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Historiografia do cinema e audiovisual

(“Estudos históricos do cinema e do audiovisual”)


Prof. Rafael de Luna Freire

A Dimensão Transnacional do Cinema Luso-brasileiro no IBERMEDIA.


Nay Araújo 1

O avanço da globalização econômica, a partir dos anos 1980, sobre o contexto


das indústrias culturais, como sugere Cooke (2013 apud HALLE, 2008), ao mesmo
tempo que favoreceu a consolidação de Hollywood como uma marca internacional,
permitiu um “entendimento mais contingente e recíproco do relacionamento entre
culturas cinematográficas, evidenciado de várias formas em termos de políticas [...] que
estimularam indústrias cinematográficas nacionais a interagirem (Cooke, 2013, p. 16)”
através de práticas de transnacionalismo.2
Nesse panorama, organizações supranacionais, como o Programa IBERMEDIA,
promoveram uma ideia de cinema transnacional ibero-americano consolidada a partir da
seleção de projetos de coprodução em um contexto geopolítico delimitado, definidor de
uma noção de identidade. Essa identidade, que no âmbito cultural “permite falar da
existência de um cinema com características comuns (Medeiros, 2012)” não visa apenas
à criação de uma estrutura cinematográfica transnacional viável do ponto de vista
econômico, mas também, a propagação de um senso de ‘ibero-americanismo’, baseado
em certa lógica uniforme e reducionista do conceito de cinema transnacional. Isso
desconsideraria as diversas camadas, hibridismos, diferenças e heterogeneidade dos
cinemas nacionais dessa região.
Como afirma Medeiros:
as coproduções instauram uma nova condição na qual os artistas, os técnicos, as tecnologias, o
savoir faire e as culturas de diferentes nações atravessam as fronteiras nacionais e se
amalgamam em cinemas transnacionais, que impõem um novo e ainda nebuloso paradigma a
respeito do conceito de cinema nacional (2012, p. 5).

Nesse sentido, Villarmea Álvarez (2016) nos chama atenção para o obsoletismo
do conceito de cinemas nacionais a partir dos anos de 1980, com uma mudança de

1
Doutoranda do Departamento de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, linha de
concentração: Estudos Artísticos Contemporâneos.
2
Conforme explica Cooke (2013) apud Halle (2008), se a globalização permitiu um desenvolvimento
mais amplo de uma interconectividade econômica global, o transnacionalismo traduziu essas relações e
conectividades para as indústrias cinematográficas, permitindo-as se adaptarem a isso culturalmente.
paradigma: “as estruturas epistemológicas e referenciais que os filmes contemporâneos
requerem para serem descodificados estão a perder as particularidades nacionais e
culturais que tiveram no passado (Villarmea Álvarez, 2016, p. 108 apud EZRA e
ROWDEN, 2006, p.4)”. Citando Andrew Higson (2006), Villarmea Álvarez (2016)
completa um pensamento sobre o conceito de cinemas nacionais, explicando que este
primeiro autor ao revisar seu importante trabalho anterior sobre os cinemas nacionais,
aponta para o fato de que “the concept of national cinema is hardly able to do justice
either to the internal diversity of contemporary cultural formations or to the overlaps
and interpenetrations between different formations (Villarmea Alvarez, 2016, p. 108
apud HIGSON, 2006, p. 20)”.
Nesse sentido, o propósito do presente trabalho é explorar a hipotética dimensão
transnacional do cinema ibero-americano, lançando luz sobre um corpus de filmes luso-
brasileiros realizados em regime de coprodução no âmbito do Programa IBERMEDIA.
O objetivo, no entanto, é tentar inverter uma perspectiva deste corpus como um bloco
único homogêneo, pensando-o, ao contrário, a luz da ‘lusofonia’; das relações com
outras cinematografias de língua portuguesa; das conexões com outros cinemas
transnacionais; das diferentes redes e instâncias que compõem o complexo sistema
audiovisual contemporâneo.
Para tentar alcançar este intento, nos apoiaremos nas pesquisas desenvolvidas por Hjort
(2009) e Shaw (2013) a respeito de tipologias ou categorias que ajudaram a dotar o
termo ‘cinema transnacional’ de um sentido mais preciso e a ampliar os casos em que
ele pode ser usado com mais propriedade em uma análise crítica nos estudos fílmicos.

