(apud ROCK, 2007), não é sempre ordenado, mas nografia são encontradas. Pesquisadores discordam
envolve subjetividade, criatividade, estar no lugar entre si sobre quais os limites de cada categoria e
certo ou errado em determinado momento e uma definições precisas da etnografia (ELLIS; BOCH-
grande quantidade de trabalho. Para Andion e Ser- NER, 2000). Ainda segundo estes autores, é pos-
va (2006), a pesquisa etnográfica permite retratar sível encontrar em um mesmo artigo definições e
as dimensões objetivas e subjetivas dos fenômenos aplicações diferentes para este tema. No entanto,
analisados, a construção da “tecelagem etnográfi- as definições aproximam-se do mesmo foco: a re-
ca”, a “construção dos momentos” da cultura or- flexão do pesquisador como objeto de estudo.
ganizacional. Os autores ressaltam que a etnografia A autoetnografia, na explicação de Ellis; Boch-
sobrepõe a definição de técnica devido à grande ner (2000), permite o envolvimento do pesquisa-
representatividade e possibilidade de descobertas dor, assim como a narrativa de seus pensamentos e
através da decifração de seus significados. O mé- suas opiniões reflexivas, diante do estudo em que
todo estabelece relações que possibilitam compre- está inserido; possibilita ao autor transpor para seu
ender melhor a complexidade de determinados estudo todas essas experiências emocionais, reve-
fenômenos sociais. Godoy (2006) complementa lando detalhes ocultos da vida privada. Para tanto,
que a pesquisa etnográfica abrange a descrição dos a descrição da vida social e suas relações precisa
eventos que ocorrem na vida de um grupo (com ser o mais completa e envolvente possível.
especial atenção para as estruturas sociais e o com- A reflexão na autoetnografia contextualiza a voz
portamento dos indivíduos enquanto membros do indivíduo e do grupo na experiência vivida. O
do grupo) e a interpretação do significado desses olhar de cada envolvido gera forças para as vozes
eventos para a cultura do grupo. Um etnógrafo do coro. Reinharz (apud ELLIS; BOCHNER, 2000),
pode centrar seu trabalho sobre uma tribo indígena em seu sumário sobre estudos reflexivos, sugere
com pouco contato com a civilização, uma comu- para um bom trabalho, começar com a história do
nidade de alemães no estado de Santa Catarina, grupo, explicar o envolvimento de cada um com
ou determinada ocupação dentro de uma fábrica. o caso vivido, ou utilizar um conhecimento pes-
A autoetnografia, por sua vez, representa um soal para auxiliar no processo da pesquisa. Jacson
gênero da etnografia que aprofunda a pesquisa (apud ELLIS; BOCHNER, 2000) considera vital o
nas múltiplas lacunas da consciência do indivíduo envolvimento do etnógrafo com os outros partici-
relacionando-o com o meio em que está inserido pantes do grupo. Desta forma, a reflexão pessoal
através da experiência pessoal. O pesquisador ana- não se torna uma verdade única, mas sim a refle-
lisa os aspectos culturais e sociais ao seu redor, ou- xão sobre os discursos pessoais analisados como
tward, para em seguida realizar uma análise interna grupo. O problema construído gera questões sobre
do si mesmo, inward, tornando-se assim, vulnerá- a interpretação de como os outros irão analisá-lo,
vel à resistência cultural e às interpretações. Para o pesquisador. Visto que o pesquisador toma par-
Deck, Neumann e Reef-Danahay (apud ELLIS; BO- te em duas configurações, observador e observado
CHNER, 2000, p. 739), a análise é realizada na in- (por ele mesmo).

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


95
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

Para Ellis e Bochner (2000), ninguém melhor Também na autoetnografia a observação parti-
para analisar e refletir sobre o estudo que o próprio cipante tem papel fundamental. Acerca dessa téc-
envolvido. Usar a própria experiência vivida pode nica, Godoy (2006) afirma ser de suma importância
servir para generalizar um grupo ou toda uma cul- que o observador mantenha seus focos de interesse
tura. A riqueza da narrativa, por sua vez, está na para orientarem claramente sua observação para a
capacidade de introspecção. Conforme os autores, pesquisa. Dessa forma evita-se a coleta errônea
a introspecção é incrivelmente difícil. É certamen- ou de poucos significados para o estudo. O con-
te algo que a maioria das pessoas não consegue teúdo das observações é transcrito para um diário
fazer bem. A maioria dos cientistas sociais ou não de registros, principal característica de um estudo
são suficientemente introspectivos sobre os senti- etnográfico. Haguette (1987) define a observação
mentos e motivos, ou sobre as contradições que participante como um processo no qual o inves-
experimentam, ou simplesmente não observam o tigador se coloca face a face com os observados
suficiente do mundo ao seu redor. A demanda do colocando-se com eles em seu ambiente natural,
questionamento próprio autoetnográfico é extre- tornando-se, assim, parte do contexto. Para a auto-
mamente difícil, alertam os autores. A exploração ra, este processo reflete a interação entre a teoria
da autoetnografia de forma honesta gera muito e métodos dirigidos pelo pesquisador na sua busca
medo, dúvida e dores emocionais. Somente quan- de conhecimento, não só na perspectiva humana
do se pensa que não pode suportar mais a dor é como da própria sociedade. O envolvimento do
que o verdadeiro trabalho está apenas começando. pesquisador no cotidiano do grupo tem o intuito
Então há a vulnerabilidade de revelar-se, sem ser de envolvê-lo de tal forma a entender em profundi-
capaz de retomar o que foi escrito ou ter controle dade aquele ambiente em que está inserido.
de como os leitores vão interpretá-lo. É difícil e es- A observação participante possibilita a interpre-
tranho sentir que a própria vida está sendo critica- tação da cultura de um grupo através da observa-
da, assim como seu trabalho. Ellis e Bochner (2000) ção e participação durante a investigação. Por meio
alertam que isso pode parecer humilhante. do envolvimento, os códigos simbólicos criados são
Por meio da autoetnografia, o indivíduo, ora decifrados e compreendidos ao longo do processo
pesquisador, ora objeto pesquisado, compreende a de estudo. Alguns autores (TEDLOCK, 1986; CRA-
si mesmo por meio do aprofundamento intrínseco PANZANO, 1991; RABINOW, 1992; CLIFFORD,
e de seu ambiente vivido. Assim, quando compre- 1998) inclusive sugerem a possibilidade de descar-
ender a si, compreenderá o meio, os outros en- tar a nomenclatura de observação participante e
volvidos. Ellis e Bochner (2000) acreditam que a elegem a pesquisa como um “encontro etnográfi-
autoetnografia possibilita uma série de reflexões co”. Os autores defendem uma relação dialógica
significativas para o autor e o mundo. Por exem- entre o pesquisador-antropólogo e o interlocutor
plo, Butler e Rosenblums (apud ELLIS; BOCHNER, (não mais informante). Desta forma, a construção
2000) co-construiram uma narrativa autoetnográ- da teia etnográfica dar-se-á não mais pela simples
fica sobre uma mulher com câncer e sua parceira “voz do outro”, mas pela compreensão e análise
lésbica. Esse estudo, sob a perspectiva de duas pes- reflexiva própria do pesquisador através do “olhar
soas através de suas vozes, possibilitou a compre- do outro”. Isso significa a aceitação da interferên-
ensão do fato pelos envolvidos servindo de base cia reflexiva e subjetiva do pesquisador. Para es-
para outros casos similares. ses autores, o pesquisador não irá apenas enxergar
Apesar de contrária a grande parte dos méto- através das lentes do pesquisado, mas sim através
dos de estudos em ciências sociais, a autoetnogra- da sua própria lente analisando a lente do pesqui-
fia torna-se envolvente e desafiadora instigando o sado. Tal situação não necessariamente refuta a
conhecimento. O leitor é convidado a entrar no qualidade da pesquisa, pelo contrário, enriquece
mundo do pesquisador a partir do momento que a discussão por meio da construção de significa-
se envolve com o evento narrado diretamente dos entre mais sujeitos de dois mundos negociando
pelo envolvido. Emoções e detalhes estimulam suas diferenças.
a reflexão sobre o assunto abordado gerando o A principal técnica na pesquisa autoetnográfica
desenvolvimento do conhecimento e a compre- é o diário de campo – também característico da
ensão sobre o estudo. Para Shelton (apud ELLIS; pesquisa etnográfica – composto de fatos registra-
BOCHNER, 2000), o ponto certo está em escrever dos e reflexões do pesquisador. Trata-se de um ins-
magnificamente sobre tópicos subjetivos inseridos trumento fundamental no qual devem constar pecu-
no contexto que façam a diferença e possam ser liaridades, pensamentos, impressões pessoais sobre
transcritos de através da emoção e sensibilidade do os envolvidos, do cenário, enfim, trazer à tona a sub-
pesquisador. jetividade do contexto através da percepção do pes-

