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+ 0 Canibalismo Amoroso — “Affonso Romano de Sant’Anna fas Letras — Angel Rama '@ 0 Conceito na Literatura Medieval ~ Katharina 10? — Paula Beigueiman erate — Augusto de Campos/Haroldo ‘Marisa Lajolo = x Roland Barthes DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL 801 Rumor da tingua J B2senp O RUMOR DA LINGUA Tradugéo Mario Laranjeira Proficio Leyla Perrone-Moisés $e TEMS sicko re editora brasiliense 1988 282 ‘© RUMOR DA LINGUA luma, é uma verdade de discurso, estendida a toda a oscilacdo que a vra do Outro (no caso 0 Se. Verdurin) farlo softer. AA sintaxe classica, que nos diria que a princesa Sherbatoff ndo ¢ senao uma dona de casa de tolerincia, é substituida por Proust por uma sintaxe concomitante: & princesa ¢ éambém uma dona de bordel; nova sintaxe a que deveriamos chamar metaférica porque a metifora, contrariamente 20 que a retérica pensou durante muito tempo, ¢ um trabalho de linguagem privado de qualquer vetorizagio: ela sb vai de um termo a outro, circular e infini- tamente. Compreende-se entio por que 0 etbos da inversio proustiana & asurpresa; é 0 pasmo de um retorno, de uma jungdo, de um reencontro anto, que a grande oposigio que no inicio parece ritmar ao mesmo tem ‘pos passeios de Combray eas divisdes do romance. (Para o lado da casa de Swans | 0 Lado de Guermantes) seja,senio falaciosa (nko estamos na ordem da verdade), pelo menos revogivel: como se sabe, 0 Narrador descobre um dia com estupefagao (a mesma que experimenta a0 const tar que bario de Charlus € uma Mulher; 2 princesa de Sherbatofl, uma ‘mantenedora de lugar mal afamado, etc.) que as duas estradas que diver- gem da casa familiar reencontram-se ¢ que © mundo de Swan e 0 de Guermantes, através de mil anastomoses, acabam por coincidir na pessoa de Gilberte, filha de Swann e esposa de Saint-Loup. Ha, entretanto, um momento, na Busce, em que a grande forma inversorajé néo funciona. Que sert que a blogueia? Nada menos éo que a Morte. Sabe-se que todas as personagens de Proust se reencontram no volume final da obra (O Tempo Reencontrado); em que estado? De for- ‘ma alguma invertidas (como o teria permitido 0 grande lapso de tempo 20 cabo do qual se enconiram reunidas na recepgdo da princesa de Guermantes), mas, ao contrétio, prolongadas, imobilizedes (mais do que envelhecidas), preseruedas, e gos Nessa vida prorrogada, tecminar; 20 livro, sb Ihe esta comegar: 1971, Paragone ‘‘Durante muito tempo, fui dormir cedo”’ Alguns devem ter reconhecido a frase que dei cor loa esta conferéncia: **Durante muito tempo, fu 3 vezes, mal a minha vela se apagava, os meus olhos se ‘que nfo nha tempo de dizer para mim mesmo: ‘Estou adormecendo”. E, meia hhora depois, o pensamento de que era tempo de tentar dormir me acor- O inicio de La Recherche du Tempos Perdu. Quer isso dizer 'es proponho uma conferéacia ‘*sobre’’ Proust? Sim e nio. Sera, ‘ucts aceitarem: Proust e eu. Que pretensio! Nietzsche ironizava a respeito do uso que os alemies faziam da cor hauer ¢ Hartmann"”, pilheriava, "*Proust eeu’? é mais forte ainda, Gos- taria de sugeris que, paradoxalmente, a ps partir do momen to-em que sou eu quem fala, ¢ no alguma ; porque, 20 dispor uma mesma © eu, nio significa de modo algum que me comparo com o grande escritor, mas, de um modo inteiramente diferen. 'e, que nze identifico com ele: confusio de pratica, no de valor. Explico- ‘me: na literatura figurativa, no romance, por exeraplo, parece-me que a gente se identifica mais ou menos (quero dizer em dados momentos) a ‘uma das personagens representadas; essa projesdo, ereio eu, & a propri ‘mola de literatura; mas, em certos casos marginais, a partic do moment ‘em que o leitor € um sujeito que pretende, ele préprio, escrever uma obra, tal sujeito j4 ndo se identifica apenas com esta ou aquela persona: também e prini quis escrever esse i ora, Proust lido, enquanto 281 ‘© RUMOR DA LINGUA 0 lugar privilegiado dessa identificacZo particular, ne medida em que @ Busca ¢ 2 narrativa de um desejo de escrever: nfo me identifico com joso de uma obra fundamental, mas com 0 operario, ora atormentado, ora exaltado, de qualquer maneira modesto, que quis em- preender uma tarefa 4 qual conferiu, desde 2 origem do seu projeto, um cardcer absoluto, Portanto, primeiro Proust. wsea [La Recherche du Terps Perdu} foi precedida de aume- 080s escritos: um livro, tradugdes, artigos. A grande obra 56 foi reat- ‘mente atacada, parece, durante o vero de 1909; €, a partir de entao, ‘como se sabe, uma luta obstinada contra a morte que ameaga deixar 0 livro inacabado. Houve sparentemente nesse ano de 1909 (mesmo que ‘que seja vd a tentativa de querer datar com precisio 0 inicio de uma cobra) um periodo crucial de hesitagdo. Proust est, de fato, no cruza- mento de duas vias, de dois géneros, dividido entre dois ‘‘lados"’, que ‘nfo sabe ainda poderem juntar-se, nio mais do que sabe 0 Narra- dor, durante muito tempo, até o casamento de Gilberte com Saint-Loup, que o lado da casa de Swann toca o lado de Guermantes: 0 lado do Ensaio (da Critica) eo lado do Romance. A morte de sua mie, em 1905, Proust atravessa um periodo de acabrunhamento, mas também de agitagio esté= ril; tem vontade de escrever, de fazer uma obra, mas qual? Ou melhor, que forma? Proust escreve a senhora do Noailles, em dezembro de 1908: ““Embora muito doente, quisera te escrever sobre Sainte-Beuve [encar- nagodos valores estéticos que detesta]. A coisa edificou-se em meu espi- rito de duas maneiras diferentes entre as quzis devo optar. Ora, estou sem vontade e sem clarividéncia”” Farei notar que a hesitagao de Proust, a qual, € normal, dé uma forma psicologica, corresponde a uma alterntincia estrutural; os dois ““lados"” entre os quais hesita s40 05 dois termos de uma oposisée posta emevideacia por Jakobson: a da Metafora e da Metonimia, A Merafora suporte todo discurso que levanta a questio: '*O que é? © que é que isso quer dizer?""; & a questéo mesma do Ensaio. A Metonimia, ao contra rio, levanta outra questo: ""De que isto que estou enunciando pode ser seguido? O que é que o episodio que estou a contar pode gerar?””; & a questio do Romance. Jakobson contava a experiéncia levada a efeito “DURANTE MUITO TEMPO, FUI DORMIR CEDO" 283 ‘numa sala de aula de criangas, a quem se pedia ceagir a palavea ‘*palho- ‘s2""5 uns respondiam que a pathoca era uma cabaninha (metéfora); ou- tos, que havia pegado fogo (metonimia); Proust é um sujeito dividido como era a pequena classe de Jakobson; sabe que cada incidente da vida pode dar azo ou a um comentério (uma interpretasio), ou a uma afebula- ‘¢f0 que Lhe dé ou Ihe imagina um antes e um depois nerrativos: interpre- tar éentrar no caminho da Critica, discutir-Ihe « teoria, tormando parti do contra Sainte-Beuve; ligar os incidentes, as impressoes, desenvolve- las, €, a0 contrario, tecer pouco a pouco uma narrativa, ainda que frouxa, A indecisio de Proust & profunda, na medida em que Proust no & uum novico (em 1909, tem trinta e oito anos); ja escreveu, e 0 que escre- veu (principalmente a nivel de certos fragmentos) pertence muitas vezes ‘2 uma forma mista, incerta, hesitante, 20 mesmo tempa romanesca intelectual; por exemplo, para expor as suas idéias sobre Sainte-Beuve (ominio do Ensaio, da Metifors), Proust escreve um didlogo fictcio entre a mie e ele (dominio da Narrativa, da Metonimia). Nao s6 essa indecisto ¢ profunda, mas talvez seja também querida: Proust admirou ¢ gostou de escritores que