Você está na página 1de 10

EU, TEMPO, CIDADE

POEMA EM TRÊS ATOS

De
Pedro Noel

(2010)

Contato com autor: plnnoel@gmail.com

EU

[Fiz do meu não saber desenhar meu desenho, do não saber ver minha pintura, do não saber
sentir – e dizer – minha poesia e meu não saber viver se fez a minha arte.]
E continuei a caminhar naquele sentido, com a sensação de estar afastando-me de meu destino, mas
indo na direção certa.
Entrei num mar de águas profundas e – por falta de caminho – naufraguei... Não era exatamente o que
queria, mas – mesmo assim – por aí continuei...
Pensei que se o mundo é perda e ilusão, deveria acelerar e fomentar isto... Para que tudo – de uma vez
– se acabasse e eu conhecesse a verdade – (que descobri) – inexistente...
Fui e voltei, fui e voltei... Até que decidi nunca mais voltar, fazer de meus passos o caminho que pela
vida encontraria...

Quero a todos com que topar ser inesquecível, mas de ninguém quero lembrar... Vou para esquecer-me
de tudo e nada em mim manter...
Se alimentará uma chama móvel e intocável, fascinante e inalcançável em mim...
E apaixonarei as jovens perdidas, serei disputado pelas mulheres feitas e simplesmente amado pelas
anciãs das casas...
Os homens me verão confuso e simples, mas de aspirações grandiosas e incompreensíveis... Terão
inveja, medo ou idolatria por minha figura fugidia...
Ao fim, serei um deus e não restará mais nada que aproveitar da insensatez dos objetos e idéias da
humanidade, da opacidade do mundo e da inexistência de um lugar melhor depois...
Morrerei, sim, morrerei por falta do que mais viver... E não irei para nenhum lugar, sim serei uma outra
coisa selvagem e silenciosa numa outra viagem por um outro mundo [hoje desconhecido, com ainda
menos sentido].
E não terei mais de escrever poesias...

Cercado de gente e coisas, mas só deserto é o que vejo...


Mas quem é que nunca sentiu-se só deparando-se com a multidão?
Sou e sinto-me diferente – e isto não é vã rebeldia...
Quanta submissão há na comunicação...
Mais ainda na concórdia, quanta força de profunda unidade não geraram as guerras...
[...]
Homens que viram-se únicos e potentes em sua exclusividade, na realidade de serem eles mesmos...
E matar, e sobrepujarem-se como quem faz o melhor a fazer-se...
[...]
Da vitória e da peculiaridade, do asilo e da hermitude, da morte de uns e vida de outros montou-se
sempre o mundo...
[...]

Se eu tivesse algo como um coração, isto que se diz ser o coração, esta metáfora fantástica, diria que
agora nele há um pouco de dor...
Mas não tenho um coração, nada além desta bomba-relógio instalada na anatomia de meu peito...
A verdade fez eu deixar de ter coração...
Ou melhor, foi a falta dela – o que também é uma verdade – que o fez...
Foi o meu cansaço de sonhar coisas lindas, de amar em grandes amores...
Foi a fuga da vida que fundou-se em mim de uma maneira realista...
O sol que não surgirá amanhã será algo guardado na impossibilidade de minha existência...
O que me deixará e eu deixarei, a terra, a lua e a galáxia que também deixarão de ser...
E isso é o que me parece o palpável em todo este jogo, que a única coisa que posso – me acreditando
certo – dizer é que tudo é deixar de ser...

As lembranças que tenho do dia de amanhã...


São toda a força que sustém-me no vazio de sentido, de qualquer sentido...
Os olhares inconsistentes e remotos que pairam em meu vagão de trem Talgo, destino Zaragoza...
Eu não sei...
São eles e não eu...

Sempre este desejo de um outro lugar, sempre esta idéia de um sempre a incomodar...
Penso se realmente haverá o outro lado do mar, o ponto de origem aonde nascerão as ondas que vêm
estourar ao meu olhar...
As fugas de mim, o beco de saída para os labirintos metafísicos que sem passar construo nos domínios
de minha cabeça seca de maresia das coisas passageiras que um dia qualquer amei ou sonhei...
Talvez não existirá...
Minha arquitetura aquática, meu coração em transformação a ser mais uma pedra na praia...
A minha paixão – e nada mais que uma paixão – que evito repetir nos perdidos movimentos de meu
pensamento...
Eu e o lugar nenhum, a folha em branco antes de ser escrita, as vozes de quem nunca foi ouvido e o
esquecimento das frases que em nenhum tempo tiveram interlocutor...
O fim dos meus tempos...
A sensação de que se a morte chegasse nada mudaria, de que nunca entendi a natureza do que é viver
um dia...