96 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

quisador. É o relato da experiência do pesquisador, movimentada de trabalho que tivemos na empresa,


uma memória que servirá de guia para a pesquisa e fui até a varanda do apartamento e vi que o pré-
possibilitará ao pesquisador aprofundar a sua análise dio estava rodeado por água e que muitas casas,
e compreensão na história do objeto estudado, am- lojas e carros já estavam sendo invadidos pela água
pliando a interpretação dos significados dos eventos ou completamente submersos. Que susto! Que
passados e presentes (ANDION; SERVA, 2006). sensação horrível! Fiquei sem ação. Nunca havia
A utilização da entrevista na autoetnografia é visto uma imagem dessas na minha frente. Liguei
discutida por autores como Ellis e Bochner (2000), para casa dos meus pais e a minha mãe estava em
que alertam para ausência de modelo e padroni- prantos, agoniada por não ter notícias minhas, mas
zação na escolha das técnicas autoetnográficas, com medo de me ligar e não conseguir falar comigo
deixando-as ao critério do pesquisador. A ação da (ela passou pela enchente de 1984 em Tubarão/SC
entrevista não busca uma resposta “verdadeira”, e ficou muito traumatizada). Nisso fiquei sabendo a
muito menos a “real realidade”, mas sim a com- grandiosidade da coisa. A família da empregada dos
preensão do que forma essa realidade na percep- meus pais já estava lá em casa, pois tinham perdido
ção do outro. Aceitar os pensamentos múltiplos e tudo! Sim, tudo, o morro veio abaixo e eles só con-
a subjetividade de cada discurso contribui para a seguiram sair correndo. Acalmei meus pais, disse
construção do objeto, uma vez que cada entrevista que estava bem e no local onde eu estava não cor-
possibilita ao pesquisador reviver, com nova ver- ria riscos. Aos poucos pela televisão, rádio e internet
são, os acontecimentos. As entrevistas contribuem fiquei sabendo do que ia acontecendo. A noite ia
para a construção do discurso coletivo, da união caindo e a ordem era: “Não saiam de casa!”.
entre o prisma do pesquisador com o de cada en- Até sábado à meia-noite a Defesa Civil garan-
volvido. tia que isto era “só” uma grande enxurrada com
desmoronamentos e que não corríamos riscos de
A PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA NA enchente. Começou a faltar luz, já era noite. A sen-
sação de onde eu estava era muito estranha. Eu es-
ORGANIZAÇÃO ESTUDADA tava no apartamento do meu namorado, em uma
cobertura com uma área externa toda fechada com
Como método qualitativo, a autoetnografia tem
vidro, em um prédio altíssimo com uma plena visão
por essência ser multimétodo (ELLIS; BOCHNER,
da cidade, com conforto, estrutura e segurança. Eu
2000), podendo utilizar diversas fontes de informação
tinha a impressão de estar dentro de uma cúpula de
combinadas de diferentes formas. Dentro da observa-
vidro, num mundinho encantado, vendo tudo desa-
ção participante realizada no período de novembro de
bar ao meu redor e eu sem nada que pudesse fazer,
2008 a outubro de 2009, foram utilizadas as seguintes
era uma sensação de culpa com impotência. Sim,
técnicas complementares: diários de campo, em torno
me sentia culpada por estar bem. Olhar para baixo
de 60 páginas de registros; entrevistas em profundida-
e ver famílias inteiras, com crianças, idosos, cães,
de, com a totalidade da equipe – 12 pessoas; e consul-
todos sobre uma simples moto, buscando um lugar
ta a jornais locais, totalizando 213 páginas arquivadas
para se abrigar. E eu? Protegida na minha redoma
na pesquisa. Na seção 3 são apresentadas somente
de vidro, que sensação! Tentava ligar para os meus
edições resultantes das técnicas biográficas e aquelas
funcionários e aos poucos eu ia descobrindo como
relativas aos discursos dos entrevistados foram prio-
estavam, de alguns eu não tinha notícias, outros já
rizadas na seção 4.
estavam ajudando os colegas, cada um fazendo o
que podia.
Fragmentos de Diários Ah minha empresa, ah! O meu querido empre-
endimento, o meu projeto, a minha casa, o meu
Blumenau, 23 de novembro de 2008: Aquela local de trabalho, a minha equipe..., eu queria a
semana parecia normal, todos cansados da chuva todo custo ir para lá... Às 06h de domingo consegui
intensa e contínua, mas, ao mesmo tempo, acos- convencer o meu namorado a irmos até lá, falta-
tumados com tamanho índice de umidade e bo- va apenas 1 metro para a água entrar na empresa.
lor, pois já chovia há tanto tempo... Sol? Nem me Pegamos o jipe, ligamos para todos os funcionários
lembrava mais direito o que era isso. Os comen- e solicitamos a ajuda de quem conseguisse chegar
tários sobre enchente já vinham desde junho, eu para levantarmos as coisas. Fui a única que con-
não acreditava que isso poderia se tornar verdade, seguiu. Outros até tentaram e ficaram chateados
muitos não acreditavam ou não queriam acreditar. por não conseguirem, eles tinham problemas bem
No sábado acordei e a chuva continuava, mas eu maiores com suas casas, também ameaçadas. Fica-
não tinha nenhuma preocupação. Eis que à tarde, mos umas 2 horas na empresa, o tempo máximo
após passar o dia todo descansando da semana para conseguirmos retornar para a nossa redoma.