verificou terem praticado, também eles, certa indecisto de géneros: Nerval e Baudelaire, ‘Avesse debate hi que se restituir 0 patético. Proust busca uma forma que recotha o sofrimento (acaba de passar por cle, absoluto, pela morte de mie) € a transcende; ora, a “‘inteligencia’™ (palavra proustia nna), de que Proust faz a critica ao comecar o Contra Sainte-Beuve, se seguirmos @ tradigdo romantica, ¢ uma poténcia que fere e seca 0 afeto; Novalis ‘que cura as feridss do enten- dimento’’; 0 Romance também pode fazé-lo, mas no qualquer um: um romance que nio seja feito segundo as idéias de Sainte-Beuve. Ignoramos por que determinacdo Proust saiu dessa hesitagio, ¢ por que (se é que existe uma causa circunstancial), depois de ter renun iado a0 Contra Sainte-Beuve (alids, recusado pelo Figaro em agosto de 1909), langou-se a fando na Busea; mas conhecemos a forma que esco Iheu: é precisamente a da Busca: romance? Ensaio? Nenhum dos dois e 6s dois a0 mesmo tempo: o que chamarei uma terceire forma, Interto- _Buemos por um instante este terceiro género. Se encabecei estas reflexes com a primeica frase da Busca, & por- que ela abre um episédio de umas cinguenta paginas que, como a manda- Je tibetona, mantém reunida sob a vista toda a obra proustiana. De que fala esse episédio? Do sono. O sono proustiano tem um valor fundador: 286 (0 RUMOR DA LINGUA ‘organiza a originalidade (0 “‘tipico”) da Busca (mas essa organizacio, como veremos, é,narealidade, uma desorganizacz0) Naturalmente, ha um bom e um mau sono, © bom sono é aquele que é aberto, inaugurado, permitido, consagrado pelo betjo vesperal da mnie; & 0 sono direito, conforme 4 Natureza (dormir de noite, agit de dia), O mau sono €0 sono longe da mae: ofilho dorme de dia enguanto a ‘mie fica acordada; s6 se véem no breve cruzamento entre o tempo dire toe o tempo invertido: vigilia para uma, deitar-se para outro; esse mau sono (Sob efeto de barbitiico), a obra toda nao sera demais para justfi- citlo, resgaté-lo, posto que 6 20 preco doloroso dessa inversio que a Busca, noite apbs noite, i descrever-se. © que ¢esse bom sono (da infincia)? £ uma “'meia-v ntei envolver o meu primeiro capitulo nas impressBes da meie: Embora Proust fale em dado momento das ‘‘profundezas do nosso inconsciente’*, esse sono nada tem de freudiano; ndo é onirico (ha poucos, sonhos verdadeiros na obra de Proust); é antes constituido pelas profun- ddezas do consciente enguanto desordem, Um paradoxo define-o bem: ¢ tum sono que pode ser escrito, porque é uma conscincia de sono; todo 0 evisédio (e, portanto, toda a obra que dele sai) mantem-se assim suspen so numa espécie de escindslo gramatical: dizer ‘‘estou dormindo" é de {ato, literalmente, tao impossivel quanto dizer “estou morto””; a escri- tura é precisamente esta atividade que trabalha a lingua — as impossi lidades da lingua em proveito do discurso. Que faz esse sono (ou essa meis-vigiia)? Introduz a uma “‘falsa conscitncia’’, ow antes, para evitaro estereétipo, uma conscineia falsa una consciéncia descegrada, vacilante, intermitente; a carapaca ldgice do ‘Tempo ¢atacada; ndo ha mais crono-logia (se aceitatmos separar as duas partes da palavra): "Um homem que dorme [entendamos: desse sono proustiano, que é uma meis vigifa] mantém em circulo em torno de si. fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos ... mas as suas fleas podem ntisturar-se,romper-se [eu sublinh]"’. O sono funda ume outca 'ogica, uma logica da Vacilagdo, da Descompartimentacio, e & essa nova Logica que Proust descobre no episédio da madalena, ou melhor, da tor- rada, tal como est relatado em Contra Sainte-Beuve (quer dizer, antes da Busca): “*Permaneci imével... quando de repente as paredes abaladas dda minha meméria cederam"*. Naturalmente, semelhante revolugto Io. sica sb podia suscitar uma reagio de burrice: Humblot, funciondrio da Euitora Ollendort encarcegado de ler e apreciar os manuscritos, a0 rece- ber 0 de Para 0 lado de casa de Swann, declara: “Nao sei se sou comple- Or “DURANTE MUITO TEMPO, FUI DORMIR CEDO" 287 ‘mente tapado, mas nfo compreendo o interesse que possa haver em ler trinta paginas [precisamente a nossa mendala] a respeito di mania como um Senhor se vira na cama antes de conciliar 0 sono'*. O interesse @, no entanto, capital: esti em abrir as comportas do Tempo: abalada a crono-logia, fragmentos, intelectusis ou narrativos, vie formar uma se. quencia que se subtrair & lei ancestral da Narrativa ow do Raciocinio, e ssa seqnéncia produzira, sem fergar, a terceira forma, nem Ensaio, nem Romance. A estrutura dessa obra sert, falando exatamente, rapsidica, isto € (etimologicamente), costurada; ¢alids uma metéfora proustiana: a obra se faz.como um vestido; o texto rapstdico implica uma arte original, ‘como ¢ & da costureira: pegas, pedacos sio submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes: um vestido nao é um patchwork, como tampouco 0 a Busca, Provinda do sono, a obra (z terceira forme) repousa num principio Provocante: a desorganizagdo do tempo (da crono-logia). Ora, ai esté um Principio muito moderno. Bachelard chama rifmo a essa forca que “‘desvencithar a alma das falsas permanéncias das duragSes mal feitas” essa definicio se aplica muito bem 2 Busca, cujo esforgo todo, suntuo. 80, est em subteair 0 tempo rememorado a falsa permanencia da biogra- fia, Nietzsche, mais lapidarmente, diz que ‘*é preciso reduzir a migalhas © universo, perder 0 respeito pelo todo’’, e John Cage, protetizando a cobra musical, anuncia: “De qualquer modo, o todo fara ume desorgani- zacio"”. Essa vacilacao nfo & uma anarquia aleatbria de associagdes de idéias: ““Vejo’’, diz Proust com certa amargusa, ‘‘os leitores imagina- rem que escrevo, fiando em arbitrdrias ¢ fortuitas associagdes de idéias, a histéria da minha vida’. Na realidade, se retomarmos a palavra de Ba chelard, trata-se de um ritmo, e muito complexo: “sistemas de instan. tes"? (ainda Bachelard) sucedem-se, mas tembém se respondem. Porque o-que © principio de vacilagdo desorgani2a néo & a intelisibilidade do Tempo, mas a légica ilusbria da biografia, na medida em que ela segue tradicionalmente a ordem puramente matematica dos anos. Essa desorganizacto da biografia ndo 6 sua destruigo. Ne obra, lumerosos elementos da vida pessoal sio conservados, de maneira iden. tificavel, mas esses elementos estio de certo modo desviadas. Assinala- fei dois desses desvios, na medida em que nao dizem respeito a pormeno- res (as biografias de Proust estdo cheias deles), mas a grandes opgses criativas, © primeiro desvio ¢ 0 da pessoa enunciadora (no sentido gramati- cal da palavra “‘pessoa’’. A obra proustiana poe em cena — ou em escti- 288 (© RUMOR DA LINGUA. ‘tura— um “eu” (oNarrador); mesesse “eu”, se assim se pode dizer, jd ndo ¢ mais exatamente um “‘en’” (snjeito e objeto de autobiografiatradi- ional): “Yeu”? no é aquele que se lembra, se confi le que enuncia; ‘eu? @um “eu? de escritura, cuja so incertas, deslocadas. O proprio Proust explicou-o bem: o método de Sainte-Beuve ignora ‘que um livro o produto de um outro ‘eu’ que nio aquele que manifestamos fem nossos habitos, na sociedade, nos nossos vicios’’. O resultado dessa dialética & que vdo perguntar se 0 Norrador da Busce & Proust (no senti do civil do patronimico): & simplesmente outro Proust, muitas vezes desconhecido dele proprio. segundo desvio & mais lagrante (mais fécil de definie); na Busea ha certamente ‘‘narrativa’” (ndo ¢ um ensaio), mas essa narrativa nto é a de uma vida