Tudo se perdeu ou foi perdido – isto eu escutei de algum poeta afastado no vento marítimo...
E as flores que faleceram sem jamais haverem sido vistas, foram parar em minha alma em forma de pó...
Eu sou um grande cinzeiro lotado de palavras com letras faltando e erros de semântica...
A distância atlântica onde desapareceram as memórias de minha quebrada infância, o motivo de minhas
viagens que foi tragado pelos moinhos da vida ou levado a esmo dentro de garragas naufragadas...
A mensagem de meu espírito que confundiu-se com mitos antigos e desaparecidos e que hoje é a cara
das moedas de minha calça sem bolsos...
E no dia em que eu me der conta de que minha existência passou enquanto eu esperava contemplativo
na estoa, os meus olhos se apagarão e finalmente serei um marinheiro morto...
[Sabendo se existe algo lá fora...]

[...]

Parei para ver o que havia feito de minha vida, naqueles momentos onde se desconhece – ou se sente
desconhecer – todo o significado do que representa - ou significa – algo ter significado...
Então lisonjeei o fato de naquele ponto, naquela altura irreal de minha viagem por sobre esta terra, estar
num bar, no balcão de um bar, escrevendo poesia...
Tornei-me um poeta?
Diz-me o dono do bar que os bares levo em mim...
Oh, sina que não me arrependo...
Mas escrever...? Ter de escrever!?
...
Desconcentrou-me a mulher que rapidamente se pousou ao meud lado para pedir mais rum à sua
mistura...
E sigo tomando a cerveja, agora sem medo de que alguém que me conheça – e desconheça – venha a
saber disto quando me venha ler...
Mas sobre antes, sobre sempre... Tornei-me alguém que escreve, noto haver assumido um pacto
estranho, alimentado pela crueldade, pela impossibilidade das coisas...
Será que em algum tempo é necessário definir a maneira em como se viverá toda a vida por vir?
Sinistramente percebo que em nenhum momento exato, em nenhuma estância – ou instância –
determinada do tempo, escolhi o que noto haver escolhido...
Foi algo gradual com um toque assustador de predestinação...
Minha vida montou-se assim, acredito.
Mas o que significa a minha vida, o que quer dizer, comunicar, transferir este termo, mais que isto, o uso
deste termo?
So-o como um modo de tratar de algo que não sei sobre meu passado, englobando tanta coisa quanto
as coisas que cabem na vida...
É difícil escrever...Não?
E o mais curioso é que o que agora pinto sobre o papel não adianta sem uma bizarra estrutura que tem o
poder de tirar alguma coisa da tinta sobre papel...
Você que me lê, por exemplo, faz parte disto...
E de uma maneira que só você sabe...
Mesmo que minha letra cheia de emoção – agora quando escrevo -, aprumando-se para fazer realmente
letras desde os espasmos confusos da mão, seja anexada a um alfabeto caligráfico determinado e
conhecido – como agora que me lê -, o conteúdo impalpável – até a mim – do que quero compartilhar
será sujeito de um sistema cognitivo que jamais entenderemos e, porfim, algo será extraído daquilo que
agora faço com minha mente – e.ou corpo.
Escrever é querer – a menos a mim – dividir, mostrar ...
Talvez por isso amem tanto os poetas...
E de uma maneira que sempre só pode ser impossível...
Eu, por exemplo, me dei conta de que o tipo de mulher que gosto é exatamente , sem tirar nem pôr, o
tipo de mulher que é incapaz de permanecer comigo...
[Talvez sejam como eu, incapazes de suportar-me...]
E é uma ocasião no mínimo desesperadora quando nos conhecemos disto...
De que os poetas não podem ser amados...
A poesia matou todos os meus amores...
Não posso não ser mais um poeta...

CIDADE
A dor da partida é ver que a vida é uma constante partida, que ela mesmo está partindo...
Partir é ser para os lugares e pessoas o que a vida é para nós...
É ser este deixar de ser, equiparar-se com o devir e sentir-se também executor da realidade
passageira do mundo...
*

Na Barcelona de tanto Gaudi, tanto Picasso e Miró, das Ramblas...


