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CENTRICIDADE E OUTROS PROCEDIMENTOS NA FANTASIA DE

WELLINGTON GOMES
Pedro Kröger
No desenvolvimento da música deste século inúmeros materiais e procedimentos foram criados, abandonados e
recriados para dar coerência à música e exprimir o intuito do compositor. Mas com tal pluralidade de meios,
como os compositores os conectavam em uma mesma composição? Muitos utilizaram-se das formas "clássicas",
como o próprio Schönberg; outros como Stockhaussen e Boulez usaram seu conceito pessoal de forma. Uma das
tentativas foi a de aliar o relacionamento tonal entre as partes da composição com os novos acordes e
sonoridades surgidas então. À esse processo de uso de centros "tonais" em materiais não-tonais (e até mesmo
atonais) chama-se centricidade.
Como esclarece Joseph Straus: "Porque uma peça não é tonal, contudo, isso não significa que não podem haver
centros de notas ou classes de notas"1. Assim, os centros de uma peça podem estar definidos por notas isoladas
ou mesmo grupo de notas. Até a ausência de uma nota pode referenciá-la como centro2.
A Fantasia para violoncelo e orquestra de câmara de Wellington Gomes foi escrita em 19923 por ocasião do
recital de formatura do violoncelista Cristian Knop e tornou-se uma de suas músicas mais conhecidas e tocadas
no Brasil4. Nela encontramos um uso bastante inteligente da centricidade, que aliada à outros procedimentos
composicionais dão à essa música uma coerência e inteligibilidade impecáveis.
A peça encontra-se estruturada em um único movimento com três seções distintas que refletem, em relação ao
andamento, a estrutura de um concerto clássico: rápido, lento, rápido. Uma cadência liga a primeira e a segunda
seção.

Figura 1
Note que as duas últimas seções apresentam a metade da duração da primeira5.
O material de altura está definido, sobretudo, por cinco elementos básicos:
um motivo melódico, representado doravante como α:

acordes formados pela superposição de quintas, representado como β, em qualquer inversão:

escalas de tons-inteiros, representado como δ, tanto verticalmente quanto horizontalmente:

1
Joseph Straus. Introduction to Post-tonal Theory. 1990
2 O melhor exemplo disso provavelmente é encontrado em Schönberg, nas Oito Melodias para Canto e Piano op. 6, ou na Gigue, da
Suite para Piano. Ele chama isso de tonalidade suspensa (schwebende Tonalität).
3 Ela foi originalmente escrita para violoncelo e cordas.
4 Existe uma gravação em CD (Paulo Costa Lima e Wellington Gomes. Outros Ritmos) e edição da partitura (Wellington Gomes.
Fantasia).
5 É importante frisar que essas durações são da interpretação na gravação em disco, que na realidade elas são: 3" 54', 1", 2" 12', e 2".
Essa aproximação foi feita para uma melhor compreensão das proporções, haja visto que elas podem variar para cada execução. Uma
contagem de compassos não seria apropriada aqui já que inúmeros andamentos e tipos de compassos (mesmo dentro de uma seção)
são empregados na música, além da cadência não conter compassos.
clusters brancos e pretos:

tríades ou tétrades diminutas:

Esse material é usado na música de maneiras diversas, uma delas, de suma importância para a articulação formal,
é a centricidade. As diversas seções e subseções tem centros próprios que, semelhantemente à música tonal,
criam sensações de tensão ou relaxamento conduzindo uma seção à outra.
Outro aspecto interessante na Fantasia é aquilo que chamamos de complexidade pela simplicidade, ou seja, um
resultado musicalmente complexo obtido pela junção de elementos relativamente simples. Isso ocorre, por
exemplo, na segunda seção, que praticamente só tem como acompanhamento um acorde de dó menor com nona
e décima terceira, justaposto à uma melodia no violoncelo que utiliza, porém, outras classes de notas. A junção
desses dois elementos, simples se tomados em separados, gera um resultado bem mais complexo e interessante.
Como vimos a primeira seção é a maior; e é também a mais complexa. Ela pode ser dividida em cinco
subseções, como visto na Tabela 1:

