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A reforma universitária de
Córdoba (1918): um manifesto
por uma universidade
latino-americana
Por José Alves de Freitas Neto
Professor doutor da Unicamp, coordenador de graduação do curso de História
P
ensar e construir uma universidade a partir A título de comparação, nas colônias inglesas
da América Latina era um dos desafios que temos a fundação de Harvard em 1636 e de mais
o movimento estudantil de Córdoba, na Ar- seis instituições de ensino superior até 1764. No
gentina, defendeu em seu Manifesto de 21 de ju- âmbito da formação, os saberes não se distancia-
nho de 1918. A história das instituições europeias vam daqueles apresentados nas universidades
que fincaram raízes em solo americano, ainda du- católicas e também estavam atrelados à religião,
rante o período colonial, é marcada por polêmicas a ponto dos estatutos da Universidade de Yale, de
relacionadas à existência de especificidades em 1745, exigirem na admissão de estudantes o do-
tais instituições, em um lugar diferente de suas mínio de trechos da Bíblia em grego (KARNAL,
origens. A chamada Reforma de Córdoba é con- 2007). Na área colonial da América portuguesa as
siderada um marco na história das universidades universidades eram proibidas e alguns poucos co-
latino-americanas por ser pioneira na construção légios jesuítas funcionavam. Cursos superiores ti-
de um modelo institucional que atribuiu uma iden- veram seu início apenas depois da independência
tidade e um modelo de atuação renovado no en- do Brasil, com a abertura dos cursos de Direito em
sino superior. São Paulo e Olinda, em 1827, e as faculdades de
A presença de universidades no mundo his- Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, em 1832
pano-americano remonta às origens do domínio (PRADO, 1999).
colonial e é um registro das heranças culturais eu- Um longo processo se passou desde as uni-
ropeias no Novo Mundo. A Real Pontifícia Univer- versidades coloniais até a Reforma de Córdoba,
sidade do México e a Universidade de São Marcos no início do século XX, que é o objeto de nossa
em Lima, fundadas em 1551, e a Universidade de análise. A concepção de universidade, o papel
Córdoba, em 1621, são algumas das mais antigas da educação e da instrução, as transformações
instituições de ensino que as Américas conhece- científicas e a mudança das próprias sociedades
ram. Mesmo que o sentido de universidade esteja servem como indícios para se pensar as estreitas
muito distante da forma como as pensamos atual- vinculações entre a formação de uma elite inte-
mente, sua existência revela, ao menos, a preocu- lectual e os processos políticos de cada país.
pação de que saberes e ensinamentos tinham um
lugar próprio e que as principais áreas coloniais A Universidade de Córdoba
espanholas deveriam ter seus núcleos para os co- e seus significados
nhecimentos importantes da época, como teolo- Um processo de reforma universitária com al-
gia, filosofia e normas jurídicas. cance continental, como foi o de Córdoba, exige
das festas dos santos, dos exames universitários, Bernheim, o sistema universitário argentino, às
da profissão das monjas, da recepção das borlas vésperas do movimento de 1918, era composto
de doutor.” (SARMIENTO, 2010: 205-206) por três universidades nacionais (Córdoba, Bue-
nos Aires e La Plata) e duas provinciais (Santa Fe
pudesse ser obtido. As tensões na vida universi- FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultu-
tária, como se observa, são parte da própria lógi- ra y política em los años veinte latinoamericanos.
ca de funcionamento de um espaço de produção Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.
e circulação de conhecimento. KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das
Córdoba, no seu momento mais estruturado origens ao século XXI. S. Paulo: Contexto, 2007;
e politizado, denunciou uma situação e empre- LUNA, Félix. Los conflictos en la Argentina próspera
endeu esforços para mudar. Olhar para 1918 (1890-1937). Buenos Aires: Planeta, 2003.
em busca de lições a serem extraídas é negar a PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina: tramas, te-
própria dinâmica que propuseram seus integran- las e textos. São Paulo/Bauru: Edusp/Edusc, 1999.
tes: é quase um exercício de monumentalização REVISTA PUNTO DE VISTA. Ano XXIII, número 68. Bue-
que enaltece um passado vibrante enquanto se nos Aires: dezembro de 2000.
vivencia um presente pouco desafiador. Ignorar SADER, Emir; GENTILI, Pablo; ABOITES, Hugo. (orgs.)
os eventos de 1918, por outro lado, é perpetuar La reforma universitaria: desafíos y perspectivas
o desconhecimento da história das universidades noventa años después. Buenos Aires: CLACSO,
latino-americanas e seus esforços para adquirir 2008.
um caminho próprio e legítimo. Entre uma e ou- SARMIENTO, Domingo F. Facundo, Ou civilização e bar-
tra postura, há que seguir questionando e proje- bárie. S. Paulo: Cosac Naif, 2010. [1845].
tando uma universidade que esteja conectada a TERÁN, Oscar (org.). Ideas en el siglo: intelectuales y
seu tempo, expresse suas pluralidades e contra- cultura en el siglo XX latinoamericano. Buenos Ai-
dições, nem tema pelo futuro que seus próprios res: Siglo XXI, 1998.
agentes já estejam construindo. TÜNNERMANN BERNHEIM, Carlos. “La reforma uni-
versitária de Córdoba”. In: Educación Superior y
Sociedad. Caracas: Unesco, vol. 9, no.1, 1998. p.
103-127.