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Primeiro Gandula

Acho que desde que haja uma partida de futebol, quase sempre haverá pelo
menos um candidato a jogador catando as bolas que saíram, como uma forma de
chamar atenção ou participar do jogo, mesmo que indiretamente. Vejamos essa
descrição de Mário Filho, a propósito dos primeiros treinos do Flamengo, na década
de 10: “Com um pouco o campo estava cheio. De gandulas. A bola ia fora, era uma
correria. Dez, vinte garotos querendo pegar a bola primeiro.”
Oficialmente, porém, a função de gandula só surgiu depois da construção do
Maracanã. Segundo Marcelo Duarte, porque era preciso que alguém fosse buscar as
bolas que caíam no fosso. Impossível dizer qual foi o primeiro a desempenhar essa
função. Mesmo assim, podemos dizer o primeiro “gandula” foi o próprio. Como
assim?
Refiro-me ao meia argentino Bernardo Gandulla, também chamado de Nano.
Começou nas divisões inferiores do Ferrocarril Oeste, jogou também no Boca
Juniors, onde foi campeão em 1940 e 1943. Encerrou a carreira no Atlanta, onde
formou o “ataque boêmio”, com Pedemera. No Vasco da Gama, ficou de 1938 a
1939.
Pois bem, como bem sintetizam Luiz Cesar Saraiva Feijó e Aristides Almeida
Rocha, há duas grandes versões para como surgiu essa história de gandula. A mais
conhecida é desfavorável ao argentino (cf. Marcelo Duarte, Aquino e Luiz Mendes,
apud Claudio Nogueira). Diz que, no Vasco, ele não jogou muito bem umas partidas
e problemas burocráticos o impediram de jogar outras tantas, de modo que ele nunca
chegou a se adaptar ao estilo de jogo vascaíno. Por isso, ele ficava à margem do
campo, limitando-se a devolver as bolas que saíam, uma mania que teria trazido da
Argentina. Foi o suficiente para que os torcedores adversários dissessem que ele só
servia mesmo para apanhar as bolas: pronto, surgia nesse momento o substantivo
comum “gandula”. Que, avisa Ivan Cavalcanti Proença, também serve para chamar
um jogador que, além de reserva, é péssimo, bem como um “bandeirinha
desinteressado e medíocre, que só indica a saída da bola pela lateral”.
Contudo, segundo Hans Henningsen (que Nelson Rodrigues chamava de
“Marinheiro Sueco”), Gandulla era um jogador notável, muito habilidoso, driblador,
excelente cabeceador. Em resumo, um craque, ao contrário do que se costuma dizer
no Brasil: “Não merecia que fosse chamado como um menino que jogava a bola para
o bandeirinha quando havia um lançamento de um lateral. É uma das tantas
mentiras que se contam no futebol brasileiro”.
Nesse sentido, a Placar (Tira-Teima e Dicionário ilustrado), com o apoio de
Aristides Rocha, informa que, muito cordial, ele ia sempre buscar a bola que saía,
mesmo quando a reposição era do time adversário, numa demonstração impecável de
fair-play. Segundo Luiz Feijó, esse gesto de Gandulla era muito aplaudido pela
torcida, com gritos de “viva”. Assim, em homenagem ao dedicado atleta, deu-se o
nome dele aos pegadores de bola que, no Rio Grande do Norte, são conhecidos como
“Linha de Sapo” e, no Rio Grande do Sul, como “Marrecões”.
Fontes:
AQUINO, Rubim Santos Leão de. Futebol, uma paixão nacional. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002. p. 156.
BARROS, Geraldo Monteiro de. Dicionário ilustrado do futebol. São Paulo: Placar,
1980. p. 73.
DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos: esportes. 3ª ed. São Paulo: Panda, 2009. p.
182.
FEIJÓ, Luiz Cesar Saraiva. Futebol falado. Rio de Janeiro: ed. do autor, 2010. p.
144-145.
FILHO, Mário (Rodrigues). O negro no futebol brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 2003. p. 57.
HENNINGSEN, Hans. Os melhores jogadores sul-americanos do século XX. Rio de
Janeiro: ed. do autor, 2002. p. 61.
LIMA, Carlos Alberto de. Novo dicionário de futebol. Rio de Janeiro: ed. do autor,
2006. p. 63.
MÉRCIO, Roberto. A história dos campeonatos cariocas de futebol. Rio de Janeiro:
Studio Alfa, 1985. p. 44-5.
NOGUEIRA, Claudio. Futebol Brasil memória. Rio de Janeiro: Senac, 2006. p. 77.
PENNA, Leonam. Dicionário popular de futebol. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998. p. 116.
PLACAR Tira-Teima, nº 1, nov. 1997, p. 95.
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Futebol e palavra. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981. p.
107-8.
ROCHA, Aristides Almeida. A simbologia animal no esporte. São Paulo: Scortecci,
2000. p. 122-3.

BECKER, Laércio. Do fundo do baú: Pioneirismos do futebol brasileiro. Curitiba:


Editora Campeões do Futebol. 2012, p. 64-65.

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