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Marcus Vinícius França NUSP: 6837202 Noturno

Teoria Crítica da Democracia: Lutas por Reconhecimento

A QUESTÃO MULTICULTURAL EM STUART HALL E OS PROCESSOS DE


AUTONOMIA INDÍGENA BOLIVIANA

O presente ensaio busca traçar um panorama geral sobre as discussões em torno da


proposta de uma política focada no paradigma da multiculturalidade tal qual expressa
por Stuart Hall em “A questão multicultural” (2000). A partir da compreensão dos
efeitos transruptivos que tal abordagem provoca nos estados modernos pós-coloniais,
buscarei problematizar alguns pressupostos da condição de sua emergência, bem como
sua articulação com os recentes processos de autonomia indígena propiciados pela
ordem constitucional do Estado Plurinacional da Bolívia.

Para Hall o termo multiculturalismo ganhou diversas faces a depender do seu uso e por
esse motivo se tornou um significante sem um significado estável, delimitado e
unívoco. Apesar da sua aparente abrangência em termos que podem até ser
contraditórios, o autor pensa que seu uso se faz mais do que necessário para refletir a
respeito de certas contradições em torno de “raça, etnicidade, identidade e diáspora”.
O autor acha necessário fazer distinção entre o termo multicultural, sendo esse um
termo qualificativo que explicita a situação social e política em torno dos problemas
advindos da governabilidade em sociedades que convivam com a pluralidade de
comunidades culturais no seu interior, (p. 52). O multiculturalismo, por sua vez, é uma
série de processos e estratégias políticas sempre inacabadas, não podendo ser
compreendido como uma doutrina política por conta dos múltiplos atores coletivos que
fazem uso e chamam-no para si, dessa forma, o autor argumenta que assim como há
distintas sociedades multiculturais, também há usos diversos em torno do que seja o
multiculturalismo. (p.53).
Seus contestadores conservadores argumentam que seus pressupostos ameaçam a
pureza e homogeneidade da nação, enquanto os liberais dizem que o reconhecimento
das diferenças vai na contramão do universalismo, da liberdade individual e da
igualdade formal. Dentro de outras matizes pós-modernas e demais posições da
esquerda e dos grupos antirracistas, também pululam contestações aos pressupostos do
multiculturalismo, porém, o autor enxerga exatamente na sua condição contestada a
potência que o mesmo carrega, isso é, ele expressa a importância da diversidade cultural
e das lutas pelo reconhecimento das diferenças como contribuições inestimáveis para
um incremento qualitativo da democracia.

As condições de sua emergência remetem às movimentações societárias e as migrações


que produzem sociedades mistas étnica e culturalmente, o processo de modernização
não foge à lógica de grandes impérios que se fundam a partir de disputas em torno da
conquista e da dominação, produzindo dessa forma impérios multiétnicos e
multiculturais. A partir da compreensão das formas pelas quais o processo de
colonização criou disparidades econômicas, sociais e simbólicas e inseriu os
colonizados em um espaço de valorização dos direitos de orientação individualista, os
mesmos se encontram imersos em disjunturas de tempo espaço e tradição; dessa forma
o multiculturalismo surge como uma reconfiguração estratégica de forças e de relações
sociais tanto nas ex-colônias quanto nas antigas metrópoles que as submetiam.
Habermas argumenta que as lutas por reconhecimento surgem a partir da reconfiguração
do que chama de “experiências coletivas de integridade ferida” (HABERMAS, p.203), a
partir dessa exemplificação do surgimento de demandas de reconhecimento podemos
compreender melhor a emergência das identidades coletivas.