Eu sentei numa praça desconhecida, quase feia.
Um largo que guardava uma igrejinha, um colégio de crianças paquistanesas e catalãs...
Olhei pro banco onde sentava e consolei-me em pensar sobre quem já havia estado alí...
E perguntei-me quem, que tipo de gente, eu gostaria que houvesse aí estado...
Gente como eu, que rimasse comigo...
Qualquer pessoa que neste banco também houvesse pensado sobre a simplicidade daquela praça,
sobre o engraçado que é ver pequenos catalães e pequenos paquistaneses correndo juntos sob o
distinto olhar dos pais...
Pessoas qye houvessem pensado sobre o sentido tosco das cidades, sobre os nomes e famas que não
têm nada que ver com lugar nenhum...
A cidade um a vive...
Está nos becos e nos viadutos, nos cemitérios e nas igrejas, nas pequenas praças e nos monumentos...
Mas ver isto de longe, ver isto...
Olhar com os olhos de quem está conhecendo, de quem está fora, de quem quer ter notícia...
Não...
A cidade, um a vive...
A cidade é o cenário da vida que segue e continua, não da vida parada e comtemplativa...
Ninguém vive em Paris até que o Louvre ou o Sena sejam coisas normais e cheguem a passar
desapercebidos por vezes...
A cidade é a atmosfera onde se pisa, é por onde caminhamos e querendo algo distinto do caminho...
A cidade não é cidade até que esteja simplesmente aqui, como uma coisa fatídica e não como um
encanto...
Para ser cidade, deve entranhar-se nos sapatos, deve deixar de ser uma coisa à parte...
É a rua pela qual baixamos todos os dias e as vezes nos perguntamos o porquê dela e de nós a baixá-
la...
A cidade é costume, é apego insconsciente, hábito compulsório...
A cidade, um a vive...
Se conhece pelo cheiro, pela hora do dia, pelo número do ônibus e a linha do metrô, pelo atalho, pelo
bairro de gente assim ou assado, vendo os turistas, as fotos, conversando naquele bar, aderindo...
A cidade não tem nada a ver com nada, é única, está dentro, e a levamos...
A cidade é o que não está dividido na distância, é saber onde ir, como seguir, é continuação...
Desta vez sentou ao banco comigo uma moça...
Apesar de ser o pior banco a sentar para fumar, no meio do Paseig des Graces, ela veio e pôs-se a
acompanhar minha solidão contemplativa e eu a ela e a sua...
Ela se foi, rumo à cidade, e eu continuei – pois não sou de aqui...
O contínuo da cidade é móvel, são estas pessoas que me passam correndo, apontando que têm horário
e direção certa... – elas são daqui.
A cidade é o que fica e dela faz parte quem nela fica...
Não é opção, é situação...
A cidade, um a vive...
A cidade não são as ruas e as construções, o plano urbano sequer...
A cidade é o que cada um leva de cidade por estar na cidade...
A cidade é invisível, indivisível...
É como se diz, o que se come e bebe, o que se faz, como se vê...
O lado de fora adveio disto...
E não reporta nada...
O exterior da cidade é seu passado, o que dela fez-se...
Mas a cidade é atual...
É o ir, o encontrar, é cada passo que novamente a cruza...
A cidade é o cansaço por estar na cidade...
A cidade, um a vive...
A cidade é de onde não se pode fugir, mesmo com tanto sapato, moto, carro, metrô e ônibus...
As vias da cidade apenas continuam a cidade...
É comunicar-se em dialetos, ter humor próprio...
Cometer os mesmos erros, xingar da mesma maneira, ofender-se com as mesmas coisas...
A cidade é ir pra casa pelas ruas mais calmas...
Passar na padaria e comprar pão, cumprimentar pela rua...
Marcar um encontro em quinze minutos...
Ir no lugar do outro dia, reparar nos estrangeiros...
Atrevessar no sinal vermelho, ir ao estádio...
Notar que o inverno está chegando, despedir-se até amanhã...
A cidade, um a vive...
A cidade barulho, zunido, buzina, velocidade...
Calçadas, lojas, gritos, polícia e ambulância...
Ter um endereço...
A cidade que acalma os homens...
Cidade que traslada o homem do frio mar de viver por si mesmo...
Emergindo-o na mandala civilizatória, na roda-viva em que a humanidade constantemente recria-se...
Estar dançando junto, sobre os mesmos emblemas culturais, sob a mesma perspectiva do firmamento...
Na verdade, pausar um pouco o redemoinho interno e juntar forças para o moínho que alimenta a todos
dos seus...
Ser um dos que são dos seus...
Eclipsar-se e raiar no astro comum...
A cidade é caminhar acompanhado...
É ser apanhado, estar emparelhado...
Fazer algo distinto de visionar a si e suas aspirações...
A cidade é fuga, ao final...
É interromper-se e fixar-se...
Ver com olhos de quem está aqui, saber onde está...
É não ir pra lá...
Antes, é ter um lá...
É [poder] voltar...

