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E R I C A R D O B I T Ú N
A Herança Protestante e o Desafio da
Teologia da Prosperidade
Índice
Apresentação
Como (e por que) este livro nasceu
Preâmbulo 2
Preâmbulo
A Bíblia registra em 1 Timóteo 6:9: “Ora, os que querem ficar ricos caem em
tentações, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam
os homens na ruína e na perdição”. As palavras do apóstolo Paulo ganham um tom ainda
mais profético quando aplicadas ao momento atual da Igreja Evangélica Brasileira. Ele
adverte contra a sedução da riqueza e a insensatez de se perseguir o sucesso material. Esse
caminho, diz o apóstolo, está pavimentado de “ciladas” e só pode terminar em “ruína e
perdição”.
Nas últimas duas décadas, uma corrente teológica vinda dos Estados Unidos invadiu o
Brasil. Travestida de verdade revelada, ela subverte o Evangelho e põe em xeque nossa
herança protestante. A Teologia da Prosperidade, nome pelo qual essa corrente é conhecida,
encontrou ampla acolhida no mundo editorial. Com raras exceções, as editoras evangélicas
inundaram o mercado com obras que propagandeavam os ensinamentos do Movimento da
Fé, como também é chamada a escola doutrinária iniciada pelo americano Kenneth Hagin,
autor dos best-sellers A autoridade do Crente e Compreendendo a Unção.
O pastor sobe ao púlpito acreditando combater forças ocultas, que talvez não sejam lá
tão ocultas, mas assim mesmo cridas como sendo. O crente vai ao templo para ouvir uma
palavra positiva, para cima; anela por uma mensagem de refrigério, de bênção. Falar de
arrependimento e conversão seria trair sua confiança, frustrar sua expectativa. Então, sob
esse aspecto, a Teologia da Prosperidade venceu.
O mundo editorial não foi, porém, o único a contribuir para a ascensão da Teologia da
Prosperidade. Da noite para o dia, os canais de televisão passaram a abrigar em suas grades
programas apresentados por estrelas do Movimento da Fé como Valnice Milhomens e R. R.
Soares. O poder do meio amplificou o efeito, e não demorou para que a Teologia da
3
Prosperidade ganhasse o status de “pensamento oficial” da Igreja Evangélica Brasileira,
tamanha sua influência e de seus líderes.
As páginas que se seguem não são uma refutação da Teologia da Prosperidade. Pelo
menos três volumes já foram dedicados a esse tema com relativo sucesso. Dois são de
autoria do pastor e pesquisador Paulo Romeiro e um do pastor Ricardo Gondim.2
Nosso objetivo é mais modesto. Temos em mente o leitor que, bombardeado pelas
mensagens dos mensageiros da Prosperidade, foi tomado de dúvidas sobre sua fé e, sem
respostas, sente o chão fugir-lhe. Sofre com a falta de conhecimento e de argumentos para
rebater aos que o acusam de ser ele um “crente fraco”, sem poder.
Pensamos também no pastor que se angustia por não ter encontrado a “chave do
crescimento e do sucesso” para o seu ministério e se impacienta com a própria falta de
criatividade. Ele ouve relatos de igrejas onde as pessoas se espremem porque o lugar ficou
pequeno para tanta gente; onde o pastor tem um programa de televisão e o nome do seu
ministério está na boca de todo mundo. Aí ele para e se pergunta: “Onde está o segredo?”
1
“Evangelho de Resultados”, entrevista publicada na edição de Junho de 2001 da revista Eclésia., pp. 24 e ss. O
missionário R. R. Soares, é fundador e presidente da Igreja Internacional da Graça.
2 As obras são: SuperCrentes – O Evangelho Segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Profetas da
Prosperidade. Mundo Cristão. São Paulo, 1993 e Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na Igreja Brasileira.
Mundo Cristão. São Paulo, 1995 (de autoria do Pr. Paulo Romeiro); O Evangelho da Nova Era: Uma Análise e
Refutação Bíblica da Chamada Teologia da Prosperidade. Abba Press. São Paulo, 1993 (do Pr. Ricardo Gondim).
4
protestante; segundo, que é possível crescer e manter a identidade com essa mesma herança.
Se logrei sucesso, somente leitor poderá dizer.
Não precisamos fazer concessões para nos tornar mais respeitáveis ou ganhar a
aprovação da sociedade. Paradoxalmente, depois de anos como minoria religiosa, os
evangélicos podem vir a se tornar uma maioria que não faz diferença.