Breve arqueologia dos cinemas ibero-americanos e a problemática do


conceito de ‘cinema transnacional’.

Ao tratar dos cinemas latino-americanos contemporâneos, Medeiros (2012) faz


uma arqueologia dos projetos do Novo Cinema Latino-americano e do Tercer Cine, que
eclodiram na década de 1960 como proposta contra hegemônica ao cinema
hollywoodiano e à “política dos autores” europeia. Pensando em Portugal do mesmo
período, podemos afirmar que surgiu também neste país uma vaga de renovação do
cinema português, igualmente de oposição ao modelo dominante promovido por
Hollywood, mas alinhado, neste caso, com a “política dos autores” e com outros
movimentos anteriores que se vinham afirmando um pouco por toda a Europa, desde a
Nouvelle Vague francesa, Free Cinema britânica ou o Novo Cinema Checo.
Seguindo uma arqueologia, identificamos alguns momentos de aproximação
entre os jovens cineastas brasileiros e portugueses, ao longo das décadas de 1960 e
1970, mais nomeadamente, aquelas em torno da figura de Glauber Rocha. Como explica
Cunha: “Glauber Rocha manteve relações de amizade e cumplicidade cinéfila com
várias figuras do novo cinema português (2011, p. 01)” e “na quarta fase do cinema
novo português (1974-80) é que parece mais presente uma influência do pensamento de
Glauber Rocha sobre os cineastas do novo cinema português (Cunha, 2011, p. 6)”. 3
Pensando na criação de um projeto que intitulou de ‘Cinema Tricontinental’, Glauber
Rocha incluiu o novo cinema português junto ao cinema novo brasileiro em uma
proposta de integração política e estética das cinematografias dos países pobres dos três
continentes: América Latina, África e Ásia. A ideia do Cinema Tricontinental era ser
uma terceira via, distinta ideologicamente tanto do cinema capitalista hollywoodiano
quanto do cinema socialista mantido pelo Estado (Cunha, 2011). Entre 1974 e 1981,
Glauber Rocha desenvolveu inúmeros projetos nos quais pensou em contar com alguns
parceiros cineastas portugueses, como Fernando Lopes, segundo Cunha (2011). Glauber
Rocha teria ficado também “particularmente entusiasmado com um acordo de
coprodução cinematográfica entre Portugal e Brasil (Cunha, 2011, p. 11)”, do qual
sequer chegou a se beneficiar, falecendo um pouco antes.
Essas podem ter sido as bases que, a partir de meados dos anos 1980,
combinadas com o fortalecimento dos processos da globalização econômica,
propiciaram as condições para o surgimento de um programa de cooperação
cinematográfica, viabilizado por meio da coprodução, em um contexto geopolítico
ibero-americano, como já citado anteriormente, intitulado IBERMEDIA. Programa esse,
como também já explicitado antes, fortemente embasado em um pensamento
transnacionalista genérico.
Ao discutir sobre transnacionalismo é preciso atentar para as generalizações do uso do
termo que, “tem assumido um âmbito referencial muito amplo para abranger fenômenos
que certamente são mais interessantes por suas diferenças que por suas similaridades
(Hjort, 2009, p. 13).” Neste sentido, embora o conceito de ‘cinema transnacional’ tenha
3
No dia seguinte a revolução de 74, Glauber chega a Portugal, foi o único estrangeiro convidado para
participar do filme coletivo ‘As armas e o povo’, um documentário que retrata os primeiros dias de
liberdade de um povo a viver os primeiros dias de processo revolucionário. Este convite espelha bem a
importância do cineasta brasileiro num momento de redefinição da instituição cinema em Portugal
(Cunha, 2011, p. ).
contribuído para superar uma antiga dicotomia entre cinema nacional e cinema
estrangeiro, como já explicitado por Villarmea Álvarez (2016), o termo acabou
desvalorizando-se como conceito operativo, ao ser utilizado indistintamente pelos
estudos fílmicos. Débora Shaw (2013, p.50) sustenta que ao se começar a questionar
sobre quais filmes poderiam ser tachados de transnacionais, verificam-se as
insuficiências do uso do termo para lidar com as complexidades de categorizar filmes e
práticas industriais:

The concept of the transnational has seemed a straightforward solution to deal with the problems
inherent in the 'national cinema' label; however, what does the term actually mean? Which films
can be categorised as transnational and which cannot? Does the term refer to production,
distribution and exhibition, themes explored, aesthetics, nationalities of cast and crew, audience
reception, or a range of these? Are mainstream Hollywood films transnational as they are
distributed throughout the developed world? What about fihns with smaller budgets made in
other national contexts that challenge Hollywood domination alld explore the dalnaging effects
of globalisation? Is the term 'national' now entirely bankrupt, and if so what does this mean for
films that engage with specifically local issues? (Shaw, 2013, p. 50)

Assim, em uma tentativa de problematizar sobre o significado de ‘cinema


transnacional’ e dotá-lo de um entendimento mais específico, Shaw e Hjort apresentam
um conjunto de categorias ou tipologias que “associam o conceito de transnacionalismo
cinematográfico a diferentes modelos de produção cinematográfica (Hjort 2009)” e
observam que “as práticas industriais e laborais, a estética, as temáticas, as questões
éticas e recepção de público e crítica devem ser levadas em consideração para se
problematizar o sentido de transnacionalismo (Shaw, 2013, p.56).” Hjort sugere até
nove categorias de cinema transnacional:
1) ‘epiphanic transnacionalism’,
2) ‘affinitive trasnacionalism’,
3) milieu-building transnacionalism,
4) ‘opportunistic transnacionalism’,
5) ‘cosmopolitan transnacionalism’,
6) globalizing transnacionalism’,
7) auterist transnacionalism’,
8) ‘modernizing transnacionalism’
9) ‘experimental transnacionalism’.

Já Débora Shaw oferece quinze categorias para evitar os problemas das


generalizações do uso do termo:
1) transnational modes of production, distribution and exhibition;
2) transnational modes of narration;

3) cinema of globalisation;
4) films with multiple locations;
5) exilic and diasporic filmmaking;
6) film and cultural Exchange;
7) transnational influences;
8) transnational critical approaches;

9) transnational viewing practices;


10) transregional/transcommunity films;
11) transnational stars;
12) transnational directors;
13) the ethics of transnationalism;
14) transnational collaborative networks;
15) national films

Explorando as tipologias de cinema transnacional no Corpus de filmes luso-


brasileiros do Programa IBERMEDIA:

‘Arte de Roubar’

‘Arte de Roubar’ é uma coprodução entre Portugal, Brasil e Espanha, do diretor


Leonel Vieira, produzida com apoio do Programa IBERMEDIA, em 2005. A sinopse
apresenta a história de Chico da Silva (Ivo Canelas) e Jesus Fuentes (Enrique Arce),
dois golpistas que viviam de pequenos golpes nos Estados Unidos e resolveram voltar a
Portugal para praticar um grande golpe que os deixassem ricos. Eles são contratados
então para roubar um quadro supostamente pertencente ao pintor Van Gogh, em uma
fazenda de uma condessa rica. A encomenda do roubo é feita pelo soturno e velho
mordomo da fazenda, Augusto (Nicolau Breyner, ator português). O que os dois amigos
não desconfiam, no entanto, é que o plano do roubo é, na realidade, uma armadilha que
os colocará em sérios apuros.
Apesar da história se passar em território ibero-americano, há uma
descontextualização em relação às locações. Assim, não fica claro o espaço diegético da
trama que tanto poderia se passar no México quanto no interior da Espanha. Todos os
personagens no filme falam em inglês (com sotaque latino), embora as nacionalidades
dos atores sejam portuguesa, espanhola, colombiana (Flora Martinez) e brasileira
(Daniela Faria). No roteiro há poucas referências a Portugal e Espanha, sendo as mais
evidentes um fado cantado no bar onde o mordomo vai acertar os detalhes do seu plano
com os ladrões e algumas poucas palavras faladas em espanhol (como gírias) pelos
personagens principais. Os dois protagonistas tentam imprimir aos seus personagens
uma característica de certe expertise ‘à portuguesa’ nos modos de trapacear, porém isso
tampouco fica muito evidente. Em relação ao Brasil, o terceiro país coprodutor do filme,
não há nenhuma referência expressa no roteiro.
Em entrevista ao Jornal Correio da Manhã (04.01.2008) o diretor Leonel Vieira
afirmou que sua proposta era apostar fortemente na internacionalização: “Este filme vai
vender internacionalmente mais do que qualquer outro português (Correio da Manhã,
04.11.2008)", portanto, as marcas de qualquer nacionalidade, que descaracterizasse a
tentativa de se tentar produzir um cinema de gênero à moda hollywoodiana, como é
intenção do autor expressa em outras entrevistas, tentam ser apagadas da obra. O filme
de Leonel Vieira deixa claro ser um exemplo de ‘transnacionalismo oportunista’,
segundo Hjort, um tipo de transnacionalismo que dá prioridade a questões econômicas e
onde fatores monetários ditam a seleção dos parceiros para além das fronteiras
nacionais. “Opportunistic transnationalism is all about responding to available
economic opportunities at a given moment in time and in no wise about the reation of
lasting networks or about the fostering of social bonds that are deemed to be inherently
valuable (Hjort, 2009, p. 19 e 20)”.
‘Arte de Roubar’ utiliza-se de recursos que permitem caracterizá-lo também nos
‘transnational modes of narration’, conforme proposto por Shaw:

This category relates to the content of films and the cinematic storytelling devices used that
make them accessible to audiences in many parts of the world (although of course, different
readings of these are produced depending on the national identities of audiences, among other
factors).This category can refer to approaches used in mainstream Hollywood movies, and those
used in films that combine local traditions with Hollywood influences to produce spectacular,
big budget features (2013, p. 8).
O ‘modus operandi trapaceiro’ à portuguesa dos dois personagens principais
bem como as influências hollywoodianas na construção de uma narrativa de gênero
exemplificam essa tipologia acima atribuída ao filme. ‘Arte de Roubar’ dispõe ainda de
uma equipe multinacional e de atores famosos em seus países coprodutores, podendo o
filme ser caracterizado pelas tipologias de transnational stars e transnational
collaborative networks, em que, respectivamente, artistas de determinada nacionalidade
ganham projeção internacional ao atuarem para além de suas fronteiras de nacionais (o
caso das atrizes colombiana e brasileira no filme, que já atuaram em outros filmes
portugueses) e parcerias entre diferentes países podem ser efetivadas para a produção de
um filme.

‘Tabu’
Se por um lado, evidenciamos em ‘Arte de Roubar’ uma pretensão de
internacionalidade ligada a fatores fortemente comerciais e a uma política do cinema de
gênero hollywoodiano, em Tabu, essa intenção se expressa de modo oposto, numa
perspectiva mais autoral. O diretor Miguel Gomes realiza uma obra particular com
fortes referências as questões pós-colonialistas portuguesas, como explica Pereira: “o
filme é pós-colonial, no sentido em que reflete sobre a forma como estereótipos e
representações sociais e “raciais” criados durante o colonialismo se repercutem na
sociedade portuguesa de hoje (2016, p. 311)”. O espaço diegético do filme, em sua
segunda parte, remete a algum lugar de África que não fica explicito5, sendo possível
“perceber a representação do “outro” africano no filme e a forma como a identidade
portuguesa se constrói na relação com essa alteridade africana (Pereira, 2016, p. 1)”.
Tabu homenageia a obra homônima de F. W. Murnau, de 1931. O diretor Miguel
Gomes narra em voz off um texto que invoca uma lenda sobre o suicídio de um
explorador em terras africanas que, lançando-se em águas turvas de um rio, foi
devorado por um crocodilo. O filme tem duas partes. Na primeira delas, chamada de
‘Paraíso Perdido’, apresentam-se as personagens Aurora, Pilar e Santa, vizinhas em um
antigo prédio de Lisboa. Durante o desenvolvimento da história é revelado que a
personagem Aurora (Laura Soveral- fase idosa/ Ana Moreira-fase jovem) viveu em uma
fazenda na África, ao pé do monte Tabu. Tal revelação é o fio condutor para a segunda

5
Sabemos que o filme foi rodado em Moçambique e a paisagem remete ao país, embora isso não esteja
claro no espaço diegético da obra.
parte, chamada de Paraíso. Quando viveu na África, Aurora foi uma exímia caçadora,
que não falhava um tiro. Ela tinha um pequeno crocodilo que ganhou de presente do
marido, e quando o bicho foge, é que ela conhece seu amante, Gian-Luca (Henrique
Espírito Santo – fase idosa/ Carloto Cotta – fase jovem). O filme é gravado em preto e
branco e explora as imagens de Lisboa (tempo atual) e de um país africano colonizado
por Portugal.