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


97
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

Eu não sabia o que fazer, levantar o que? Tudo! Não sensação de não saber o que iríamos encontrar e
dava. Mas era um absurdo a água entrar ali. Era tudo como estaria a equipe. Não sabia quem iria, como
tão lindo, tínhamos uma Primeira Comunhão agen- estavam, o que tinham vivenciado, o sentimento
dada para aquele domingo, estava tudo decorado, de culpa por eu estar bem ainda me assombrava.
montadinho, tudo lilás, a mesa do bolo, docinhos... A casa já estava aberta, três funcionários já tinham
que desperdício! Não! Que indecisão, levantamos conseguido chegar. A Carla levou o pai para ajudar,
os equipamentos de informática, os computadores, a Vanderléia chegou com o irmão e o Charles (mes-
as coisas mais caras e só, apenas 20% de tudo que mo com a casa em risco) levou a esposa. Todos esta-
havia. vam firmes na limpeza, trabalhando sem parar com
Chegou a hora, precisávamos ir embora. Foi muito esforço, armados de rodos e esfregões com
muito difícil sair e fechar a porta. Muito triste, além grande motivação para deixar tudo aquilo, que não
do sentimento de culpa e incapacidade, eu tinha era deles e sim da empresa, em ordem. Foram 40
a sensação de estar concordando em deixar que a cm de água que entrou e se transformou em lodo,
água ali entrasse. Fomos para casa, voltamos para não era o suficiente para dizer “perdi tudo!”, mas
a “redoma”. Quando chegamos, a energia havia mais do que o suficiente para estragar, sujar e im-
voltado e ligamos a TV. Para surpresa, o Centro Co- pregnar muita coisa. Claro, todos estavam abalados
mercial que o meu namorado havia acabado de com o que aconteceu, mas o espírito de: “pronto!
inaugurar, com 30 lojas, uma grande infraestrutura Vamos lá! A tragédia já passou, temos que reer-
estava submerso pelas águas. Que choque! Lá as guer!” estava nítido.
águas não atingiriam nem com 17 metros, e o rio Era impressionante a dedicação de todos à em-
estava em 11 metros, mas vimos as imagens com presa, não era deles, nem minha, sou apenas a dire-
todo o investimento com água no luminoso, Pare- tora da unidade, mas a sensação de posse, de pro-
cia realmente o fim do mundo. O sentimento de priedade, estava nítida nas ações e empenho de cada
impotência persistia. Como a energia ia e voltava um. Independente do cargo ocupado, todos iam
eu conseguia carregar meu notebook e acompanhar aparecendo com preocupações referentes a “nossa
as notícias pela internet. Comecei a receber mui- casa”, a “nossa empresa”. Por mais que no dia-a-dia
tas mensagens no celular e por email das pessoas alguns funcionários tenham atitudes e posicionamen-
querendo saber como estávamos e se precisávamos tos que os fazem indiferentes com o local em que
de ajuda. Recebi e-mails do estado todo, das ou- eles trabalham, naquele momento todos estavam
tras unidades da empresa, todos com um espírito realmente preocupados com a estrutura “da sua”
de solidariedade impressionante. Todos querendo empresa. Estava clara a preocupação de responsa-
notícias e oferecendo ajuda. A solidariedade emo- bilidade de cada um para com o estabelecimento.
cionava, mas não havia no momento o que fazer, Os funcionários foram chegando ao longo do dia,
apenas esperar. conforme podiam chegar, trazendo amigos, esposas,
maridos, enfim, quem tivesse como colaborar.
A tarefa de limpeza foi árdua. Não tínhamos
abastecimento de água e tínhamos que limpar com
a própria água da rua, da enchente, água contami-
nada e com muito lodo. A minha primeira ação foi
uniformizar e equipar os envolvidos, pois o risco de
contaminação e doenças era muito grande. Tínha-
mos que por aquele lodo para fora, caso contrário
o risco de proliferação de pragas poderia aumentar.
Colocamos toda nossa energia no que foi possível
limpar e ao final do dia fomos embora. Ficamos de
retornar na quinta quando o reabastecimento de
água voltaria ao normal.
Blumenau, 27 de novembro de 2008: Retorna-
mos à empresa, agora para a limpeza de verdade,
FIGURA 1. Desmoronamento na Rua Hermann Hus-
com água limpa! Todos estavam presentes, Joinville
cher, Blumenau. 24/11/2008.
mandou 4 funcionários para ajudar. Foi até engra-
FONTE: JORNAL DE SANTA CATARINA, ano XXXVII, n.
çado, pois, quando eles chegaram pareciam que
11.448, Blumenau, 25 nov. 2008.
estavam indo para uma guerra! Pensando bem, o
cenário era este, de guerra! Literalmente! Nas ruas
Blumenau, 25 de novembro de 2008: Finalmen-
só víamos soldados do exército, carros anfíbios, ca-
te a chuva cessou e as águas baixaram; na primeira
minhões camuflados e muitos helicópteros, um ce-
oportunidade fomos direto para a empresa, com a

98 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

nário de filme de guerra. Aos poucos todos foram germânica não permitia. Escutei de um rapaz na rua
chegando, não demorou muito para que começas- dizendo: “sabe quem é mais teimoso? Aquele que
sem os serviços. Não teve diferenciação de cargo teima com um alemão!” O alemão teima que é aqui
ou nível hierárquico, mas havia união na realização que vai ficar, é aqui e pronto! Não tem catástro-
dos mais diversos tipos de trabalho de limpeza, to- fe que nos tire daqui. A natureza levou? Não havia
dos estavam ali para o que fosse necessário, até as problema, construiríamos de novo! Haja pensamen-
pessoas não habituadas ao trabalho pesado de lim- to positivo! Bom, retornamos aos trabalhos, cance-
peza estavam lá agarradas no rodo. Era uma energia lamos os cursos, eventos e os serviços da empresa e
de “vamos lá, vamos limpar, organizar”; “queremos os atendimentos foram restabelecidos somente no
nossa casa de volta, nosso empresa!”. Estavam mui- dia 08 de dezembro (uma semana depois).
to claras a força e a união presentes nos funcioná- Nosso diretor regional veio de Florianópolis para
rios e amigos que aqui colaboravam. Mesmo diante conversar conosco e dividir sua solidariedade. Com
de uma cidade destruída, a equipe não se deixou ele vieram alguns funcionários técnicos para auxiliar
desanimar. O mais incrível foi a integração, a força, na reinstalação do sistema da unidade. Nos reuni-
a vontade de trabalhar. Trabalhamos braçalmente mos com o diretor por aproximadamente 1 hora, foi
até umas 18h, acredito que a empresa nunca re- um momento emocionante que levou alguns fun-
cebeu uma faxina tão caprichada, nunca ficou tão cionários (quase todos, inclusive o próprio diretor)
limpa e esterilizada, foi incrível! às lágrimas. Cada um contou um pouco do que pas-
À noite estávamos destruídos, mas um ar de sa- sou e todos ficaram muito agradecidos pelo apoio
tisfação no rosto inexplicável. Foi gratificante ver a que a empresa estava proporcionando para cada
minha equipe assim, tão unida e batalhadora. Fi- um de nós. Eles trouxeram consigo cestas básicas,
camos de voltar para as nossas casas, descansar e produtos de higiene, roupas, donativos e muitas
retornarmos na segunda, dia 01 de dezembro, para coisas que puderam ser aproveitadas pelos funcio-
atividades internas de organização. nários, principalmente pelos mais necessitados.