5
I
A INSERÇÃO DA
F É P R O T E S TA N T E N O B R A S I L
Tentativas e fracassos
A Igreja Evangélica Brasileira é nova. Começou a fixar-se a partir da segunda metade
do século XIX, quando o Brasil já havia conquistado sua independência de Portugal e era
governado por um imperador (D. Pedro II). Houve, no período Colonial, tentativas de
implantar por aqui a fé protestante, mas ela só viria a vingar entre nós muito tempo depois
de o catolicismo tornar-se a religião oficial do Brasil. De fato, a Constituição Imperial de
1824 apenas ratificou um domínio já existente na prática.
Um fato curioso na história da Igreja no Brasil foi o movimento iniciado por Frei
Caneca, então regente do Império, para separar a Igreja brasileira do Vaticano. O religioso
chegou mesmo a convidar teólogos de Westminster para virem ao Brasil, com o intuito de
criar aqui uma nova teologia, de traços protestantes e anglicanos. O religioso foi destituído
da sua regência e condenado por traição. Fracassou, desse modo, mais uma tentativa de
implantar a Igreja Evangélica em nosso país, o que só viria a acontecer com a chegada dos
6
imigrantes europeus (principalmente alemães, que abriram igrejas luteranas no sul do país) e
das primeiras missões estrangeiras na segunda metade do século XIX.
Imigrantes e missionários
Os imigrantes tiveram um papel decisivo na inserção da fé protestante no Brasil. Em
1810, Portugal e Inglaterra haviam firmado o Tratado de Comércio e Navegação que, entre
outras coisas, protegia os imigrantes protestantes de perseguição religiosa. Isso incentivou a
chegada deles em grande número, vindos principalmente dos Estados Unidos, Escócia e
outros nações européias. Foram os imigrantes alemães, entre eles muitos luteranos e
reformados, porém, que criaram comunidades de colonos, instalando-se principalmente nos
estados do Sul do país. No começo, seus pastores foram escolhidos entre os próprios
“leigos”, e ficaram conhecidos como “colonos-pregadores”. Só bem mais tarde,
missionários e ministros foram enviados da Suíça e da Prússia para cuidar do rebanho
alemão no Brasil.
Médico de formação, Kalley foi missionário na Ilha da Madeira, de onde fugiu vítima
de perseguição religiosa. Nos Estados Unidos, encontrou-se com Fletcher, de quem ouviu
relatos sobre o “grande campo” recém-aberto no Brasil. E para cá Kalley veio, em 1855,
acompanhado de Sarah Poulton, sua esposa, co-autora com ele do mais famoso e influente
hinário evangélico brasileiro, o Salmos e Hinos.3
3MENDONÇA, Antonio Gouveia. O Celeste Porvir – A Inserção do Protestantismo no Brasil. Aste. São Paulo, 1995.,
pp 29 e 176
7
Do trabalho dos Kalleys nasceu a Igreja Evangélica Fluminense, uma comunidade que
reunia madeirenses e brasileiros. Robert Kalley foi um destacado defensor da liberdade
religiosa e o primeiro missionário a usar a língua portuguesa para divulgar o Evangelho no
país.4
Depois de uma malsucedida tentativa com Thomas Jefferson Bowen dez anos antes, os
batistas se instalaram entre nós em 1871 na cidade de Santa Bárbara D’Oeste, onde existia
uma comunidade de imigrantes confederados vindos dos Estados Unidos. A primeira igreja
começou a funcionar em setembro daquele ano, tendo à frente o pastor Richard Ratcliff.
Somente uma década mais tarde, em 1881, a Junta Missionária de Richmond enviou ao
Brasil William B. Bagby. No ano seguinte à sua chegada, ele fundaria, ao lado de um ex-
padre (Antônio Teixeira), a primeira igreja batista brasileira.6
4 Ibidem, p. 176
5 Ibidem, pp. 29 e 178-185
6 Ibidem, p. 31
8
150 fiéis. Dois anos mais tarde a Igreja Episcopal do Brasil sagrou seu primeiro bispo
residente, Lucien Lee Kinsolving.7
Essa unidade irá, pouco a pouco, sofrer abalos à medida que os evangélicos crescem,
até resultar na ruptura e no isolamento dos anos 80.
O choque pentecostal
Os pioneiros foram a Congregação Cristã do Brasil, aqui chegada em 1910 pelas mãos
de um italiano, Luigi Francescon, e a Assembléia de Deus, fundada no ano seguinte pelos
missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg. As duas permaneceram como as
maiores forças do movimento pentecostal no Brasil até o final dos anos 40, quando
dissidentes criaram ministérios independentes. Surgiram, então, três novos protagonistas.
