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Da Metafísica à Ciência*

Waldir S. Guimarães

1. A Crítica da Razão Pura tem por objetivo responder à primeira questão


formulada em seu parágrafo B 833, que é a seguinte: QUE POSSO SABER? ("Was
kann ich wissen?"). Mais exatamente, procura ela dar conta dos limites do
conhecimento, sua possibilidade, suas condições.
Ao fazer tal pergunta, o autor tinha em vista o conhecimento metafísico, isto
é, aquele que se encontra no âmbito exclusivo da razão. Pois ele diz no início do
Prefácio: "Se a elaboração dos conhecimentos pertencentes ao domínio da razão segue
ou não o caminho seguro de uma ciência, é julgável logo a partir do resultado"1. Já ali
se torna patente sua suspeita. A ciência, para ele, inclui a razão e a experiência; pelo
menos é o que se pode ver no começo da Introdução, §§ 1 e 2, onde ele afirma:

"Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a


experiência (...)
Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a
experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da
experiência."

Isto é, não pode haver uma separação absoluta entre as duas, como queriam o
"dogmatismo racionalista" de Descartes e o "ceticismo empiricista" de Hume (as
expressões são de Kant).
De qualquer modo, mesmo declarando que não pode haver essa
independência, é preciso investigar “se há um tal conhecimento independente da

* Este texto constitui o Preâmbulo da primeira parte da dissertação de mestrado do autor.


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CRP, B VII
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experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos"2. Este é o problema central


de toda a obra. Podemos entender tal benevolência como uma tentativa de salvar a
metafísica. Kant não é contra esta modalidade de conhecimento; apenas exige que ela
tenha mais rigor, isto é, que busque aproximar-se dos cânones objetivos.
O conhecimento independente da experiência, explica ele, é puro e denomina-
se a priori, enquanto o seu oposto – o que provém da experiência – é empírico ou a
posteriori.
Dessa distinção entre puro e empírico deriva a necessidade de classificar
também os juízos, os quais podem ser analíticos ou sintéticos. Juízo analítico é aquele
cujo predicado já está contido logicamente no sujeito; a conexão do predicado com o
sujeito é pensada por identidade. Exemplo: "Todos os corpos são extensos". Este juízo
é analítico, porque a extensão pertence por análise e necessariamente ao conceito de
corpo. Quanto ao juízo sintético, nele o predicado não está conectado necessariamente
por identidade ao sujeito; seu conteúdo é fornecido pela experiência e acrescenta algo
ao primeiro. Exemplo: "Todos os corpos são pesados". O conceito de peso não deriva
simplesmente do conceito de corpo, sendo ele acrescentado de forma sintética pela
experiência.
Somente a partir da diferenciação entre juízo analítico e juízo sintético, no
entender de Kant é possível saber se há realmente um conhecimento puro da razão. Ou
em outros termos, se é possível a Metafísica como ciência.
Para esclarecer ele cita a Física e a Matemática. Mostra como em todas as
ciências teóricas da razão estão contidos juízos sintéticos a priori como princípios.
Tanto na Matemática como na pura Ciência da Natureza, todos os juízos são sintéticos,

2
CRP, B 2
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ainda que pensados anteriormente à experiência. Isto deve-se dar também na


Metafísica, se ela pretende obter o estatuto de ciência. Para chegar ao nível da
Matemática e da Física, nela precisarão estar contidos conhecimentos sintéticos a
priori, não estacionando no desmembramento puro e simples de conceitos de coisas já
conhecidas, ou seja, deve acrescentar a si mesma conhecimentos.