Blumenau, 06 de dezembro de 2008: Ufa, a se-


mana passou! Parecia que não ia ter fim..., mas che-
gou! Estava apreensiva para a chegada da hora em
que voltaríamos totalmente à ativa, esquecer tudo
isso. Bom, esquecer acredito que seja um pouco for-
te, mas, deixar para trás e seguir em frente. Muitos
dos nossos eventos foram cancelados. A cidade esta-
va em choque, mesmo aqueles que não sofreram es-
tavam cancelando suas confraternizações e direcio-
nando a verba do evento para doações a ajudas às
vítimas. A equipe continuava unida, de alguma coisa
serviu, parecia que todos esqueceram suas diferen-
ças e ficaram mais relevantes e tolerantes uns com
os outros. A Vera e a Maria continuavam se dando
FIGURA 2. Carros anfíbios do exército circulando bem. Dava até vontade de ir tirar satisfação: “qual
pela cidade, Blumenau. 24/11/2008. é! Vocês não estavam se ameaçando com faca outro
FONTE: JORNAL DE SANTA CATARINA, ano XXXVII, n. dia na cozinha? Não tive que mudá-las inclusive de
11.448, Blumenau, 25 nov. 2008. horário? Agora resolveram virar amigas?” Mas não!
Respirei e agradeci que estava tudo bem com todos
Blumenau, 01 de dezembro de 2008: Após e com a equipe no dia-a-dia de trabalho. Havia coi-
tudo o que ocorreu a cidade vinha aos poucos se sas que era melhor não questionar, apenas aceitar,
reerguendo. Era bonito ver a população ressurgindo ainda mais porque visava um bem maior.
no meio de tanta lama e lodo, lavando suas casas, Blumenau, 23 de fevereiro de 2009: Aniversário
ruas e trazendo aos poucos o colorido da cidade de de dois meses da catástrofe. Tudo parecia estar vol-
volta. A cidade ficou inteira nos tons de marrom, tando à rotina, mas não esquecemos tão facilmente
canteiros, casas, postes, placas, nada tinha outra o que aconteceu. Acredito que são essas marcas
cor, apenas o marrom... Parecia que nunca mais te- nas lembranças, essas cicatrizes que nos fortalecem
ríamos nossa linda e bela Blumenau de volta! Como e nos fazem continuar tolerantes com os outros. A
faríamos para reerguer e embelezar tudo aquilo que equipe estava bem, a alegria voltou e a rotina tam-
construímos ao longo de tantos anos? Quase dava bém, já as desavenças, ah..., estas ficaram para trás.
vontade de desistir, mas a nossa herança genética Nossa, que coisa incrível, é necessário um fato tão

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


99
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

ruim para transformar um ambiente? Que contra- da pesquisadora com a equipe e com situação, ou
ditório! Mas que bom que foi para melhor, desta seja, o fato de já ser insider e precisar justamente
forma, só tínhamos que seguir procurando melhorar desenvolver um olhar outsider constituiu um dife-
a cada dia o que já havíamos conquistado e não rencial em relação a um estudo etnográfico tradi-
deixar a motivação desacelerar. cional.

Diretora da empresa, uma das pesquisadoras e objeto APRENDIZAGEM EM SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE:


da pesquisa: representações da autoetnógrafa ENCONTRO ENTRE O MATERIAL EMPÍRICO E A TEORIA
Como diretora, durante os episódios da ca- Foi realizado um encontro entre os aconteci-
tástrofe, a pesquisadora precisou de capacidade mentos evidenciados na organização em decor-
de comando para orientar a equipe durante toda rência da catástrofe de novembro de 2008 e de-
a situação emergencial. Apesar do seu cargo, ela terminados aspectos da teoria da aprendizagem
não tinha experiência com essa situação, foi um organizacional (perspectiva psicológica). Os ele-
aprendizado involuntário. O que fazer? Que pos- mentos levantados por meio dos discursos dos en-
tura apresentar? Que decisões tomar? Foram vá- trevistados, da observação da pesquisadora, além
rios questionamentos que ela não teve muito com de suas percepções e vivências, tornaram-se objeto
quem dividir, tempo para refletir, apenas agir. De- de reflexão que, posteriormente, foram resignifica-
cidir se iria ou não para a empresa, correr o risco dos à luz da teoria estudada.
nas ruas para tentar salvar algumas coisas que não Mudanças drásticas do meio, instabilidades, al-
eram diretamente suas? Colocar em risco seu carro, terações inesperadas no ambiente externo podem
sua vida, seus familiares, buscando preservar um alterar os indivíduos e estes iniciarem um proces-
espaço que não era exatamente seu? Solicitar o au- so novo de aprendizagem dentro da organização
xílio de outros funcionários? Colocar a vida deles (SILVA, 2009). Considera-se a possibilidade de que
em risco? Pedir para que deixassem suas famílias e a situação de catástrofe tenha sido propulsora de
suas casas, em alguns casos vulneráveis aos acon- processos de aprendizagem na organização em
tecimentos, para salvar algo que não era deles? A estudo, que teve não apenas a sua estrutura física
pesquisadora, naquele momento apenas como di- abalada, mas a vida das pessoas que sofreram di-
retora tomou a decisão de se envolver ao máximo reta ou indiretamente com os acontecimentos. O
possível dentro das suas limitações que garantissem fenômeno ambiental inesperado gerou mudanças
a sua segurança. Não impôs a ida de nenhum fun- comportamentais visíveis no campo individual e
cionário até a empresa, solicitou a ajuda de quem coletivo, produzindo desenvolvimentos no relacio-
pudesse ir, orientando-os para que nenhum deles namento da equipe, tal como mostram os fragmen-
colocasse suas vidas ou famílias em risco. tos a seguir: “é difícil explicar, até a Vera que eu
Posteriormente, durante o desenrolar da pes- queria matar uns dias atrás me abrigou na casa dela,
quisa, a pesquisadora procurou desarmar-se do parece que todo mundo se ajudou. Sei lá, acho que
papel de diretora, principalmente, enquanto en- é a tristeza, quando acontece uma coisa muito ruim
trevistava os funcionários para evitar ouvir discur- a gente olha pro outro de outro jeito.” (Entrevistada
sos puramente institucionais. Mesmo assim, rece- 10). “Até a Vera e a Maria que não se ‘bicavam’ [sic]
beu muitos elogios quanto à sua postura frente à estavam unidas e se ajudando. Parece que tudo isso
catástrofe e percebeu que, por vezes, as pessoas deixou as pessoas mais tolerantes e compreensivas
emitiam discursos endereçados à diretora. A fim de com o colega, com o outro. Foi nítido que a equipe
minimizar essa interferência, as entrevistas foram se uniu mais ainda” (Entrevistado 2).
realizadas fora do local de trabalho, de forma agra- Na concepção de teóricos como Argyris e
dável e sem formalidades, buscando obter infor- Schön (1978), essas mudanças comportamentais
mações detalhadas e, principalmente, identificar as individuais e coletivas com fins de adaptação es-
subjetividades independentemente do posiciona- tão associadas à noção de aprendizagem organiza-
mento hierárquico. cional. Especificamente na perspectiva psicológica
O terceiro e último papel foi o cetro do delinea- da aprendizagem individual (ARGYRIS; SCHÖN,
mento do método autoetnográfico: a pesquisadora 1978), o aumento do conhecimento organizacio-
como objeto da pesquisa. Estar presente, vivenciar, nal é dependente da aquisição de conhecimentos
tirar conclusões próprias, desenhar a situação sob dos indivíduos. Também dentro dessa perspectiva,
o seu próprio olhar e, ao mesmo tempo, manter o Godoi (2003) sugere que o objetivo da aprendi-
foco na realização de um estudo acadêmico, tor- zagem é o restabelecimento do equilíbrio. Diante
nou-se o principal desafio. O envolvimento prévio do abalo causado pelo inesperado, há uma mobi-