que 0 Narrador tomasse no nascimento e condurisse de ‘ano em ano até 0 momento em que toma da pena para narré-la. O que Proust conte, o que coloca em narrativa (insistimos), nfo é a sua vida, & seu desejo de escrever: 0 Tempo pesa sobre esse desejo, mantém-n0 ‘numa cronologia; ele (os campandrios de Martinville, a frase de Bergot- te) enfrenta provagdes, desanimos ( veredicto do Sr. de Norpois, 0 pres- tigio inegavel do Jornal dos Goncourt), para finalmente triunfar, quando © Narrador, chegando a recengio de Guermantes, descobre o que deve escrever: 0 Tempo reencontrado, ¢ da mesma feita assegura-se de que vai poder escrever: a Busca (entretanto, jd escrita). Como se vé, o que passa para a obra é, de fto, a vida do autor, mas luma vida desorienteda. Painter, o bidgrafo de Proust, viu bem que a Busca era constituida por aquilo a que chamou uma “biogralia simboli- ca”, ou ainda, ‘‘uma historia simbolica da vida de Proust": Proust entendeu (ai esté0 genio) que ele nfo tinha de “‘contar"” a sua vida, mas ‘que @ sua vida tinha entretanto a significagzo de uma obra de arte: ‘*A Vida de um homem de certo valor € uma continua alegoria'’, disse Keats, citado por Painter. A posteridade dé cada vez mais razio a Proust: a sua obra ja nao é lida apenas como um monumento da literatu- +8 universal, mas como a expressio apaixonante de um sujeito absoluta- ‘mente pessoal que retorna continuamente & sua prOpria vids, nfo como a um curriculum vitae, mas como a uma constelacio de circunsténcias e de figures. Cada vez mais surprendemo-nos a gostar nfo de ‘“Proust”” (nome civit de um autor fichado nas Historias da literatura), mes de ser singular, a uma sb ver crianga e adulto, puersenilis, apaixonado e juizado, presa de manias excéntricas ¢ lugar de uma refle “DURANTE MUITO TEMPO, FUL DORMIR CEDO™ 289 xo soberana sobre o mundo, o amor, a afte, o tempo, a morte. Propus chamar esse interesse muito especial que os leitores podem ter pela vida de Marcel Proust (0 album de fotogeafias da sua vida, na colegio da Pléiade, estd hi muito esgotada) de ‘*marcelismo"”, para distingui-lo do “proustismo"”, que seria epenas 0 gosto por uma obra ou por uma ma- neiraliterdria Se destaquei na obra-vida de Proust o tema de uma nova légica que permite — em todo caso permitiu a Proust — abolir a contradicHo entre ‘© Romance e 0 Ensaio, & porque este tema me concerne pessoalmente, Por qué? E o que pretendo explicar agora.’ Vou entao falar “*de mim" “De mim’” deve entender-se aqui pesadamente: ndo & o substituto as- septizado de um leitor geral (toda substituicao é uma assepsia); outro ado ésendo aquele que ninguém pode substitu, para o que de melhor ou de pior vier. Bo intimo que quer falar em mim, fazer ouvir 0 seu grito, em face da generalidade, da ciéncia 2 Dante (mais uma vez um inicio célebre, mais uma vez uma refe- réncia esmagadora) comeca assim a sua obra: Nef mezzo del camin di nostra vita.,, Em 1300, Dante tinha tfinta e cinco anos (viria a morrer vinte ¢ um anos depois). Eu tenho muito mais, e o que me resta a viver ‘nunca mais sera a metade do que terei vivido. Porque o **meio da nossa vida"? ndo é, evidentemente, um ponto aritmético; como é que, no ‘momento em que estou falando, poderia conhecer a duragdo total da minha existéncia, a ponto de poder dividi-la em duas partes iguais? E um ponto semintico, o instante, talvez tardio, em que sobrevémn na minha vida um novo sentido, o desejo de uma mutaco: mudar de vida, compet ‘einaugurar, submeter-me a uma iniciagto, tal como Dante embrenhan- do-sena selva oscura, deixando-se conduzir por um grande iniciador, Vir* (@ para mim, pelo menos durante o tempo desta conferéncia, © iniciador & Proust). A idade, serd preciso lembrar — mas é preciso lem- brar, de tal modo cada um vive com indiferenga a idade do outro —, a idade s6 ¢ muito parcialmente um dado cronoldgico, um rosario de anos; cexistem classes, casas de idade: percérremos a vida de eclusa em eclusa; em certos pontos do percurso, hd patamares, desniveis, baques; a idade no € progressiva, € mutativa: olhar para a propria idade, se esta idade € ‘uma certa idade, no ¢ uma faceitice que deva acarretar protestos hene- 290 ‘© RUMOR DA LINGUA volentes; ¢ antes uma tarefa ativa:quais slo as forcas reais que a minha idade implica e quer mobilizar? Tal ¢ a questio, surgida recentemente, que, parece-me, fez do momento presente 0 “‘meio do caminho ds mi- sha vida". Por que hoje? Chega um tempo (¢ um problema de consciéncia) em que ‘os dias estio contados”’: comega uma contagem segressiva vaga e no entanto ireversivel. A gente sabia que era mortal (todos Iho disseram, desde que se tena tido ouvidos para ouvir); de repente, a gente se sente mortal (isso nfo é um sentimento natural; © natural é julgar-se imort tantos acidentes por imprudéncia). Essa evidéncia, desde que é acarreta um desarranjo na paisagem: eu preciso, imperiosamente, encai xar 0 meu trabalho numa casa de contornos incertos, mas que sei (nova conscitacia) serem finitos: a altima casa, Ou antes, por estar a casa elimitads, por jé nfo haver “*fora-da-casa’’, o trabalho que nela vou ‘encaixar assume uma espécie de solenidade. Como Proust doente, amea- ado pela morte (ou assim julgando}, reencontramos a palavra de St0 Joao citada, aproximadamente, em Contra Sainte-Beuve: ‘*Trabalhai en- ‘quanto ainda tendes luz”. E depois também chega um tempo (0 mesmo) em que tudo © que fizemos, trabalhamos, escrevemos, parece como que votado & repeticio: ‘que, sempre até morrer, vou escrever de artigos, dar aulas, fazer confe- réncias, sobre ‘‘assuntos’” que serio 0s tinicos a variar, tao pouco! (Eo * que me aborrece). Esse sentimento ¢ cruel; porque me remete 4 exclusfo de todo Novo, ou ainda da Aventura (0 que me “‘advém”"); ‘vejo 0 meu futuro, até a morte, como um ‘“trem": quando tiver tern nado este texto, esta conferéncia, outa coisa nao terei a fazer seno recomecar um Outro, uma outra? Nio, Sisifo nio ¢ feliz: fica alienado, ‘no pelo esforce do trabalho nem por sua vaidade, mas por sua repeticéo. Enfim, um acontecimento (e nfo mais apenas uma consciéncia) pode sobrevir, que vai marcar, incisar, articular esse assoreamento pro- aressivo do trabalho, e determinar essa mutagio, essa inversio de paisa ‘gem a que chamei o “'meio da vida’. Rancé, cavaleiro da fronda, dndi ‘mundano, chegando de viagem, descobre 0 corpo da amante, decapitada por um acidente: retira-se a funds a Trapa. Pars Proust, 0 “*caminho da vida” foi certamente a morte da mae (1905), mesmo que a mutac2o da cia, a inauguracto da nova obra sb tenhe acontecido alguns anos mais tarde. Um luto cruel, um tuto tinico e como que irredutivel, pode constituir para mim esse ‘‘cume do particular’? de que falava Proust; "DURANTE MUITO TEMPO, FUI DORMIR CEDO™ 2 lembora tardio, esse luto serd para mim o meio da minha vida; porque 0 “‘meio da vida"* talvez nada mais seja do que 0 momento em que se descobre que a morte é real, e jd ndo apenas temivel. ‘Assim caminhando, produz-se de repente esta evidéncia: por um lado, nto tenho mais tempo para experimentar diversas vidas; é necess4- rio que eu escolha a minha tltima vida, a minha vida nova. '* Vita Nuo- va"’, ditia Michelet 20 desposar, aos cinglen uma jovem de vinta, ¢ preparando-se para escrever novos livros de historia natural; , por outro lado, devo sair desse estado tenebroso (a teologia medieval falava de acedia) conde me conduzem a usura dos trabalhos repetidos € 0 Iuto. Ora, para quem escreve, para quem escolhew