2. A questão básica, então, é saber "como são possíveis juízos sintéticos a


priori". Kant atribui a situação vacilante da Metafísica ao fato de que até à sua época
não se tinha colocado esse problema, e nem mesmo a diferenciação entre juízo analítico
e juízo sintético. Segundo ele, da solução de tal problema depende "a possibilidade do
uso puro da razão fundar e levar a cabo todas as ciências que contêm um conhecimento
teórico a priori de objetos"3 . Isto é, por meio dela podemos saber: como é possível a
matemática pura e como é possível a ciência pura da natureza. O como aqui não
expressa nenhuma dúvida sobre a existência dessas ciências, pois são um fato; refere-
se antes ao modo como elas acontecem, suas condições ou limites. Quanto à Metafísica,
parece, sua existência como ciência não é tão clara; alcançou ela pouco progresso; por
não ter correspondido ao seu objetivo essencial, que é o de ampliar sinteticamente o
seu conhecimento a priori, faz duvidar da sua própria possibilidade. No máximo se
apresentaria como uma espécie de conhecimento dada, não científica; expressa uma
disposição natural da razão humana (metaphysica naturalis), que dela tem necessidade.
Corresponde a um estágio especulativo que não encontra respostas na experiência, ou
em princípios aí originados.
Porém, mesmo sendo resultado de uma disposição natural da razão, cumpre

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CRP, B 20
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perguntar pelo modo como ela acontece. As tentativas até então no sentido de responder
às perguntas surgidas naturalmente da razão especulativa não foram, segundo Kant,
bem sucedidas. Presa de inevitáveis contradições, tal disposição precisa alcançar "uma
certeza quanto ao saber ou não-saber dos objetos"4, isto é, definir bem o seu campo de
investigação e também os limites de nossa capacidade para conhecê-lo. Em outros
termos, significa perguntar: "como é possível a Metafísica como ciência?"

3. Para que a razão não corra o risco de se perder em afirmações infundadas ou


verdades só aparentes, pensa Kant, deve ela passar pelo crivo da crítica. A metafísica
tradicional, por não ter feito isto, tornou-se dogmática. O dogmatismo sem crítica
conduz ao ceticismo, pois a um enunciado aparentemente verdadeiro pode-se opor
outro exatamente igual.
A Crítica da Razão Pura pretende ser essa crítica. Ela inaugura o criticismo na
filosofia. Crítica não apenas da razão, mas também da experiência. Procura mostrar os
limites tanto do racionalismo de Descartes como do empirismo de Hume. O criticismo
nega qualquer unilateralidade no pensamento. No que diz respeito à ciência, e por
conseguinte à Metafísica, a preocupação maior é com a objetividade do conhecimento,
sua legitimidade e consistência.
O resultado dessa crítica, ou conhecimento sobre o conhecimento, Kant o
denomina transcendental. Seu conteúdo não se refere propriamente a objetos, mas ao
"nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve ser possível a priori" 5.
Tal conhecimento, frisa o autor, se acha em estado apenas embrionário, não chegando

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CRP, B 22
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CRP, B 25
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a constituir um sistema ou doutrina. Alcançado este nível, seria a filosofia


transcendental, da qual a Crítica da Razão Pura dá só o projeto arquitetônico. No
parágrafo 27 desta obra ele define a filosofia transcendental como "o sistema de todos
os princípios da razão pura". O objetivo de Kant, aí, como ele mesmo diz, é somente
uma crítica transcendental, visto que não busca ampliar conhecimentos e, sim, apenas
retificá-los, fornecendo "a pedra de toque que decide sobre o valor ou desvalor de todos
os conhecimentos a priori."6 O resultado dessa crítica, acredita ele, servirá de cânon
objetivo para julgar o conteúdo filosófico que, no passado ou no futuro, se pretende
metafísico; não só metafísico, mas científico em geral.