100 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

lização do afeto e da estrutura cognitiva do sujeito Quadro 1: Categoria afetiva da motivação para a
para aprender, para restabelecer o equilíbrio. O aprendizagem: medo e suas emoções secundárias
estudo de Godoi, Freitas e Carvalho (2008) identi-
fica que as mudanças relacionadas à aprendizagem MEDO E SUAS EMOÇÕES SECUNDÁRIAS
são geradas partir da motivação individual, ou seja, (desespero, aflição e culpa)
que a aprendizagem organizacional é impulsiona- “Quando consegui chegar à empresa e abri a porta da
da pela motivação intrínseca do indivíduo. O nível cozinha e vi aquele mar de lama fiquei desesperada, aí
de análise utilizado para a categorização teórica, veio o medo. [...] Foi quando resolvi dar uma volta e
nesse estudo foi, portanto, prioritariamente indivi- ver como estava a Alameda, foi aí que percebi o risco
dual, ou seja, considerou os indivíduos, suas cren- que estava correndo fora de casa. A rua completamen-
ças, valores, vivências externas e, principalmente, te alagada e a defesa civil alertando que cairia mais
motivações como estopins para as mudanças rela- chuva. Fiquei desnorteada e não sabia o que fazer”.
tivas à aprendizagem organizacional. (E4)
O estudo de Godoi (2003) desenvolveu, de “[...] minha mãe estava em prantos, agoniada por não
forma entrelaçada, três categorias constitutivas ter notícias minhas, mas com medo de me ligar e não
do fenômeno da motivação para aprendizagem: conseguir falar comigo (ela passou pela enchente de
categorias afetiva, cognitiva e social. A categoria 1984 em Tubarão/SC e ficou muito traumatizada). [...]
cognitiva é relacionada a funções intelectuais que A família da empregada dos meus pais já estava lá
abrangem aspectos muito diversos, como percep- em casa, pois tinham perdido tudo! Sim, tudo, o mor-
ção, conhecimento, conceito, juízo, raciocínio, ro veio abaixo e eles só conseguiram sair correndo”.
solução do problema, desenvolvimento de habi- (DC)
lidades, desenvolvimento de atitudes; a categoria “[...] a gente ficou com muito medo. Daí eu e o meu
social relaciona-se aos fatores extrínsecos, que aca- marido pegamos as crianças e fomos lá pra minha
bam tornando-se interiorizados e permanecem na irmã na Água Verde”. (E6)
dimensão heterônoma do indivíduo, tais como, afi- “A sensação de impotência e o desespero diante de tudo
liação, participação nos grupos, reconhecimento, o que víamos era realmente desanimador, mas também
aceitação pessoal, prazer de estar com os outros, uma grande lição de vida. Durante aquelas duas semanas
condescendência, suporte familiar, percepção dos de caos, foi necessário arregaçar as mangas e tentar de
pares, percepção do líder, influência da instituição; todas as formas limpar tudo,  colocar tudo em ordem.
e a categoria afetiva, associada ao envolvimento Neste momento percebi como é importante o apoio dos
emocional, especificamente a fatores como preser- amigos, dos familiares e até mesmo daqueles que não
vação do eu, autoconfiança, desejo de autonomia, conhecemos, mas, que possuem um grande coração.[...]
desafio, desejo de exploração das situações. Abrir a porta do prédio e ver tudo aquilo foi realmente
Dentre as principais categorias definidas por assustador, tudo que foi organizado com tanto carinho e
Godoi (2003), aquela que emergiu de forma mais esmero, em alguns instantes a água tomou. (DC)
significativa no contexto desse estudo foi a catego- “[...] A aflição [...] Dificuldades maiores, pois, além
ria afetiva. No interior dessa categoria, foram iden- das águas, os desmoronamentos aconteciam em toda
tificadas as seguintes emoções primárias e secun- parte. A aflição foi muito além do seu “mundinho”. Da
dárias (DAMÁSIO, 1996) como sendo os principais sala, do trabalho, da cidade para toda Santa Catarina”.
fatores motivadores, propulsores, da aprendizagem (E4)
na situação da catástrofe: a) medo, e suas emoções “[...] A sensação de onde eu estava era muito estranha
derivadas, tais como, desespero, aflição e culpa; b) [...] numa cobertura com uma área externa toda fecha-
sofrimento, e suas emoções derivadas, como triste- da com vidro, em um prédio altíssimo com uma plena
za, angústia e solidariedade; c) alegria. visão da cidade, com conforto, estrutura e segurança.
Os quadros a seguir demonstram trechos da ca- Eu tinha a impressão de estar dentro de uma cúpula
tegorização das emoções a partir de fragmentos de de vidro, num mundinho encantado, vendo tudo de-
discursos: sabar ao meu redor e eu sem nada que pudeste fazer,
era uma sensação de culpa com impotência. Sim, me
sentia culpada de estar bem. Olhar para baixo e ver fa-
mílias inteiras, com crianças, idosos, cães sobre uma
simples moto, buscando um lugar para se abrigar. E
eu? Protegida na minha redoma de vidro”. (DC)

Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista-


dos (E1, E2, E3 etc.)