As tentativas de situar o pós-colonialismo como um tempo de ruptura parecem


equivocadas para Hall, o autor argumenta que esse conceito na verdade expressa a
passagem de uma configuração de poder para outra, onde no passado prevaleciam
relações de desigualdade de poder e exploração na relação colonizador e colonizado,
agora essas relações se deslocam para o interior das sociedades descolonizadas como
lutas entre forças sociais nativas assimétricas no contexto de globalização, ameaçando a
estabilidade e a aparente coerência jurídica em torno da questão da igualdade. A
globalização reorganiza os discursos em torno da etnicidade, reelaborando discursos
com traços mais antigos com novas formas de compreendê-la a partir dos efeitos que as
mesmas tem sobre o reconhecimentos dos povos sujeitos a essa lógica, tendo efeitos
diferenciadores onde aparentemente produziria homogeneidade. Dessa forma, o eixo
vertical do poder está constantemente atravessado de forma lateral por questões da
diferença local, a qual o global-vertical necessita considerar numa disputa que nunca se
encerra e nem se fixa em um conteúdo essencial, mas antes, esta determinada
relacionalmente com demais forças.
Até aqui expus a explanação inicial que Hall faz do surgimento do paradigma do
multiculturalismo, a, partir de então o autor menciona a importância da manutenção de
identidades racializadas, étnico culturais e religiosas para a autocompreensão das
comunidades inseridas no contexto da pós-colonialidade (p.66). A partir da elaboração
do caso britânico que pareceria encerrar sua identidade e sua britanidade no território de
uma ilha, o autor expõe os efeitos que o Império Britânico teve nos povos que dominava
e a maneira que o fluxo migratório que se intensificou no pós-guerra guarda de
identificação dessas comunidades com o império que outrora as dominavam. Dessa
forma, as identidades racializadas não guardam somente a expressão de uma identidade
primordial, antes, elas são escolhas políticas e associativas dentro do grupo ao qual
desejam ser associadas. A instabilidade que tais lutas por reconhecimento que tais
identidades coletivas provocam no interior dos Estados nacionais de orientação política
liberal será tema da descrição das ações transruptivas que tais mudanças provocam no
mesmo. Procurarei acompanhar os três efeitos principais que o autor reconhece nesse
processo ao vislumbrar o caso britânico, porém tomando como referência o caso da
emergência de autonomias indígena-originária no Estado Plurinacional da Bolívia,
analisando se sua hipótese se confirma, atento às suas semelhanças e particularidades.

1. Raça e etnia – termos em jogo


O autor sistematiza uma compreensão do racismo como um sistema de poder
socioeconômico, de exploração e exclusão (p.69). O racismo dessa forma apresenta
duas faces, uma calcada na noção do racismo biológico e outra na discriminação
cultural. Os processos políticos em torno do reconhecimento das diferenças articulam
dessa forma os dois termos (raça e etnia) na construção de uma identidade que foi não
só racializada, mas também excluída dos processos de tomadas de decisão relativas ao
espaço que ocupam geograficamente, socialmente e simbolicamente.
No caso Boliviano, convém sinalizar que a compreensão do neo-colonialismo gerou um
processo semelhante, González Casanova argumenta que as relações díspares entre
povos, minorias e nações colonizadas pelo Estado-nação simulam a relação que
caracterizavam o sistema de exploração e diferenciação no sistema colonial, esses
“Outros” encontram-se em relações de desigualdade com elites das etnias dominantes,
sua responsabilidade jurídico-política e administração estatal também concernem às
mesmas elites étnicas, os colonizados pertencem a “raça” distinta da que domina o
governo nacional e consideradas inferiores, a maioria dos colonizados não falam a
língua desses povos, demonstrando distância para com a vida cultural e simbólica dos
mesmos, impedindo dessa forma a efetivação do exercício de uma cidadania plena por
parte dessas minorias étnicas.

2. Cultura desestabilizada
O segundo efeito transruptivo é aquele ligado à compreensão da cultura como
constituinte das identidades. O autor aponta que o sentido de cultura compreendida pela
antropologia diz respeito à subordinação dos indivíduos que participam dela às sanções
e meios de vida determinados comunalmente, sendo essa contraposta à noção de cultura
da modernidade, caraterizada como aberta, racional, universalista e universal. (p. 73)
Apesar de distintas, Hall afirma que as culturas tradicionais colonizadas são fruto do
processo de modernização que as submeteu nos processos de globalização, sem no
entanto perderem seus traços distintivos, não se contrapondo como negação à
modernidade dessa forma. O processo de hibridização dessas comunidades que já não
são fixas, coesas e fechadas se dá no compartilhamento de repertórios de significados,
num infinito exercício de tradução cultural de um campo para o outro, a saber:
“tradicional” e “moderno” não como oposições binárias, mas como identificações
múltiplas e deslocadas.
No caso boliviano, é relevante afirmar que o modelo de autonomia previsto pela
constituição do Estado Plurinacional leva em conta os direitos consuetudinários, num
diálogo das tradições para com a organização do Estado convivendo com governos
autônomos, propondo novos modelos de gestão pública das diferenças; dessa forma, a
cultura aparece nesse processo dialógico da hibridização produzindo a “difference”.