Subseções Compassos Tamanho6 Duração7


A 1-16 16 70s
B 17-31 4 40s
C 32-65 33 60s
D 66-82 24 30s
E 83-103 20 40s
Tabela 1
A subseção a trata-se de uma introdução sem o solista, onde são apresentados os principais materiais usados na
música. Ela inicia com dois acordes formados pela superposição de quintas, β, com suas "fundamentais"
separadas pela distância de um trítono. Em seguida temos o motivo α no grave seguido por δ. A figura abaixo
mostra uma redução analítica dos quatro primeiros compassos que termina com um acorde formado pela
superposição de tons-inteiros, δ. Outro procedimento digno de nota nesses compassos é o prolongamento de
notas individuais de uma sucessão de acordes (marcado com ligaduras na Figura 2), gerando uma textura mais
suave.

6 Tamanho em compassos.
7 Ver nota de rodapé nº 5.
Figura 2
O restante da introdução contém texturalmente dois elementos: o motivo α (em seqüência de terças menores) no
agudo e um acompanhamento de acordes por quintas (em seqüência de semitons).

Figura 3
A subseção b consiste de um acompanhamento formado por clusters brancos8 e um ostinato, justaposto à
melodia no violoncelo. A redução analítica de toda a subseção é mostrada na Figura 4 abaixo. Note que
enquanto o centro do acompanhamento é sol, o centro da melodia é mi, e ambas espelham o mesmo tipo de
acorde9.

8 Para maiores explicações ver Jamary Oliveira. Black Keys vs. White Keys: a Villa-Lobos Device, in 19, ou Pedro Kröger.
“Burocracia, Uma Visão Geral”, in A Müsica de Jamary Oliveira: Estudos Analíticos, 1994.
9 Aqui é importante ressaltar que, semelhantemente ao tonalismo, nem sempre é possível estabelecer com absoluta clareza o centro de
um trecho. Muitas vezes o “centro” pode ser, na verdade, um conjunto de notas que tem maior destaque sobre outros (conjuntos) na
composição, mas suas notas não detêm entre si nenhuma primazia. Assim, se quiséssemos ser completos, deveríamos considerar o
conjunto de notas conhecido como acorde maior-menor, muito usado por B. Bartók, como o centro desta subseção.

No primeiro caso teríamos mi, sol, sol# (láb); no segundo si, sol, sib (la#), si, re. Contudo, Preferimos considerar aqui somente mi e sol
como centros somente para maior clareza analítica e porque o uso de classes de conjuntos como centros não é tão usual nesta
composição quanto o de classe de notas.
Figura 4
Podemos constatar que essa seção utiliza como principal característica melódica o deselvolvimento temático dos
materiais, principalmente de α.

Figura 5
Esta seção apresenta aspectos interessantes em relação aos centros. Os dois tipos mais frequentes são os centros
relacionados pelo intervalo de quarta (ou quinta)10, e os que geram uma figura de bordadura, como pode ser visto
na Figura 6.

Figura 6
Outros relacionamentos cêntricos guardam empatia com motivos melódicos, como os centros que esboçam uma
tétrade diminuta no início da seção (subseção a) e os que formam uma variante do motivo α no meio e ao final
da seção (subseção c e e).

A segunda seção (c. 105-134) é a mais simples da música, estruturada em forma contínua11. Como já foi dito, ela
contém fundamentalmente um acompanhamento que consiste de um pedal sobre a nota dó, uma figura de
bordadura em terças e harmônicos em quintas. Sobreposto à isso, o solista tem uma expressiva melodia que
remonta ao motivo α por contração (Figura 7).

