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Depois da morte de sua piedosa mãe, no entanto, o jovem rapaz foi atingido por uma
tristeza acabrunhante. O luto se tinha apoderado totalmente de sua alma e ele não achava
consolação em nada do que fazia, nem mesmo na oração, à qual já estava tão habituado,
apesar da breve idade. Era final de agosto de 1110 e Bernardo contava cerca de 20 anos.
Instado por sua irmã Umbelina a distrair-se e passar tempo com os jovens que
frequentavam o castelo, Bernardo começou a acercar-se de más companhias e brincar à
beira do precipício dos maus costumes (cf. 1 Cor 15, 33). Como mais tarde escreveu ele ao
Papa Eugênio III:
"No princípio, algumas coisas podem parecer insuportáveis, mas com o passar do tempo,
se te acostumas a elas, não as julgarás tão pesadas; pouco depois, já te serão
suportáveis; em seguida, não as notarás e, no fim, terminarão deleitáveis. Assim,
paulatinamente, se chega à dureza do coração e, dela, à aversão." [2]
Para acordar Bernardo e impedir que a sua alma se perdesse, Deus permitiu que lhe
sobreviessem fortes tentações, das quais a última, relativa ao pecado da impureza, fê-lo
mudar totalmente de vida:
"Esquecido de sua vigilância habitual, permitiu que os seus olhos pousassem por um
momento em um objetivo perigoso. Pela primeira vez, experimentou a rebelião da carne.
Alarmado, então, perante o espectro do mal e pleno de remorsos pela sua falta, implorou
imediatamente o auxílio do céu e, afastando-se do local, foi mergulhar em um pequeno lago
e ali se manteve, meio morto de frio, até que a perturbação interna desapareceu
totalmente. Das palavras de seus primeiros biógrafos conclui-se que decidiu naquele
momento permanecer perpetuamente casto." [3]
Esse episódio da vida de São Bernardo deve servir de inspiração a todos os cristãos na
luta pela castidade, principalmente no mundo de hoje, tão avesso a essa virtude.
O fato de que o santo se tenha lançado em um lago gelado para não pecar contra a
castidade mostra a natureza da batalha que aqui se trava. Como diz Nosso Senhor no
Evangelho (Mt 19, 12), "existem eunucos que nasceram assim do ventre materno" e
"outros foram feitos eunucos por mão humana", isto é, alguns foram privados do sexo por
natureza e outros por necessidade. Há, porém – e só assim se pode falar propriamente de
"virtude" –, aqueles que se tornaram "eunucos por causa do Reino dos céus". Embora aqui
Cristo esteja se referindo especificamente ao celibato, a sua consideração é válida para
todos os cristãos, chamados que são a viver a santa pureza: porque o "ser eunuco" só é
louvável e recompensado por Deus na medida em que é escolhido livremente pelo homem
[4].
Os santos não eram "eunucos físicos", sem sensibilidade e sem paixões humanas, mas
"homens de carne e osso", como quaisquer outros. A sua diferença é que, auxiliados pela
graça divina, eles se fizeram "eunucos espirituais". Mas, isso (atenção!) por causa do Reino
dos céus – e só por causa desse Reino (presente em suas almas pela graça santificante),
eles estavam dispostos a tudo: a revolver-se na neve, como fez São Francisco de Assis; a
jogar-se em um arbusto de espinhos, como fez São Bento; a mergulhar em um lago
gelado, como São Bernardo [5]; ou mesmo a morrer, como fizeram tantos mártires ao
longo da história da Igreja.
Pela vida dos santos, é possível concluir que a castidade não é um mero jogo de cálculos
humanos: fosse assim, todas essas mortificações – recomendadas pelo próprio Evangelho
(cf. Mt 5, 29-30) – não teriam sentido algum. Por que privar-se de algo prazeroso e, ao
mesmo tempo, fazer arder o corpo no frio ou mesmo perder a própria vida? Por que tanto
"radicalismo" com essa história de "castidade"? Porque, ontem, assim como hoje, os
seguidores de Cristo não se fizeram eunucos "por mãos humanas": eles viveram (e vivem) a
pureza por causa do Céu – e só a vida eterna pode explicar a sua abnegação e os seus
sacrifícios, em que pese todo o desprezo do mundo.
Depois do episódio acima referido, como se sabe, Bernardo consagrou-se por inteiro a
Deus e entrou na vida religiosa como monge cisterciense. Em 20 de agosto de 1153, partiu
deste mundo, deixando na terra a sua notável fama de santidade, além de obras de
incalculável valor espiritual.
