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A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE PARA A ANÁLISE DO DISCURSO

Maria de Fátima Assis

“A psicanálise verdadeira tem seu fundamento na relação do homem com a fala.”


(Lacan, 2003, p.173)

O tema proposto será desenvolvido a partir dos conceitos de sujeito em


Psicanálise e de inconsciente entendido como estruturado enquanto linguagem. Iremos,
portanto, trabalhar a idéia de sujeito do inconsciente para que possamos compreender os
caminhos pelos quais este sujeito do inconsciente atravessa o sujeito do discurso –
relação que interessa esclarecer para que possamos trabalhar as contribuições da
Psicanálise para a Análise do Discurso.
Partiremos dos trabalhos de Lacan (1992), (2002), (2003), Lajonquière (1992)
para desenvolver o tema da teoria da subjetividade , isto é, de como se constitui o
sujeito enquanto sujeito do desejo inconsciente. Para articular a Psicanálise com a
Análise do Discurso seguiremos as idéias de Plon ( 2005)Leite (1994) e Teixeira
(2005).
O que significa trabalhar com a hipótese de que há inconsciente?
Em termos freudianos, o inconsciente indica o que escapa ao saber da consciência,
isto é, o eu encontra-se dividido entre uma consciência perceptiva e efêmera e o
inconsciente, vasto campo dos conteúdos recalcados do campo atual da consciência.Em
termos lacanianos, o inconsciente estrutura-se enquanto linguagem, instaurada pelo
Outro, a ordem simbólica.
Como se dá a constituição do sujeito, processo que implica a existência do
inconsciente para se estruturar?
A gênese da subjetividade humana, nos ensina Lacan (1992) encontra-se do
estádio do espelho, momento no interior do qual há, inicialmente um organismo
fragmentado. Não há o UM, tampouco há um OUTRO.
Para satisfazer as necessidades deste organismo biológico, há a implicação de um
outro, a mãe, que ao nomear o choro do bebê (“você tem fome”) interpreta este
acontecimento, ratificando o filho, a partir de sua subjetividade, de seu desejo.Com este
gesto inaugural, a mãe grampeia a significação, transformando em demanda de alimento
a tensão sinalizada pelo choro do bebê. Ao encontrar a satisfação da necessidade
primordial, o par mãe-bebê se torna o protótipo da completude , experiência mítica que
deixa um traço mnêmico, pedra fundamental de todo aparelho psíquico.Quando a
necessidade reaparece, esta criança grita outra vez, porém, “agora” o grito já é uma
demanda de alimento. A mãe já não responde da mesma forma: demora, exagera,
oferece menos, de modo que o que se oferece, não é bem aquilo que lhe demanda –
entre um e outro oferecimento , cai um resto, uma diferença que deixa o sujeito para
sempre com uma falta.Institui-se a partir de então uma subjetividade desejante, em
situação de falta, em relação a um objeto que perdeu-se na sua origem – o objeto “a”,
impossível de ser reencontrado, mas que por sua manifestação inaugural lança a criança
no seio de uma trama desejante que a constitui como sujeito da falta, sujeito
barrado.Este resto, a falta, estrutura o inconsciente enquanto linguagem , pois o “resto”
se inscreve como significante, que é um vestígio, algo da ordem do perceptível que
inscreve a falta enquanto presença.
Os significantes registram o inconsciente enquanto linguagem , inscrevendo a
falta. Como nos mostra Lacan, Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um
certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se
algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas.(Lacan,
2003,p.11)