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


101
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

Como seria esperado em uma situação de ca- “Já a angústia, era gerada pelo fato que a empresa se-
tástrofe, as emoções associadas ao medo foram as ria atingida e ela precisava fazer algo. “Tentei chegar
mais fortemente evidenciadas (exemplos no Qua- até a Alameda [...], não tinha por onde passar. Voltei
dro 1). É interessante ressaltar o sentimento de cul- para casa com um nó na garganta, muita vontade de
pa narrado pela pesquisadora por diversas vezes chorar, um sentimento sem explicação”. (E4)
durante o estudo. Posteriormente, o encontro com “[...] Comecei a receber muitas mensagens no celular
a teoria permitiu compreender, em diversas classifi- e por e-mail das pessoas querendo saber como
cações das emoções (ver, por exemplo, DAMÁSIO, estávamos e se precisávamos de ajuda. Recebi e-mails
1996), o significado da emoção culpa. Trata-se de do estado todo, das outras unidades da empresa, todos
uma emoção secundária, derivada da combinação com um espírito de solidariedade impressionante.
entre duas emoções primárias: medo e alegria. A Todos querendo notícias e oferecendo ajuda. A
relevância dessas emoções contraditórias como solidariedade emocionava, mas não havia no momento
propulsoras de aprendizagem será retomada nos o que fazer, apenas esperar”. (DC)
últimos quadros.
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista-
Quadro 2: Categoria afetiva da motivação para a dos (E1, E2, E3 etc.)
aprendizagem: sofrimento e suas emoções secundárias
Dentre as emoções associadas ao sofrimento,
SOFRIMENTO E EMOÇÕES SUAS SECUNDÁ-
aquela que emergiu com mais ênfase nos discursos
RIAS (tristeza, angústia, solidariedade) da pesquisadora e dos participantes não foi a tris-
teza, como talvez fosse o esperado, mas sim o sen-
“[...] Eu perdi a minha casa. Toda aquela chuva já vi-
timento de solidariedade (exemplos no Quadro 2).
nha acontecendo, daí chegou aquele sábado e parece
Essa interpretação acerca da capacidade dos indi-
que aumentou tudo, caiu toda água que tinha pra caí
víduos de transformarem emoções “negativas” em
do céu de uma vez só. Começou desabando as coisas
em volta daí caiu o muro da minha casa e ficamos, “positivas” já aponta para o surgimento dos pares
assim, praticamente trancados, tivemos, eu e o meu opositivos dependentes construídos a seguir.
menino, sair trepando pelo barro que tomo conta da
minha área. [...] Estava feio, tudo caindo, todo mundo Quadro 3: Categoria afetiva da motivação para
sofrendo, foi triste”. (E10) a aprendizagem: tristeza-alegria: emoções contra-
“Não gosto nem de lembrar, foi muito triste, vê aquilo ditórias
tudo [...] Lá em casa não pegou água, mas faltou
pouco, na vizinhança toda pegou, ficou tudo lama, TRISTEZA – ALEGRIA: O SURGIMENTO DE
uma nojeira só tudo caindo sem ter pra onde ir [...] EMOÇÕES CONTRADITÓRIAS
A Maria sofreu muito ela perdeu a casa, a casa dela “O que mais me marcou com tudo isso o que aconteceu
ficou pendurada e ela não queria sair. Foi bem ruim, o foi a solidariedade. Por parte de todo o povo, que
Edson levou ela lá pra casa e ela ficou lá com a gente. mesmo sem conhecer a cidade e muito menos as
Eu nunca tinha visto nada daquilo e olha, eu vim do pessoas atingidas, muito contribuíram com donativos,
interior, mas bem do interior de pobreza, dormi em dinheiro, orações e trabalho voluntário. Muitos
cima de papelão e eu nunca tinha visto coisa como voluntários foram pessoas atingidas que, sabendo das
essa, foi muito ruim. Não tem ser humano que aguen- pessoas em situação pior, preferiram neste momento
ta, pensei em ir embora da cidade, mas não dá, tem o difícil ajudar o próximo. [...] A ajuda não foi só
bar do meu marido”. (E1) com donativos, é incrível como neste momento nos
“As intrigas passadas acabaram, passaram. O fato do tornamos mais unidos. Foi uma alegria no meio da
sofrimento fez as pessoas sentirem na pele o que a tristeza”. (E4)
outra estava passando, este sofrimento fez com que fi- “[...] coisa estava feia [...] desmoronamentos de casas,
cássemos mais unidos e compreendesse o outro”. (E5) quedas de barreiras, árvores, postes, então o rádio a
“Como eu não tenho nenhum bem, não tive nada a pilhas nos trouxe notícias reais do que se passava em
perder, mas fiquei muito triste com tudo que eu vi, nossa volta. [...] Estava sendo muito triste ouvir as
com as perdas materiais das outras pessoas, tudo con- notícias no rádio, [...] pessoas isoladas, sem poder ter
quistado indo por água abaixo, isso é muito triste”. ou dar notícias para acalmar os corações de outros,
(E8) sem água, comida, e vendo pessoas morrer, tudo isso
causado por imensos blocos de terra que começaram a
cair. [...] Mas, o que nos alegra é que esses são poucos
e a maioria está lutando, formando uma enorme
corrente de solidariedade”. (E7)

102 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

“Foram passando os dias e tudo de horrível acontecia, “Deu para perceber como uma situação dessas,
eram helicópteros sobrevoando, eram lares se de ajuda de todos, fez com que muitas briguinhas
desmoronando, eram militares por toda a parte internas melhorassem, rapidamente. De inimigas a
tentando socorrer pessoas, os fatos me faziam lembrar grandes amigas! Foi surpreendente”. (E5).
de filmes, filmes tristes, justamente os que eu evitava “[...] Minha vontade era de ajudar todos! [...] por
assistir, mesmo sendo de ficção. Naqueles dias não mais cansativo que tenha sido, acho que ficamos
tinha como evitar, estava tudo diante dos meus olhos. (nossa equipe) mais unidos do que já éramos. Todos
Eu estava triste pelo que via, mas feliz em saber que ajudando, todos se importando com cada detalhe! [...]
as pessoas que eu tanto gostava estavam bem de Sempre tive essa imagem da equipe quando ainda
saúde[...]”. (E8) estava de fora e passei a me sentir muito mais “da
“O sentimento de perda era muito grande, mas a casa” depois disso. [...] [...] Sinto-me orgulhosa de
esperança que norteava o trabalho de toda a equipe foi fazer parte deste time!”. (E2)
gratificante. [...] Acredito que além da triste lembrança, “As pessoas ficam mais solidárias, tinha colegas que
nos restou um sentimento de união, confiança e também haviam sido prejudicados diretamente com a chuva,
alegria, por saber que juntos conseguimos enfrentar então tínhamos que dar força, de alguma forma, para
esta grande tragédia”. (DC) verem que tudo se resolveria. Senti que ficamos mais
unidos, não que não éramos, mas foi um acréscimo
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista- para a nossa amizade”. (E8)
dos (E1, E2, E3 etc.)
“Eu me lembro que tinha algumas desavenças entre
uns e outros e tudo passou, tudo isso criou uma união.
As emoções primárias aparentemente contradi- Foi bem forte e causou uma mudança porque durou
tórias foram aproximadas nos discursos dos sujei- de verdade fez com que todos nós ficássemos muito
tos pela intermediação da solidariedade, tal como unidos.
aparecem principalmente nos fragmentos anterio- “Esses momentos difíceis que passamos juntos
res. A percepção da solidariedade do outro parece foram, de uma certa forma, bom para a empresa. Sem
tornar possível a convivência simultânea de tristeza nenhuma intenção e planejamento aconteceu uma
e alegria diante da mesma situação. mudança na cultura da organização. Nós, gestores,
com essa proximidade com os colaboradores, tivemos
a oportunidade de conhecer um pouco mais os valores,
Quadro 4: Categoria afetiva da motivação para a a qualidade de vida e as crenças de cada um. Ficou
aprendizagem: tristeza como geradora de união mais fácil a relação interpessoal, a administração de
conflitos e a coordenação interna dos trabalhos. “ ( E4).
TRISTEZA COMO GERADORA DE UNIÃO: A
Fonte: Diários de campo (DC) e discurso dos entrevista-
CAMINHO DA APRENDIZAGEM NA ORGANI-
dos (E1, E2, E3 etc.)
ZAÇÃO
“Toda esta tragédia serviu para unir ainda mais nossa Os trechos anteriores revelam a relação, que à
equipe de trabalho, a perceber o quanto podemos ser primeira vista poderia ser paradoxal, entre tristeza
úteis com pequenos gestos de solidariedade ou até
e união. Novamente aqui aparece a capacidade
com algumas palavras de conforto”. (E4)
do indivíduo de retirar de uma emoção “negati-
“Ah! Parece assim que a tristeza nos une, ah! Sei lá, va” a energia propulsora para uma ação “positi-
acho que é a tristeza, quando acontece uma coisa mui- va”. O quadro 4 mostra também a consolidação
to ruim a gente olha pro outro de outro jeito. Não sei de relações de permanência e manutenção desses
explicar (++)”. (E10)
sentimentos engendrados a partir da catástrofe.
“Bonito foi ver como todos se ajudaram. [...] Até que Somente a partir de então, podemos suspeitar da
foi bom ter acontecido isso tudo, quer dizer, bom não! ocorrência de aprendizagem na organização.
Pra cidade não! Mas para a união da equipe, ficou todo Essa dialógica entre a emoção e a aprendizagem
mundo muito amigo, da tristeza brotou amizade”. (E12) vai ao encontro do pensamento de Antonacopou-
“Parecia que estava todo mundo mais unido do que já lou e Gabriel (2001), segundo o qual a aprendi-
era, estava todo mundo lá igual, sem diferença, pegan- zagem é um processo profundamente emocional,
do junto e querendo limpar tudo de uma vez assim, dirigido, inibido e guiado por diferentes emoções,
estava todo mundo unido. O neguinho pegava azulejo incluindo medo e esperança, excitamento e deses-
por azulejo e até gastava de tanto esfregar, e ainda fa- pero, curiosidade e ansiedade.
zia sorrindo, era até engraçado. Parece que tudo isso Ao estudar também os fenômenos da apren-
deixou as pessoas mais tolerantes e compreensivas
dizagem em situações de catástrofe, Kayes (2002;
com o colega, com o outro. Foi nítido que a equipe se
2003) entende que, em se tratando de casos ines-
uniu mais ainda. [...]”. (E2)

