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Nesse sentido, Villarmea Álvarez (2016) nos chama atenção para o obsoletismo
do conceito de cinemas nacionais a partir dos anos de 1980, com uma mudança de
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Doutoranda do Departamento de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, linha de
concentração: Estudos Artísticos Contemporâneos.
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Conforme explica Cooke (2013) apud Halle (2008), se a globalização permitiu um desenvolvimento
mais amplo de uma interconectividade econômica global, o transnacionalismo traduziu essas relações e
conectividades para as indústrias cinematográficas, permitindo-as se adaptarem a isso culturalmente.
paradigma: “as estruturas epistemológicas e referenciais que os filmes contemporâneos
requerem para serem descodificados estão a perder as particularidades nacionais e
culturais que tiveram no passado (Villarmea Álvarez, 2016, p. 108 apud EZRA e
ROWDEN, 2006, p.4)”. Citando Andrew Higson (2006), Villarmea Álvarez (2016)
completa um pensamento sobre o conceito de cinemas nacionais, explicando que este
primeiro autor ao revisar seu importante trabalho anterior sobre os cinemas nacionais,
aponta para o fato de que “the concept of national cinema is hardly able to do justice
either to the internal diversity of contemporary cultural formations or to the overlaps
and interpenetrations between different formations (Villarmea Alvarez, 2016, p. 108
apud HIGSON, 2006, p. 20)”.
Nesse sentido, o propósito do presente trabalho é explorar a hipotética dimensão
transnacional do cinema ibero-americano, lançando luz sobre um corpus de filmes luso-
brasileiros realizados em regime de coprodução no âmbito do Programa IBERMEDIA.
O objetivo, no entanto, é tentar inverter uma perspectiva deste corpus como um bloco
único homogêneo, pensando-o, ao contrário, a luz da ‘lusofonia’; das relações com
outras cinematografias de língua portuguesa; das conexões com outros cinemas
transnacionais; das diferentes redes e instâncias que compõem o complexo sistema
audiovisual contemporâneo.
Para tentar alcançar este intento, nos apoiaremos nas pesquisas desenvolvidas por Hjort
(2009) e Shaw (2013) a respeito de tipologias ou categorias que ajudaram a dotar o
termo ‘cinema transnacional’ de um sentido mais preciso e a ampliar os casos em que
ele pode ser usado com mais propriedade em uma análise crítica nos estudos fílmicos.
The concept of the transnational has seemed a straightforward solution to deal with the problems
inherent in the 'national cinema' label; however, what does the term actually mean? Which films
can be categorised as transnational and which cannot? Does the term refer to production,
distribution and exhibition, themes explored, aesthetics, nationalities of cast and crew, audience
reception, or a range of these? Are mainstream Hollywood films transnational as they are
distributed throughout the developed world? What about fihns with smaller budgets made in
other national contexts that challenge Hollywood domination alld explore the dalnaging effects
of globalisation? Is the term 'national' now entirely bankrupt, and if so what does this mean for
films that engage with specifically local issues? (Shaw, 2013, p. 50)
3) cinema of globalisation;
4) films with multiple locations;
5) exilic and diasporic filmmaking;
6) film and cultural Exchange;
7) transnational influences;
8) transnational critical approaches;
‘Arte de Roubar’
This category relates to the content of films and the cinematic storytelling devices used that
make them accessible to audiences in many parts of the world (although of course, different
readings of these are produced depending on the national identities of audiences, among other
factors).This category can refer to approaches used in mainstream Hollywood movies, and those
used in films that combine local traditions with Hollywood influences to produce spectacular,
big budget features (2013, p. 8).
O ‘modus operandi trapaceiro’ à portuguesa dos dois personagens principais
bem como as influências hollywoodianas na construção de uma narrativa de gênero
exemplificam essa tipologia acima atribuída ao filme. ‘Arte de Roubar’ dispõe ainda de
uma equipe multinacional e de atores famosos em seus países coprodutores, podendo o
filme ser caracterizado pelas tipologias de transnational stars e transnational
collaborative networks, em que, respectivamente, artistas de determinada nacionalidade
ganham projeção internacional ao atuarem para além de suas fronteiras de nacionais (o
caso das atrizes colombiana e brasileira no filme, que já atuaram em outros filmes
portugueses) e parcerias entre diferentes países podem ser efetivadas para a produção de
um filme.
‘Tabu’
Se por um lado, evidenciamos em ‘Arte de Roubar’ uma pretensão de
internacionalidade ligada a fatores fortemente comerciais e a uma política do cinema de
gênero hollywoodiano, em Tabu, essa intenção se expressa de modo oposto, numa
perspectiva mais autoral. O diretor Miguel Gomes realiza uma obra particular com
fortes referências as questões pós-colonialistas portuguesas, como explica Pereira: “o
filme é pós-colonial, no sentido em que reflete sobre a forma como estereótipos e
representações sociais e “raciais” criados durante o colonialismo se repercutem na
sociedade portuguesa de hoje (2016, p. 311)”. O espaço diegético do filme, em sua
segunda parte, remete a algum lugar de África que não fica explicito5, sendo possível
“perceber a representação do “outro” africano no filme e a forma como a identidade
portuguesa se constrói na relação com essa alteridade africana (Pereira, 2016, p. 1)”.