Dois deles (a Pentecostal O Brasil Para Cristo e a Deus é Amor) se singularizaram por
marcarem a emergência das “igrejas autóctones”. O terceiro (a Evangelho Quadrangular) foi
trasladado dos Estados Unidos para cá.
Francescon morou nos Estados Unidos no período em que William Seymour iniciou,
num prédio alugado na cidade de Los Angeles, o que ficou conhecido como o Século
7 Ibidem, pp. 31 e 32
8 Ibidem, p. 83
9
Pentecostal. Era o ano de 1906. Francescon e sua esposa, Rosina Balzano, moravam em
Chicago quando receberam o “batismo” com o Espírito Santo. Eles deixariam os Estados
Unidos em 1909 rumo ao Brasil.
A igreja fundada no Pará, em 1910, por Gunnar Vingren e Daniel Berg, tornou-se a
maior denominação evangélica brasileira em menos de cem anos. A Assembléia de Deus é a
tradução mais bem-sucedida –tanto em ternos doutrinários quanto numéricos– do
pentecostalismo entre nós.
9 CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil – Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora.
São Paulo, 2a edição, 2000, p. 115
10 Ibidem, p. 119
10
Manoel de Mello e as “igrejas autóctones”
No final dos anos 50 um fenômeno novo surge, provocando uma mudança no cenário
evangélico nacional. São as igrejas autóctones. Sua figura de maior destaque –e,
curiosamente, menos estudada– é o pernambucano, pedreiro de profissão e missionário por
vocação, Manoel de Mello. Ele e a igreja que fundou (Igreja Evangélica Pentecostal O
Brasil Para Cristo) são um marco no protestantismo brasileiro. Fruto talvez de preconceito,
Mello permanece mal compreendido, apesar da sua singularidade e da influência que teve
na história da Igreja Evangélica Brasileira.
Manoel de Mello representou uma mudança radical, uma ruptura no curso até então
trilhado pela Igreja Evangélica Brasileira. De repente, um homem oriundo da Assembléia de
Deus (como a maioria dos outros fundadores de igrejas autóctones no Brasil) começou a
sacudir os crentes. Sua pregação, profética e belicosa, ultrapassou as fronteiras das
denominações evangélicas e alcançou o mundo político. Se hoje a relação entre fé e política
está pacificamente incorporada aos nossos debates, não devemos esquecer o quanto Manoel
de Mello tem a ver com isso, rompendo o isolamento dos protestantes e se fazendo ouvir
pelos políticos.
Se a história falará bem ou mal dele, é uma questão discutível. Mas que Manoel de
Mello transpôs as fronteiras, disso não se pode ter a menor dúvida. E o fez de maneira
original. Não só porque era um grande comunicador de massas e possuía aquele afã que é
próprio dos pentecostais, de cura, libertação. Aquela palavra poderosa que constrange e
exige decisão. Não, não foi só por isso. Foi também porque corajosamente fez escolhas que
o levaram por caminhos desconhecidos das lideranças evangélicas tradicionais.
A Confederação era uma instituição progressista, com um ideário mais próximo dos
partidos de esquerda brasileiros. A clima político da época parecia não deixar outra opção
que não a do exílio. E foi para ele que muitos líderes partiram.
Há os que verão em tudo isso algo de inusitado. Mas o fato mesmo de se constituir em
novidade para alguém denuncia, por si só, o descuido que temos com a nossa história. E
assoma maior razão para que se encare com urgência um estudo sobre a atuação da Igreja
Evangélica nos anos de chumbo.
Os líderes não foram os únicos acossadas pelo regime. Outro alvo da intransigência
militar foram as organizações jovens evangélicas. Como suas congêneres estudantis, elas
também sentiram o peso do arbítrio: portas foram fechadas, diretorias destituídas,
documentos confiscados. Os jovens foram silenciados pelo argumento dos fuzis.
Como sempre na história dos homens e mulheres que constroem o Reino de Deus, a fé
e a esperança abriram caminho em meio às pedras e espinhos do mundo. Assim, no final dos
anos 60 e início da década de 70, precisamente quando os militares lançavam mão dos mais
perversos expedientes para se manter no poder, brotou entre os jovens uma vigorosa reação.
II
F É E M E X PA N S Ã O :
OS ANOS DE CRESCIMENTO
Três ondas
A década de 60 marcou a inserção definitiva da Igreja Evangélica na sociedade
Brasileira. A Assembléia de Deus cresceu de forma expressiva e ganhou projeção nacional.
O Pr. Manoel de Mello tornou-se alvo do assédio de políticos, cientes do peso que ele e sua
igreja representavam em termos eleitorais. Os evangélicos passaram a ser percebidos como
uma força não só numérica, mas ideológica. Nasce a primeira grande onda de crescimento
da igreja.