Na construção estética do filme, as referências cinéfilas de Miguel Gomes são


exploradas como dispositivos:

Este jogo de reconhecimento de referências serve mesmo para explicar o dispositivo estético
adotado durante a segunda parte de Tabu. Assim, a frase “Aurora tinha uma fazenda em África
no sopé do Monte Tabu” (Tabu, 2012, 00:50:10-00:50:32) remete a uma linha equivalente de
Out of Africa: “I had a farm in Africa at the foot of the Ngong Hills”. A sua função narrativa é
idêntica – as duas frases dão início ao relato de um tempo passado –, mas Gomes aproveita o
reconhecimento por parte dos espectadores desta citação para dar uma dica sobre a origem das
imagens que vamos ver a seguir (Villarmea Álvarez, 2016, p. 110).

Este jogo de referências, que aparecem também em outras obras de Miguel


Gomes, nos permite analisar Tabu sob as bases de duas das categorias do cinema
transnacional classificadas por Deborah Shaw como ‘as influências transnacionais’ e ‘as
aproximações críticas transnacionais’. “These categories assume intertextuality in that
every film made has been consciously or unconsciously shaped by pre-existing cultural
products from all over the world (Shaw 2013, 58).” Tabu faz referências à Story of the
South Seas (1931, Friedrich Murnau), Vivre sa vie: Film em douze tableaux (1961,
Jean-Luc Godard), Out of Africa (1985, Sydney Pollack).

A cara de incredulidade que apresenta Pilar depois de ouvir essa frase sugere que a sua
personagem também reconhecera a referência a Out of Africa, de forma que as imagens que
veremos a partir de então poderão ser o produto da sua imaginação cinéfila, alimentada por
títulos clássicos – e estrangeiros – como Mogambo (1953, John Ford) ou Hatari! (1962, Howard
Hawks). Nesta sequência, a cinefilia de Gomes projeta-se sobre a cinefilia da sua personagem, e
apela também à cinefilia dos espectadores sem marcar nenhuma fronteira nacional ou cultural.
Portanto, a operação de pôr em imagens a paixão de Aurora e Gian Luca combina vários
elementos transnacionais: um autor global que põe uma personagem portuguesa a imaginar um
continente alheio – África – a partir de referentes cinéfilos predominantemente norte-americanos
(Villarmea Alvarez, 2016, p. 110).
O Veneno da Madrugada