escrever, no pode haver “vida nova’’, parece-me, que nao seja a descoberta de uma nova ratica de escrita. Mudar de doutrina, de teoria, de filosofia, de método, de crenga, embora isso parega espetacular, é na realidade muito banal: fazemo-lo assim como respiramos; investe-se, desinveste-se, reinveste- set as conversoes intelectuais so a propria pulsdo da inteligéncia, a par- tir do momento em que fica atenta as surpresas do mundo; mas a busca, adescoberta, a prética de uma forma nova, isso, penso eu, est na medi da dessa Vita Nuova, de que expusas determinagoes, 10, nesse cume do meu particu- lar, que reencontrei duas leituras (para dizer a verdade, tantas vezes nfo as posso datar). A primeira é a de um grande romance, izmente, ja no se faz mais: Guerra e Paz, de Ti 20 falo aqui de uma obra, mas de uma reviravolta; essa reviravolta tem 0 seu dpice, para mim, na morte do velho principe Bolkonski, nas ultimas palavras que dirige a filha Maria, na explosio de ternura que, sob a instincia da morte, dilacera esses dois entes que se amavam sem mante- em jamais o discurso (0 palavrorio) do amor. A segunda leitura é de um obra intervém aqui a titulo diverso do inicio desta conferéncia: idei me agora com 0 Narrador, no com 0 escri- tor), que é a morte da avo; ¢ uma narrativa de pureza absoluta; quero dizec que a dor ai é pura, na medida em ue no € comentada (contra- riamente a outros episédios da Busca) ¢ em que a attocidade da morte que vern, que vai separar para sempre, 6 & dita através de objetos ¢ de incidences indiretos: a parada no pavilhto dos campos Elisios, a pobre cabega que balanga aos toques do pente de Francoise, Dessas duas leituras, da emogdo que sempre reavivam em mi ‘icei duas ligdes. Verifiquel primeiro que esses episodios, recebia-os (nao encontro outra expressdo) como ‘*momentos de verdade"": de repente, a a (© RUMOR DA LINGUA literatura (porque @ dela que se trata) coincide absolutamente com 0 dilacetamento emotivo, um "*grito’’; diretamente no corpo do leitor que por lembrangs ou previsdo, a separa¢io do ente amado, uma trans- cenda te? O ‘momento da verdad: smo” (alids, ‘esté ausente de todas as teorias do romance). O “'momento de verda- de”, supondo-se que se aceite ter dele uma nogio analitica, implicaria tum reconhecimento do phatos, no sentido simples, nfo pejorative, do teemo, e a ciéncia literdra, coisa estranha, reconhece mal o pathos como forga de leitura; Nietzsche, por certo, poderia nos ajudar a fundamentar 4 nogJo, mas ainda estamos longe de uma teoria ou de uma historia patetica do Romance; porque seria necessirio, para esbocé-la, aceitar pulverizar 0 “todo” do universo romanesco, nfo mais colocar a essen- cia do livro na sua estrutura, mas, a0 contrério, reconhecer que a obra comove, vive, germina, através de uma espécie de “‘arruinamento"* que sb deixa de pe certos momentos, os quais sio, propriamente falando, 0 seus cumes, a leitura viva, concernida, sO seguindo de ceto modo uma linha de crisca: os momentos de verdade so como 0s pontos de mais-va- fia do enteecho. A segunda licio, deveria dizer a segunda coragem que tirei desse contato candente com 0 Romance, & que se deve aceitar que a obra a se fazer (visto que me defino como 'aquele que quer escrever’’) represente ativamente, sen o dizer, um sentimento de que eu tinha certeza, mas que tenho grande dificuldadé para nomear, pois néo posso stir de um circulo de palavras gastas, duvidosas 4 forga de tecem sido empregadas ‘sem rigor. O que posso dizer, o que ndo posso me furtar de dizer, € que esse sentimento que deve animar a obra esti do lado do amor: qué? A bondade? A generosidade? A caridade? Talvez porque Rousseau Ihe tenha dado a dignidade de um * filosofema'”: a piedade (ou a compaix2o). Gostaria de poder desenvolver um dia esse poder do Romance — poder amante ou amoroso (alguns misticos aio dissociam Agape de Eros) —, seja a0 sabor de um ensaio (falei de uma Historia patética da Literatura), seja ao sabor de um Romance, ficando entendido gue chamo assim, por comodidade, qualquer Forma que seja nova com relagdo a ‘minha pratica passada, ao meu discurso passedo, Essa forma, nfo a p0ss0 submeter antecipadamente as regras estruturais do Romance. Posso ape- nas Ihe pedir que cumpra, a meus proprios olhos, trés missbes. A ‘meira seria me permitir dizer aqueles a quem amo (Sade, sim, Sade dizia {que o romance consiste em pintar aqueles 2 quem se ama), ¢ néo dizer- DURANTE MUITO TEMPO, FUL DORMIR CEDO™ 293 thes que os amo (o que seria um projeto propriamente lirico); espero do romance uma espécie de transcendéncia do egotismo, na medida em que dizer aqueles a quem se ama é testemunhar que nao existicam (ndo so- freram, muitas vezes) "*por nada’’: ditas, através da escritura soberana, a doenga da mae de Proust, a morte di de sua filha Maria (pessoas da prbpria familia de Tolstoi), a afligio de Madeleine Gide (em Et nunc manet in te) nio caem no nada da Historia: essas vidas, esses sofrimentos so recolhidos, justificados (assim se deve entender o tema da Ressurreicio na Historia de Michelet). A segunda missio que eu confiaria a esse Romance (fantasmado e provavelmente impossivel) seria permitir-me a representacio de uma ordem afetiva, ple namente, mas de forma indireta, Tenho lido um pouco por toda parte que ¢ ume sensibilidade muito ‘‘moderna”? ““esconder a propria ter- snuza’” (debaixo de jogos de escritura); mas por qué? Seria ela mais ‘‘ver- adeira"’, teria mais valor porque afetamos esconde-la? Toda uma mo- pulsional, do sexual; 0 Romance, tal como o leio ou desejo, & precisa mente essa Forma que, delegando a personagens o discurso do afeto, permite dizer abertamente este afeto: ai o patético ¢ enunciivel, pois 0 Romance, sendo representasio € no expressio, nunca pode ser para quem o escreve um discurso da mé-fé. Enlim e, talvez, principalmente, © Romance (entendo sempre aquela Forma incerta, pouco cangnina na medida em que ndo a concebo, mas apenas a rememoro ou desejo), ‘que a sua escritura ¢ mediata (s6 representa as idéias, os sentimentos, por intermediarios), o Romance, entio, nfo faz pressto sobre 0 outro (0 leitor); a sua instancia € a verdade dos afetos, nao a das idéias: por- tanto, nunca € arrogante, terrorista: conforme a tipologia nietzscheana, ele se coloca 20 lado da Arte, nto do Sacerd6cio. Serd que tudo isso significa que vou escrever um romance? Nao sei. Nao sei se ainda sera possivel chamar ‘‘romance”” & obra que deseo e que aguardo venha romper com a natureza uniformemente intelectual dos meus escritos passados (mesmo se numerosos elementos romanescos the alteram o rigor). Esse Romance utdpico, importa-me fazer como se devesse escrevé-lo. E reencontro aqui, para terminar, 0 método. Coleco: me realmente na posigio de quem faz alguma coisa, ¢ no mais de quem fala sobre alguma coisa: nao estudo um produto, endosso uma producio; elimino 0 discurso sobre o discurso; 0 mundo ja ndo vem a mim sob a forma de um objeto, mas sob a de uma escritura, quer dizer, de uma pré- x © RUMOR DA LINGUA po de saber (0 do Amador) ¢ & nisso que sou metédico. “Como se"’: ngo seria esta férmula a propria expressio de um procedimento cientifico, como se vé em matematica? Levanto uma hipo- tese e explora, descubro a riqueza do que dela decorre; postulo um 20 mance a fazer-se, e desse modo posso esperar aprender mais sobre 0 romance do que considerando-o como um objeto ja feito pelos outros. Talver seja finalmente no amago dessa subjetividade, dessa intimidade mesma