A simplicidade das teses acima pode levar à falsa conclusão de que a Igreja Evangélica
Brasileira apenas seguiu seu curso evolutivo natural. A rápida emergência dos pentecostais
e a reação dos tradicionais dizem muito de como nada de natural houve nessa evolução.
Manoel de Mello era um homem com um projeto político. Após o incidente com
Barros, lançou e apoiou diversos candidatos, até que a intervenção dos militares em 64 veio
interromper suas investidas no mundo da política.
Manoel de Mello tinha uma visão. Suas idéias, ousadas para a época, o colocavam na
vanguarda. Um autêntico líder, era aceito por políticos, mas visto com desconfiança pelo
evangélicos. Com sua morte, ocorrida em 1990, não morreu o sonho de ganhar o Brasil para
Cristo!
Com a Deus é Amor surgiu um discurso que fará escola nas décadas seguintes: a cura
como eixo do discurso religioso. A Assembléia de Deus, a Quadrangular e a Congregação
Cristã também a enfatizavam, mas nenhum ministério faria da sua pregação marca
registrada. Importa menos perguntar-se do ponto de vista doutrinário essa ênfase é aceitável
do que identificar na Deus é Amor o embrião dos tele-ministérios de Edir Macedo, R. R.
Soares e outros.
Quando seu fundador se anuncia como “o maior pregador de curas divinas” e seu
nome aparece nos letreiros afixados à porta de seus templos16, não resta dúvida de que o
Faulkner chegou ao Brasil em 1962 e, três anos mais tarde, implantou uma estratégia
que levaria os quadrangulares a um crescimento espetacular. Em 1999, eles eram mais de
1,5 e suas igrejas, presentes em todos os estados brasileiros, já passavam de seis mil.18
No final dos anos 70 e início dos 80 teve início a segunda grande onda de crescimento
da Igreja Evangélica Brasileira. Missões, como a Sepal, chegam ao país e injetam novas
idéias na evangelização. Os jovens formam verdadeiros exércitos e as “cruzadas” se
multiplicam pelo país.
A sociedade havia entrado em transe e, mundo afora, a insatisfação das novas gerações
se cristalizava num movimento que ficou conhecido como contracultura. “Drogas, sexo e
rock-n-toll” ganhou status de ideologia e John Lennon declarou que os Beatles eram mais
populares que Jesus Cristo. No Brasil, vivíamos os anos de chumbo do regime militar.
A literatura passa a ser cada vez mais usada como meio para divulgar as Boas Novas
do Reino. Numa nação de iletrados e onde livros eram artigos de luxo, essa era uma
estratégia audaciosa, para não dizer revolucionária. A revista Mensagem da Cruz, publicada
pela Editora Betânia, reproduzia textos de David Wilkerson, já a essa altura mundialmente
conhecido. Os livros de Billy Graham, best-sellers no país, enchiam as prateleiras das
livrarias (não só evangélicas) e eram lidos avidamente. Foi um verdadeiro boom!
17 Ibidem, p. 129-130
18 Ibidem, p. 132
19 Ibidem, p. 133
17
Uma mudança de mentalidade vai aos poucos se processando no seio da Igreja
Evangélica Brasileira. O fervor evangelístico e o sucesso de algumas denominações
(principalmente as pentecostais) na conquista de fiéis ajudou a sedimentar a idéia de que os
evangélicos podiam crescer no Brasil. Essa nova confiança contrapunha-se à timidez
excessiva dos evangélicos no passado. Até então, acreditávamos que nunca chegaríamos a
conquistar este país, tão grandes eram os obstáculos a superar. Era como se nos
contentássemos em ser uma minoria. Não apenas silenciosa, mas auto-refreada. Isso foi
deixado para trás nos anos 70. Entramos na terceira onde de expansão.
Havíamos crescido e não tínhamos nos dado conta disso. Um fato ilustrativo dessa
ignorância aconteceu durante uma entrevista na qual me indagavam sobre como era possível
explicar o crescimento da Igreja Evangélica Brasileira. Quase caí na tentação de perguntar:
“Que crescimento?” Disse, então, ao jornalista: “A partir de que dados você está falando?”
Assustei-me quando ele me forneceu os números. Não queria revelar minha desinformação.
Passei, então, a falar a partir do que ele me dissera.
E como crescemos?
Alguns desses novos líderes haviam saído da Assembléia de Deus, tinham uma base
sólida, pois haviam crescido através da oração. Mas entre eles também se contavam homens
que se converteram há pouco, estavam fora e foram atraídos pelo crescimento extraordinário
do Evangelho. Queriam fazer parte disso e aí decidiram criar seus próprios ministérios.