[...]

De Mileto não restaram somente as pedras em que me sento...


Está em minhas roupas, no modo como aqui cheguei e – principalmente – na maneira em que penso...
Saberão os deuses o que os golfinhos ensinaram aos homens...
Saberão os deuses a razão de Apolo haver revoltado-se contra a Teogonia, o Olimpo e os Grandes
Mitos...
Saberia Tales sobre o que fazia?
Há mistério que desaparecem ao horizonte humano e seus deciframentos colocamos sob a
responsabilidade do desconhecido...
E do pouco que podemos ancorar nos portos do enigma, erigimos idéias, imagens e templos ao
incognoscível...
Numa disposição metafísica para o incrível...
Como uma forma de reconhecer a inacessibilidade da verdade, sonhamos o divino...
Assim fomos até que coisas dexaram de ser coisas e um pseudo-universo de explicações foi feito na
marginalidade do mundo...
É deste sub-mundo que vivemos hoje...
Agora homens crêem que algo sabem, se pensam criadores e querem ser os próprios deuses...
Esqueceram do sonho, de que a verdade é sempre um axioma oracular, recheado de não-saber, dúbio à
razão, o qual só entende-se com o espírito...
E daqui, desta estoa, partiu a barca que hoje me faz esperar na estoa...
Dúvida e orgulho colonizaram a terra sob heréticos estandartes anunciando luz e certezas...
E eu me pergunto o que doença foi essa que assolou aos de Mileto, mas manteve vivos os campos de
oliva...
Saberão os deuses se no passado as oliveiras também davam mais frutos e sabiam a mais alma...

[...]
Vou à cidade...
Cidades levo comigo, becos, esquinas, bares, placas, gentes e luzes também fundaram-se-me em uma
maneira que sonho...
E por dentro de mim, caminho por ruas distorcidas por minhas viagens...
O rio de Heráclito já não passa mesmo por Éfeso, nunca existiu algo como um rio senão também dentro
de nós...
Mas Éfeso ainda está lá, com suas ruas e com gente – outra gente – por elas passeando...
Mas à cidade já e ainda existe aqui comigo no ônibus que acelera à cidade que vou...
E quando chegar lá, não será como se eu houvesse chegado, pois já a tenho comigo...
Quando eu atingir o Bósfoto, será como um reencontro entre as cidades de mim e à cidade...
E à cidade se implantará em minha alma de um outro modo ianda mais forte e palpável e a levarei em
meu mapa interno para mais plantas concretizar no meu sonho de cidades...
A outra coisa que é à cidade fora do meu sonhar cidades irá juntar-se ao casco de minha história...
Como mais uma pedra, uma coluna, uma rua, uma esquina, um cheiro ou qualquer coisa da qual
constitui-se uma cidade...
E o sonho de minhas cidades vai assim construindo-se constantemente pelas viagens, arrastando
consigo o que há de sonho pelas cidades das cidades...
E à cidade era mesmo assim...
Com aparência de eterna...
Pedaços e vestígios acumulados por distintas bandeiras e exércitos, cada qual empilhando um pouco, ou
muito, de seus sonhos...
E a linha do tram chega ao Haja Sofia, peles escuras e olhos claros falando a mesma língua,
pronunciando a mesma verdade sobre à cidade...
A ponte entre os sonhos do futuro e os sonhos do passado, para além e para cá das cidades do
mundo...
Sequer o mesmo deus parmanece...
Pois à cidade é onde as coisas não permanecem...
Pois a cidade é estar indo à cidade justamente...
É mais uma estrada por onde coisas passam, é a passagem e por isso só ela permanece, é o essencial
para que as coisas passem...
No fim, vejo, a terra será mais uma cidade abandonada por onde o homem passou...
E somente quando ela inteira vaporizar-se – saiba lá por qual razão cosmogônica – terá então terminado
a história da humanidade...
E as restantes partículas de pó de cidade talvez colonizarão novos astros, viajando pelas vias lácteas e
novas cidades se farão pelo universo...
Do mesmo modo em que também talvez vieram parar neste planeta para gerar homens, cidadãos,
mortais...
As cidades em que outros passaram e vamos nós passar...