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


103
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

perados, a explicação para o desenvolvimento da A análise das emoções primárias e secundárias


equipe reside mais na teoria da aprendizagem e engendradas na vivência da pesquisadora, em jun-
seus aspectos afetivos do que nas próprias teo- ção com o discurso dos entrevistados, conduziu às
rias de desenvolvimento de equipes. Enquanto seguintes conclusões: a) a convivência simultânea
o aprimoramento da equipe exige tempo para a entre emoções contraditórias - tristeza-alegria, tris-
concretização, a rápida reação frente a um evento teza- sentimento de solidariedade, tristeza - senti-
inesperado encontra-se no “coração”. Para Kayes mento de união - atuaram como fonte propulsora
(2003), a emoção acentua e acelera o aprendizado de aprendizagem para o indivíduo; b) a permanên-
em resposta às situações adversas de forte impacto. cia na organização, até o final da realização do es-
A relevância dos fatores afetivos associados à tudo (um ano após a catástrofe) do sentimento de
aprendizagem encontrados na situação estudada união que atuou como reorganizador das relações
encontra amparo nos contextos também trágico es- de trabalho e da convivência no grupo representa
tudados por Kayes (2002; 2003), conduzindo esse um indicativo de aprendizagem na organização;
estudo à construção de que eventos impactantes c) a aprendizagem gerada a partir de um evento
exigem aprendizagem instantânea, ou seja, capaci- inesperado e de forte impacto emocional tem ca-
dade de reagir emotivamente ao evento, adaptan- racterísticas distintas e específicas, relacionadas ao
do habilidades preexistentes. O efeito instantâneo, desenvolvimento da capacidade de reação diante
porém duradouro – percebido até o final da rea- de eventos. Aprender a reagir a eventos imprevisí-
lização desse estudo -, produzindo o amadureci- veis exige mobilização de emoções e habilidades
mento das relações dos indivíduos e do grupo com pré-existentes.
a situação da catástrofe, conduz à possibilidade de A autoetnografia como escolha metodológica
que se tenha vivenciado o fenômeno da aprendi- revelou-se cada dia mais adequada e indissociada
zagem na organização. do tema e do contexto. Por outro lado, a pesqui-
sadora correu o risco constante da incapacidade
CONSIDERAÇÕES FINAIS de separação entre essas três esferas, uma vez que
estudava também a sua própria aprendizagem, em
A tragédia de novembro de 2008 produziu im- um contexto no qual estava em imersão, não so-
pactos de diversas ordens na região de Blumenau, mente para fins de pesquisa. Em virtude do mé-
no Vale do Itajaí e em Santa Catarina. Muitas pes- todo, tratava-se de narrar e questionar a própria
soas e organizações estiveram envolvidas com os dinâmica da sobrevivência da vida pessoal e or-
acontecimentos, direta ou indiretamente, como ganizacional e da busca de reestabelecimento do
atingidas ou prestando solidariedade. A submersão estado estável. Viver, narrar e compreender estive-
de uma das pesquisadoras nesse contexto ambien- ram simultaneamente presentes no processo auto-
tal e organizacional conduziu ao estudo e à opção etnográfico. Aprender com a experiência, não só
pelo método autoetnográfico. por meio da participação, mas da auto-observação
A percepção das mudanças comportamentais dos acontecimentos vividos.
ocorridas nos indivíduos e no grupo que compõem No interior da autoetnogafia, a recorrência
uma das unidades da empresa produziu à “hipóte- a outras técnicas, além daquelas biográficas, foi
se” da ocorrência de processos de aprendizagem fundamental para a construção teórica ao final do
organizacional – despertados pelo fenômeno am- estudo. Os indivíduos, o grupo (unidade da em-
biental -, mas cujo foco parecia residir no indiví- presa) estariam também submetidos a processos de
duo. Essa relação entre o campo da aprendizagem aprendizagem? Ou seja, havia o fluxo necessário
organizacional e o campo da aprendizagem em em um circuito de aprendizagem entre indivíduo,
psicologia, subdivide-se em dois enfoques, sinteti- grupo e organização? Essa dúvida e tentativa de
zados por Antonello e Godoy (2007): a) a AO vista conexão com o campo teórico delimitado – ain-
como uma analogia da aprendizagem individual; e da que a teoria tenha sido desenvolvida indutiva-
a aprendizagem individual como base para a AO. mente – criou a necessidade do uso de técnicas
Trabalhando na interface entre os dois enfoques de investigação também do discurso do outro. Essa
da perspectiva psicológica, o material empírico foi versatilidade de técnicas – além daquelas biográfi-
analisado e interpretado com base nas categorias cas – é discutida pelos autores da autoetnografia. A
e fatores da motivação para a aprendizagem orga- escuta do discurso de toda equipe, entrevistada em
nizacional desenvolvidas por Godoi; Freitas e Car- profundidade, permitiu ressignificar a percepção e
valho (2008). Dentre as três categorias desenvol- a narrativa pessoal da autoetnógrafa e imprimiu
vidas por essas autoras – afetiva, cognitiva e social mais segurança à categorização.
– aquela que emergiu de forma mais significativa As principais limitações do estudo dizem res-
nesse estudo foi a categoria afetiva. peito à insegurança metodológica, não apenas em