Movimentos como a ADHONEP (Associação dos Homens de Negócio do Evangelho
Pleno) serviram de plataforma para projetá-los.
O aparecimento dessa nova liderança coincide com uma importante mudança ocorrida
no fim dos anos 80. Até então havia uma concentração de fiéis nas às classes menos
favorecidas (C, D e E). Com o surgimento dos neopentecostais, o Evangelho começa a ter
penetração também nas classes A e B. Inicia-se aí um processo, por assim dizer, de
elitização da fé. Essa mudança é sintomática, uma vez que a partir desse instante uma
corrente doutrinária especial vai se tornando prevalente, cuja ênfase vai estar exatamente na
bem-aventurança material do crente e na pregação do sucesso como intrínseco à condição de
filho de Deus.
Sem se intimidar, os novos líderes não perderam tempo: iniciaram ministérios, abriram
suas próprias igrejas e foram para a mídia. Assim teve início a ascensão meteórica dos
neopentecostais.
O que, afinal, há de errado com essa nova liderança? Embora honestos em sua fé, seus
representantes não se livraram dos vícios sincréticos da cultura brasileira. Daí seus
ministérios serem sincréticos, com uma pregação também sincrética. Pentecostais no
discurso, pregam parte das ênfases evangélicas, mas pagam tributo à herança católica e
espírita populares. Carecem de ciência teológica para separar as coisas.
19
Os que identificam no discurso neopentecostal a união espúria entre fé e superstição,
denunciam como heréticos seus propagadores. Escandalizados, batem a porta na cara deles.
E declaram: “Vamos parar por aí, isso já passou dos limites”. Os que assim agem falam a
partir do conhecimento que possuem da história e da teologia da Igreja Evangélica
Brasileira. O que os preocupa é menos a polêmica do que a integridade da fé; mais a defesa
do Evangelho do que a prerrogativa de ser histórico.
A Igreja pode e deve fazer uso dos meios de comunicação. Colocados a serviço do
Reino de Deus, são instrumentos poderosos na propagação do Evangelho. O erro está no uso
indiscriminado e acrítico da mídia, em sucumbir à sua sedução, ao glamour e ao poder que
ela confere aos que estão na frente das câmeras. É preciso reconhecer: há meios que se
contrapõem à Palavra de Deus, trazem em si a negação mesmo da mensagem (o amor de
Deus pelo mundo) que anunciam. E os evangélicos falharam desgraçadamente em não ter
esse discernimento.
Crescer tornou-se nossa paixão. Uma paixão que nos obseda, turva nossa razão e
arrasta-nos para longe dos propósitos de Deus. Não nasce do sincero desejo de trazer
homens à salvação, encher o aprisco do Senhor. Não, essa paixão pelo crescimento emerge
como sanha mal disfarçada em operosidade, cobiça travestida de fervor. Queremos crescer a
qualquer custo. E para quê? Para ter poder, visibilidade, sucesso!
Ninguém parece ter escapado a isso. Todo pastor, não importa a qual denominação
pertença, já ouviu falar, pelo menos uma vez, de “modelos” que prometem crescimento
rápido: igreja em células, G12 etc. “Trinta mil células em cinco anos? Opa, eu quero”. Aqui
21
e ali se ouve uma crítica a este ou aquele modelo, mas ninguém quer abrir mão do
crescimento. É preciso crescer, e crescer rápido.
Fé e sincretismo
Talvez nenhum outro país tenha um caldo cultural tão complexo quanto o Brasil.
Somos miscigenados. Uma raça que é todas e nenhuma. O efeito desse mosaico de traços
culturais díspares revela-se mais fortemente em nossa religião, acentuadamente sincrética.
Liderança e personalismo
Os novos líderes retomam ainda o coronelismo, traço que marca a cultura brasileira e
permeia todas as estruturas sociais, quer privadas ou públicas, laicas assim como religiosas.
Poderia ser diferente, tendo esse movimento erguido-se em torno de igrejas autóctones? É
duvidoso.
20GONDIM, Ricardo, O Evangelho da Nova Era: Uma Análise e Refutação Bíblica da Chamada Teologia da
Prosperidade. Abba Press. São Paulo, 1993, p.10
22
todo mal? Ao assimilar o coronelismo, os líderes neopentecostais estariam mais próximos
do “povo” e da cultura brasileira do que as igrejas tradicionais com seu modelo mais
parlamentarista de organização. Se, por outro lado, estariam mais próximos do Evangelho é
algo aberto à discussão.
Antes de tudo, porém, é preciso reconhecer que a Universal não é uma igreja herética.