Tabu homenageia a obra homônima de F. W. Murnau, de 1931. O diretor Miguel
Gomes narra em voz off um texto que invoca uma lenda sobre o suicídio de um
explorador em terras africanas que, lançando-se em águas turvas de um rio, foi
devorado por um crocodilo. O filme tem duas partes. Na primeira delas, chamada de
‘Paraíso Perdido’, apresentam-se as personagens Aurora, Pilar e Santa, vizinhas em um
antigo prédio de Lisboa. Durante o desenvolvimento da história é revelado que a
personagem Aurora (Laura Soveral- fase idosa/ Ana Moreira-fase jovem) viveu em uma
fazenda na África, ao pé do monte Tabu. Tal revelação é o fio condutor para a segunda
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Sabemos que o filme foi rodado em Moçambique e a paisagem remete ao país, embora isso não esteja
claro no espaço diegético da obra.
parte, chamada de Paraíso. Quando viveu na África, Aurora foi uma exímia caçadora,
que não falhava um tiro. Ela tinha um pequeno crocodilo que ganhou de presente do
marido, e quando o bicho foge, é que ela conhece seu amante, Gian-Luca (Henrique
Espírito Santo – fase idosa/ Carloto Cotta – fase jovem). O filme é gravado em preto e
branco e explora as imagens de Lisboa (tempo atual) e de um país africano colonizado
por Portugal.
Este jogo de reconhecimento de referências serve mesmo para explicar o dispositivo estético
adotado durante a segunda parte de Tabu. Assim, a frase “Aurora tinha uma fazenda em África
no sopé do Monte Tabu” (Tabu, 2012, 00:50:10-00:50:32) remete a uma linha equivalente de
Out of Africa: “I had a farm in Africa at the foot of the Ngong Hills”. A sua função narrativa é
idêntica – as duas frases dão início ao relato de um tempo passado –, mas Gomes aproveita o
reconhecimento por parte dos espectadores desta citação para dar uma dica sobre a origem das
imagens que vamos ver a seguir (Villarmea Álvarez, 2016, p. 110).
A cara de incredulidade que apresenta Pilar depois de ouvir essa frase sugere que a sua
personagem também reconhecera a referência a Out of Africa, de forma que as imagens que
veremos a partir de então poderão ser o produto da sua imaginação cinéfila, alimentada por
títulos clássicos – e estrangeiros – como Mogambo (1953, John Ford) ou Hatari! (1962, Howard
Hawks). Nesta sequência, a cinefilia de Gomes projeta-se sobre a cinefilia da sua personagem, e
apela também à cinefilia dos espectadores sem marcar nenhuma fronteira nacional ou cultural.
Portanto, a operação de pôr em imagens a paixão de Aurora e Gian Luca combina vários
elementos transnacionais: um autor global que põe uma personagem portuguesa a imaginar um
continente alheio – África – a partir de referentes cinéfilos predominantemente norte-americanos
(Villarmea Alvarez, 2016, p. 110).
O Veneno da Madrugada
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As outras adaptações cinematográficas feitas por Ruy Guerra das obras de ‘Gabo’ foram: ‘Erendita’
(1982), ‘A fábula da bela Palomera’ (1987) e “Me aquillo para soñar” (1992).
para a viabilização do projeto, seja a partir das locações, equipe e elenco, como já citado
acima, seja a partir dos mecanismos para sua seleção pelo Programa IBERMEDIA, em
20037.
Por fim, ‘O veneno da madrugada’ é ainda um exemplo de Afinitive
transnationalism, uma vez que o realizador estabelece uma parceria antiga para
adaptações das obras literárias de Gabriel Garcia Marquez, sendo o filme a quarta
adaptação cinematográfica das obras desse escritor. Na definição de Hjort, Afinitive
transnationalism se expressa na tendência para comunicar com os nossos semelhantes
“with similarity typicaliy being understood in terms of ethnicity, partially overlapping
or mutually intelligible languages, and a history of interaction giving rise to shared core
values, common practices, and comparable institutions (2009, p. 17)”.
Considerações Finais:
Uma indagação que surge nessa breve análise das coproduções transnacionais é
se estas se concretizariam da mesma forma como obras nacionais? Ou ainda, como se
concretizariam essas coproduções se fosse produzidas fora do âmbito do Programa
IBERMEDIA?
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Para ser selecionado pelo Programa o país coprodutor majoritário deve apresentar como pelo menos um
dos outros países coprodutores minoritários algum que faça parte do programa. Atualmente, 19 países
integram o programa, dentre eles Brasil, A rgentina e Portugal.
vivências do realizador, no entanto, o põe numa condição já a priori de diretor
transnacional refletindo isso em seus filmes.
É claro que esse pequeno exercício não dá conta de representar a complexidade
de corpus muito mais amplo dos filmes luso-brasileiros realizados com apoio do
IBERMEDIA. Mas essa tentativa aponta alguns caminhos pelos quais pretendo seguir
para empreender na minha pesquisa de tese.
Referências Bibliográficas:
HJORT, Mette. “On the Plurality of Cinematic Transnationalism”. In: World Cinemas,
Transnational Perspectives. Ed. Natasa Durovicova e Kathleen Newman, 12-33.
Londres e Nova Iorque: Routledge, 2009.