No dia em que a Igreja celebra a memória deste grande doutor da Igreja, peçamos a sua
intercessão. Que ele nos ajude a viver inteiramente para Deus, independentemente do
estado de vida em que o Senhor nos colocou: na vida leiga ou consagrada, na vida
sacerdotal ou matrimonial, todos são convocados à castidade, à entrega total do próprio
ser e à santidade – porque, afinal, todos são chamados para amar.
DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas (trad. Emérico da Gama). 2.
ed. São Paulo: Quadrante, 2011, pp. 94-135.
LUDDY, Ailbe J.. Bernardo de Claraval (trad. Eduardo Saló). Lisboa: Editorial Aster, 1959.
RAYMOND, Pe. M.. Amor sem Medida: Crônica de uma Família (trad. Pe. Ivo
Montanhese). Petrópolis: Vozes, 1964.
RIBADENEIRA, Pe. Pedro de. Vida de São Bernardo. In: Cristianismo.
Referências
Poucas coisas representam tão bem o perigo do amor próprio desordenado quanto um
espelho. Os cômodos de nossas casas sempre têm algum e as nossas ruas estão todas
repletas deles – e não há quem passe em frente a uma vitrine sem admirar um pouco a si
mesmo. Nas academias – não as de ciências, mas as de ginástica –, onde reina a
exaltação do próprio ego, os espelhos são indispensáveis: praticamente nenhum canto
foge ao alcance de suas vistas. Em uma sociedade em que praticamente todos se olham
tanto e com tanta frequência, no entanto, nunca o conhecimento de si mesmo foi tão
desprezado e negligenciado. É que as pessoas estão excessivamente preocupadas com a
"imagem" que os outros têm de si, mais que com aquilo que realmente são.
Sêneca e outros filósofos antigos diziam que os espelhos – facilmente encontrados na
superfície de uma pedra ou de um rio límpido – foram estabelecidos pela própria natureza
como "mãe e mestra dos bons costumes". Uma fábula de Esopo conta que dois irmãos –
um menino, de bela aparência, e uma menina, extraordinariamente feia – encontraram, um
dia, enquanto brincavam, um espelho. Vendo sua imagem refletida, o rapaz começou a
gabar-se, pois era muito bonito; sua irmã, por outro lado, ficou aborrecida e foi reclamar da
atitude do irmão para o pai. Este, abraçando os dois, disse-lhes: "Eu quero que vocês dois
olhem para o espelho todos os dias: você, meu filho, para não estragar a sua beleza com
uma má conduta; e você, minha filha, para compensar a sua falta de beleza com uma vida
de virtudes" [1]. Na lição dos antigos, o espelho seria uma esplêndida oportunidade para
colocar em prática o imperativo socrático: "Conhece-te a ti mesmo".
O que pode servir para a própria edificação também se pode tornar, todavia, um grande
instrumento de vaidade. Por isso, o padre António Vieira, em seu Sermão sobre o Demônio
Mudo, compara o espelho ao próprio diabo: "Desde sua mesma origem não há duas coisas
que Deus criasse mais parecidas e semelhantes que o demônio e o espelho. O demônio
primeiro foi anjo, e depois demônio; o espelho primeiro foi instrumento do conhecimento
próprio, e depois do amor-próprio, que é a raiz de todos os vícios" [2].
O orador sacro conta que o Papa Inocêncio X escolheu um religioso de grande virtude e
prudência para visitar os conventos femininos, a fim de examinar e tirar de suas celas –
não pelo uso da força, mas por meio de conselhos e exortações – coisas que fossem
indignas ou inapropriadas a uma religiosa. Tendo inspecionado tudo com muito zelo, o
visitador voltou, depois de alguns meses, dizendo ao Santo Padre que "vinha muito
edificado do que achara, mas não de todo contente". De fato, em sua averiguação, o
religioso tinha encontrado muitas penitências, disciplinas, orações e devoções. Algumas
alfaias ou peças de maior valor – cuja posse não era permitida pelo voto de pobreza que
tinham feito – ele conseguira fazer que elas abandonassem ou usassem para outros
fins. Uma coisa, no entanto, ele não conseguira tirar dessas religiosas: o seu espelho. Diante da
surpresa do Papa com a sua resposta, o piedoso homem explicou: "Tenho alcançado por
larga experiência, que enquanto uma religiosa se quer ver ao espelho, não tem acabado
de entregar todo o coração ao Esposo do céu, e ainda lhe ficam nele alguns ressábios do
amor e vaidade do mundo" [3].