A rigor, nada do que ensina pode ser tido como contrário à ortodoxia protestante. Ela
anuncia que o homem é pecador e está distante de Deus, prega a necessidade de
arrependimento e a salvação pela fé no sacrifício expiatório de Jesus. Proclama o Senhorio
de Cristo, sua segunda vinda e a unidade da igreja. Sua doutrina do Espírito Santo em nada
difere do pregado pela Assembléia de Deus e outras igrejas pentecostais históricas. Tudo
isso pode ser dito a favor da Universal, sem necessariamente se fazer uma apologia de suas
práticas litúrgicas ou de seus ensinamentos sobre o poder do crente. É precisamente neste
ponto que as coisas ganham contorno e coloração diferentes.
23
A jornalista e professora da PUC de São Paulo Márcia Benedetti Machado sugere que
a Universal vai além do que se pode chamar de uma igreja convencional, preocupada com a
salvação do homem e a proclamação do Evangelho. A Universal defende um verdadeiro
ideário, cujo caráter ideológico nem sempre é percebido por seus críticos.
“A salvação não é mais privilégio a ser desfrutado apenas depois da morte”, pondera a
professora. E conclui: “Ser salvo no Juízo Final é certamente uma promessa da igreja, mas a
salvação está estreitamente relacionada à felicidade que o indivíduo pode conquistar ainda
hoje, no plano terreno”. Pode-se afirmar que, enquanto mantém os elementos
transcendentes da fé cristã, a pregação da Universal introduz-se um componente mundano,
secular, imanente, que associa a salvação da alma a conquistas materiais.
Márcia Benedetti prossegue em sua análise e diz: “A cura, por sua vez, mobiliza todas
as dores humanas. Ela abrange não só a cura física, mas também a dos sofrimentos
emocionais. O fim das desavenças familiares e do desejo do suicídio, por exemplo, estão no
mesmo nível das doenças físicas”. O último componente dessa linha de pensamento é,
segundo a professora, “o apelo à realização financeira e ao sucesso”.22
21
Tese de doutorado defendida na PUC de São Paulo
22
As citações feitas aqui foram retiradas de uma entrevista, concedida por Márcia Benedetti machado ao Observatório
da Imprensa. A íntegra pode ser lida no site do Observatório ( www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos).
23 CÉSAR, Elben M. L., História da Evangelização do Brasil: Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora. São
Paulo, 2a. edição, 2000, p. 149. A Universal foi fundada em 1977, no Rio de Janeiro, com o nome de Igreja da Benção,
num prédio antes ocupado por uma funerária. No ano seguinte veio a chamar-se pelo nome atual. Além de Macedo,
foram fundadores da Universal R. R. Soares e Miguel Ângelo. Até hoje ignora-se o motivo de sua separação.
24
Márcia Benedetti adverte contra a aparente simplicidade do discurso da Universal. Seu
estudo dos testemunhos ouvidos nos templos dessa igreja revela “uma lógica complexa”. “O
homem é dotado de livre-arbítrio, pode escolher seguir os preceitos de Deus ou não. Deus,
por sua vez, está disponível para o homem, desde que este de fato queira suas benesses. Se o
homem chamar e tiver fé, Deus atenderá”, explica Márcia Benedetti.
Surge, então, a indagação: “Qual é a medida da fé?” A resposta, diz a professora, é que
não há como sabermos. “O indivíduo pode pedir a Deus que atenda seus desejos e ainda
assim nada acontecer. Nunca será culpa de Deus, e sim falta de fé.”
Márcia Benedetti avança um pouco mais em seu exame para mostrar como fé e bem-
aventurança material se vinculam no discurso da Universal. “Entra aí um segundo elemento
complicador”, diz ela, “que é a expressão da fé por meio do sacrifício financeiro. Doando
mais do que poderiam, as pessoas ‘desafiam’ Deus a cumprir os seus desejos.” Estabelece-
se desse modo uma relação anômala, na qual o Criador torna-se refém da criatura. Essa
inversão de prerrogativas (o homem dando “ordens” a Deus, exigindo que Sua bondade se
manifeste por meio da resposta a uma súplica) fica como que escamoteada na oração do fiel
que diz: “Sou Teu filho, Senhor, ouve minha oração. Já fiz o meu sacrifício, agora dá o que
Te peço”.
Por mais que a análise de Márcia Benedetti seja acertada (e o é em mais de um ponto),
ele deixa de fora o que mais nos preocupa aqui: identificar o elo que une a ascensão da
Universal à, por assim dizer, institucionalização da Teologia da Prosperidade no Brasil.