TEMPO
O tempo é a espera para que as coisas aconteçam...
E sempre sofre quem espera, por isso é o tempo a dor no mundo...
O tempo é relativo na medida em que ansiamos a ocorrência das coisas deste mundo...
Em nós guardamos as vontades – pro futuro – e o tempo é o interlúdio do sonho...
O sonho é a ausência do tempo, o tempo que falta para a realidade do que sonhamos...
*
Uma vez mais...
Querendo ir...
O que foi ou é o que vale ou valeu?
A vida é nada ou pouco mais do que um“valeu”bem grande, do tamanho do que se é capaz de ser
nostáligo ou lembrar...
Mas nada irá ficar...
Por isso não sou do jeito que deveria ser...
Viver é perder!

Me é duro dizer, com aquela dor do som dos caminhões de estrada, a dor daquele som que se vai
acabando, passando...
Mas o único interessante até hoje, a única pouca coisa que vi ser digna de ser querida...
É o outro lugar...
A viagem, o ir...

Tenho vontade de contar minha história, não guardar só para mim a cronologia e as causas daquilo que
só a mim detona...
Os meus desenhos são rascunhos, sempre rostos, palavras ou não-formas destroçados por minha inata
capacidade de não ver nada merecer importância...
Nada senão o que sinto...
Os meus sentimentos e tudo o que acontece ou ocupa a vastidão de mim, guardo-os como num altar,
entre as quebradas imagens de meus deuses que não sei...
No passado das coisas, tudo se me torna mais claro, relevante ou real, é a minha garantia de que minha
existência não passou somente sem sentido – que é como me sinto em todo e cada presente.
As memórias se me viram mais dôces do que o foram quando não eram memórias, mas este instante
incolor e insoço.
Muitas vezes só vejo sentido, ordenamento ou coerência nas coisas que já se foram...
É estranho, sinto...
Pois ao mesmo tempo tenho uma intuição curiosa que não acredita no valor do passado, que o vê
literalmente como tempo perdido...
Esta mesma inferência me arremeça ao futuro, fazendo-me sonhar, projetar, querer, desejar...
Aí muitas vezes o motor da vida me parece ser este por-vir, esta tendência de tornar-se que permeia o
intervalo que acessamos do tempo...
Um roto mais religioso que também vive em mim, diz-me que tudo que não, é ilusão – enquanto só é o
que existe num aparentemente eterno e constante agora...
Sofro de problemas para sentir o tempo...
Talvez seja pois passei a acreditar que ele não existe, ou seja, que o criamos e é relativo na medida em
que o utilizamos para ver o que queremos ver do mundo, neste caso, dos mundos...
A minha primeira questão é sobre o poder do hábito no status do tempo...

E são estes duas que demoram a passar ou que passam sem serem vistos...
Eles me alimentam de uma impaciência para o ter-de-viver-a-vida que muitas vezes beira ao
insuportável, sugerindo-me suicídios...
Mas é a vida a maneira mais dura de morrer e o único motivo para que ainda não tenha terminado este
lento – mas aparentemente rápido – processo é a desconfiança sobre a morte ser algo pior do que ainda
não estar morto...
Seja morrer como viver, ou ao menos como a minha vida: ir para onde não se sabe.
Ando pelas ruas como se estivesse sendo espiado, meus passos dão esta impressão, noto...
Ainda pouco olharam-me e disseram que eu parecia doído, como vindo de uma tal batalha de Valencia...
Jamais e ainda não fui a Valencia e não me importa, não sei desta batalha e não me importa...
A dor que levo é a sensação de não ser daqui...
Talvez sequer seja a Europa o problema, mas a vida...
Eu que tantas vezes falo da vida só por não entende-la...
Não sou daqui, não nasci para isto...
[E o jazz é como a vida pois não sabemos o que ocorrerá...]
Mas não queria fazer de minha poesia uma interrogação, uma falta do que fazer sobre o fato de estar – e
pior, ainda querer estar – vivo.
A revaloração da vida, de uma maneira constante que não se desfaça-se no devir, que o acompanhe...
São por esta causa meus passos e o que me espia é o que ficou da vida...
Os velhos, as ruas, as placas, o próprio chão...
Não...