de que estive falando com voces, talvez seja no ‘‘cume do meu “ tado confusamente para znza Nuova de que falava Vico: ndo deverd ela exprimir 20 mes- ‘mo tempo a brilhancia e 0 sofrimento do mundo, aquilo que, nele, me seduz.e me indigna? tice: passo para ou Conterencia no College de France, 1978. Este texto foi objeto de uma edigd0 ndo-comer 1a serie dos * Inédits du Collége de France’, n? 7 1982. Prefacio a Tricks de Renaud Camus rode Renaud Camus? “Pos que aceitou prefaciar este! — Porque Renaud Camus é um escritor, porque 0 seu texto faz parte da literature, porque ele proprio no pode dizé-lo ¢ & preciso, en Ho, que alguém o diga em seu lugar. — Seeeste texto é litertrio, isso deve ser visivel por si 36, — Isso se vé, ou se ouve, ao primeiro giro de frase, a um modo imediato de dizer ‘eu’, de conduzir a narrativa. Mas como este livro parece falar, e cruamente, de sexo, de homossexualidade, alguns talvez . de purifici-to, de the 0 sexo no tem. dar uma espécie de dignidade que, a lhe dar crédi — De modo algum: a literatura esta presente para dar um suple- mento de goz0, nao de decen — Pois bem, prossiga; mas seja breve. A homossexualidade choca menos, mas continua a interessar; ela ainda estd na fase de excitagdo em que provoca aquilo a que poderiamos chamar proezas do discurso. Falar dela permite acs "que no sio daque- les" (expressto ja dernos; ¢ aos que se dedica, em sentidos diferentes, a fazé-la render. 338 (© RUMOR DA LINGUA teadicdes, a arrogéncia da verdade (nfo & de se espantar que ele tenhe, pata terminas, ‘‘sublimado"” — recusado Alcibiades), 1977, Coléquio de Cerisy-ta-Salle, Extraido de Prétexte: Roland Barthes, col. 10/18. OU. G.E., 1978 Deliberacao para Eric Marty Nunca mantive um didrio — ou antes, nunca soube se deveria manter um, As vezes comeco, e depois,-muito depressa, largo — e, no entanto, mais tarde, recomeso. E uma vontade leviana, intermitente, sem seriedade e sem consisténcia doutrinal, Creio poder diagnosticar essa “‘doenca'’ do dirio: uma diivida insolivel sobre 0 valos daquilo quese escreve. Essa diivida ¢ insidiosa: é uma divida-atraso, Num primeiro tem- Po, quando escrevo a anotagao (didria), experimento certo prazer: é sim- ples, facil. Nao ¢ preciso sotrer para encontrar o gue dizer: o material ‘ediatamente; ¢ como uma mina 2 céu aberto; 6 tenho de me baixar; nfo preciso transformé-lo: & matéria bruta e tem o seu preco, etc, Num segundo tempo, proximo do primeiro (por exemplo, se ler hoje © que escrevi ontem), a impressto 6 mA: a coisa nio aglienta, como um ue azeda, se corrompe, torna-se inapetitoso de um dia ercebo com desinimo o artificio da "‘sinceridade””, a medio- istica do “‘espontaneo""; pior ainda: desgosto-me e irrito-me 20 verificar uma “‘pose”” que de maneira alguma quis; em situagio de didrio, ¢ precisamente porque ele ndo “‘trabalha”” (nao transforma pela acto de um trabalho), eu @ um “fazedor de pose’: € uma questo de | eleito, ndo de intengio, toda a dificuldade da literatura est ai. Bem de- ressa, avangando na leitura, fico farto dessas frases sem verbos (“Noite O RUMOR DA LINGUA sem insGnia. Ja a terceira de enfiada, ete.”*) ou cujo verbo esté negligen emente reduzide (“*Cruzadas duas mocas na praga St.-S."") — e por mais que eu tente restabelecer a decéncia de uma forma completa (“*Cru: zei, tive uma noite de insonia""), a matriz de qualquer didrio, a saber, a reducio do verbo, persiste no meu ouvido e me irrita como um res mungo, Num terceiro tempo, se reler as minhas paginas de didrio varios meses, varios anos depois de as ter escrito, sem que a minha duvida seja suspensa, experimento certo prazer em fememorar, gragas a elas, os acontecimentos que relatam e, ainda mais, as inflexces (de luz, de atmos- fera, de humor) que me fazem reviver. Em suma, até esse ponto, ne- hum interesse literario (sendo pelos problemas de formulagio, isto &, de frases), mas uma espécie de apego narcisista (fracamente narcisista, nfo se deve exagerar) as minbas aventuras (cuja reminiscéncia no deixa de ser ambigua, pois que lembrar-se é também verificar e perder uma se- gunda vez aquilo que nao voltara mais). Mas, uma vez mais, sera que essa benevoléncia final, atingida apds ter atravessado uma fase de reji- ‘0, justifice manter-se (sistematicamente) um difrio? Sera que isso vale a pena? Nao esboco aqui uma andlise do género “*Didsio’” (ha livros sobre isso), mas apenas uma deliberacéo pessoal, destinada a permitir uma decisto pritica: devo man io com vistas @ sua publicagdo? i Fico apenas com as fungtes que me podem aflorar ao espirito. Por exemplo, Kafka manteve um didrio para “‘extinpar a ansiedade’” ou, se preferirem, “encontrar a salvagao"”. Tal motivo ndo me seria natural, ou pelo menos constante. O mesmo se di com as finalidades que se atribuem tradicionalmente ao Didrio intimo; 1ndo me parecem pertinentes. Ligavam-nas todas 0s beneficios e aos prestigios da ‘‘sinceridade’” (dizer-se, esclarecer-se, julgar-se); mas a psicanilise, a critica sartriane da mé-fe, aquela outra, marxista, das ideo logias, tornaram vi a contissio: « lade nao passa de um imaginé- rio de segundo geau. Nao, a justificagzo de um Difrio intimo (como obra) 36 poderia ser literdria, no sentido absoluto, ainda que nostilgico, da palavra, Vejo aqui quatro motives. primeiro € oferecer um texto colorido com uma individual deescritura, com um "estilo" (teriamos dito outrora), com um peculiar a0 autor (teriamos dito ha pouco}; chamemos a esse motivo: pottico. O segundo é espalhar em poeira, dia a dia, as marcas de uma época, confundides todos os valores, da informacio maior ao pormenoe de costumes; no tenho eu intenso prazer em ler no Didrio de Tolstoi lade DELIBERAGAO a vida de um senhor russo do século XIX? Chamemos a esse motivo: historico, O terceiro é constituir 0 autor em objeto de desejo: de um es- critor que me interessa, posso gostar de conhecer a intimidade, a distri buigdo cotidiana do seu tempo, dos seus gostos, das seus humores, dos seus escrtipulos; posso chegar até a preferit a sua pessoa a sua cbsa, langar-me avidamente sobre o seu disrio e desleixar 0$ seus livros. Posso enti, fazendo-me o autor do prazer que outras souberam me dae, tentar nha ver. seduzir, por esse torniquete que faz passar do escritor & pessoa, e vice-versa; ou, mais gravemente, provar que “eu valho mais do que aquilo que escrevo"" (nos meus livros): a escrita do Ditrio erige- se, entlo, como uma forga-mais (Nietesche: Plus von Macht), que se acredita dever suprir as deficiéncias da plena escritura; chamemos a esse : utdpicd, tanto ¢ verdade que nunca se da cabo do Imaginétio, © quarto motivo & constituir © Diério em oficina de frases: nfo de ““betas’” frases, mas de frases certas; afinar continuemente a justeza da enunciagio (e nfo do enunciado), segundo um arroubo e uma aplicacao, uma fidelidade de designio que muito se assemelha a paixdo: “E as mi has entranhas exultario quando os teus labios exprimirem coisas re tas"? (Prov., 23,16). Chamemos a esse motivo: amoroso (talvez, até idolatra; eu idolateo a Frase). Apesar das minhas pobres impressdes, a vontade de manter um diario é, pois, concebivel. Posso admitir a possibilidade de, no proprio quadro do Diario, passar do que primeiro me parecia imprdprio a litera- tura a ume forma que dela redine as qualidades: individuagao, marca, seducio, fetichismo da linguagem. Durante esses iltimos anos, fiz trés tentativas; a primeira, a mais grave por situar-se durante a doenga de minha mie, ¢ a mais