4. O grande mérito de Kant, portanto, foi ter estabelecido a distinção entre


ciência e não-ciência. Esta distinção, em sua obra, se inscreve no âmbito de um
problema mais abrangente, que é o de um conhecimento através da simples razão pura
("a síntese a priori"). Nos Prolegômenos o autor sintetiza a complexidade dessa
problemática, quando diz que a razão, para representar de fato conhecimento, precisa
de uma crítica que

"exponha a provisão dos conceitos a priori, a subdivisão segundo as


diversas fontes, a sensibilidade, o entendimento e a razão; além disso,
um quadro completo dos mesmos e a análise de todos estes conceitos
com tudo o que deles pode ser deduzido, mas, em seguida, sobretudo a
possibilidade do conhecimento sintético a priori por meio da dedução
destes conceitos, os princípios e também, finalmente, os limites do seu

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CRP, B 26
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emprego"7

Tal conhecimento a priori existe, como foi dito, e são muitas as proposições
sintéticas a priori de "certeza indiscutível"8. Não se trata, portanto, de interrogar sobre
a sua possibilidade; antes, é preciso "investigar o fundamento dessa possibilidade"9, e
assim estabelecer "as condições do seu uso, o seu âmbito e os seus limites10.
A filosofia que não leva a sério isto, diz Kant, é detestável e sem justificativa,
sabedoria falsa e sem fundamento. Mas, reconhece, é uma questão difícil, que exige
persistente reflexão, "mais profunda e mais penosa do que alguma vez o exigiu a mais
extensa obra de metafísica11.
A solução a esta "questão transcendental capital"12 depende, para o filósofo,
da solução às questões seguintes: 1) Como é possível a matemática pura? 2) Como é
possível a ciência pura da natureza? 3) Como é possível a metafísica em geral? 4) Como
é possível a metafísica enquanto ciência? 13.
A matemática, não tendo nenhuma base empírica, tem o fundamento de sua
possibilidade na intuição pura através da qual ela constrói seus conceitos e forma seus
juízos. Tais juízos são a priori certos e apodíticos, porque necessários, ao contrário do

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/189. O grifo é nosso. Utilizamos a tradução de Artur Morão, bem como o seu sistema de
sinalização em barras (/). Edições 70, 1987.
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Proleg., /41
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Proleg., /41
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Proleg., /41
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Proleg., /43
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Proleg., /47
13
Proleg., /48
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que tem origem empírica, contingente.


Com relação à ciência pura da natureza, deve ela apresentar a priori leis que
tenham o mesmo caráter necessário, universal e apodítico. A realidade a ser conhecida
refere-se à pura experiência; mas tal realidade deverá ser possível a priori e anterior à
mesma experiência. A natureza é concebida como o conjunto dos fenômenos, isto é,
das representações, cuja conexão necessária em nossa consciência (entendimento)
fornece a lei e a possibilidade da experiência; "natureza e experiência possível são uma
só e mesma coisa" 14.
Quanto à metafísica, refere-se à "aplicação da razão simplesmente a si
mesma"15 sem recorrer à experiência. Se os conceitos puros do entendimento são
imanentes, isto é, relativos à experiência (e confirmados por ela), os conceitos da razão
são transcendentes, ou seja, ultrapassam toda experiência, referindo-se à totalidade
absoluta ("unidade coletiva") de toda a experiência possível.
Segundo Kant, para que a metafísica seja possível, é preciso distinguir os
modos de conhecimento e determinar, conforme princípios, todos os seus conceitos.
Isto é tarefa da filosofia pura. Os conceitos do entendimento (categorias) têm sua
origem nas funções lógicas dos juízos, e os da razão (idéias) nas funções do raciocínio.
Pode-se dizer, portanto, que a metafísica, só do ponto de vista crítico clareará
seu domínio e estabelecer-se-á definitivamente como ciência. Diz Kant: "A crítica está
para a habitual metafísica de escola justamente como a química está para a alquimia,
ou como a astronomia para a astrologia divinatória"16 . E com uma vantagem a mais

14 Proleg., /113
15
Proleg., /125
16
Proleg., /190
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sobre as demais ciências: a estabilidade ou perfeição que nenhuma outra pode alcançar,
devido à sua origem. A metafísica, tendo a sua fonte na razão, não estará sujeita, após
a exposição completa de seus princípios, a nenhuma mudança e , por conseguinte, nada
restará a priori que ela deva conhecer, incluir ou inquirir.

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