Embora as palavras do religioso se refiram mais claramente às pessoas de vida
consagrada, o seu sentido profundo pode – e deve – ser aproveitado por todos os cristãos,
seja qual for o seu estado de vida. Para seguir a Cristo, não é preciso que ninguém
destrua os espelhos que possui – assim como não é preciso, literalmente, que se mutile o
próprio olho ou a própria mão (cf. Mt 5, 29-30). Todos, no entanto, estão incluídos na
exortação de Nosso Senhor: "Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo (...) e
siga-me" (Lc 9, 23).
Renuncie a si mesmo, ensina Nosso Senhor. O que prefere a vaidade humana, ao contrário?
Como renuncia a si mesmo o que não suporta estar nem duas horas sem se ver no
espelho? Ou outros tantos, que "gastam as horas e perdem os dias inteiros em se estar
vendo, revendo e contemplando no espelho", como se não tivessem nem esperassem
outra glória? Ou quem se preocupa mais em se enfeitar e embelezar aos olhos do mundo
– mas esquece de ornar a alma para Deus, a quem não importa a aparência, mas o
coração (cf. 1 Sm 16, 7)?
Por isso, São Bernardo contrapõe aos espelhos humanos o que ele intitulou de Speculum
Monachorum – o Espelho dos Monges [4]: que as pessoas que querem servir a Deus
conheçam a si mesmas, mas que o façam examinando, sobretudo, os seus pensamentos,
as suas palavras e as suas obras, para conformá-las em tudo à semelhança de Deus.
Esse é o verdadeiro amor a si mesmo e o autêntico cultivo da beleza, pois cuida não da
formosura frágil do corpo, mas do brilho perene da alma, que não pode ser apagado nem
com as enfermidades físicas nem com as vicissitudes do tempo.
O padre António Vieira conclui o seu sermão com estas duras palavras: " Que coisa é a
formosura, senão uma caveira bem vestida, a que a menor enfermidade tira a cor, e antes de
a morte a despir de todo, os anos lhe vão mortificando a graça daquela exterior e aparente
superfície, de tal sorte que, se os olhos pudessem penetrar o interior dela, o não poderiam
ver sem horror?" [5].
"Que coisa é a formosura, senão uma caveira bem vestida"? Que, ao olhar para o espelho,
sejamos capazes de enxergar a "caveira bem vestida" que é cada um de nós, lembrando
que somos pó, e ao pó, um dia, tornaremos (cf. Gn 3, 19). Assim poderemos dar valor ao
que é realmente necessário: amar a Deus, até o desprezo de nós mesmos [6].
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Recomendações
Referências
1. Aesop, The Brother and the Sister. In: Aesop's Fables, Section 3.
2. Padre António Vieira, Sermão do Demônio Mudo (1651), § IV. In: Literatura Brasileira, UFSC.
3. Ibidem, § III.
4. Cf. PL 184, 1175-1178.
5. Padre António Vieira, Sermão do Demônio Mudo (1651), § XI. In: Literatura Brasileira, UFSC.
6. Cf. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIV, 28 (PL 41, 436).
Sto. Tomás, a vaca voadora e nós
OLAVO DE CARVALHO (1)
O que ela tem a dar ao mundo de hoje já não coincide exatamente com
aqueles aspectos seus que foram trazidos à luz pelo renouveau tomista
inspirado pelo Papa Leão XIII. O neotomismo do século XX, com todas
as contribuições esplêndidas que trouxe à reconquista de uma
perspectiva cristã na filosofia, talvez constitua, hoje em dia, até mesmo
um obstáculo a uma tomada de consciência dos ângulos da filosofia
tomística que mais urgentemente a atual geração necessita redescobrir.
Olavo de Carvalho
19 de maio de 2001
4 Les Corps Célestes dans l'Univers de Saint Thomas d'Aquin, Louvain, Publications
Universitaires, 1963.
6 Eric Voegelin, History of Political Ideas, vol. II, The Middle Age to Aquinas, ed. Peter von
Sievers, Columbia, University of Missouri Press, 1997, p. 215.
9 V. Seyyed Hossein Nasr, The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern
Man, London, Allen & Unwin, 1968.
10 V. Wolgang Smith, Teilhardism and the New Religion. A Thorough Analysis of the
Teachings of Pierre Teilhard de Chardin, Rockford (Illinois), Tan Books, 1988.
11 V. James H. Billington, Fire in The Minds of Men. Origins of the Revolutionary Faith,
NewYork, Basic Books, 1980.
13 V. Russel Chandler, Compreendendo a Nova Era, trad. João Marques Bentes, São Paulo,
Bompastor, 1993, assim como Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof
Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL e Stella Caymmi Editora, 2a. ed., 1997 (há transcrição
completa no website do autor).
14 V. Life in the Middle Ages, selected and annotated by G. G. Coulton, Cambridge University
Press, 4 vols., 1954.
16 Meteor., III, 9.