longa, talvez por corresponder um pouco ao desig- rio kafkiano de exprimir a angistia pela escritura; as duas outras so Giziam respeito, cada uma, a um dia; sd0 mais experimentais, embora eu no as releia sem certa nostalgia do dia que passou (sd posso dar uma delas, por a segunda envolver outeas pessoas além de mim), U..., 13 de julbo de 1977 A Dona ***, nova faxineira, tom um neto diabltico de que cuids, disseram-nos, com desvelo e competéncia, A visdo que tem dessa doenca 302 (© RUMOR DA LINGUA € embaracada: por um lado, ndo quer que o diabetes seja bereditério (erie um indice de ma raga), e, por outro, accita gue soja fatal, afastando qualquer responsabilidade de origem. Coloca a doenga como uma ima- gem social, ¢ essa imagem ¢ ardilasa, A Marca aperece.como uma fonte de orgulbo e de tédio; aquilo que ela foi pera Jaco-Israel, desancado, desconjuntado pelo Anjo: 0 goz0 ea vergonhade ve fazer marcar. Sombrios pensamentos, medos, angustias; vejo a morte do ente querido, fico desvairado, etc. Essa imaginagao ¢ 0 contrdrio mesmo da Jé. Porque é aceitar incessantemente a fatalidade da desgraca imagind-la incessantomente: fald-la, é asseri-la (ainda 0 fascismo da lingua), Insagi- nando a morte, desencorajo 0 milagre. O louco de Ordet néo falava, recusava a linguagem tagarela e peremptéria da interioridade. O que é entdo essa impoténcia para a fé? Talvex wm amor muito bumano? Oamor excluiria afé? B vice-versa? A velbice ¢ « morte de Gide (gue leio nos Cabiers de la Petite Dame) foram cercadas de testemunhas. Mas essas testemsunbas, ndo sei 0 que foi feito delas; sem didvida, na maior parte, morreram por sua vez? Hd um momento em que as proprias testemunbas nrorrem sem testemu~ bas. A Historia é assim feita de pequenos estilbagamentos de vida, de mortes sem rendicto. Impoténcia do bomem para os “‘praus"', a ciéncia dos graus. Inversamente, poder-se-a relacionar com 0 Deus elassico a capacidade de ver a infinidade dos graus: “'Deus"’ seria 0 Exponencial absoluto (A morte, @ verdadeira morte, & quondo morre ¢ testemunba mesma, Chateaubriand diz de sua avd e de sua tia-avd: ‘'Talvez soja eu 0 sinico bomem no mundo a saber que essas pessoas existirans": sim, mas como cle 0 escreveu, nds também 0 sabemos, desde que pelo menos leiamos ainda Chateuabriand). 14 de jutho de 1977 Um rapazinbo, neruoso, excitedo, como muitos garotos franceses, aue lego bancam o adulto, estd fentasiado de granadeiro de opereta (oranco e vermetho); precederd sem divida a banda. Por que a preocupagio & aqui mais dura do que em Paris? Esta aldeia € um mundo to normal, tdo puro de qualquer fantasia, que os DELIBERAGAO 363 movimentos da sensibilidade parecem agui totalmente deslocados, Sou excessivo, portanto exelutdo, Parece que aprendo mais coises sobre a Franga durante uma volta va aldsia do que em Paris durante semanas. Uma ilusdo, talvez? A ilu. sia sealista? O mundo rural, aldedo, provinciano, constitui 0 material tradicional do realismo. Ser escritor era, no sécwlo XIX, eserever em Paris sobre a provincia. A disténcia faz com que tado signifique. Na ‘cidade, na rua, sou bombardeado por informagdes — nao por significa gees. 15 de julbo de 1977 As cinco boras da tarde, calma da casa, do campo. Moscas. Doem- ime um pouco as pernas, como quando ex era crianga ¢ tinhe 0 que chamavam de crise de crescimento — ou como se estivesse com uma Gripe incubada. Tudo € pegajoso, adormecido. B como sempre, cons Giéncia aguda, agudezu do men *’marasmo'' (contradigdo nos termos), Visita de X...2 no cémodo vizinbo, ele fala interminavelmente, Nao ouso fechar a porta. O que me perturba ndo € 0 barulbo, é a bane. dade da converse (se pelo menos ele jalasse uma lingua que eu desconhe- e200, ¢ que fosse musical), Fico sempre admirado, et6nito mesmo, com 4 resistincia dos outros: 0 Outro, pare mim, & 0 infatiedvel. A energia —eprincipalmente a energia da linguagem — estupofat-me: taloez seja 0 tinico momento (poste de parte a violéncia) em gue acredito na lou cura, 16de jutho de 1977 De novo, depois de dias encobertos, manba de tempo bonito: bri= tho @ sutileza da atmosfera, uma seda fretea e laminosa, Esse momento waxio (nerbuum sentido) produz « plenitude de ume evidéncia: de que vale a pena viver. O giro para as compras da manha (na mercearia, na Padaria, quando a aldeia ainda estd quase deserta), eu ndo 0 perderia por ada deste mundo Mam. estd melbor hoje. Estd sentada no jardim com um grande chaptu de palba, Logo que fica um pouco melhor, sente-se atratda pela 364 ‘© RUMOR DA LINGUA casa, tomada pelo desejo de intervir; fax entrar as coisas na ordem, apa gando durante odia 0 aquecedor, coisa que nunca faro A tarde, com um belo Sol esmaecido, jt poente, queimei o lixo no Sundo do quintel. Tada uma fisica a observar; armado com um longo ‘bambu, remexo 08 macos de papel que se consomem lentantente; € pre~ iso paciéncia; ¢ incrtvel a resistencia do papel. Em compensapdo, um aco plistico esmeralda (0 proprio do lixo) queima rapidtssimo, sem resto: @ coisa se desvanece, literalmente, Tal fenémeno poderia servir, em muites oportunidades, de metdjora, Pequenos fatos incriveis (lidos io Sud-Ouest ou ouvidos no rédio? Jd ndo me lembro): a0 Egito, teriam decidido punir com a morte ot mugulmanos que se convertessem « outra religido. Na URS, uma co- operante francesa foi oxpulsa porque teria dado de presente rowpas inti- ‘mas a uma amiga sovittica. Fazer um dicionério contemporineo das in tolerdncias (a literatura, no caso em pauta Voltaire, nao pode ser aban- donada enquanto subsistir 0 mal de que ela deu testemunko), 17 de julbo de 1977 Dir-se-ia que ¢ manba de domingo aumenta 0 bom tempo. Dues intensidades beteréclitas reforcam-se uma d outra. Nao me aborrece coxinbar. Gosto das operacbes, Tenho prazer em observar as formas cambientes da comida que se vai fazendo (coloragaes, espessamentos, contragdes, cristalizacdes, polarizagdes, etc.). Essa ob- servagdo tem algo de unt pouco vicioso, Em contrapartida, o que ndo sei fazer, 0 gute erro, sto as doses ¢ os tempos: ponbo dleo demais porque tenbo medo que fique queimado; deixo tempo demait no fogo porque tenbo medo que nao figue bastante cozido. Enfim, tenho medo porque nao sei (quanto, quanto tempo). Dat a soguranea de um eédigo (espécie de sobrevalorizagdo do saber): gosto mais de cozinbar arroz do que bata- as, porgue sei que so necessérios dezessete minutos, Esse ndmero me encanta, na medida em que ¢ preciso (o ponto de sor extravagante); re- dondo, ele me pareceria falseado e, por prudéncia, iiaaumenta-lo v DELIBERACRO, 365, 18de julho de 1977 Aniversério da mam. $6 ibe posso oferecer um botdo de rose do Jerdim; pelo menos € 0 primeira e tinico desde que estamos agui, A noite, Myr. vem jantar e prepara « comida: sopa e uma omelete com Piment6es; trax champanba e doces de améndoas do Peyreborade. A sra. L, mandou flores do seu jardin por uma das filles. Humores, 20 sentido forte, schumanniano: segtténcia descontinua de arrebatementos contraditorios; vagas de angustia, imaginecdes do ior e euforias intempestivas. Bsta manbi, no seio da Preocupagao, uma mostraisolat] de felicidade: 0 tempo (muito bonito, levissimo), a msi ¢« (de Haydn), 0 café, 0 charuto, uma boa pena, os barulbos casciros (0 Sujeito como caprichoso: 0 seu discurso espanta, esta). 