A sensação de que tudo vai para sempre ser como horas passando...
A certea e a real visão de que a vida acaba...
É só o que penso ao ir dormir, insone e sonâmbulo pela manhã, tentando acalmar-me ante a noção das
irrealidades que constituem minha realidade...
O que é real?
O tempo...
Que desejamos e não temos, que já passou, que é difícil estar vivo quando só se pode viver
originalmente...

A alma... Coisa absurda!, coisa que não deveria existir...


Ao menos não desta forma...!
Repito: leis cruéis regem as almas dos homens...
Ou dos homens que sabem e sentem ter alma, estes que levam a incompreensível aptidão à auto-
expectação...
A naturalidade de ver-se como uma caça sob os olhos de um caçador que é ele mesmo.

Por isso não errou aquele poeta que disse que tudo nos vale a pena...
Pois se tudo não for igual na imagem deste prisma dos valres internos e eternos, a vida e o sonho não
existem...
E já nos valeria mais morrer que qualquer outra coisa...
Mas a morte não pode ser o objetivo, pois é ela a quem queremos, dela vive o que sonhamos...
Mortos, vivemos...!

Fora isto, há este outro sentimento de estar por fora, fora não apenas de mim, mas também
principalmente do concenso dos que me cercam...
Cercado de uma maneira que sou exterior ao cerco...
Sei que estou dentro, pois falo, escrevo, ando a duas patas, mas não me sinto fazer parte no que
realmente importa...
Serei eu o único desta sala a ver que nada importa e tudo é permitido?
Onde estão todos?
E seu gritar agora, ouvirão?
Não, o conteúdo de meu enigma nem a mim revela-se inteiramente...
E os outros, são mais outros do que eu a mim mesmo, invisíveis aos olhos das entranhas do mundo...
O planeta dos que simplesmente vivem a vida, este lugar aonde nunca fui, esta terra que é o que sempre
serei, mas numa perspectiva contrária em relação a mim...
A pátria estrangeira dos que domesticam-se a saber viver, coisa que me é verdadeiramente irreal ou
distante...

Espera...
A idéia de que mais do que tudo ser cíclico, as relações sobre as quais se solidificam as vivências são
compensatoriamente iguais...
O mesmo amor, mas num outro momento e por outra pessoa...
O mesmo lugar – o aqui -, mas noutra situação ou perspectiva...
Aquele momento que era belo por (parecer) único... acabou...
E mesmo esta graça empirística da exclusividade do lado subjetivo da vida... fica detonada...
A poesia matou meus melhores amores...
Foi a minha visão da vida o que fez tudo perder sentido...
[...]
E não me adianta arrepender ou reclamar dos problemas que só a mim dizem respeito, do inevitável de
mim – que jamais pedi ou elegi...
A fisiologia metafísica de meus olhos... veio e vai comigo...
E só na terra do nunca ou do jamais me abandonará... enquanto qualquer coisa me seja ou for...
Me perderei para sempre...
[...]
Só os meus poemas compreenderão isto...
Só o tempo dirá sobre mim...
Só o que nunca será pode me fornecer paz...
Janela perpétua...
Minha eterna visão por sobre as coisas do mundo...
O cume da torre que é o presente...
A inacessibilidade, a indiferença depois de olhar o que em vão tentou fazer parte de mim...
Só o que não se pode me encanta...
O ânimo para o impossível, para o de forma alguma estar...
O estranho gosto pelo difícil e a inexplicável frieza e leveza do olhar aonde meu olhar deito...
Só o gueto, o deserto, o mar bravo, a miséria e a densa floresta...
Apenas o que em princípio não seria, os exemplos de que viver deve ser transcender...
A minha cidade é o lá e o meu tempo é a ausência do tempo...

E a palavra vida não é nada mais do que o que nós já vivemos...


O que virá... É desconhecido...
O que foi feito de nós contra o que seremos.
O que somos... é atemporal...
O presente não está em jogo, é inútil...
Ninguém pediu para viver o agora...
Então, que morra a e à vida!
[...]
E um brinde a vós, vivedores de vidas...!
Eu... Não brindo...
Sigo bebendo, sem parar para louvar nada que não seja a atitude de não esperar...
Nos vemos lá...

[...]

Você também pode gostar