Uma vez mais, porém, é preciso fazer a ressalva de que nem Edir Macedo nem a sua
igreja podem ser tidos em conta como responsáveis pela maneira como essa corrente, com o
perdão do trocadilho, prosperou entre nós.
25
III
P O R U M A N O VA E C L E S I O L O G I A
Fé e auto-ajuda
Quando o Evangelho começou a ser pregado no Brasil, fomos ensinados que
pertencíamos a Deus. Converter-se era sair do estado de rebelião e vir para o de submissão.
As igrejas de teologia tradicional, tanto as históricas quanto as de orientação pentecostal,
ensinavam que conversão implicava rendição, entrega incondicional. Era a época do “Deus,
vem, me quebra, faz de mim um vaso novo, tudo Te entregarei. Sou Teu, senhor!”
Uma fórmula pregada com exagerada ênfase por esse novo credo afirma ser o crente
uma pessoa “especial”, subtraída quase às leis da vida e para quem não existira pobreza e
doença. Experimentá-las seria sinal de falta de fé. Saúde e riqueza tornam-se, por assim
dizer, sinais genuínos da salvação, do estado de graça do fiel. Daí esse movimento também
ser conhecido como Wealth and Health Gospel.24
O pobre de Nazaré que nasceu numa manjedoura (Lc 2.7) e não tinha onde reclinar a
cabeça (Mt 8.20); o filho de um carpinteiro que pregava o desapego aos bens deste mundo e
ensinava a juntar tesouros onde a traça e o ferrugem não corroem (Mt 6.19-21); o profeta,
24CÉSAR, Elben M. L., História da Evangelização do Brasil: Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora. São
Paulo, 2a. edição, 2000, p. 148
26
enfim, que terminou seu ministério abandonado pelos discípulos (Mc 14.50) e pregado num
madeiro (Jô 19.17) fez da Cruz, e não do bem-estar físico e material, o centro do seu
Evangelho.
Um exemplo de como esse discurso se instalou entre nós pode ilustrar melhor o
abismo entre a Teologia da Prosperidade e o Evangelho. Certa ocasião, encontrava-me
numa igreja e o pregador da noite anunciou que nos ensinaria a orar a partir da história do
filho pródigo (Lc 15.11-32). “Isso vai ser bárbaro!”, pensei, porque nessa parábola
realmente há uma lição de arrependimento, humildade, conversão. A surpresa veio quando o
pregador se aferrou apenas ao versículo 12, em que se lê “Pai, dá-me a parte dos bens que
me cabe”.
O que se seguiu foi estarrecedor. Ele dizia: “Irmãos, vocês têm que chegar a Deus e
dizer: Dá o que é meu”. Aos berros, continuava: “Cheguem diante do trono da glória,
olhem para Deus e digam: Dá o que é meu”. Embora honesto em suas convicções, esse
irmão caíra vítima do discurso triunfalista da Teologia da Propriedade, deixara-se seduzir
pela idéia de que o cristão precisa desafiar Deus a demonstrar seu amor por nós,
respondendo as nossas súplicas.
Há, por trás de frases como “Deus é para mim!”, “Sou cabeça e não cauda” e “Eu
tenho direito, sou filho Deus”, uma definição do homem que não é cristã nem bíblica. As
Escrituras ensinam que nossa existência deve refletir a glória de Deus. O cerne da
mensagem do Evangelho é esse: Deus cria o homem para sua glória. O cristão (e a igreja) é
antes de tudo aquele que adora o seu Criador, que exalta Seu nome. Essa nossa resposta ao
amor de Deus.
27
Numa pequena obra em que refleti sobre a natureza e a missão da igreja, afirmei: “O
primeiro projeto a ser entabulado pela igreja deve ser o de adorar, fomentar uma relação de
amor e gratidão com Deus.25 ” Nisso parece residir o sentido último da revelação divina.
A Igreja Evangélica precisa com urgência recuperar sua eclesiologia, sob pena de
perder sua identidade. Precisa outra vez encontrar o rumo, voltar àquela visão do Evangelho
de que fomos feitos para a glória de Deus. Na corrida para crescer, deixamos para trás nossa
herança reformada e com ela o sentido de ser igreja.
Muitos já não sabem nem para onde estão levando suas igrejas. Numa reunião de
pastores, tempos atrás, presenciei uma discussão sobre a melhor maneira de se administrar
uma igreja. Depois de ouvir o que todos tinham a dizer, perguntei: “Digam-me, numa frase,
o que é uma igreja edificada? Como vocês podem ter certeza de que estão edificando a
Igreja de Jesus Cristo?” Calaram-se sem resposta, surpresos com a própria ignorância.