104 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


Klara Friederike Kock, Christiane Kleinübing Godoi, Adriana Marques Rossetto

termos de domínio processual do método e do In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-


estilo de narrativa, mas de suportar a própria es- -GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 33,
sência do método: o pesquisador com objeto da São Paulo, 2009. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2009.
pesquisa. Reviver a catástrofe, compreender e in-
terpretar a própria vida tornou-se motivo constante CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e
de angústia e sofrimento. O reestabelecimento do literatura do século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
equilíbrio pessoal e organizacional é hoje refletido
como um processo árduo de transformação e cres- CRAPANZANO, V. Diálogo. Anuário Antropológico/88.
cimento pessoal para a pesquisadora. Brasília: Editora UNB, 1991.
A partir dessa pesquisa surgiram diversas pos-
sibilidades de continuidade de investigação, prin- DE GEUS, A. A empresa viva. Rio de Janeiro: Campus,
cipalmente no que tange à utilização do método 1998.
autoetnográfico em situações de catástrofe, mais
especificamente, ao estudo do impacto desse tipo DAMÁSIO, A. O erro de descartes. São Paulo: Compa-
de evento nas organizações. Trata-se de eventos nhia das Letras, 1996.
que revelam a fragilidade e a incapacidade huma-
na de lidar com o futuro, com a imprevisibilida- ELLIS, C., BOCHNER, A. P. Autoethnography, Personal
de, com o descontrole. Espera-se que a co-cons- Narrative, Reflexivity: Researcher as Subject. In: DENZIN,
trução do evento, sob a perspectiva das vozes do N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of qualitive research.
pesquisador e dos envolvidos, contribua de para London: Sage Publication, 2000.
a compreensão de outros casos similares e para a
ampliação das possibilidades de utilização da auto- FERTAZ, D. L. S.; CAVEDON, N. R. As culturas organiza-
etnografia no campo organizacional. cionais de uma loja autogestionada de economia popular
solidária de Porto Alegre. In: ENCONTRO DA ASSOCIA-
ÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
REFERÊNCIAS EM ADMINISTRAÇÃO, 38, Curitiba, 2004. Anais... Rio
de Janeiro, ANPAD, 2004.
ANDION, C.; SERVA, M. A etnografia e os estudos orga-
nizacionais. In: GODOI, C. K.; BANDEIRA-DE-MELLO, GODOI, C. K. Pulsão e cognição: categorias da motivação
R.; SILVA, A. B. Pesquisa qualitativa em estudos or- na aprendizagem. Revista de Ciências Humanas, v. 32,
ganizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São n. 1, jan. 2003.
Paulo: Saraiva, 2006.
GODOI, C. K.; FREITAS, S. M. F.; CARVALHO, T. B. Mo-
ANTONACOPOULOU, E.; GABRIEL, Y. Emotion, learning tivação na Aprendizagem Organizacional: Construindo
and organizational change: towards an integration of as Categorias Afetiva, Cognitiva e Social. In: ENCONTRO
psychoanalytic and other perspectives. Jounal of Organi- DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO
zational Change Management, v.14, n. 5, 2001. E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, 32, Rio de Janeiro,
2008. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2008.
ANTONELLO, C. S.; GODOY; A .S. A Encruzilhada da
Aprendizagem Organizacional: uma Visão Multiparadig- GODOY, A. S. Estudo de caso qualitativo. In: GODOI,
mática. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL C. K.; BANDEIRA-DE-MELLO, R.; SILVA, A. B. Pesquisa
DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRA- qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas,
ÇÃO, 32, Rio de Janeiro, 2007. Anais... Rio de Janeiro: estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva, 2006.
ANPAD, 2007.
GONDIM, S.; SIQUEIRA, M. Emoções e afetos no tra-
ARGYRIS, C.; SCHÖN, D. Organizational Learning: a balho. In: ZANELLI, J. BORGESANDRADE, J. BASTOS,
Theory of Action Perspective. Reading: Addison Wesley, A. Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. Porto
1978. Alegre: Artmed, 2004.

ATKINSON, P., COFFEY, A., DELAMONT, S., LOFLAND, J., HAGUETTE, T. M. F. Metodologias qualitativas na so-
LOFLAND, L. Handbook of ethnography. London: Sage ciologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
Production Ed., 2007.
KAYES, C. Dilemma at 29,000 feet: an exercise in ethical
CAVEDON, N. R. Isso aqui é uma fábrica de loucos: a decision making based on the 1996 Mt. Everest climbing
saúde mental dos servidores do departamento de crimina- disaster. Journal of Management Education, v. 26, n. 3,
lística do instituto-geral de perícias do Rio Grande do Sul. p. 307-321, jun., 2002.

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012


105
DISCUSSÃO E PRÁTICA DA AUTOETNOGRAFIA: UM ESTUDO SOBRE APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL
EM UMA SITUAÇÃO DE CATÁSTROFE

KAYES, C. Lessons from united flight 93 on 9/11. Orga- WENGER, E. Communities of practice: learning, me-
nizational Dynamics, v. 32, n. 1, p. 80-92, jan. 2003. aning and identity. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998.
KAYES, A. B.; KAYES, C.; KOLB, D. A. Experiential learning
in teams. Simulation & Gaming, v. 36, n3, p. 330-354,
sep. 2005.

LATHAM, G. P. Work Motivation: history, theory, research,


and practice. London: Sage, 2007.

MEDEIROS, I. B. O.; CAVEDON, N. R. FIGUEIREDO, M.


D. Fazendo Arte: aspectos da cultura brasileira presentes
na cultura organizacional do atelier livre da prefeitura
de Porto Alegre. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM
ADMINISTRAÇÃO, 32, Rio de Janeiro, 2008. Anais... Rio
de Janeiro: ANPAD, 2008.

MOTTA, P. R.; PIMENTA, R.; TAVARES, E. Novas idéias


em administração 2. São Paulo: FGV Editora, 2008.

PEREIRA, M. T. F.; DAVEL, E.; CAVEDON, N. R. Cultura


Organizacional e Corporeidade: etnografia do ritual da
cerveja após o trabalho. In: ENCONTRO DA ASSOCIA-
ÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM ADMINISTRAÇÃO, 31, Rio de Janeiro, 2007. Anais...
Rio de Janeiro: ANPAD, 2007.

RABINOW, P. Discourse and power: On the limits of


ethnographic texts. Dialectical Antropology, v. 10, n. 1,
p. 1-13, 1985.

ROCK, P. Symbolic Interactionism and Ethnography. In:


ATKINSON, P., COFFEY,A., DELAMONT, S., LOFLAND, J.,
LOFLAND, L. Handbook of ethnography. London: Sage
Production Ed., 2007.

ROSSIN, A. C. Prevenção a acidentes ambientais. São


Paulo: CETESB, 1986.

SILVA, A.B. Como os gerentes aprendem? São Paulo:


Saraiva, 2009.

TALEB, N. N. A lógica do cisne negro. São Paulo: Best


Seller, 2008.

TEDLOCK, B. Keeping the breath nearby. Antropology


and Humanism Quarterly, v. 11, p. 92-94, 1986.

TEDLOCK, B. From participant observation to the ob-


servation of participation: The emergence of narrative
ethnography. Journal of Antropological Research, v. 47,
n. 1, p.67-94, 1991.

TEDLOCK, B. Ethnography and ethnographic representa-


tion. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of
qualitive research. London: Sage Publication, 2000.

106 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 5 - N. 1 - JAN./JUN. - 2012

Você também pode gostar