Este filme é uma adaptação cinematográfica da obra literária La Mara Hora, de


Gabriel Garcia Marquez, feita pelo cineasta moçambicano radicado no Brasil, Ruy
Guerra. Esta foi a quarta adaptação cinematográfica que o cineasta fez das obras
literárias de Garcia Marquez, consolidando uma parceria antiga. 6
Nesta versão cinematográfica, a história transcorre em um pequeno povoado,
onde a chuva nunca cessa e famílias poderosas donas de terras, como os ‘Assis’ e os
‘Don Sabas’, disputam o poder da região. Do outro lado dessa disputa, existe um
alcaide, interventor militar nomeado pelo governo para o povoado. Durante a
madrugada, pasquins anônimos aparecem pregados nas portas das casas denunciando
traições amorosas e todo tipo de segredos das famílias. Todo o povoado parece viver
sobre um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento, devido às disputas
políticas da região. O filme é um romance narrativo de suspense que se passa em algum
lugar da América do Sul, não identificado.
Como afirma os pesquisadores Silva e Ribeiro (2014), falar da obra de Ruy
Guerra é falar de um conjunto de filmes que revelam reflexões sobre a identidade
(múltipla) deste cineasta (2014, p. 441, grifos meus). Assim, para tratarmos do conceito
de transnacionalismo no caso deste filme, devemos partir antes de uma análise sobre as
características que formam uma identidade própria do autor, definida, conforme Silva e
Ribeiro (2014), por um hibridismo cultural e relacionada a sua transitoriedade entre
vários países e ainda a um passado pós-colonial, que se reflete em seu fazer artístico.
Ruy Guerra é um cineasta cosmopolita, no sentido que já teve a oportunidade de entrar e
sair de diversos cinemas nacionais, como o português, francês, moçambicano e
brasileiro, explorando questões diaspóricas, fronteiriças e pós-colonialistas. Na
descrição de Hjort: cosmopolitan transnacionalism: “issues relevant to particular
communities situated in a number of different national or subnational locations to
which the cosmopolitan auteur has a certain privileged access (2009, 20)”.
‘O Veneno da Madrugada’ é uma coprodução entre Brasil, Argentina e
Portugal, com locações, equipe e elenco nos dois primeiros países. A ideia de
transnational collaborative networks está intrínseca ao modo de produção da obra, e os três
países coprodutores estabelecem relações em função dos recursos técnicos e financeiros

6
As outras adaptações cinematográficas feitas por Ruy Guerra das obras de ‘Gabo’ foram: ‘Erendita’
(1982), ‘A fábula da bela Palomera’ (1987) e “Me aquillo para soñar” (1992).
para a viabilização do projeto, seja a partir das locações, equipe e elenco, como já citado
acima, seja a partir dos mecanismos para sua seleção pelo Programa IBERMEDIA, em
20037.
Por fim, ‘O veneno da madrugada’ é ainda um exemplo de Afinitive
transnationalism, uma vez que o realizador estabelece uma parceria antiga para
adaptações das obras literárias de Gabriel Garcia Marquez, sendo o filme a quarta
adaptação cinematográfica das obras desse escritor. Na definição de Hjort, Afinitive
transnationalism se expressa na tendência para comunicar com os nossos semelhantes
“with similarity typicaliy being understood in terms of ethnicity, partially overlapping
or mutually intelligible languages, and a history of interaction giving rise to shared core
values, common practices, and comparable institutions (2009, p. 17)”.

Considerações Finais:

Uma indagação que surge nessa breve análise das coproduções transnacionais é
se estas se concretizariam da mesma forma como obras nacionais? Ou ainda, como se
concretizariam essas coproduções se fosse produzidas fora do âmbito do Programa
IBERMEDIA?

Para responder a primeira pergunta podemos olhar para os três filmes


identificando os traços de nacionalidade que eles carregam sejam em seus aspectos
narrativos ou de produção. No caso de ‘Arte de Roubar’ a intenção é clara de se realizar
um produto com características ‘universais’, capaz de ser assimilado no amplo circuito
audiovisual. O filme não busca identificar traços de um ‘ibero-americanismo’ tal como
preconizado pelo Programa IBERMEDIA. Já em Tabu, a coprodução parece ser
necessária mais como recurso para ampliar as possibilidades financeiras do filme (o
Brasil, embora seja coprodutor, não aparece na narrativa, nem sequer na equipe técnica)
do que como possibilidade estética. O filme aproxima-se mais de uma ideia de
identidade luso-africana que ibero-americana. Neste caso, o filme pode ser visto como
cinema nacional português. No terceiro caso, a narrativa não tem relação com nenhuma
nação específica, mas é facilmente identificada numa perspectiva sul-americana. As

7
Para ser selecionado pelo Programa o país coprodutor majoritário deve apresentar como pelo menos um
dos outros países coprodutores minoritários algum que faça parte do programa. Atualmente, 19 países
integram o programa, dentre eles Brasil, A rgentina e Portugal.
vivências do realizador, no entanto, o põe numa condição já a priori de diretor
transnacional refletindo isso em seus filmes.
É claro que esse pequeno exercício não dá conta de representar a complexidade
de corpus muito mais amplo dos filmes luso-brasileiros realizados com apoio do
IBERMEDIA. Mas essa tentativa aponta alguns caminhos pelos quais pretendo seguir
para empreender na minha pesquisa de tese.
Referências Bibliográficas:

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