19 de julbo de 1977 De manba, cedo, voltando de ir buscar o leite, entro na igreja, para ver. Ele foi eformada segundo o new-look conciliar: é exatamente como tum templo protestante (66 as galerias de madeira marcam uma tradigio Gasca); nenburna imagem, 0 altar tornou-se uma simples mesa, Ne nhum cirio, evidentemente: é pena, ndo? Pelas seis horas da tarde, estou meio adormecido na minha cama. A janela se escancara sobre o firs mais claro de um dia cinza, Experi- ‘mento entdo uma euforia de flutuagao: tudo ¢ limpo, arejado, potivel (bebo 0 ar, o tempo, o jardim), E, como estou lendo Suzuki, parece-me bastante proximo do estado que o Zen chama de sabi; ou ainda (como estou lendo também Blanchot) da “‘fiuider pecada'” de que fala a respei- tode Proust 21 de julbo de 1977 Esto refogando toucinho, cebolas, tomilho, etc. A coisa crepite, 0 cheiro ¢ maravithoso. Ora, esse cheiro ndo é 0 da comide, como serd trazida a mesa. Hd um cheiro do que se come bd um cheiro do que se Prepera (observacao para a "'citncia dos Cambiantes"', o1 ‘'diaforalo- ia"), 366 (© RUMOR DA LINGUA 22 de julbo de 1977 Hisaleuns anos, um projeto nico, parece: explorara mins esta- pider, ow, ainda melbor, dizé-la, fazer dela objeto dos meus livros, As- sim, eu disse a estupidex ‘‘egotista'' e a estupidez amorosa, Falta uma terceire estupides, que um dia sera preciso dizer: a estupide: politica. O gue penso politicamente dos acontecimentos (2 ndo cesso de pensar algu- ‘ma coisa a respeito deles), no diea-dia,€estipido, B essa extupider gue seria preciso agora enunciar no tercerolivr desta pequene trilogia; ume espécie de Disrio politico, Serie precizo uma enorme coragem, mas tal- ter isso exorcizasse essa mistura de ted, de medo e de indignacio gue constitui para mim o Politico (ow antes, a Politica). Eu é mais dificil de escrever do que de ler ‘Ontem, no Casino, supermercado de Anglet, com E.M., ficamos Jascinados com esse exemplo babilbnico da Mercadoria. E verdedeira- ‘mente 0 Bezerro de Ouro: amontoemento de “'riguezas'* (a bom pre¢o), ajuntamento de espécies (classificadas por généros), arca de Noé das coi- sas (dos tamancos suecos as beringelas), empilhamento prededor dos car- rinhos. De repente, temos a certeza de que as pessoas compram: gualguer coisa (coisa que ex mesnio fico); cada carrinho, enquanto estaciona diante do guich® de salda, € 0 mapa impudico das manias, pulsdes, per- versbes, errincias e cabecadas do portador; evidéncia, diente de ume car- rinho que passa soberbamente a nossa frente como uma calega, de que nndo havia nenbuma necessidade de comprar a pinza em celofene que nele std instalada Eu gostaria de ler (serd que existe?) uma Historia das lojas, O que acontecia antes do Bonheur des dames? Se agosto de 1977 Gontinuando Guerra ¢ Paz, tenho uma emogio violenta ao ler a morte do velbo Bolkonski, as suas dltimas palauras de ternura 2 sue filba (‘Minha querida, minba amiga’), os escripulos da princesa para ndo perturbéclo na noite anterior, guendo na verdede ele « chamava, 0 sen- timento de culpa de Maria por ter desejado, um instante, que 0 seu pai morresse, contando que com isso ela encontraria a liberdade, E tudo ” DELIBERACAO. 367 isso, essa ternura, essa puncao, em meio ao mais grosseiro dos solavan- 0s, a chegade ameagadora dos franceses, a necessidade de partir, et. A literatura tem sobre mim um afeito muito mais violento do que areligido. Quero dizer com isso que ela ¢ como a religito. E no entanto, na Quinzaine, Lacassia declara peremptoriamente: ""A literatura jé no existe senda nos manuais"'. Bis-nie al negado, em nome de... da Histd- ria em quadrinbos. 13 de agosto de 1977 Esta manba, cerca de oito boras, 0 tempo estd magnifico. Dé-me vontade de experimentar a bicicleta de Myr. para ir @ padaria. Nao tenbo andado de bicicleta desde quando era crianga. O men corpo ache essa operagio muito estranba, difictlim, e sinto medo (de subir, de descer), Digo tudo isso & padeira — e saindo da padaria, ao querer rentontar na bicicleta, naturalmente, eu caio. Ora, por instinto, deixo-me ir exces sivamente a queda, cons as duas pernas para o ar, na postura mais ridicu la que existe. E entdo compreendo que ¢ este ridfculo que me salva (de um mal maior): acompanhel a minha queda, e com isso ofereci-me em espetéculo, tornei-me ridiculo; mas, tambem cons isso, diminai-lhe 0 feito. De repente, tornow-se-me indiferente nao ser moderno. (..€ como um cogo cujo dedo vai tateando o texto da vida e reco- mbece, aguie ali, "'0 que jd foi dito””.) Paris, 25 de abril de 1979 Noite va Ontent a tarde, por volta das sete horas, debaixo de uma chuva fria de primavera ruin, peguei correndo 0 58, Estranhamente, sd bavie ve Uhos no énibus. Um casal falava muito alto de uma Historia da Guerra (qual? ja nao se sabe): ‘Nada de sobrevoar 0 acontecimento, dizia 0 fulano com edmiragao, todos os pormenores"’. Desci no Pont-Neuf. Conto estivesse adiantado, demorei-me um pouco pelo cais da Megisse- 368 (© RUMOR DA LINGUA rie. Emprogados de blusa azul (eu os sevtia mal pages) arrumavers bri: Tnlnente as grandes gaioles de rodinha onde patos, pombas (sempre estt~ pidos, of voldteis) se expantayam e escorregavers em bloces de wm lado para outro, As lojas estavam jechando. Pala porta, vi dois cachorrinbos: fom, de brincadeira, atigave o outro, que 0 mandava passear com wnt Jjeto Iuumano. Unie vex mois, dewme vontade de ter un cachorro: et ‘bm gue compraria oquele (uma espécie de fox) gue estave iritado ¢ 0 demonstrava de modo nada indiferente, e m0 entanto soberano. Havia também plantas, ervas ens vaso, Vieme (coms desejo ¢ horror) a coriprar tima provisto antes de voltar para U., onde irie morar definitivamente, $6 vindo a Paris a “'negocio"” e para fazer compras. Tomeiglepois a rua dos Bourdonnais, descrta sinisira, Um motorista perguntou-nie onde Jreava 0 BHV: coisa esquisita, ele 56 parecia conhecer a abreviatura e from sequer sabia onde, ou mesmo o que era o Hotel de Ville." Na ‘Flori do Impasse (estropiado), figuei decepcionado: nao pelas fotogra ‘has de D. B.) sto janelas,cortinas axuis tomadas emt sobretons com Po taroid), mas pelo ambiente geledo do vernissage: W. ndo estava la (pro- tuvelmente ne América ainda), R. também ndo (ia me esquecendo: eles tstao brigades), D.S., bela eimponente, disse-me: "“E bonito, nao ¢? — ‘Sinn, é bonito” (mas ¢ ponco, ndo bd o suficiente, acrescentel comigo mresmo), Tudo aguilo estava pobre. E, conto ao envelhecer estou ficando cada vez com mais coragem de fazer 0 que me agrada, depois de dar uma tolta rdpidda na sala (olbar mito terapo nada mais me traria), Sat @fran- cose, e lancei-me nua vagabtendagem pouco stil, de Onibus em: dnibus de cinema em cinema, Eu estava gelado, Jiguei com medo de pogar uma bronguite (pensei nisso wdrias vezes), Pare terminar, agueci-nie us jpouco no Flore, comendo ali alguns ovos ¢ tomando um copo de bor ‘eane, embora tenba sido um dia muito ruins: piblico insipido e arro~ ‘panto, nenbum rosto por gue interessar-se ou sobre o quel fentasiar, ow jelo menos fabular. O malogro lamentdvel da noite levou-me a tentar ‘plicer finalmente a reforma de vida que tonbo na cabera ha mito tem- (po. Disso esta primeira nota é 0 vestigio. (Releitura: este trecho dava-me um proxer bastante seguro, de tal modo fazia reviver as sensagbes daguela noite; mas, coisa curios, ¢0 relé-lo, 0 que melhor eu revivia era o gue ndo estava escrito, os interstt- (1) Hotel de Vile € 0 “Pago Mucins uma loja de departamen sede ds adminstagto, O BEV, Bazar ‘gee fea nae peosimidades do Paco. w DELIBERAGAO. 