10 Note que há alguns centros que formam um acorde perfeito, onde as relações de quinta estão inseridas.
11 Que Green chama de One-Part form. Suas características são: "Single movement (complete, progressive, or interrupted); no divisive
aspect in design either through strongly conclusive cadences or striking contrasts. Double harmonic movement providing the result is a
single period". Douglass Green. Form In Tonal Music, 1979
Figura 7
Os centros dessa seção estão sobre dó para o acompanhamento e fá para o solo, que contêm centros secundários
sobre ré e lá, formando uma relação de tríade, como na primeira seção.

Figura 8
Como já foi visto, a seção 3 tem o mesmo tamanho que a anterior. Ela encontra-se estruturada em três partes
(Tabela 2).
Subseções Compassos Tamanho12 Duração13
a 135-194 59 60s
b 195-229 34 40s
c 230-250 20 20s
Tabela 2
A subseção a apresenta uma nova instância do motivo α, porém usando a mesma contração usada na seção 2.

Figura 9
Nas duas subseções seguintes temos reminiscências de elementos de outras seções. Na subseção b a melodia da
seção 2 reaparece, mas com andamento modificado, mais adequado ao movimento rítmico desta seção. Na
subseção c elementos da cadência entre a seção 1 e 2 aparece, conduzindo ao final.
Essa seção utiliza como acompanhamento basicamente acordes aumentados reiterados (oriundos da escala de
tons-inteiros, δ).

As relações cêntricas desta seção são praticamente as mesmas que as das seções precedentes. Assim como o
material de altura de outras seções é aqui reapresentado, relações entre centros de outras seções aqui também se
encontram. O violoncelo solo tem como centro praticamente as notas dó, fá, sol, e dó, como, em analogia ao
tonalismo, uma cadência I, IV, V, I. O acompanhamento apresenta, em larga escala, a mesma relação de
bordadura da primeira seção. Uma cadência (plagal) de acordes por quintas para acordes por terças conclui a
peça.