3. Desestabilização do Estado Constitucional Liberal


Para Hall a questão multicultural perturba as fundações do Estado liberal por meio da
disseminação de diferenças instáveis (p.77), tendo a questão multicultural revelado seu
caráter particularizado que se tornou universal por meio de um jogo de poder-
reconhecimento. Hall argumenta que os discursos em torno da nação como unidade
portadora de uma coerência cultural são ficciosos, porém produtores de efeitos nas
comunidades que estão subordinadas à sua jurisdição, tais discursos tentam
homogeneizar disparidades que constituem a própria lógica do funcionamento do
sistema jurídico, econômico, político e social que produz desigualdades de classe,
gênero, região, religião ou localidade. (p78).
O autor afirma que tal abalo produz uma espécie de “deriva multicultural”, com essas
questões pendendo a depender das correlações de força política que os grupos
minoritários produzirão no interior do Estado liberal.
No caso boliviano, tal desestabilização se torna mais aparente por conta da novidade
que a constituição boliviana de 2009 insere na ordem constitucional, com o
reconhecimento de possíveis 33 nações no seu interior e a possibilidade de autonomia
departamental, municipal e a indígena-originária-campesina, com a possibilidade de
autogoverno do último caso, procedimento que deve ser aprovado junto à Asamblea
Legislativa Plurinacional. Dessa forma, o abalo ao modelo de uma comunidade
imaginada uniforme, fruto dos limites do estado liberal que se baseia em uma cidadania
universal e na neutralidade cultural do estado se torna mais evidente. Os governos
autônomos no entanto não interferem na atuação das Forças Armadas e nem se
sobrepõem as instituições do Estado Plurinacional da Bolívia, podendo ser
compreendidos a partir de uma relação dialógica da soberania do estado-nacional com
as tradições dos povos originários que não abala a segurança constitucional do primeiro.

Conclusão
A análise que Hall propõe do exemplo britânico se torna especificamente interessante
para o caso boliviano já que sua análise estava sendo escrita no calor das lutas da
América Latina que desembocaram na formação do Estado Plurinacional da Bolívia.
Na seção em que o autor elabora o alcance das lutas por reconhecimento
contemporâneas intitulado como “Além dos vocabulários políticos contemporâneos”,
ele cita a falência da noção liberal na garantia de igualdade e justiça para os cidadãos
minoritários. Essas lutas, portanto, teriam como maior potência a reconfiguração dos
imaginários sobre a nação, constituindo dessa maneira formas radicalmente “pós-
nacionais”(p. 82), o que parece ser o caso da constituição boliviana ao configurar o
respeito à pluralidade étnica que constituiria a nação boliviana. Dessa maneira, Hall
afirma que o desafio político posto para uma realidade multicultural e o reconhecimento
da mesma pelos estados nacionais é a reatamento de termos que pareceriam
contraditórios na lógica liberal, recombinando o particular com o universal, da liberdade
e da igualdade com a diferença. (p.88). Dessa forma, as condições para a emergência de
uma política multicultural para o melhoramento qualitativo da democracia dependem de
dois fatores: uma expansão e radicalização da democracia e das práticas democráticas
dentro da vida social e a constante contestação das formas de fechamento racial e étnico
que impedem a efetivação de uma plena cidadania por meio da exclusão e de
desvantagens advindas do não reconhecimento da especificidade das diferenças.

BIBLIOGRAFIA

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2002. Capítulo. 8: “A


luta por reconhecimento no Estado Democrático de Direito”
HALL, Stuart. A questão multicultural. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e
mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
GONZÁLEZ CASANOVA, P. Colonialismo interno (uma redefinição). In: BORON, A.
A.; AMADEO, J.; GONZALEZ, S. A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas,
2007, ISBN 978987118367-8. Disponível em: <
https://www.docdroid.net/US8ni03/pablo-gonzales-casanova-colonialismo-interno-
uma-redefinicao-literatura-socialista.pdf >. Acesso em: 5 jul. 2018.

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