369 cios de anotagdo; 0 cinza da rua de Rivoli, enquanto eu estava esperando 0 Gnibus; instil alids tentar descrevélo agora, sendo vou perdé-lo ainda ‘em proveito de outra sensacdo silenciada, e assim por diante, como se & ressurreigdo se desse sempre 20 lado da coisa dita: Inger do Fantasma, da Sombra.) Por mais que releia esses dois fragmentos, nada me diz que sejam publicaveis; nada me diz tampouco que nao o sejam. Eis-me aqui face a tum problema que me ultrapassa: o da “‘publicabilidade””, nto: "“E bom, é mau?” (lorma que todo autor da a pergunta), mas; ‘‘E publicével ou nio?””. Nao & apenas uma questio de editor. A diivida ¢ deslocada, desliza da qualidade do texto para a sus imagem. Levanto a questio do texto sob o ponto de vista do outro; o outro nfo é aqui o publico, ov um publico (esta questo ¢ a do editor); outro, tomado nume relacdo dual ¢ como que pessoal, 6 guem vai ler-me. Enfim, piginas de Diario estdo colocadas sob o olhar de * ob o silencio de "para quem falo”". ~ Nao a situacdo de todo texto? Nao. O texto & andnimo, ou pelo menos produzido por uma espécie deNome de Guerra, odo autor. O didrio, de forma alguma (mesmo que foseu '“eu"” seja um nome falso); 0 Diario & um “‘discurso’” (uma espe ie de palavra “ A questio que me coloc dotada, na minha cabega, de uma respasta indelicada: "Nao ligam a minima”, ou, mais psicenal : +0 problema é seu" 'S6 me festa analisar as raz¥es da minha duivida. Por que suspeito, 0b o ponto de vista da Imagem, da escritura do Diério? Creio que ¢ por estar essa escritura, a meus olhos, marcada, como uma mal insidioso, ‘com caracteres negatives — enganosos —, que vou tentar dizer (© Ditrio no corresponde a nenbuma missdo. Nao se deve rit dessa palavra. As obras da literatara, de Dante a Mallarmé, a Proust, a Sartre, sempre tiveram, para aqueles que as escreveram, uma espécie de fim, social, eolbgico, mitico, estético, moral, etc. O livro, “‘arquitet6- 2 e premeditado”, € visto como reproduzindo uma ordem do mundo, cle implica sempre, parece-me, uma filosofia monista. O Didrio nfo pode atingit o Livro (a Obra); é apenas um Album, para retomar a distinga0 malarmeana (a vida de Gide & que ¢ uma ‘‘obra’’, ndo 0 seu Ditrio). O ‘Album é colegdo de folhas nao apenas permutiveis (iss0 ainda nao seria nada), mas principslmente suprimiveis ao infinito: relendo o meu Did a0 ‘© RUMOR DA LINGUA rio, posso cancelar uma anotagio depois de outra, até o aniquilamento completo do Album, sob o pretexto de que ‘*ndo me agrada‘*; assim fazem, a dois, Groucho ¢ Chico Marx, lendo, e rasgando enquanto léem, cada clausula do contrato que deve ligi-los. — Mas no poderd 0 Diitio, precisamente, ser considerado e praticado como essa forma que exprime essencialmente o inessencial do mundo, o mundo como inessencial? — Para isso, seria preciso que o assunto do Diario fosse 0 mundo e ndo eu; senilo, 0 que ¢ enunciado é uma espécie de egatismo que se interpde entre o mundo e a escritura; por mais que faga, torno-me consistente, face a0 mundo que nio 0 é. Como redigir um Ditrio sem egotismo? estd justamente a questo que me impede de o escrever (porque, do eg0- tismo, ja estou um tanto farto) Inessencial, o Didrio ndo & tampouco necessirio. Nao posso inves- ‘ir num Didrio como o faria numa obra dnica e monumental que me fosse ditada por um desejo louco. A escritura do Diério, regular, didria como uma fungio fisiolbgica, implica sem davida um prazer, um con- forto, néo uma paixdo, E uma maniazinha de escritura cuja necessidade se perde no trajeto que vai da anotacio produzida @ antago relida “No achei que 0 que escrevi até aqui fosse particularmente precioso ‘nem tampouco que merecesse realmente ser posto fora"” (Kafka). Como © perverso (diz-se), sujeito 20 "sim, mas””, sei que © meu texto & v3o, ‘mas 20 mesmo tempo (por um mesmo movimento) nio posso me furtar & crenga de que ele existe, Inessencial, pouco seguro, o Diario é, além do mais, inauténtico. Nio pretendo dizer com isso que quem nele se exprime nao € sincero. Quero dizer que a sua propria forma sb pode ser tirada de uma Forma antecedente ¢ imével (precisamente a do Disrio intimo), que nio se pode subverter. Ao escrever 0 meu Diario, estou, por estatuto, condenado a simulacéo. Dupla simulagzo, até: porque, sendo toda emogio cépia de ‘mesma emogio que se leu em algum lugar, relatar um humor na lingua- gem codificada da Lista de Humores ¢ copiar uma cOpia; mesmo que © texto fosse ‘‘original”’, jf seria uma cbpia; com maior razao se for w itor, de seus males, dragdes que acalentou, ou de uma al ‘aria, deve instituir-se, no texto, espiritual histrigo”” (Mallarmé). Que paradoxo! Ao escolher a forma de escritura mais “‘direta", mais “es- Pontinea’’, reencontro-me o mais grosseiro dos histrides. (E por que ‘nto? Nao ha momentos “histéricos"? em que & preciso ser histrito? Ao praticar até 0 exagero uma forma desusada de escritura, no estaria eu dizendo que amo a literatura, que 2 amo de maneira lancinante, no mo: DELIBERACAO m mento mesmo em que ela estd a perecer? Amo-a, portanto imito-a — mas, precisamente: nao sem complexos.) Tudo isso diz mais ou menos 2 mesma coisa: que o pior dos tor- mentos, quando tento redigir um didrio, ¢ a instabilidade do seu julga: mento, Instabilidade? Antes a sua curva inexoravelmente descendent No Diario, observava Kafka, a auséncia de valor de uma anotagdo sem- pre & reconhecida demasiado tarde, Como fazer daquilo que ¢ escrito a ‘quente (¢ disso se aloria) um bom prato frio? E essa perda que faz 0 mau Ditrio. Mais uma vez Mallarmé (que, entretanto, no escreveu ne- nhum): ''Ou outro palavrério, tornado tal por menos que seja exposto, de persuasivo, sonhador e verdadeiro quando confisdo baixinho’”; como no conto de fadas, sob efeito de uma condenagto e de um poder malef a8 flores que saem da minha boca sio transformadas em sepos. ‘Quando digo alguma coisa, essa coisa perde imediata e definitivamente a sua importincia. Quando a anoto, também perde, mas as vezes ganha ‘outra"” (Kafka). A dificuldede propria 20 Ditrio & que essa importincia segunda, liberada pela escritura: nfo é seguro que 0 Ditrio recupere a fala e Ihe dé « resisténcia de um novo metal, Por certo a escritura ¢ essa atividade estranha (sobre @ qual até agora a psicanilise nio teve pega, ‘compreendendo-a mal) que estanca milagrosamente a hemorragia do Imaginério, de que 2 fala é © rio possante e derrisbrio. Mas, pret mente: 0 Dirio, por mais ‘bem escrito’? que seja, sera escritura? Ele se esforga, se estufa, se empina: estou to grande como 0 texto? Nanja, voce nem chega perto. Dai o feito depressive: aceitivel quando escrevo, decepcionante quando releio No fundo, todos esses desfalecimentos do sujeito designam bas- tante bem certa falha do sujeito. Esse falha ¢ de existéncia, O que 0 Dirio levanta, ndo ¢ a questo trigica, a questiio do Louco: ‘Quem sou?"?, mas a questo comica, questio do Pasmado: ‘*Sou?"", Um cOmico, eis o que ¢0 autor de Disrio, ‘Noutras palavras, nfo tenho saida. E se nfo tenho saida, se no chego a discutir o que ‘‘vale”” 0 Didrio, é porque o seu estatuto literdrio ime escorrega por entre os dedos: por um lado, sinto-o, através de sua facilidade e obsotescéncia, como nfo sendo nada mais do que o limbo do ‘Texto, a sua forma inconstituida, inevoluida ¢ imatura; mas, por outro lado, € mesmo assim um retalho verdadeiro desse Texto, porque dele comporta o tormento essencial. Esse tormento, creio eu, reside no se- guinte: a literatura ¢ sem provas. Deve-se entender com isso que nio 36 ela ndo pode provar 0 que diz, mas tampouco que vale a pena dizé-o.

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