É inócua qualquer discussão sobre “métodos”, quando não se tem resposta para essas
perguntas. Se ignoramos o destino, por que nos preocupar em saber que caminho tomar?
25 RAMOS, Ariovaldo, Igreja: E eu com isso?. Editora Sepal. São Paulo, 2000 p. 22
26 Ibidem, p. 22
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angústia de ter perdido seu Norte. Daí a urgência de recuperar o senso eclesiológico dos
reformadores, a teologia paulina do Corpo de Cristo.
Daí também a necessidade de repetir o que dissemos acima: a Igreja precisa recuperar
aquela visão do homem que é o cerne do Evangelho, de que fomos feitos para a glória de
Deus. Eis uma verdade esquecida e que precisa ser repetida uma vez mais. O assalto que a
Teologia da Prosperidade representa à verdade bíblica sobre o ser cristão coloca a Igreja
Evangélica Brasileira no limiar de uma revolução, só que de conseqüências desastrosas.
Não se pode transigir com a Revelação, fazer concessões aqui e ali para tornar o
Evangelho mais palatável e lotar templos. Jesus não precisa disso. O risco é diluir o
chamado ao arrependimento e à conversão em auto-ajuda, transformar a igreja num clube.
Denunciei esse “outro evangelho” quando escrevi: “Ainda que a igreja local, num
projeto de evangelização, possa desenvolver metodologias que a tornem mais eficaz na
pregação do Evangelho, é preciso compreender que a Igreja prega, mas só o Espírito Santo
converte. Não dá, portanto, para ter garantias de crescimento, a menos que se troque o
verdadeiro Evangelho de arrependimento por técnicas de manipulação de massa; a menos
que, em lugar da Cruz, ofereçam-se técnicas de auto-ajuda; que se substitua a busca
prioritária do Reino pelo conforto descompromissado dos ‘filhos do rei’; que, ao invés da
comunhão [...] forme-se um clube, e em lugar do Senhor Jesus apresente-se um “gênio da
lâmpada”.27
27 Ibidem, p. 23
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o apóstolo diz aqui? Ele não afirma o que você falou. Paulo declara que, porque Deus o
fortalece, ele pode viver tanto na pobreza como na riqueza, na abundância como na
escassez. É isso que ele diz: Não importa a situação em que você está, pois é sustentado
pelo Deus que fortalece; a força dele vem de Deus, e não das coisas que estão à sua volta.
Você não viu isso no contexto?”.
Tudo isso agudiza ainda mais a sensação de que perdemos o rumo, de que nos
encontramos à deriva, sem leme e sem bússola.
Epílogo
Houve um tempo em que a única coisa a nos dividir era saber qual a melhor forma de
ser santo. Tradicionais e pentecostais colocavam-se em campos opostos, estes dizendo que
era preciso receber o batismo com o Espírito Santo e ser cheio dos dons espirituais enquanto
aqueles afirmavam ser suficiente o estudo científico da Bíblia para se alcançar à
santificação. Uns buscavam o fogo do Consolador; os outros, a compreensão da Palavra. Era
um tempo em que, por assim dizer, valia a pena brigar.
Não deixa de ser irônico a Igreja Evangélica Brasileira experimentar hoje uma tal
desorientação doutrinária, marcada que é sua trajetória pela presença de denominações
protestantes ditas históricas. Que tenhamos chegado a esse dilema (crescer e manter a
identidade) é menos surpreendente do que assustador.
Reatar o vínculo com os princípios da Reforma e voltar àquela fonte primeira e última
da verdade (Palavra de Deus revelada na Bíblia) é a mais urgente tarefa a nos esperar. E é na
história da Igreja Evangélica Brasileira que encontraremos a inspiração e a coragem
necessárias para realizá-la. O senso de dever deveria nos lembrar nossa dívida com aqueles
que lutaram (e até morreram) para trazer o Evangelho para este país.
Queria concluir este pequeno livro com palavras mais otimistas, acreditando numa
saída para o dilema enfrentado pelo protestantismo brasileiro. Queria compartilhar com o
leitor a esperança de ver a Igreja Evangélica Brasileira trilhando novamente o caminho
aberto pelos pioneiros da fé. A honestidade intelectual, no entanto, me obriga reconhecer
que fomos vitimados pela idéia de que precisamos ter igrejas grandes para ter o poder
político e econômico, aquela coisa de “todo mundo me conhece, sabe quem eu sou”.
Sucumbimos exatamente àquilo contra o que Paulo advertia Timóteo: “Ora, os que querem
ficar ricos caem em tentações, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e
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perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e na perdição”. Que a graça de Deus nos
ampare.
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Bibliografia
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