Figura 10

12 Tamanho em compassos.
13 Ver nota de rodapé nº 5.
Como foi visto, dentre os diversos fatores que podem engendrar unidade à uma composição musical encontra-se
a centricidade. Indispensável no período tonal, ela é usada na música não-tonal para garantir maior coerência e
coesão entre as diversas partes de uma música.
As três seções da música, apesar de distintas, guardam um relacionamento intrínseco entre si, acentuado na
última seção, que relembra eventos ocorridos nas seções anteriores sem perder porém sua característica própria.
Notadamente na Fantasia para violoncelo e conjunto de câmara, de Wellington Gomes, encontramos um uso
muito interessante das relações cêntricas que mantêm uma estreita relação com o material de altura da
composição.
Bibliografia
Forte, Allen. The Structures of Atonal Music. New Haven: Yale University Press, 1973.
Gomes, Wellington. Fantasia para violoncelo e conjunto de câmara. Salvador: Edições Contexo, sd.
Green, Douglass M. Form in Tonal Music: An Introduction to Analysis. 2a. ed. New York: Holt, Rinehart and
Winston, 1979.
Kostka, Stefan e Paine, Dorothy. Tonal Harmony with an Introduction to Twentieth-Century Music. 2a. ed. New
York: Alfred A Knopf, 1989.
Kostka, Stefan. Materials and Techniques of Twentieth-Century Music. Austin. Texas: [s.e], 1987.
Kröger, Pedro. “Burocracia: uma visão geral”. In A Música de Jamary Oliveira: estudos analíticos. Porto
Alegre: Setor gráfico do CG-Música/UFRGS, 1994.
Leibowitz, René. Schönberg. Traduzido por Willy Corrêa de Oliveira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.
Lima, Paulo Costa, e Wellington Gomes. Outros Ritmos. Prêmio Copene de Cultura e Arte, sd. Gravação em
CD.
Oliveira, Jamary. "Introdução e Círculo Místico dos Adolescentes da Sagração da Primavera, Segunda Parte." In
Art, 005 (abr./jun., 1982): 13-32.
Oliveira, Jamary. “Black Keys vs. White Keys: a Villa-Lobos Device”. In Latin American Music Review. III.
Perle, George. Serial Composition and Atonality. 5a. ed. Berkeley: University of California Press, 1977.
Persichetti, Vincent. Twentietieth-Centrury Harmony. New York: W.W. Norton, 1961.
Rahn, John. Basic Atonal Theory. New York: Longman, 1980.
Straus, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory. Englewood CIiffs, New Jersey: Prentice Hall, 1990.
Resumo do trabalho
No desenvolvimento da música deste século inúmeros materiais e procedimentos foram criados, abandonados, e
recriados para dar coerência à música e exprimir o intuito do compositor. Um desses procedimentos, de uso de
centros "tonais" em materiais não-tonais (e até mesmo atonais), chama-se centricidade.
Na Fantasia para violoncelo e orquestra de câmara de Wellington Gomes encontramos um uso bastante
inteligente da centricidade ⎯ que mantêm uma estreita relação com o material de altura da composição ⎯ e que,
aliada à outros procedimentos composicionais, tornam essa peça com uma coerência e inteligibilidade
impecáveis.
Este artigo é o primeiro de série voltado para o uso da centricidade na música de compositores brasileiros, cujo
resultado fará parte da nossa dissertação de mestrado.
Biografia resumida
Pedro Kröger nasceu em Belém, Pará, a 17 de Setembro de 1974. Formado em Composição e Regência pela
Universidade Federal da Bahia, está atualmente cursando disciplinas no mestrado em Música da mesma
instituição como aluno especial. Obteve alguns prêmios em composição como: 3o lugar no 1º Prêmio Gerra-
Peixe de Composição (1997); 2o lugar e Prêmio de Público no VII Concurso Nacional de Composição (1997),
com a peça Introdução e Allegro; 1o lugar no II Concurso Nacional de Composição Cidade do Rio de Janeiro
(1996), com a peça Divertimento; 1o lugar no VI Concurso Nacional de Composição (1994), com a peça
Liberdade Assintótica.; 3o lugar na XII Apresentação dos Compositores da Bahia (1994), com a peça Cromos.
Um artigo seu, Burocracia, de Jamary Oliveira: Uma Visão Geral foi publicado como parte do livro A Música
de Jamary Oliveira: Estudos Analíticos, editado pelo autor (Pedro Kröger).
Suas peças foram tocadas em diversos lugares do Brasil (Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Brasília),
América do Sul (Colômbia), e Europa (Viena, Áustria), onde uma música sua, Amore et dolore para clarinete
solo, foi estreada por Joel Barbosa no Elektronischer Früling ’96: Klangprojektioskonzert an der Alten
Schmiede.
Atualmente é Professor Substituto do Departamento de Literatura e Estruturação Musical da Escola de Música
da Universidade Federal da Bahia desde março/1998
Participou como bolsista de alguns projetos de pesquisa como: Informática em Música: Procedimentos e
Funções Básicas, de Jamary Oliveira; O Acervo Etnomusicólogo da Escola de Musica da UFBA, de Angela
Lüning; Investigando o Desenvolvimento Musical e Instrumental Através da Prática de se Tocar de Ouvido; de
Joel Barbosa.
Participou de diversos cursos, como X Seminários Internacionais de Música (1992), XI Seminários
Internacionais de Música (1993), I Semana de Teoria Musical, XXV Festival de Inverno de Campos do Jordão
(1994), XIII Seminários Internacionais de Música (1995), Curso de música eletroacústica (ênfase no programa
CSound) (1995), com Russell Pinkston, IV Festival de Artes de ITU (1996), V Festival de Artes de ITU (1997).
Seu nome consta no Musicon, Guia da Música Contemporânea Brasileira, e no Dicionário da Música
Brasileira, elaborado pela Música Objetiva, revista na Internet:
http://empresa.com/pers1/musobj/mop.htm

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