Voltando ao par mãe-bebê, uma vez inscrito o significante como registro deste
resto, vejamos como o sujeito vai se debater ao longo da vida para reencontrar o objeto
de sua satisfação primordial. Tal busca, impossível de ser atingida na sua plenitude é
responsável pela constituição do sujeito no interior de duas estruturas fundantes, o
estádio do espelho e o complexo de édipo.
No estádio do espelho, nos mostra Lajonquière (1992 ), a subjetividade está em
germe no desejo do Outro, lugar da linguagem , do simbólico, suportado inicialmente
pelo pulsionar do desejo materno.É este último que, ao transformar a necessidade em
demanda, unifica o organismo despedaçado , recortando-o como um corpo erotizado.O
bebê vê sua imagem porque o olhar da mãe dá sustentação ao acontecimento. O
reconhecimento emana do Outro, que suporta uma função, a função do espelho : você é
isso. A ordem do discurso faz o recorte no real, provendo o sujeito de um nome, um eu
que salva-o da dispersão, representando-o. No entanto, este eu especular refere-se ao
reconhecimento do outro, olhar da mãe, que inscreve o sujeito como objeto do desejo do
outro, a criança identifica-se como desejo da mãe para fazer-se Um.
Portanto, a estrutura que Lacan chama de estádio do espelho exerce a função de
corte, que coloca um interjogo entre o real, o simbólico e o imaginário.
O real é aquilo que não tem fissuras, que não está marcado e, portanto é pura
indiferenciação, impossível de ser apreendido. O registro imaginário, fruto do estádio
do espelho, é o efeito da operação de recorte sobre o real, que objetifica o real moldando
um eu , efeito da ordem simbólica sobre a indiferenciação biológica própria do real
orgânico. A ordem simbólica, por sua vez é aquela que , graças a seus cortantes
elementos constitutivos (os significantes), fura, recorta o real, possibilitando que este
possa ser apreendido por partes, isto é, conhecido.
Na tentativa de apreender o real, o sujeito fica condenado a falar, na busca por
obturara a fenda que desgarra seu ser.Para inscrever a ordem simbólica em si o sujeito
deve ser atravessado pela trama edípica que o encaminha para a descoberta de que a
falta é algo que não se pode preencher, ou seja, a experiência da castração, no seio da
trama edípica , é o que vai regular o desejo humano, colocando o falo (aquilo que
designa a falta ) na sua dimensão simbólica.
Havendo sido afetado pelas experiências do estádio do espelho e do complexo
edípico, o sujeito constitui-se como sujeito da falta, radicalmente imcompleto e jogado
no mundo das coisas na esperança de (re)encontrar a coisa : resta-lhe falar a falta;ao não
reencontrar a coisa , lança-se a criá-la. Sua criação é uma prática social de natureza
discursiva.
O inconsciente humano é efeito de linguagem, estrutura-se como linguagem.Dizer
isto é introduzir a função paterna e conseqüentemente a castração no campo dos estudos
da linguagem.O sujeito que fala é o sujeito do inconsciente. Para Leite (1994), a
abordagem psicanalítica da linguagem introduz a ordem do desejo, em dissonância com
um certo discurso científico que só escuta na linguagem as transmissões do princípio de
realidade.
O sujeito tem a pretensão de vincular-se apenas a uma consciência racional, mas
se encontra afetado pelo inconsciente. Ao falar, ocorre a incidência do não senso no
campo do sentido (lapsos, atos-falhos, chistes e equívocos). Assim não há
intencionalidade no discurso, mas condições de outros sentidos.
A existência de um inconsciente introduz, para Plon (2005) “uma política que
leve verdadeiramente em conta aquilo que podemos chamar de incoerência inevitável,
os falhamentos da subjetividade”.(Plon, p.41)
Para Nina Leite (1994) há em Pêcheux uma linha crescente de referência à
Psicanálise, uma presentificação, cada vez maior na categoria do Outro no interior da
teoria.O Outro é em primeiro lugar, a mãe, o objeto perdido devido à proibição do
incesto, mas constitui sobretudo o lugar onde os significantes já estão, antes de todo
sujeito, sendo daí que ele recebe sua determinação maior.Para Teixeira, nos momentos
finais da teorização de Pêcheux sobre a contribuição da Psicanálise para a AD, este auto
dá-se conta da impossibilidade de um saber absoluto, da realização simbólica
consumada.Assim, pensar o sujeito do discurso como atravessado pelo sujeito do
inconsciente é pensá-lo como um sujeito discursivo, que embora falado e afetado pela
ideologia, também fala, e ao falar, intervém nos sentidos já dados.
O discurso deixa de ser pensado , apenas como a reprodução de uma fala anterior,
derivada dos aparelhos ideológicos, pois é ao mesmo tempo efeito das filiações sócio-
históricas e um trabalho atravessado pelas determinações inconscientes Caminha-se,
pois, de um sujeito assujeitado, produto das determinações ideológicas que falam em
seu lugar, para um “efeito-sujeito”, que, dada a sua condição desejante é inapreensível,
indeterminado, sempre em produção.

Referência bibliográfica

LAJONQUIÈRE, Leandro de. De Piaget a Freud. A psicopedagogia entre o


conhecimento e o saber. Petrópolis, Vozes, 1992.
LACAN, Jacques. O seminário – livro 17 – O avesso da Psicanálise, 1969-1970.Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
--------------------Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
--------------------Os complexos familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2002.
LEITE, Nina. Psicanálise e análise do discurso : o acontecimento na estrutura. Rio
de Janeiro ; Campo Matêmico, 1994.
PLON,Michel. Análise do discurso (de Michel Pêcheux)vs análise do inconsciente. IN:
FERREIRA, M.C.(org). Michel Pêcheux e a análise do discurso :uma relação de
nunca acabar.São Carlos, Clara Luz, 2005.
TEIXEIRA, Marlene. Análise de Discurso e Psicanálise. Elementos para uma
abordagem do sentido no discurso.Porto Alegre :EDIPUCRS,2005.

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